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Osman Lins LIMA BARRETO EO ESPACO ROMANESCO CapiruLo Iv ESPACO ROMANESCO Conceito e possibilidades. Antes de examinarmos, como € nosso objetivo, 0 problema do espaco nos romances de Lima Barreto — sua importincia e decorréncias —, especialmente em Vida e Morte de M. J. Gon- zaga de Sd, tentaremos uma breve introdugio tebrica. Nio cons tituirdo as ‘paginas seguintes, esperamos, uma monografia dentro da monografia, ou, alternativa ainda mais ambiciosa ¢ que abso- Tutamente no’ me atrai, um roteiro ondé fossem enumerados e classificados todos os casos possiveis de aparecimento e introdugéo do espaco no romance, Ronda em nossos dias a criacio literéria, 0 na convicedo de que tudo nos contos pode e deve ser 0, encerrado num diagrama, algo de académico pousando no desafio as solugdes canGnicas, na insatisfacdo ¢ no risco, tem pouco a ver com os Lineus: ela, como diz Gilles La- pouge, referindo-se be mente fala do naturalist, raga ‘Assim, em harmonia com a minha compreenséo da Litera- tura — terreno, para mim, jubiloso © mével —, apenas buscarei assentar certos pressupostos indispensdveis 4 conclusio do estudo. Ver-se-4 mais tarde, que nem sempre os mencionados pressu- postos encontrario correspondéncia e exemplo nos livros de Lima Barreto. Pode suceder, inclusive, que certas manifestagées do espaco lembradas a segui mse em simples ponto de refe~ réncia: que néo sejam exemplificadas nos textos do escritor, mas astadas, rompidas, negadas, submetidas ali a uma espécie de Objetivando oferecer um exemplirio tio variado quanto possivel da presenca do espaco na ficcio, chegaremos mesmo a esquecer um pouco o autor de Policarpo Quaresma. Criadores diversos invadirdo as paginas que se seguem. r pagina onde precisa- € tenebroso 0 seu co- ‘& imprevisivel 4 In: Utopie et Civilisations. p. 180. CONCEITO E POSSIBILIDADES 63 Move-se o homem e recorda o passado. Nada disto o paci- fica ante o espaco e 0-tempo, entidades unas ¢ misteriosas, desafios constantes 2 sua faculdade de pensar. Acessiveis @ experiéncia jmediata ¢ esquivos as interrogacGes do espirito, sugerem — es- paco e tempo — miltiplas vers6es, como se monstros fabulosos. Vemos Santo Agostinho, meditando sobre o tempo, expressar 0 célebre confronto entre a apreenso intuitiva ¢ 0 pensamento dis~ cursivo: “O que € por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se 0 quiser explicar a quem me fizer esta per- gunta, j4 na 0 antes, um discipulo de Parménides, Zenio de ‘oncebe 0 paradoxo da flecha. A cada momento do tempo, lembra Zendo, ocupa a flecha disparada um determi- nado espaco; ocupar um determinado espaco quer dizer: estar fem repouso. Seria possivel, somando varios repousos,. obter 0 movimento, esse transito no espaco © no tempo? Conclui estar jimével a flecha que voa — e talvez tenha razio. Mergulhados, pois, no espago e no tempo, movendo-nos despreocupados no es- aco e no tempo, sendo nés préprios espago © tempo, experimen- temos a sensacdo de invadirmos uma regio minada por inume- raveis armadilhas, ilusdes e equivocos quando os nomeamos. E se ouvimos os que sobre 0 assunto meditam, eis-nos enredados entre as teorias relacionais (segundo as quais espaco € tempo so redutiveis a coisas e eventos) ¢ as absolut lerando o tempo € 0 espaco, sua irredi ras (para estas, 0s predicados temporais basicos icas entre instantes e acontecimentos também 108) € as st 5, mais sutis (onde aprendemos que as enti- dades temporais bésicas sfio apenas instantes ou eventos ocorridos na mente). Como, entio, discorrer sobre 0 espaco, clandestina- mente, sem legitimar 0 conceito nas controvertidas fronteiras da Filosofia? Ou, irresponsabilidade mais grave ¢ talvez. imperdodvel, como ocupar-se alguém do espaco dissociando-o do tempo? Nao s6 espaco ¢ tempo, quando nos debrugamos sobre a narrativa, so indissociveis. A narrativa é um objeto compacto € inextrincvel, todos os seus fios se enlagam entre si ¢ cada ‘um reflete inGmeros outros. ° Pode-se, apesar de tudo, isolar arti- ficialmente um dos seus aspectos e estudé-lo — néo, compreende- 2 Acostmsio. Confissdes. p. 321. 2 Referindo-se is. ligagdes entre os personagens de um romance, escreve Guy Michaud: “E nao € sendo por um esforgo de abstragao ¢ de sintese jimos a linha aparente de uma ago, do mesmo modo que fos apercebemos, a um s6 olhar, das linhas e das figuras que se isolam do pontilhismo da tapecaria.” (L'Ocwvre et ses Techniques. p. 128.) 64 CAP. IV — ESPAGO ROMANESCO -se, como se os demais aspectos inexistissem, mas pr sobre cles: neste sentido, € vidvel aprofundar, numa obra literdria, @ compreensio do seu espago ou do sew tempo, ou, de um modo mais exato, do tratamento concedido, ai, ao espago ou a0 tempo: que fungéo desempenham, qual a sua importancia e como os in- troduz 0 narrador. Note-Se ainda que o estudo do tempo ou do espago num romance, antes de mais nada, atém-se a esse universo romanesco ¢ ndo ao mundo, Vemo-nos ante um espaco ou um tempo inventados, ficcionais, reflexos criados do mundo e que no raro_subvertem — ou enriquecem, ou fazem explodir — nossa visio das coisas.¢ Afima, por isto, A. A. Mendilow, na ‘onclusdo’ ‘mance, que, ramente, de certos aspectos de uma forma particular de seriam irrelevantes “teorias teolbgicas, metafisicas, matem: Psicol6gicas.” ® Mais ou menos 0 mesmo adverte Robert Lidell em Some Principles of Fiction: “endo sio necessérias aqui espe- culag6es metafisicas sobre a natureza do Tempo”. * Seja-nos en- ‘to permitido no apenas isolar, de modo um tanto a espago © tempo, como manipular, com ligeiteza, palavras fleadas — sacralizadas, dirfamos — por um solene passado Havendo, desde sempre, desafiado os problema do tempo, neste século, uma import tando visivelmente outros dominios do esy ticas recentes opdem-se & apreensio saltando decididas para uma inserg ficco tem sido particularmen menos, os estudos Decerto, hé correlagdes muito claras entre o tempo e a —e, no ratura, , especialmente no recinto da arte narr onde tant conceitos de crescendo, adia- mento, imax, troca de tempo, retros- vendo esquecer a importincia do chamado tempo psicoldgico, 4 Nilo esquecamos, por exemplo, as obtis cot * de : Some Principles of Fiction. p. 38. CONCEITO F POSSIBILIDADES 65 Todos esses recursos da arte de contar exigem do escritor discer- rnimento e dominio dos meios expressivos. * Ma: proporciona grandes p\ ‘Observa-se que em algumas narrativas 0 espaco rare ¢ impreciso. Mesmo entio — excetuada, evidentemente, a even- fade de inépcia —, ha desfgnios precisos ligados ao problema espacial: intenta-se, por um lado, concentrar o interesse nas per- sonagens ou nas motivagdes psicolégicas que as enredam; pode ser também que se procure insinuar — mediante a rarefacdo € » lanprecisio do espaco — que essas mesmas personagens € as lagdes entre elas sio mais ou menos gerais, eternas por assim dizer, carentes, portanto, de significado histérico ou sociol6gico: de significado’ circunst Entretanto, inclusive neste caso, alcangam em geral vibragio mais intensa aquelas obras onde 0 espaco atua com o seu peso. A impossibilidade de ingresso num determinado espago, espaco que ocupa o centro do romance exa~ tamente por ser inacessivel — e sem o qual ngo existiria a obra 1 de O Castelo, de Franz Katka. A presenga em nada restringe a impor- (0, seu cardter a-hist6rico, ndo-circunstan- Castelo ou de um verdadeiro dominio feu- imbologia, Imediatamente 0 proprio sim mesmo nessa suas expresses mais, fungio de sugerir a extensio da luta entre 0 homem 10. Que pode haver de mais empolgante, esse an- ‘gustiado Capitio Ahab cruzando 0 oceano a procura de Moby Dick, fazendo do encontro com a baleia branca a ‘nica razdo de viver — e que outro cendrio poderia conferir mais densidade e altura ao seu drama? Toda uma linhagem de romance de aventuras vai buscar no mar fora e mistério — e so ainda ‘0 grande tema de Conrad. O esforgo de Lord Jim no sentido de reconstruir “penosamente © respeito de si mesmo numa longa vida de perigo, luta, dedica- que tiveram mais difieuldade em ges. imobilizevam-se ou voavam, faltando-thes, fiuéncis ¢ harmoni Pxonos, Sérgio. Franz Kafka ea Expressdo da Realidade. p. 107. 