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Capitulo I – Aspirações à Vida Nova.

Era uma manhã daquelas que Alvin adorava, o leve calor do sol em sua pele
contrastava com uma brisa ligeiramente fria que às vezes soprava contra seu rosto. A seu
lado estava seu pai, carregando com esforço uma caixa de madeira abarrotada de pequenas
ferramentas, ele a colocou sobre sua carroça, agora cheia dos poucos pertences da família,
debruçou-se sobre ela e contemplou a vila a qual estavam prestes a abandonar.
Normalmente ela não era bela de se ver, mas o clima de despedida e o sol ainda nascente
deixaram as casas pequenas aconchegantes e afastaram as lembranças das dores e da fome
que eram tão presentes no lugar como as ruas lamacentas e o cheiro ruim das pocilgas.
Noldir colocou a mão sobre o ombro de seu filho:
- Está triste Alvin? Você parece mais calado que de costume.
- Não, estou apenas pensativo, aqui está todo o meu mundo - Alvin sorriu com ar
melancólico – Para mim Shairfall começa na casa do senhor Farel e termina na ponte do
riacho.
Seu pai apenas concordou com a cabeça, de certa forma aquele também tinha sido o
seu mundo até então e ambos compartilhavam do mesmo sentimento. Noldir se moveu de
repente, quebrando aquele clima triste de maneira brusca.
- Vamos, escove Trolstan enquanto eu vou acabar de colocar nossas coisas na
carroça.
Prontamente o garoto obedeceu a seu pai, também desejoso em fazer algo que o
ocupasse e disfarçasse sua angústia, porém, enquanto escovava o velho cavalo branco uma
nuvem de lembranças começaram a encher seus pensamentos, lembranças carregadas de
tristes sentimentos, o pior deles, sem dúvida, é a saudade de sua mãe e a sensação de a estar
abandonando apesar de sua morte ter ocorrido já há duas estações. Ele escovava o animal
mecanicamente enquanto se pensava nos acontecimentos que tornaram este o pior ano de
sua vida.
Alvin nasceu e se criou neste lugar, Brendem, uma vila rural no reino de Septy, seu
pai e sua mãe, assim com seus avós lavravam a terra do senhor e ficavam com parte da
colheita, tudo parecia bem, como sempre não havia grande fartura, mas não se podia
reclamar de falta de comida. Como não ocorria há séculos uma praga desconhecida matou
grande parte da plantação pouco antes da colheita, o que os deixou meses por conta da caça
de um pequeno bosque e da pesca no riacho. Alvin nem se lembra de quantas noites dormiu
sem ter o que comer e na angústia de não saber se amanhã o teria.
Era impossível para o garoto pensar nestes tempos difíceis sem recordar-se da morte
de sua mãe. Era uma mulher jovem e forte, porém foi a mais afetada pela escassez de
comida e na madrugada mais dolorida da vida de Alvin ela os abandonou, seu pai foi
tomado por um desespero que durou semanas, dias em que até mesmo a pouca comida que
podiam conseguir ficou por conta do garoto, que tirou dos olhos tristes do pai a força para
resistir, pois sabia que se fosse também derrubado ambos cairiam.
Alguns dias atrás um garoto veio de Korllux, uma cidade três dias ao sul, com uma
mensagem para Noldir. Era de seu tio-avô Rolder, a mensagem dizia que este havia aberto
uma nova taverna na cidade e que gostaria que seu pai a levasse adiante, pois estava com
avançada idade e não mais dispunha de perfeita saúde. Apesar de fazer muitos anos que
Rolder deixou a vila, tinham um imenso carinho por ele, afinal de contas era a única família
que possuíam. Noldir aceitou sem exitar, pensando que dificilmente as coisas poderiam
piorar, além do mais tinha a opção de voltar se desejasse, pois era um homem livre e
querido naquele lugar. Estavam, portanto, de partida.
O novo trabalho seria algo novo e parecia que finalmente iriam melhorar de vida,
além disso a mudança de ares seria importante para se distanciarem das dolorosas
lembranças que carregavam da pequena vila.
- Bem, é tempo de irmos.