66 CAP. 1V — ESPAGO ROMANESCO f0",® prende-se ao naufrégio do Patna, onde socobram igual- mente seus sonhos de heroismo. Jean Paris, que viria a estu- dar, em ensaio brilhante e rico de poesia, espago eo olhar nas artes plésticas, 1 salienta a importéncia do labirinto na obra de James Joyce. O mesmo tema, segundo Jean Paris, impregnaria ~ outras obras mestras: “Como a viagem, a grande obra, a busca do Graal, 0 Labirinto propde uma alegoria do destino’ hunano. A esse titulo, figura, sendo diretamente, ao menos sob forma de plano, de encadeamento das peripécias, em todos os romances que, de Simplicissimus Montanha Médgica, de Withelm Meister a0 Retrato do Artista Quando Jovem, descrevem a infancia, a educagio de um heréi.” * Conhece-se, por outro lado, a impor- tancia do labirinto, dos espelhos e outros elementos espaciais na obra de Jorge Luis Borges, temética que muitos titulos seus evidenciam: As Ruinas Circulares, A Biblioteca de Babel, C Jar- ‘As Viagens de Gull Gulliver € 0 espaco, obtendo variados efeitos de singularizacio. Inventa paises fantésticos, orientando a fantasia no s questionar idéias e problemas da sua época. Liliput, Brot Laputa, Baluibarbi, Glubbdubrid, o Pafs dos Houyhnhms, eis uma toponimia to extravagante e inesperada como os lugares nomea- dos. Espaco imaginério, igualmente importante ¢ insdlito, mas de natureza bem diversa 0 de Lewis Carroll. As aventures de Alice efetuam-se em paises, do Espelho ou das Maravilhs que falam, cartas de baralho adquirem inam aparecimentos ¢ desaparecimentos, instauram-se transformagdes (stbitas metamorfoses) como lei constante do ‘mundo e que, inch minasse 0 espa\ de ajoelhar-se no assoalho: um minuto depois, jé nao dispunha de lugar para manter-se de joelhos ¢ tentava deitar-se, com um jocIho’ contra a porta e 0 outro brago dobrado por cima da ca- bega. Mesmo assim, crescia ainda e, como tiltimo recurso, pos um brago para fora da janela e um dos pés na chaminé, € disse Mais do que isto, nao posso fazer, acontega 0 que 2 Em José J. Veiga, um elemento aparentemente © Caxoino, Antonio. Tese ¢ Antttese. p. 67. Te Regard. James Joyce par luicméme. ices Adventures Wondelindp. 126 CONCEITO F POSSIBILIDADES 67 ordinério (f4brica, méquina, comunidade alienigena mantida a dis- fator faz parecer fantistico, impregna e do- © conto-titula de A Médquina Extraviada; Sombras de Reis Barbudos. Se obras, S Ou miticas beneficiam-se do espaco, utilizando-o como, elemento dominante, pode-se prever sua importincia em narra- Vidas Secas, de Graci= ambém um romance do antes habitével ‘as personagens, ao também uma pazes de permanecer num s6 lugar, pl necer num s6 lugar — deslocam-se continuamente de um lado a outro dos EE.UU., aleangando inclusive regides onde a nagio americana exerce i to visa a aprender nfo 86 as cidades e as estradas americanas, mas 0 seu clima politico € econdmico, De modo algum procuramos, com os exemplos dados, esta- belecer mesmo de longe uma tipologia do espago; eles constituem uma ilustragdo das suas possibilidades; reforcam, simultaneamente, ‘a importincia que pode ter na ficcio esse elemento estrutural € indicam as proporgies que eventualmente alcanca 0 fator es pacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns// * Svel, o fulero, a fonte da ago. Lembraremos ainda; , anunciada a partir da! sunstincia de ocupar-se 0 Aedo, na Miada, da indica a presenca que teria ‘no poe! ftica do espaco, suste ntes de ceder o lugar peregrinagdo. A mais © espaco. sobrenatural abrangendo o Inferno, o Purgat I, 0 Paraiso, surge a0 romper o século XIV. Os ‘dantes navegados” sto o espaco privilegiado na épica de Camdes. “O meio — como diria 0 hingaro Jean Hankiss'® —, onde se move o heréi de ambiciosa concepeio 38 “La Littérature et la Vie" In: Boletim de Letras. 1961, n° 8. Sto 68 CAP. IV — ESPAGO ROMANESCO um romance ou de um drama, no se limita a contribuir para explicar o her6i, suas origens espirituais, suas agGes e suas reacdes. Ele emancipa-se, (...) para ocupar, na hierarquia dos fatores, um posto mais elevado do que the seria assegurado pelo seu ca- de atmosfera, de verdadeiro pano de fundo.” Surmelian, cuja visio € també rio (setting) pode ser o mais i tante elemento numa hist6ria, como em Madame Bovary, ¢ tirmos contra o elemento descritivo na ficgio, que mostra personagens em acdo, o cenério teré provavel- mente um cardter mais negativo que positivo.” »* Concede, em Some Principles of Fiction, apenas uma pagina 20 backgraund, quase toda de transcrigdes: a primeira, de Remy. de Gourmont, diz que “o cenério de um romance é coisa de bem pouca im- porténci ‘Ora, 6 esse controverso © (pode Robert Li amplo aspecto da arte romanesca que, variament tado e tratado pelos criadores, permanece ainda — ao do que se observa em relacio ao tempo —, insufi iuminado por um esforgo analitico. A caréncia, entre a ser suprida e Gérard Genette encoraja-se mesmo a indicar que, no plano da ideologia geral, um fato parece certo: “é que o des- crédito do espaco que tio bem exprimia a filosofia bergsoriana cedeu Iugat a uma valorizacdo inversa, a qual diz a sua maneira que 0 homem prefere 0 espaco ao tempo.” ** Mesm no romance de Proust, afetado a partir do titulo geral pela realidade bergsoniana do tempo, uma realidade intuitivamente apreerdida pela sensibilidade (oposicfo ao tempo da séncia conceptual, abstrato), comeca-se a descobrir a importincia do espaco. contestar?) Paulo, FHE.C. 0 Ensino da da USP. p, 155, citado por Corto, Nel 168. ies of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 37 the Novel._p. 110. Nevaes. paisagem ide Média 0 lum interessante extrato do livro de Joseph Frank. “La Forme Spaciale dans la Littérature Moderne.” In: The Widening Gyre, ‘and. Mastery in ‘Modern Literature. p. 244 et segs. A tese de Joseph Frank, das im estimulantes, diz que “a literatura contempordnea evolui no sentids da CONCEITO © PossiBILIDADES 69 Ora, como deveremos entender, numa narrativa, 0 espaco? Onde, por exemplo, acaba a personagem © comeca o seu espaco? A separacéo comeca a apresentar dificuldades quando nos ocorre que mesmo a personagem espaco; e que também suas recor- daghes © até as visdes de um futuro feliz, a vitoria, a fortuna, flutuam em algo que, simetricamente ao tempo psicoldgico, desig- nariamos como espaco psicoldgico, nao fosse a adverténcia de Hugh M. Lacey de que aos “denominados eventos mentais (percepgies, lembrangas, desejos, sensacdes, experiéncias) nfo podemos, em nenhum sentido habitual, atribuir localizagdo espacial.” #° Exce- tuando-se 0s casos, hoje pouco habituais, de intromissio do nar- rador impessoal mediante 0 discurso abstrato, tudo na fiegao su- | gere a existéncia do espago — e mesmo a reflexdo, oriunda de, uma presenga sem nome, evoca o espago onde a proferem e exige um mundo no qual cobra sentido. Temos, pois, para entender © espaco na obra de ficcdo, que desfiguré-lo um pouco, isolando-o dentro de limites arbitrétios. - “Descansou os embrulhos em cima da mesa nua — lé-se num conto de Marques Rebelo —, ocasionando um véo preci- pitado de moscas, dobrou 0 jornal com cuidado, obedecendo as suas dobras naturais, e escovava o chapéu, preto ¢ surrado, quan- do Dona Veva, pressentindo-o, perguntou da cozinha “— Vocé recebeu, Jerome? forma espacial”. Corresponderis, a forma espacial, a uma ética temporal e ado de uma auséncia de harmonia entre o cr © 0 mundo. ese ponto devi Proust, Joyce e um ‘romance praticamente desconhecido no’ Brasil, wood, ‘de Djuna Barnes. Metecem toda a atengio os ensinamentos de Antonio Candido, no seu ensaio “D: Tese e Antitese. p. 1-28), mostra a importicia da 30 In: A Linguagem do Espago e do Tempo. p. 20, 710. car. IV — ESPAGO ROMANESCO “— Recebi, filha, respondeu pendurando o feltro no cabide de bambu japonés, que atulhava o canto da sala, por baixo duma tri- cromia, toscamente emoldurada, representando 0 interior dum sub- marino inglés em atividade na Grande Guerra.” is um setor do espago com personagens € situacéo. O ambiente pequeno-burgués, pobre de adomos, com sua ti- cromia ordindria e a sala to exigua que um cabide de bambu parece demais, tudo af estd. O delineamento do espaco, processado com célculo, cumpre a finalidade de apoiar as figuras e mesmo de as definir socialmente de maneira indir como adiante veremos. Surge a sala, pressente-se a cozinka, divisa-se 0 homem e calcula-se aproximadamente um intervalo, um espago, entre ele © a mulher que o interroga, Essas duas figuras (personagens) e a casa modesta onde se encontrem (espago), ao mesmo tempo em que se opdem, completam-se. A diviséo, porém, entre espago e personagem € realmente nitida ou deixa margem a davidas? Traz 0 homem alguns embrulhos, jornal usa chapéu, Podemos dizer, a0 vé-lo, que o jornal, os embrulhos eo chapéu fazem parte do espaco? Compiem, personagem, completando — material, social ¢ psicologica: —a sua figura. Jornal e embrulhos ainda podem ser ocasion: chapéu pertence a0 personagem ¢ concorre para a sua caracteriza- do, (Nao conhecia D. Casmurro “de nome e de chapéu” seu con- Panheiro de trem?) Aquele mesmo chapéu, uma vez pendurado no cabide de bambu japonés, pertencendo ainda ao personagem, personage e espaco, um limite v mento. Os liames ou a auséncia de liames entre o mesmo objeto fe a personagem constituem elemento valioso para uma aferigio justa. 34 em Clarice Lispector encontramos (“Amor”, conto inclai- do em Lacos de Familia) um dos mais fascinantes exemplos de set * humano com funcao esp: “© bonde se arrastava, em seguida estacava, Até Humai nha tempo de descansar. Foi entio que olhou para o homem para~ do no ponto. “A diferenca entre ele ¢ os outros & que ele estava realmente parado, De pé, suas mos se mantinham avangadas. Era um ce30. 21 In: Oscarina, p. 47. CONCEITO = POSSIBILIDADES 71 “O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfian- ‘ga? Alguma coisa intrangiiila estava sucedendo. Entio el cego mascava chicles... Um homem cego mascava Quando toma o bonde, inconseqiiente: uma cena hat trazendo as suas compras. O leitor seguir um erro imperdodvel da cont so aos outros, passageiros do bonde. Ana é como se seguisse num bonde fantasmagérico. Quando ela vé 0 cego é que percebemos Por que tomou o bonde; € por que o trajeto, até agora, realiza-se num mundo desabitado. Viesse a pé ou de automével, poderia deter-se a vista do cego que masca chicles, quando a breve cena, breve ¢ importante, tem de ser répida, para que essa fugacidade impresstio de magia e de incerteza: uma aparicio. nna rua logo fica “atrés para sempre” e, simples coisa se ao bonde, as ruas largas e a0 vento timido que im da hora instavel”. Pela sua impessoalidade, pelo seu cardter de coisa, inscreve-se no puro espaco, um elemento a mais no espago hostil em que, por algum tempo, Ana se move, an- tes de apagar “a chama do seu dia.” E se nao vemos seres vivos no bonde e no trajeto, é para ressaltar a figura do cego, que assim nos surge solitéria jada, coisa ocupando o vazio, numa seres inanimados ndo como no conto de 1do por um subterréneo, vé das quais surgem centenas tamanhos e cores imaginsveis engastadas com uma arte incone: na ¢ rebaixadas a um crescimento vegetativo. Quando, aproximan- do-me, iluminei esses laramente que viviam, pois as pupi- las Jogo se contrairam.” ** Trata-se de um conto inscrito claramente na tradigéo negra, mas 0 proceso — com fungdes bem diversas € num grau atenuado — é freqtiente, como em Lima Barreto: siderei também a calma face da Guanabara, ligeiramente mantendo certo sorriso simpético na conversa que éntabulara com ‘@ grave austeridade das serras granfticas, naquela hora de efuso 22 In: Lagos de Familia, p. 25. 28 In: Lo Grotesco.. p. 174. 72 cap. 1V — EsPAgO ROMANESCO rou de cima de si que néo era feio que 0s meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrario, os ais ainda que nos v uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era a mesma opiniao.” Podemos, apoiados nessas preliminares, dizer que 0 espaco, no romance, tem sido — ou assim pode entender-se — tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem € que, inventa- riado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela’ persona- gem, sucedendo, inclusive, ser constitufdo por figuras humanas, en- tao ‘coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para zero.** Difere, portanto, nossa compreenséo do espago, da de Massaud Moisés, para quem no “romance linear (0 roméntico, 0 realista ou 0 moderno), 0 cenério tende a funcionar como pano de fundo, ow universo de seres int Deve-se ter presente, no estudo do espago, que 0 seu horizon- no texto, quase nunca se reduz ao denotado. Por vezes, claro, tende a fechar-se, como nas histérias policiais ¢ de horror, onde proliferam as ilhas, as mansOes solitérias, o: 0s subterrineos, os quartos fechados, tudo indicando a de um seccionamento radical entre o mundo da narrativa ¢ do da nossa experiéncia, O hi Meyrink, por exemplo, sa: este subterraneo é um espaco fechado, monstruoso, tt miético em todos os sentidos. A sala de Marques Rebelo, ao con- inserindo-se no mundo conhecido e na meméria que possui- ‘mundo, transcende o que registra 0 texto. Eis o que lemos fe vemos: uma sala e, fora de foco, suscitada por uma alusio téo de distancia, a cozinha. Nao se esteja fora do texto: imy zona , orla do nomeado, quem nfo inte do subterréneo de Gustav pode dizer que ouco iluminada, apenas pressenti 24 In: Gonzaga de Sd. p. 39. CONCEITO E POSSIBILIDADES 73 s pancadas soam mnscrevemos & su- texto, do espaco fisico, nao ‘amos; para além do nada mais vemos. Dispensivel acrescentar que os poucos nomeados — mesa nua e cabide de bambu japonés —, proliferado- res de espagos ainda mais potentes que a it a0 restante da mobilia ou a nomeiam em siléncio, quase como se pudéssemos vé-la, ““Necessitamos pormenores, que nos seja apre- sentada uma amost ai cer uma fungao di 1, um caso dos mais simples) anilise as revele. A andlse, aq -se as personagens do conto na periferia de alguma cidade ¢ por- tanto da sociedade; pessoas de reduzidas posses, desconhecem ou rue em suas almas um anseio jcante; falta nesse espago qualquer nota de alegria, para o {que concorrem os gestos do homem, dobrando cuidadosamente 0 jornal (expresso do seu respeito ante esse liame entre @ sua exis- téncia suburbana e o mundo) e escovando 0 chapéu “preto e surra- alusbes & austeridade da sua vida, a habitos de vestuério (in- temporal atemmado) ¢ A necessidade de conservar os objetos de uso pessoal, evidentemente pouco numerosos. Observe-se que tudo af converge, harmonicamente (persona- gens, aco, espaco € mesmo tempo, um tempo vagaroso, sugerido pelo verbo “descansou”, ao invés, por exemplo, de “jogou”, ¢ pela 3 Buror, M. Reperioire Il. p. 45. 4 cap. V — ESPAGO ROMANESCO locugio “com cuidado”), #* para estabelecer, desde 0 infcio, a idéia geral do conto. Objetiva o escritor apresentar dois quadros con- tiguos de pobreza: os hébitos domésticos de um pequeno funcio- nério a desolagéo da mulher apés a sua morte, ilustrando assim © desamparo e, em conseqiiéncia, 0 cardter sombrio de um deter- minado setor da sociedade. Sera correto dizer que as indicagSes cénicas de Marques Re- belo nos conduzem a um espaco social? Menciona Nelly Novacs Coelho 0 ambiente natural como equivalente & paisagem, natureza livre; 0 ambiente social seria a natureza modificada pelo homem: casa, castelo, tenda etc. Parece-nos, contudo, que se pode fazer da expresso um uso mais amplo, se bem menos nitido. Como no- meariamos, senéo assim, certo conjunto de fatores sociais, econd- micos e até mesmo historicos que em muitas narrativas assumem extrema importincia ¢ que cercam as personagens, as quais, por vveres, s6 em face desses mesmos fatores adquirem plena significa- $40? A que se refere, por exemplo, Francisco de Assis Barbosa, quando diz. nio ser possfvel “proceder-se & revisio da nossa hist6- ria republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5 de julho”, pres- cindindo da obra de Lima Barreto? Ao tempo ou ao que propomos denominar espago social? A nogao de um espaco assim compreen- dido parece-me aliés bem «til quando apreciamos romances co- mo Isafas Caminha, Policarpo Quaresma ou Numa e a Ninja. Con- fronta-se 0 futuro escrivio com um espago social caracterizado com muita precisio (ao mesmo tempo que 0 espaco fisico) e nfo estaremos longe da verdade se dissermos que, no obstante a im- portincia da paisagem, maior é a importfincia — e também o efei- to sobre Isaias — do espaco social. A luta de Quaresma, travada contra a terra, 6 ordinariamente empreendida contra entidades ‘menos coneretas: circunstincias sociais, econdmicas e hist6ricas znas quais esta mergulhado. A Revolta da Armada, téo importante para scu destino e essencial no plano do romance, cria um cené- tio especifico, inconfundivel, nao construido com volumes, linhas, cores, mais respirdvel e.que nos parece necessério precisar. Certo espaco social, néo a totalidade de um povo, mas 0 mundo da po- ica Como expresséo desse povo, cerca os titeres de Numa ea infa. A categoria das edificagdes existentes no local onde vive ou se move a personagem pode indicar o seu espaco social; e, nes- 2 Lembra Gérard Genette que a designagio mais sdbria de uma ago pode ter algum cariter descritivo © que “nenhum verbo é inteiramente Isento de ressondincia