A voz firme de seu pai tirou Alvin de seus pensamentos, ele sorriu e assumiu seu
lugar na carroça. Noldir assoviou e mexeu as rédeas do silencioso companheiro; Trolstan,
um cavalo velho, mas que já possuíra notável beleza, era branco com crina e rabo amarelos,
já fora mais gordo mais ainda exibia um corpo forte e apesar de não ser muito bom para se
cavalgar compensava isto com sua força no trabalho. Ao sinal das rédeas chacoalhou a
cabeça e partiu a passos lentos como se pressentisse mau agouro e relutasse a sair em
viagem..
Enquanto passavam pela rua estreita rumo ao portal de saída Alvin observou as
chaminés que se acendiam, o despertar de outro dia difícil que era parte da vida daquelas
pessoas, seus amigos. Ainda pelo chão da praça central, uma arena de terra batida rodeada
por estacas, estava as marcas da pequena festa de despedida para ele e seu pai, onde alguns
moradores abriram as últimas garrafas de vinho que ainda lhes sobravam para brindar e
desejar boa sorte aos viajantes.
Aos poucos foram caminhando para longe de sua pequena casa e de sua pequena
vila, na saída, abaixo do arco que a demarcava, Alvin olhou para trás, baixou a cabeça e
não conteve uma lágrima, tomando cuidado para abafar o soluço, havia se acostumado a
mostrar-se forte naqueles tempos difíceis, seu pai porém percebeu, mas achou melhor
permanecer em silêncio, apenas passou o braço por sobre o pescoço do filho e o abraçou.
Capítulo II – A Viagem e a Cidade

A viagem mal havia começado, estavam ainda na estrada que cortava os bosques em
torno de Brendem. O mais próximo era o “bosque das raposas” um lugar simples e belo,
possuía árvores altas e um pouco distantes umas das outras, o chão forrado por diversos
tipos de folhas que o coloriam até a margem da estrada quando eram tingidas pelo barro
enegrecido e o ar tinha forte aroma de Brunílio, um arbusto de cheiro marcante que por ali
abundava. Alvin não conseguia deixar de escutar o cantar das inúmeras aves os
acompanhavam, cantares que se misturavam desordenadamente, a desordem mais bela que
ele conseguia conceber. Ia com esses pensamentos quando foi surpreendido por um
movimento brusco de seu pai, “Ôooa” sussurrou, puxando as rédeas de Trolstan que
diminuiu o passo até parar. Sem entender Alvin tentou perguntar o que se passava, mas seu
pai acenou para que se calasse, ele então entendeu.
Com muito cuidado Noldir sinalizou para que seu filho lhe entregasse o arco e a
aljava que se encontravam na carroça, o garoto o fez com o maior cuidado possível. Com a
arma em punho o homem preparou-a com um cuidado quase cerimonial, apoiou a flecha
sobre sua mão, esticou a corda com precaução para que o arco não estralasse, fechou um
dos olhos, permaneceu assim por alguns segundos e num rápido movimento liberou a
flecha que cortou o ar na direção de alguns arbustos. Com agilidade Alvin pulou da carroça
e adentrou o bosque na direção do tiro do pai, que aguardava ansioso. Logo o menino
levantou uma pobre lebre pelas orelhas com indisfarçada satisfação. Correu de volta e
sorriu entregando-lhe a presa ainda agonizando com a flecha entre as costelas.
- Aqui está nosso alimento por hoje!
- E por ontem! – respondeu seu pai – Venha, não percamos mais tempo.
Noldir retirou a flecha, observou seu estado e após limpá-la a guardou de volta na
aljava, tocou o cavalo olhou para Alvin com ar de vitória:
- Se isso não é um bom presságio eu não me chamo Noldir filho de Pollderin.
- Bom presságio? É praticamente um sinal do grande Deus da caça! Há dias não
comemos outra coisa senão peixes, além disso se não fosse por Ele duvido que teria
acertado aquele disparo, nunca o vi acertar nada menor que um salgueiro! – Alvin
gargalhou, Noldir o olhou com o canto dos olhos:
- Cuidado com a língua garoto, agora guarde o arco e a aljava lá atrás – sorriu.
Alvin obedeceu com alegria e brincou um pouco com o arco antes de colocá-lo em
seu lugar. Tudo parecia estar correndo bem, o estado de seu pai o deixava ainda mais
animado, pois ele não o via assim desde que sua mãe partiu, deu a volta na carroça e
montou novamente a seu lado.