descritva.” (Figures II. p. 57.) In: O Ensino da Literatura. p. SI, CONcEITO E PossIBILIDADES 75 te sentido, aproximamo-nos do conceito de Nelly Novaes Coelho. Diriamos, ainda como exemplo, que 0 cortigo, em Aluisio Azevedo, & espaco, simplesmente; mas 0 veremos parcialmente se no 0 en- tendermos, pelo estilo de vida em que implica, com todo um qua- dro de hébitos, de relacionamento humano, de perspectivas etc., também como espaco social. Tanto pode o espaco social ser uma Epoca de opressao como o grau de cao de uma determinada frea geogréfica. Outras tantas manifestagdes de tal conceito podem ser indentificadas na classe a que pertence a personagem e na qual cla age: a festa, a peste ou a subversio da ordem (manifestacdes armada). O espaco social, entretanto, néo se confunde com a atmosfe- ra. Estando'a nogdo de atmosfera associada ao espaco ¢ denotan- do, inclusive, o ar que respiramos, tende-se a concebé-la, no estudo da ficgio, como uma manifestagdo do espaco, ou, no minimo, como sua decorréncia. Compraz-se Lima Barreto em descrever aspectos do espaco social durante a Revolta da Armada; mas 6 uma atmos-| fera de magia, de irrealidade, que defrontamos na noite enluarada, quando Floriano Peixoto, em plena ‘Quaresma no quartel. J4 em “Penélop ma de suspeita e citime anacrénicos, vivido por um casal de © espago € bem pouco significativo, surgindo apenas como pret algumas vezes, para manifestagdes do estado de espirito do. velh “Afastou a cortina, descobriu na sombra do muro 0 vulto daquele homem. Ficou ali, a mao trémula na cortina, até 0 outro ir-se embora.” “Reconstitui os passos da mulher pela casa: se os méveis tém p6 ou nio, se a terra nos vasos de flores esté molhada ou seca..." Concentra-se no texto, calculada com sabedoria, uma atmosfera crescente de angistia, nascida exclusivamente de alusdes 20s pequenos gestos do velho — as suas palavras, poucas, nada dizem — e para a qual, a0 contrério do que observamos em outro conto do autor, “Na Praga”, nao concorre 0 espaco. ‘No exemplo de Clarice ‘a atmosfera dor conto, igualmente opres: in io da persona gem, mediante uma subjetivaco do cenério, Baseia-se 0 conto! nas relagées de Ana com o exterior. Isto num grau téo elevado que (© horizonte do espaco, pode-se dizer, coincide com 0 mundo. Re- conhecemos a cidade e 0 mundo natural, para n6s fami ‘nada ignoramos, conquanto pouco se diga, sobre o nivel social de Ana e os problematicos valores da classe que pertence, mas essas mesmas coisas, mediante recursos verbais sabiamente agenciados, 80 In: Novela Nada Exemplares. 76 car. 1v.— ESPACO ROMANESCO “decompo- Tonge do subterrineo de Mey- ‘AS coisas que cercam Ana Pequenas flores espalhadas na relva’— so quase’ todas. pres gadas, inclusive, aos topoi do bosque ¢ do lugar ameno. "A personagem, sorganizada pelo encontro com o cego, transmuda-as, segregando em toro de si, a partir de elementos naturalmente apraziveis, uma atmosfera de horror: “O Jardim era tdo bonito que ela teve modo 0 Inferno." ** Jé em Fronteira, de Cornélio Penna, a atmosfere dde mistério e alucinacdo emana igualmente do espago (espago na- tural ¢ espaco doméstico, a paisagem acidentada de Minas © os pesados méveis coloniais), da fabula e da mérbida constituigao psi- coldgica da petsonagem que narra os acontecimentos — ou 0 modo como reage ante eles. Antonio Soares Amora, em estudo sobre Iracema, escreve que, além da “pintura de seus element com as suas pupilas veget dilias, tulipas, € “a concepcio de seus icamente da obtencdo de uma atmostera poética”. Chega a sugerir que a contribuic20 do espaco para o estabelecimen- to dessa atmosfera é secundéria, quando diz que “a natureza é sem= pre elemento to importante na formagao da atmosfera Tomance, quanto a ago © os caracteres que cla plasma,” Diremos, finalizando, que a atmosfera, designacao ligada a de espaco, sendo invariavelmente de cardter abstrat id angistia, de alegria, de exaltagao, de violénci algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas no decorre necessariamente do espaco, embora surja com freqiién- 6 cia como, © espaco 1agdo deste elemento, havendo mesmo casos em que tifica-se exatamente pela atmosfera que provoca. 3 CE. Cunmus, E. R. ct segs 32 Lishecron, Clarice, Logos de ismo no Brasil. p. 127. 34 Awona, Aa ura Européia ¢ Idade Média Latina, p. 202 In: Classicimo © Roman CapiruLo v ESPACO ROMANESCO E AMBIENTACAO Ambientagio franca. Ambientagio reflexa. Ambientacio obliqua. — Ordem e mintcia, — A perspectiva. 1g0 no ema~ €, dentro’ do posstvel, tormN-lo fa |, 0s exemplos apresentados, sob que as pode 0 espaco surgir nos relatos ¢ os graus de impor- tancia que assume, Outra é a perspectiva em que agora nos si- tuamos. . © estudo de uma determinada personagem serd sempre incom pleto se também nZo for investigada a sua caracterizagao. Isto é 0s meios, os processos, a técnica empregada pelo ficcionista no sentido de dar existéncia A personagem. Pode-se dizer, a grosso ‘modo, que a personagem existe no plano da histéria ¢ a caracteri- zacao no plano do discurso. A personagem diz respeito a0 objeto caracterizagao, & sua execugio. Esta a distancia que sub- re espaco e ambientagao. Por ambientacé i Gonguant spent smutnes da image sia em grande pore stn, xgao’ 9 que podetomos Chama wane 78 CAP. V — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGKO do quadro, 36 a viséo é invocada, mas a intensidade da sua leitura vai depender do estado de espirito e, principalmente, do nivel cul- tural do contemplador; a temperatura, o siléncio reinante ou os rufdos, eis também alguns pormenores que poderdo peser quando observamos uma sala; a leitura da paisagem é incompleta se nio se nota a auséncia ou a intensidade do vento, 0 odor de resina ou de fumaga, 0 zumbir dos insetos ete. Apesar de tudo, verifica-se, ante a doacio da image ico imediata e que, mesmo quando imperfeita ¢ parc atria, © texto, 20 contrério, em virtude da sua linearidade, de- fronta, se aspira a certo grau a5 coisas so, a0 passo entre elas, certa .gBes ocorridas desde o século , algo do que diz sobre mente, chamam-se corpos. Por conseguinte, 0s corpos, com suas propriedades visiveis, sio os objetos préprios da pintura.” “Os objetos que, eles ou suas partes, sucedem-se, em geral so cha- mados ages. Por conseguinte, também as acdes si0 0 objeto pré- prio da poesia.” * Demonstra Lessing, leitor admirével e contem- inado de obras de arte, manipulando, com penetra¢io exemplos variados, este pensamento. Aristételes, na Arie Retorica, ensinando os meios de tornar o estilo pitoresco, reporta- ~se a0 “processo usado freqiientemente por Homero ¢ que consiste em animar o inanimado, pela metéfora.” * Lessing, vendo de outro Angulo os métodos do grande rapsodo, sublinha a sua inclinagio pela histéria dos objetos, mais que pela sua aparéncia. Apresenta- -nos Homero muitos dos seus “corpos — refere Lessing — em uma sucessio de instantes”.* Assim, ao invés de simplesmente descre- ‘ver um cetro, mostra-o primeiro como um verde ramo crescendo na ‘montanha, Tal solugdo revela a con: nada surpreendente nele, do conflito entre linguagem e descricio, sensivel — mais do ]quer outro campo — no poema épico e, mais tarde, no romance, géneros que representam individuos em ago (objetos que se sucedem), por isso distinguindo-se como especialmente favord- 2 In: Leocoonte 8 In: Arte Retdrica..p. 220, 4 Ini Laocoonte 6 de los Limites de la Pintura y de la Poesia. p. 128. de la Pintura y de ta Poesia. p. 125. AMBIENTAGRO FRANCA... 79 veis A linearidade da linguagem. Entretanto, Ié-se em Leon Sur- melian, no pode existir “pure action in a vacuum”: “a moderna hist6ria realista é aco e cenérios.” ® Ou seja: alternam-se ou mes- clam-se, nos relatos, acio e descrigao, a nero de objetos que, “eles ou suas partes te”. Vai, tal alternfncia ou mescla, para ‘a narrativa oferece entre motivos dindmicos e motivos estéticos (nem todas as solugdes, felizmente, esto em exigir uma série de recursos, mediante os quais seja possivel, sem comprome- ter 0 fluxo dos eventos, introduzir 0 cenétio, 0 campo onde wm as personagens. Daf o interess denominamos am- bientagio — o interesse dos recursos literdrios para estabelecer, nas hist6rias, 0 espago. ue concerne as suas relagdes com o narrador e perso- A ambientacdo, no nage gados parte do Triste Fim de Policarpo Quaresma, que transcrevemos in extenso: “Nio era feio 0 lugar, mas nao era belo. Tinha entretanto, 0 aspecto tranqliilo € “A. casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que Ihe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planicie 2 morrer nas montanhas que se viam ao longe; uum regato de Aguas paradas e sujas cortava-a paralelamente & tes tada da casa; mais adiante, 0 trem passava vincando a ph a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com casas, de um € de outro lado, saa da esquerda ¢ ia ter & estacdo, atravessando 0 regato e serpeando pelo plaino. A habitagdo de Quaresma tinha assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a ‘noruega’, © era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigéncia arquiteténica das nossas casas de cam- po, possufa, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com jane- las, © uma varanda com uma cohinata heterodoxa.”” im tipo de ambienta¢do que denominaremos franca gue pela introducao pura e simples do narrador. Nao caracterizé-la, 0 discurso avaliat6rio, evi- 5 In: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 36. 