O garoto olhou para a expressão descontraída do pai começou a pensar sobre ele:
Noldir era um homem robusto, de pele morena, ombros largos e braços fortes,
conseqüências do trabalho pesado. Contrastando com essa aparência de homem bruto (sua
barba mal feita ajudava muito nisso) seus olhos negros e profundos demonstravam bondade
e certa melancolia, agora ainda mais transparente. De fato seu pai tinha um bom coração,
era um homem que sempre viveu para o trabalho, tinha pouco, mas não se importava em
dividir o que lhe sobrava. Não deixaria muito para Alvin, mas conseguiria passar ao filho o
que desejava: o bom exemplo de caracter que vinha de seus ancestrais.
Percebendo o olhar pensativo do filho em sua direção Noldir se dirigiu a este de modo
sereno:
- O que foi, Alvin? Por que me olha assim?
- Não, eu só estou pensando em como as coisas parecem estar melhorando.
- É, pode ser, mas já lhe disse que devemos ser cautelosos, nossas últimas estações
não foram o que esperávamos, foram os tempos mais difíceis pelos quais passei e espero
nunca mais passar por isso. – Olhou para o chão com uma certa tristeza, mas logo se
recompôs - Apesar disso acredito que os deuses não nos esqueceram, eles devem ter se
compadecido de nossa dor e talvez agora desejem nos ajudar. – Sorriu e olhou para seu
filho, mas ainda tinha a mesma melancolia no olhar.
- Claro – respondeu o garoto.
Antes das desgraças ocorridas Alvin era mais religioso, agora ele não conseguia
entender como os deuses podiam ser tão complacentes com as desgraças mundanas e como
uma mulher como sua mãe poderia ter sido tirada de maneira tão brusca de suas vidas. Mas
chega de lamentações. Ele não queria mais pensar em tristezas, a estrada a frente
simbolizava exatamente o novo, um caminho que poderia levá-lo para a sorte. Era assim
que gostaria que fosse e era assim que iria pensar daqui pra frente.
Os viajantes continuaram na mesma toada lenta de Trolstan por mais alguns minutos,
o bosque foi diminuindo até se acabar por completo dando lugar a um descampado de
arbustos variados, era um lugar belo e ainda que não tivesse a grandeza do bosque que
atravessaram, a variedade de flores era maior e permitia a maravilhosa visão das montanhas
ao norte, tão grandes e majestosas que faziam Alvin se sentir como uma formiga aos pés de
um salgueiro, e ele achava isso maravilhoso.
Alguns metros à frente estava a ponte que cortava o riacho, limite do mundo de Alvin,
ele sentia um misto de medo e curiosidade e como estava feliz! Desde molecote ele se
impressionara com as histórias dos viajantes que passavam pela vila e as contavam em
troca de canecas de cerveja e pães secos. Eram contos povoados de maravilhas que ele
apenas sonhava existirem, histórias de heróis guerreiros, criaturas maravilhosas e magia.
Ahh... a magia, diziam os viajantes que existiam homens capazes de andar sobre o ar, criar
fogo com as mãos e mover montanhas com um estalar de dedos. Ele imaginava se poderia
um dia observar tais feitos, e quem sabe até conhecer esses homens. Alvin conhecia bem
pouco sobre os homens da magia mas sabia de um tipo especial que o deixava muito
impressionado, segundo escutou, alguns mortais recebiam seus poderes diretamente dos
deuses, e dentre estes haviam escolhidos que podiam até mesmo se encontrar com eles.
Todas essas maravilhas, todo esse mundo o esperava depois daquela ponte e mesmo
assim ele sentia uma ponta de pesar, seu coração se apertava mais a cada passo de seu
cavalo, era o temor que todos sentem perante o desconhecido.
Logo o leve e aconchegante barulho do riacho começou a ser ouvido, e a pequena e
bem cuidada ponte de madeira já estava a vista, Noldir puxou as rédeas devagar de forma
que o animal foi parando até que estivesse completamente inerte a beira da última fronteira
norte da vila de Brendem.
- Sei que não devemos olhar para trás filho, mas talvez queira se despedir daqui –
disse Noldir com a voz um pouco rouca, nitidamente afetada pela emoção.