80. cAP. V — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGIO (0 qual se apresenta, ne primeira dente desde a abertura do capi dade razoavelmente longa, como 0 desenvolvimento frase). Reforca a frangueza do processo 0 perf jora indigéncia arq colunata heterodo> Por vezes, a ambientacao franca é presenga de uma ou mais personagens: you-se, enfiou a roupa de casa, veio para a uma cadeira de balanco, descansando. / Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo ele forrado de estantes de ferro./Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com 0s livros de maior tomo.” * Segue-se a enumeragao de obras existentes. Também 0 jardim do major é descrito com a ajuda des- sa mediagdo atenuada: “Acabado o jantar foram ver 0 Era ; nao tinha nem uma flor. Certamente nfo se podia miseros beijos-de-frade, palmas-de-santa-rita” etc. 7 tomar por t Utiliza-se a entrada, ou simplesmente a passagem da personagem no ambiente descrito, mas tal interferéncia é ilus6ria: 0 observador de- clarado continua a ser 0 narrador. Matiza-se, evidentemente, a am- bientagdo franca, quando 0 narrador é também personagem. O personagem-narrador, como escreve Tzvetan Todorov, pensando, haturalmente, no emprego tradicional do ew, “s6 existe em sua fala; se as outras personagens so, antes de tudo, imagens refletidas numa cconsciéncia; ele é essa mesma consciéncia.” * Assim, caracteriza-se revela-se ao longo do discurso, mesmo quando descreve mente uma paisagem. O esquema, entretanto, permanece 0 mesmo: 0 narrador (nomeado ou no) observa o exterior e verba~ liza-o, introduzindo na acdo um hiato evidente. Sendo a narrativa na terceira pessoa, acentua-se a ambienta- go franca, quando o observador, violando a objetividade, reage de lgum modo ante a coisa descrita, como ao apresentar a casa cam- pestre de Policarpo Quaresma, segundo vimos hé pouco. Inversa~ mente, a ambientagéo franca, quando enunciada na primeira pes- soa, € tanto mais caracteristica quanto menos se perceba, ante 0 que se descreve, a presenga do narrador. Isto porque a importuna presenca da subjetividade do narrador na terceira pessoa ¢, parale- lamente, a idade do narrador na primeira pessoa, represen- tam, no caso, interrupgées mais fundas do fluxo narrativo. A intensa participagéo de Isaias Caminha no trecho desc:tivo que se 6 In: Policarpo Quaresma. p. 23-24. AMBIENTAGKO FRANCA... 81 segue, estabelecendo uma tensio entre o narrador e a paisagem, esbate a cesura que o descritivo impée a0 narrativo, levando certo dinamismo a um motivo estatico: “Evolava-se do ambiente um per- fume, uma poesia, alguma cousa de unificador, a abragar 0 mar, as casas, montanhas ¢ 0 ou; pareciam por um 86 pensa mento, afastados e aj sencia coordenad: ra que calculasse a divisio dos planos, abris vas, a fim de agitar famente aquele amontoado de © aconchego, a tepider da hora, a solenidade do lugar, 0 erenulado das montanhas engastadas no’céu cncavo, deram-me impressdes varias, fantésticas, discordantes e fugidias./ Havia um brando ar de sonho, e eu fiquei todo penetrado dele Descreve Isafas sua chegada ao Rio ¢ a ambientagdo franca, quando assim conduzida, aproxima-se da ambientacio reflexa. No ensaio entremeado de notas que publica na revista Poe leitor mi processos deseri ta de Germinal lugar desconhecido, olhar maqui — “cuja fungdo é antes de tudo evi entre desctigio e narracio, de preenche va, torando verossi 3 |, curio um certo hiato 20 inserit no texto duzida eficécia da a descricdo elementos dindmicos (plenos). O romance de Zola, onde se processa, programaticamente, uma hipertrofia. do descritivo, presta-se a esiudos desse género, mas ver 0 assunto ape- nas sob 0 ponto de vista do pretext jo em demasia, desfigurando-o, Examinemos um breve trecho de Flaubert. Emma Bovary acaba de receber, de Rodolfo, uma carta de rompimento (com 0 que ela retorna, desesperada, a aridez da sua vida) e refu- jas deixavam cait a prumo um calor pesado, que Ihe apertava as fontes e a sufocava, Arrastouse até « gu fusade, 7 campina estendia-se a per- er de vista, Embaixo, a praca da aldeia estava deserta; as pedras 82 CAP. V — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGKO das calgadas cintilavam, as ventoinhas das casas estavam imévzis; da esquina da rua vinha dum andar térreo uma espécie de roxco de modulagdes estridentes. Era Binet que trabalhava no ‘0 do realista Flaubert, ai, no 6 tornar veross{- “transformar essa tematica vazia em uma tend- ” Emma conhece bem a cidade; e 0 verbo no condicicnal substituiria o seu olhar, initil além do mais para as “modulagSes estridentes” do torno. Acresce que 0 romancista nao utiliza Emma como um élibi para mostrar a aldeia na hora ensolarada. Conjugam- se, nesse passo, fatores de ordem fisica que acentuam 0 desespero de Emma, Ela refugia-se no sétdo, lugar de isolamento ¢ sobre 0 qual, entdo, cai “a prumo um calor pesado” e sufocante, apertando as sas fontes; fere-a, quando abre a janela, a “luz deslumbrante”; as imagens denotam o horror da sua vida nessa aldeia morta ¢ onde, na hora canicular, nem sequer se movem as ventoinhas (0 que seria, apesar de tudo, uma nota de alegria); o rumor do tomo dirige-se as suas fontes, afligindo-a, como antes 0 calor que desce das ardésias ¢ acentua, tornando-o mais agudo, um siléncio de que © texto ndo fala; a auséncia de figuras humanas e a campina esten- dendo-se “a perder de vista” ampliam a solidéo da dgua-furtada, a qual, por sua vez, evoca a solidao e 0 vazio de Emma. Hé ainda a observar que essa ambientacéo, classificével em principio como franca, na verdade é reflexa: as coisas, sem engano possivel, 340 percebidas através da personagem. Atento a eficdcia da linguagem, reconheceria Flaubert a inutilidade de reiterar, mediante o proncme pessoal os ‘verbos correspondentes, informagées jé implicitas no texto. A ambientacio reflexa € caracteristica das narrativas na ter- ceira pessoa, atendendo em parte & exigéncia, proclamada pelo es- tudioso de Zola, de manter em foco a personagem, evitando uma temética vazia, ‘Sucede, porém, embora mais raramente, que mes- mo o personagem-narrador transfira a outrem a percep¢io do am- -omo podemos ver em Gonzaga de Sé: ygando o busto por sobre o espaliar da cadeira até poder ver o céu pela janela que Ihe ficava a vista.” 18 Ou, de modo ainda mais ostensivo, na cena em que o narra- dor, acompanhando Gonzaga de Sé, descreve parte do trajeto como se vise com os olhos do amigo: “Suspendeu a palavra; e, de acordo com a marcha da caleca, pés-se a vagar 0 olhar pelos lados. Com ele, seguia os ornstos 42 In: Madame Bovary. p. 48 In; Gonzaga de Sd.’ p, AMBIENTAGKO FRANC! 83 das cimathas, as grades das sacadas; adiante, demorava-se mais a ver um bando de mocas em traje de passeio, postadas A porta de uma casa burguesa, Afastando-se dali o carro, o seu olhar lento € macio foi parar sobre os bondes que passavam, e os transeuntes na rua; deles resvalou, pela calcada, no ponto em que uma mulher andrajosa dormia ao relento, imével, enro xa esquecida e por fim, durante segundos, ‘mente, pousou a vista no coche fanebre que rodava na nossa frente.” ** A csta altura, uma pergunta se impde: 0s casos em que 0 es- aco nasce através do discurso direto,’emitido por uma das perso- nagens (nfo o personagem-narrador) representam uma modalidade de ambientacdo reflexa? Parece légica, a0 primeiro exame, a res- posta afirmativa, Observemos, entretanto, que, nese caso, deslo- ca-se o eixo da enunciagéo. Assumindo a palavra, pode a persona- gem, por sua vez, empregar — em segundo grau, dirfamos — os mesmos recursos do narrador. A situagéo nao se modifica substan- cialmente, sofrendo apenas uma gradagio, se 0 discurso directo € substitufdo pelo discurso indireto ou indireto livre. Conduzidas através de um narrador oculto ou de um perso- nagem-narrador, tanto a ambientacdo franca como a ambientacio reflexa so reconheciveis pelo seu caréter compacto ou continuo, formando verdadeiros blocos e ocupando, por vezes, varios paré- grafos. Constituem unidades tematicas perfeitamente identificéveis: © ocaso, o desfile, a sala, a casa, a estagio, a tarde, a cidade. Com a ambientacao dissimulada (ou obliqua) *®, sucede 0 contrétio. A ambientacdo reflexa como que incide sobre a personagem, no implicando numa acdo. A personagem, na ambientacdo reflexa, tende a assumir uma atitude passiva e a sua reagdo, quando regis- trada, € sempre interior. A ambientacdo dissimulada exige a perso- tion blending with the flow of action”. '* E também a ambientagio dissimulada que se refere Georg Lukécs quando adverte, no seu ensaio “Narrar e Descrever”, nfo se deter a reconstituicao do am- biente, em Balzac, na pura descri¢ao, vindo “quase sempre traduzi- da em acdes (basta evocarmos o velho Grandet, consertando a es- Nein! Fechniques of Fletion Writings: Measure and’ Madness. p. 33-24, 84° CAP. V — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGIO cada apodrecida)”, 37 Assim é: atos da personagem, nesse tipo de ambientacao, vao fazendo surgit 0 que a cerca, como se 0 espaco nascesse dos seus préprios gestos. Exemplo sob todos os pontos admirével de ambientagio dis- simulada vamos encontrar no primeiro capitulo de Sao Bernardo, de Graciliano Ramos ** Azevedo Gondim “tomava a bicicleta e, pe- dalando meia hora pela estrada de rodagem que ultimamente Casi- miro Lopes andava a consertar com dois ou trés homens, alcangava S, Bernardo. (. ..) Tamos para o alpendre, mergulhévamos em ca- deiras de vime ¢ ajeitévamos o enredo, fumando, olhando as novi- Ihas caracus que pastavam no prado, embaixo, € mais longe, trada da mata, 0 telhado vermelho da serra ¢ encostei-me 4 balaustrada para ver de perto 0 touro limosino que ‘Marciano conduzia ao estébulo. Uma cigarra comecou a chiar. A velha Margarida veio vindo pelo paredo do acude, curvada em duas. Na torre da igreja, uma coruja piou, Estremeci, pensei em ‘Madalena.” Ai, mesmo os verbos ver ¢ olhar, to comuns na am- bientacdo reflexa, sio impregnados de energia, nao sendo certa- mente por acaso que aparecem ligados a coisas vivas e em movi- mento — “novilhas caracus que pastavam no prado” € “o touro que Marciano conduzia ao estébulo” —, de modo que lidade dos que observam & entio compensada pela mobili- isas observadas (novilhas, touro), ¢ 0 movimento des- tas comunica certa animacdo aos elementos inanimados que se se~ guem: prado, estébulo, mata, telhado, serraria. A introdugdo, tam- bém em movimento, de uma personagem secundaria, a velha Mar- garida, revela o acude, Esta tentativa, evidentemente sintética, de classificago dos processos de indicacao do espaco na obra narrativa e onde se pro- poe, inclusive, uma nomenclatura, nfo pretende abranger todos os métodos possiveis, mas alcanca um espectro bastante amplo. Gran- de parte da capacidade imaginativa dos escritores realmente preo- cupados com os problemas do oficio trabalha no sentido de encon- trar solugdes expressivas novas ¢ satisfatérias — o que reduz muito © valor das esquematizages teéricas; nem sempre & a invengio no plano do enredo, de qualquer modo nunca é apenas a invencao no plano do enredo que revela o verdadeiro ficcionista, Eis como nos fala Machado de Assis, numa ambientagdo obliqua, das colu- nas amarelas (existentes de um s6 lado) e dos tijotos que revestem AW In: Ensaios sobre Litera 38 V. nosso. artigo. “Um ‘como sua Prosa." Jornal do Brasil. Rio d¢ Janeiro, edigio de 21/10/1972, caderno B, p. 5. AMBIENTAGEO FRANCA... 85 segundo eu ia ou vinha, em vés me ficou a melhor parte sensago de um goz0 novo, que me envolvia em mim que bélsamo interior” (Dom Casmurro, capitulo XII). Ja- esqueceremos esse alpendre, ligado a um momento vital na existéncia do heréi, A carga concedida no texto as emogdes de Bentinho, motivo do1 parecer casual a alu- so ao alpendre, Ent ‘© modo como o narrador nos descre- ve aquela parte da casa, do ponto de hé de mais fino e notével nesse paso. Deve-se também levar em conta que 0 romance tende a mesclar varios processos, inclusive ‘rodut6rio com caréter de ambientagio dissi- mulada. Assim quando vemos Emma Bovary subir & égua-furtada e abri-la, A separacdo, sutil, pode ser notada inclusive pela mudan- reflexa um mot ala a hegemonia da ambientagao reflexa, predominante na cena. J4 em Sao Bernardo, rae 0 pio da coruja representam a mescla, na am- ua, da ambientagéo franca, na qual o narrador alu- de sem intermediério a elementos do espaco. Cada um desses processos tem o seu lugar na obra e s6 a sa- bedoria do escritor iré responder pela sua eficécia. Contudo, pelo ‘menos no nivel da micro-estrutura, a ambientagio revela comple- xidade e engenho na medida em que o narrador, recusando a des- criggo pura e simples, tece ordenadamente espaco, personagem e agio. Tomamos a lembrar que, a0 caréter fluvial — e nao lacus- tre — da linguagem, corresponde melhor um mundo mével, ou, s¢ imével, animado por uma forga interior, A classificagao aqui sugerida atende as relagBes do espaco com o fluxo da narrativa, envolvendo, segundo foi dito, narrador e personagens. Consideraremos a seguir dois aspectos de alguma im- portincia na ambientacao ¢ que, de certo modo, relacionam-se en- tre si: a ordenacao e a precisao dos elementos espacic ‘ago- ra, este quarto que se define sob 0 nosso olhar é um continente amorfo, uma espécie de saco, onde os objetos esto postos sem or- dem, ¢ onde 0 narrador os extrai um a um, a0 acaso. Logo, desejare- 86 CAP. V — ESPAGO ROMANESCO B AMBIENTAGKO mos suas situagdes: méveis muito juntos, méveis afastados. . Na ambientacdo desordenada, o natrador, sucumbindo ao desajus- te entre a linguagem e a descricao, restringe-se a catalogar. Joa- quim Manuel de Macedo, cujo instrumento & pobre sem ambigdes, assim esboca 0 quarto do seu he inisil descrever 0 quatto de um estudante, Af nada se encontra de novo. Ao muito acha- canastras de roupa, o chapéu, a bengala e'a bacia; a mesa onde es- creve € que s6 apresenta recomendavel a gaveta, cheia de papéis, de cartas de familia e fitinhas misteriosas; & pouco mais ou menos assim 0 quarto de Augusto.” ** Confunde Joaq nul de Ma- cedo 0 tipico com a sensaboria, Note-se a insisténcia em tauto- logias como as de que na estant na mesa, “‘escreve”. Adiante, ao descrever a casa da avé ipe, onde iré ocorrer grande parte do romance, pede que sbinetes, uma varanda terminada em arcos; no tizia de quartos, depois uma alegre ¢ longa ‘sala com janelas ¢ portas para o pomar ¢ jardim”. fer-se-4 feito da casa a idéia que precisamos dar. ‘A casa de Dom Casmurro, fe para a personagem, é apresentada sem preocupacdes, ‘0 mesmo prédio assobradado, trés janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. (...) Tenho cha- carinha, flores, legume, uma casuarina, um poco e lavadouro.” #? As janelas ¢ portas de Macedo, dando para o pomar ¢ jardim, chegam a ser mais precisas que as trés janelas de Machado, que nao enu- ‘vas e salas. Apesar disso, muito aprenderemos sobre @ ficcdo (e ressalta, da experiéncia, como numa prova efetua- da em laborat6rio, a superior maestria do “bruxo de Cosme Ve- Iho”), se confrontarmos esses casos extremos: as solugbes de Ma- cedo © de Machado de Assis nos motivos a que nos reportamos. Dom Casmurro, homem maduro, faz reconstruir a casa em que viveu na infancia, sendo através desse meio, to engenhoso, Agile significativo, que vamos conhecer as duas casas: a que jé desapa- receu € a sua c6pia, uma projetando-se sobre a outra, como © pré= ® Burox, M. Repertoire I. p. 45. In: A’ Moreninha, p. 17. 2 Macrvo, Joaquim Manuel de. Op. 22 Assis, Machado de. Dom Casmurr AMBIENTAGIO FRANCA... 87 prio personagem-narrador se projeta sobre a sua imagem antiga. A icacio simbélica da casa é ainda reforcada pelo estado d fo com que seu habitante, sem muita ordem, a descr “oO fa, € restaurar na a adolescéncia.” #8 Todo um mundo interior, caprichoso e nostélgico, na confisso que explica a reproducao do ambiente. Reproducio, note-se, em dois niveis: o da histéria e o do discurso, No que diz respeito & visualidade, a sala principal, com as figuras das estagdes nos quatro cantos do teto (aluséo, decerto, & passagem do tempo) © os medalhdes de César, Augusto, Nero e Massinissa no centro das paredes, comunica-nos 0 cardter de toda a constru- co, seu peso € colorido, dispensando ordem e minéicia. Machado de Assis, ndo obstante certa fragmentagdo imposta af a0 espaco, transforma o motivo da residéncia do protagonista num caso pre- cioso ¢ tinico de ambientacdo dissimulada, No capitulo T de Os Buddenbrook, Thomas Mann, que se compraz como poucos — ¢ com alto senso de medida — no des- critivo, oferece-nos um exemplo modelar de ambi ordenada: “Além das poltronas sObrias, distrt paredes, a espacos regulares, via-se apenas, perto da janela, a mesa de costura e, em frente do sof, uma frdgil escrivaninha de luxo, coberta de bibelots. / Através de uma porta envidracada, fronteira as janelas, enxergava-se vagamente um a0 passo que, A esquerda da entrada, havia uma porta de dois batentes, alta e branca, que dava para a sala de jantar. Noutra parede, num nicho semicircular ¢ atrés de uma porta de ferro batido, artisticamente trabalhada, crepitava o fogo.” ** Crdnica minuciosa de uma familia ¢ de sua decadéncia (transcrevemos 6 um frag- mento da descrigéo, que ¢ muito mais extensa), pede Os Buddenbrook solugses diferentes das que observamos no romance de Machado. Ambos, cada um a seu modo, nos imp&em com idén- tico vigor os respectivos espagos. * 2 Assi, Machado de. Op. 24 Observi thn lados que obedece, 88 CAP. V — ESPACO ROMANESCO E AMBIENTAGZO Pode-se observar, nos exemplos dados, certa relacdo entre or- dem € miniicia na ambientacdo. O esforco ordenador, no deserit Yo, tende a conferir uma organicidade ao pormenor, muitos sendo 98 graus através dos quais 0 escritor define 0 espaco: sua liberdade de escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente & estrutura global do texto) oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como em Thomas Mann, & simples nomeagio de uma rua, um hotel, uma Cidade etc., havendo ainda os casos em que nem sequer se chega a0 nome, observando-se, em relaco ao espaco, uma imprecisio que, de certo modo, nega-o. A precisio ou a imprecisio, certamente, refletem determinada época ou tradigio literéria: “os’procedimentos coneretos parti- culares, suas combinagdes, sua utilizacao e em parte suas fungdes mudam enormemente no curso da historia da literatura”, Assim re- sumia Tomachevski o fato, acrescentando que. “os processos nas- cem, vivem, envelhecem ¢ morrem.” *¥ Vé-se isto com muita niti- dez no tratamento do espago; comprova-o a leitura de relatos inse- proximo ao reino da Pérsia”... cidade engalanou-se durante sete dias e rufaram os tambore (As Mil e wma Noites). Nos contos edificantes de Sio Francisco: “Estando uma vez Santo Antonio em Rimini” “Movido Sdo Francisco do zelo da fé de Cristo e do desejo do mar- tirio, passou uma vez para o outro lado do mar com doze compa mheiros seus mui santos, para dirigir-se 20 Sultiio de Babildnia’ Em Bocaccio, adquitiro importéncia os tonéis, as clausuras, os ¢s- conderijos, instrumentos necessérios @ evolucio dos cont descritos com parciménia, sendo os lugares apenas nomeados: mada a obrigacZo, ficou Bamabé em Paris; ¢ Ambrosinho, logo que pOde, viajou para Génova.” No século XIV, nao é Chaucer mais explicito nos Contos de Canterbury: “Havia uma vez em Flandres um grupo de jovens entregues a loucuras tais como orgias, jogos de azar, bordéis ¢ tabernas.” 27 28 Tomactevsas, “Théorie de la Literature.” In: Testes des Formalites Russe. p. 298 ¢ 301, 27'Tal insufiléncia no se verifica a epoptia, Homero ambiente muito camo na rapsédin VI ds Oussia, quando pinta © paliclo. aredes de. bronze elevavam-ie dum lido'e dovteo, corram i apne fo Hd ete om vl en Se sal Tmpetiam a entrada 29 ‘palfcio, salidsmenteeiicado, ports tamberh seToronte, ‘eat Ombre de es ae cea, Dore tank AMBIENTACKO FRANCA... 89 Reporta-se Michel Butor a essa imprecisio quando escreve: Imente, como no teatro antigo, ser suficiente um distico: lugar magnifico’, bosque agradavel’, ‘floresta horrenda’, ‘um canto de rua’, ‘um quarto’. Especificacdo que se tomar mais precisa; de- sejaremos saber que espécie de quarto. Lugar magnifico, nos di- zem, mas que estilo de magnificéncia?” °° “O romance do século XVIII (Lesage, Voltaire etc.) mal conhecia a descricao, que nele exercia uma fun¢io minima, mais do que secundaria — acentua Lu- aes. A situagdo muda somente com 0 Romantismo.”#¥ A asser- tiva pode ser ilustrada mediante uma comparagio entre as cenas do torneio em La Princesse de Cléves e em Ivanhoe. Limita-se Ma- dame de Lafayette a um curto pardgrafo meramente indicativo “Fez-se uma grande liga, préxima A Bastilha; vinha do castelo de Tournelles, atravessava a rua Saint-Antoine ¢ ia ter as cavalaricas reais. Havia, dos dois lados, estrados € anfiteatros, com abrigos co- bertos, formando espécies de galerias, as quais produziam um belo efeito © podiam conter um mimero infinito de pessoas.” * Walter Scott, ao contratio, elabora um quadro amplo e colorido, a0 qual nao faltam nimeros exatos: “Sobre uma plataforma construida por trés do Portiio Sul, havia cinco magnificos pavilhdes, omados de escudos de armas castanhios e negros, cores escolhidas pelos cinco cavaleiros campedes do torneio.” “Uma passagem de trinta pés de largura conduzia, por um declive brando, da porta da arena 4 plataforma sobre a qual estavam erguidas as tendas.” A topogra~ fia do terreno, os costumes dos escudeiros, a disposigéo das tendas, Os tapetes e até os espectadores aglomerados num campandtio & distancia, vendo-se inclusive quando as galerias, “pouco a pouco de prata era igualmente a torga, mas 0 anel de ito, De cada lado havia luns cfes de iro € prata, imortais isentos perpetuamente da velhice, que Hefestos tinha executado com arte, para guardarem o palécio do. magni. i 190." No omite os cadeirdes, os tapetes, 0 horto 1 nnomela as drvores, as fontes. Observe-se como Homero, também ai, anima © inanimado: as paredes corriam, ombreiras de prata se apoiar portas impediam a entrada 10. paldcio, Temes também a histéria dos cies de “que Hefestos tinha executado” etc. Mesmo Longus mostra-se 4 sucesso das estagoes e 0 frescor de muitas cenas nao esmacce, na tradugio de Amyot, em Daphnis ef Chloé: “Or etait lors environ le commencement du printemps, que toutes fleurs sont en vigueun, celles des bois, celles des prés, et celles’ des montagnes. Aussi ji commen’ gait A svouir par les champs bourdonnement dabeilles, gazouillement Goiseaur, bélement d'agnesux”nowveausnés.” 28 In: Repertoire Il. p. 45 29 In: Ensaios sobre Literatura, p. 50-51 80 In: La Princesse de Cleves. p- 9498, 90. cAP. V — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGRO foram sendo ocupadas por nobres ¢ cavaleiros”, ** tudo é cuidado- samente arrolado. Havia uma diferenca essencial entre os leitores de Madame de Lafayeite ¢ os de Walter Scott: defrontavam estes uma realidade muito distanciada no tempo, necessitando de solu- es aproximadoras. Mas a responsabilidade maior nas diferencas entre a ambientacao apenas alusiva da narradora francesa ¢ a am- bientacdo exaustiva do escocés deve ser atribuida a tendéncias ca- racteristicas das épocas em que escreveram, Observa-se, mesmo, certo paralelismo entre a atencao concedida ao espago no romance ¢ a presenca da paisagem na pintura. Testemunha Fr. Paulhan, no seu LEsthétique du Paysage: “Aparecendo ocasionalmente em diver- sos lugares ¢ em diversas épocas, parece ter-se desenvolvido e cons- ido em Flandres e nos Paises Baixos. Mas 6 no século XIX que inca pleno florescimento; e sua evolugao, decerto, ainda néo ter- minou.” * Coexistem, entretanto, em obras modernas, sintese e minéicia , decorrentes de motivos que nem sempre 0 cri- podem identificar com seguranca. As Re- cordarées do Escrivao Isatas Caminha ilustram bem essa varie- apenas insinuado através das reagdes do personager a-eompressio e a desigualdade de nivel mental do meu meio fa liar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de in- teligencia.” Tem-se uma idéia dos professores, sobre os quais, des- mesurados, brilham os olhos azuis de Dona Ester — ¢ 86. Omite~ se, inclusive, o nome da cidade onde vive o adolescente Isaias “Demorei-me na minka cidade natal ainda dois anos”. A omissio, que poderia af parecer involuntéria, manifesta-se pelo uso de aste- riscos quando se refere freguesia em que o pai, um padre, exer- ce 0 sacerdécio: “quando veio a morrer meu pai sia de***.” Essa imprecisio domina a parte lando 0 total desinteresse do escritor em pri cenério familiar do jovem: ““Calamo-nos ¢ minha levando [perguntariamos para depois voltou, trazendo o café”. “Descansou [onde?] al cotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou © boné com 9 emblema do Correio [té- sobre algum mével?] ¢ pediu café.” “Num dado momento, pretextando qualquer cousa, levan- 81 In: Ivanhoe. 92 In: L’Esthétique du Paysage. p. 247, AMBIENTAGKO FRANCA... 91 tou-se © foi aos fundos da casa. que faz a0 Coronel Belmiro: ‘A mesma_imprecisio na visita coronel ndo se deteve, fez-nos sentar, mandow vir café ¢ foi a um compartimento junto escrever a missiva.” Antes de partir, Isafas vai “até & cidade proxima” para mie. Essa imprecisio contrasta com 0 cuidado atribuido a0 espa- go exterior. Uma chuva constante acompanha os movimentos de Isaias relacionados com 0 projeto de deixar “a cidade” (como para acentuar a tristeza do mundo que abandona) e, curiosamente, li- ‘4 as poucas informagées que afinal teremos sobre a atenuando @ impreciséo dominante: “Eu es- 10 sofé amplo. Lé fora, a chuva cafa com re- dobrado rigor e ventava fortemente. A nossa casa frdgil parecia que, de um momento para outro, ia ser arrastada. Minha mae ia e removia batis, arcas.” idade © a casa onde vive Isafas até a ‘A impreciséo quanto & adolescéncia, contrasta, a partir do capitulo MT, c critiva que acompanha a chegada ¢ a permanéncia do personagem- snarrador no Rio, podendo-se observar (isto, em grau bem maior € mais justificadamente, ocorrera em Vida e Morte de M. J. Gon- zaga de Sd) uma tendéncia a negligenciar os interiores, enquanto ( exteriores so descritos minuciosamente. © grau de preciso, por exemplo, concedido ao hotel onde se hospeda Isafas néo é muito superior a0 que se nota quando menciona a casa familiar: na Praga da Repal ”. Temos o nome do hotel e, de passagem, sua loca- ada € acrescentado quanto ao seu aspecto. Na mesa re- ervem-se as refeiges; ndo sabemos de que género e nivel so 0s quadros que guarnecem a sala, sendo portanto exiguo ou ‘mesmo nulo o seu teor informativo. Nao sucede assim com as li- \dicagdes sobre a casa onde vive a amante do deputado Casto, indicagbes que — pare lembrar mis uma vex o easuista de Repertoire — desempenham uma funcao de signo: “Quando perdi a moga pus-me a reparar na sala, com umas oleogravuras imentais € uns bibelots de pacotilha.” ** Introduz-se aq clusive, uma avaliagao a respeito dos breves dados cénicos. Embo- ra as diferencas de grau observadas nas mengdes a espacos diferen- tes, numa mesma obra, no decorram forgosamente de célculo, a 88 Buron, M. Repertoire I. p. 65. As outras citagdes do romance esto jentemente indicadas no’ texto, 92 CAP. V — ESPACO ROMANESCO E AMBIENTAGKO pobreza de indicages sobre a casa familiar de Isafas Caminha e a imprecisao a respeito da cidade onde passa os primeiros anos de vida, ao contrério do que sucede com a paisagem do Rio, exaustiva- mente evocada, podem bem decorrer de um pressuposto técnico: deixar na sombra o que 6 passageiro e secundério no relato, ilumi- nando a zona que domina o romance e na qual a personagem vai viver a parte mais significativa da sua experiéncia; também podem expressar (por parte do escritor e da sua personagem) a finsia de fugir as limitacSes em que vivem ¢ ingressar numa realidade mais ampla. Qualquer dessas hipdteses € vidvel, a segunda mais que a primeira: 0 romance pouca atengdo concede aos interiores, ¢ s6 a redagio de O Globo — além do comissariado de policia — mere- cerd cuidados. Mas o jornal, em Isatas Caminha, € o espelho ou a caixa de ressondncia do mundo exterior. Nao deve o estudioso do espaco, na obra de ficco, ater-se apenas a sua visualidade, mas observar em que proporao os de- mais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os scus limites, um lugar tende a adquirir em nosso espfrito mais corpo na medida em que evoca sensacées. Jean-Pierre Richard, estudando a pre- senga do mundo extetior na obra de Chateaubriand, registra a freqiiéncia dos latidos de cdo no siléncio noturno, os gritos de passaros, os murmiirios, observando ainda como o som do canhéo de um navio que ergue as velas vem “redobrar intelectualmente (© imediato poder sugestivo, e expansivo, do impacto.” * José Lins do Rego anima com ‘0 canto dos ‘passarinhos a casa do mestre José Amaro, na qual flutuam, desde o primeiro capitulo, além dos bogaris ¢ da aruda, cheiros de comida e de couro: “Dentro de casa o cheiro de sola fresca recendia mais forte que ‘© da comida no fogo.” Nao é menos importante, no espaco que rodeia o seleiro, 0 rumor do seu martelo e so as campainhas do cabriolé de Seu Lula, ecoando tristemente pelas estradas do Santa Fé, que tornam inconfundivel, ‘nico, 0 espaco de Fogo Morto, Tudo 0 que acabamos de expor relaciona-se com um fend- meno da maior importéncia no contexto da arte contemporinea ¢ do qual, apesar disto, apenas 0 ensaista Anatol Rosenfeld se ocupou até agora no Brasil: o da perspectiva. Liga-se este problema, principalmente ao foco narrative, mas as suas im- Plicagées' com 0 espaco e a ambientacdo’ solicitam algumas 34 In: Paysage de Chateaubriand. p. 50 et pass. AMBIENTAGHO FRANCA... 93 linhas. J4 no seu estudo sobre a descrigio em Zola, escreve em nota de pé de pagina Philippe Hamon, quando enumera as possibilidades de acesso a manifestago do’ espago no romance: “Estamos af muito préximos daquela perspectiva inventada pelo mundo ocidental no Renascimento € que subordina a organizagio de um quadro a um sujeito-espectador fixo, central, ciclépico, Uinico.” ** Quer dizer: temos falado, quando mencionamos, na am- Dientacgdo, 0 personage, 0 personagem-narrador ou o narrador anénimo como contempladores ou reveladores do espaco, de uma entidade central, humanamente situada ¢ a partir da qual 0 espaco se organiza. Dai a necessidade de janelas, torres © outros pontos privilegiados, dos quais 0 olhar humano possa abranger um certo segmento do espaco. O fato de a perspectiva surgir no Renasci- mento, quando a visio religiosa do mundo amortece, nao parece destituido de significaco. O exame comparativo de um afresco rominico ¢ de uma pintura de Rafael € ilustrativo. No Romanico, inexiste 0 olho carnal, humano, que contempla rigorosamente 0 quadro, como no Renascimento. Lugares diferentes e tempos afas- tados unificam-se numa visio transcendental: contempla-se com a liberdade do espirito e no com a servidio da care. Curiosamente, em nossa época, 0 ponto de vista perspec- tivico, imposto pelo Renascimento (como um sinal da gléria & do orgulho humanos) entra em declinio, atingindo inclusive a fieco. Hoje, escreve Anatol Rosenfeld, “o individuo jé nao tem a 6 renascentista na posi¢ao privilegiada da consciéncia humana em face do mundo nao acredita mais na possibilidade de a partir dela poder constituir uma realidade que no seja falsa e ilusionista”. #* Assim, vem a visio perspectivica do espaco sendo negada nas artes plisticas. No romance, arte da linguagem e, portanto, temporal, a analogia com outras artes manifestar-se-ia no tempo: “A eliminago do espaco, ou da ilusio do espaco, parece corresponder no romance a da sucesso temporal.” *” Mas © préprio Anatol Rosenfeld, aprofundando o exame, nomeia obras “cujo tema & a simultaneidade da vida coletiva de uma casa ou cidade ou de um amplo espaco geogrético num segmento do tem- po”, acrescentando que a técnica simultanea, jogando “com grandes espacos e coletivos”, tende a eliminar “o centro pessoal ou a enfo- cago coerente e sucessiva de uma personagem central.” ** Aproxi- 88 In: Postique. 1972. m2 12, p. 473. 36 In: Texto/Contexto. p. 86. 3 Id, bid. p. 78. 38 Id. ibid, p. 93. 94° CAP. V — ESPAGO ROMANESCO B AMBIENTAGTO ma-se, portanto, vendo o problema através de algumas manife: ‘es tematicas, de um niicleo importante e associado A ambientacio: a visio ou foco narrativo. A visio nao perspectivica, expan: e transfiguracdo do narrador 1 humanas ¢ evocando uma espi que conhecia o artista mediev: nea. Anunciando um espago como que sacralizado, oposto a0 espago profano do Renascimento, uma percepgéo mais profunda do mundo logo iré provocar recursos mais sutis de insergéo do espago, com o que nao mais serio indispensiveis os recursos plaustveis — janela aberta, visita etc. — que Philippe Hamon enumera. Nao apenas no tempo, mas no espago mesmo, expres- saré_o romance contemporaneo sua desconfianga “na” posigao rivilegiada ‘da consciéncia humana em face do mundo” e que 6 criadores do Renascimento erigem em dogma.

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