Alvin não respondeu, apenas colocou-se de pé, virou-se e observou pela última vez o
seu lar, seu mundo. Lembrou-se nestes poucos momentos de tudo que ali passou, alegrias e
tristezas, olhou para aquele descampado onde ele e sua mãe colhiam flores para sua casa, o
bosque em que ele se perdeu quando garotinho e onde achava haver monstros terríveis até
que o trabalho duro da juventude substituísse a magia da infância. Alvin pensou feliz que
pelo menos não deixara para trás nem arrependimentos nem inimizades e que ficou claro na
noite passada que sempre teriam boa acolhida. Ali ele passou quinze invernos, apesar de
serem poucos foram todos de sua vida, e já espera um dia poder voltar e rever seu mundo,
seu lugar.
O homem viu seu filho se levantar e não pode deixar de pensar sobre o garoto que
estava ao seu lado, desde que nasceu Alvin foi um bom garoto, assim que começou a andar
se pôs a ajudar a mãe a colher frutos e a arrumar o casebre, como todo o garoto ele fez suas
travessuras, mas nada que uma boa bronca não resolvesse, e quando chegou a idade de
trabalhar Noldir não ouviu sequer uma reclamação, pelo contrário, o garoto parecia ansioso
para ajudar e teria começado mais cedo se não o tivessem proibido. A proibição veio de
Noldir, que sempre dizia: “tudo tem seu tempo e a infância deve ser aproveitada, um garoto
sem infância se torna um homem sem alma”.
Alvin era parecido com o pai, apesar de que um dia será mais alto, pois já é quase da
sua altura e ainda tem muito a crescer. Apesar de ter herdado dele os cabelos negros e a
expressão séria, os deuses lhe concederam os olhos azuis e a beleza de sua mãe, que era
sem dúvida a mulher mais bonita que ele já havia visto. A face ainda arredondada
demonstrava sua mocidade, dando-lhe um ar inocente quando abria um sorriso capaz de
conseguir a simpatia dos homens e o encanto das moças.
Noldir se lembrou de quando a conheceu, seu futuro sogro vinha de uma vila próxima
nessa mesma carroça com a mulher e a filha, enquanto ele trabalhava próximo a estrada
com seu pai, a carroça parou para cumprimentá-los, seu pai tirou o gorro e deu um aceno,
mas ele não conseguiu se mover, havia visto aquela garota linda de olhos cor de céu e uma
pele tão branca que parecia ser como dizem ser as princesas. Ele não pôde acreditar quando
ela sorriu e acenou, ficou tão comovido por aquela figura que nem consegui acenar de
volta, apenas a acompanhou com o olhar enquanto ela sumia pela estrada, seu pai percebeu
e deu uma gargalhada, como era do feitio do velho Pollderin. Viveram uma vida feliz, mas
mais curta do que Noldir poderia aceitar.
- Vamos? – Alvin quebrou os pensamentos do pai.
- Claro – respirou fundo.
Mas antes que a carroça começasse a se mover o garoto se levantou rapidamente.
- Olhe! Uma Diádhenes - disse Alvin apontando para uma planta próxima – Era a
preferida da mamãe!.
Imediatamente o garoto saltou da carroça e foi até a planta, com muito cuidado retirou
a flor, a observou por alguns momentos, aspirou seu perfume e caminhou até seu pai,
enquanto caminhava Alvin percebeu a expressão do velho ir mudando, com o olhar distante
e perdido em seus pensamentos, logo Noldir abaixou a cabeça, e cobrindo os olhos com as
mãos desabou em choros e soluços.
A situação pegou Alvin de surpresa, ele parou no meio do caminho diante daquela
triste cena, um homem como aquele, forte e robusto chorando como uma criança. Como
poucas vezes na vida Alvin não soube o que fazer, seu pai se desmontava em prantos bem
na sua frente, como nunca havia feito, esteve muito tempo com profunda melancolia e sem
vontade de viver, mas nunca sua dor foi tão evidente e demonstrada com tanta força. Alvin
tomou coragem, se aproximou de seu pai a paços firmes e o abraçou com cuidado.
- Por que? Pelos deuses, Por que? – soluçou Noldir.
Seu filho não teve palavras, apenas o abraçou com força, mas diante desta cena cruel,
até aquele que havia aprendido a ser forte e voluntarioso não consegui se conter, e ambos
ali choraram juntos, em silêncio, em triste despedida.
Permaneceram assim por mais algum tempo, até que se fitaram e depois olharam a
flor nas mãos de Alvin. Era linda, púrpura, grande e majestosa. A mais rara das inúmeras
belas flores que povoavam aquela região.
- Se lembra de como ela costuma sair para procurá-la nos fins de tarde? – disse Noldir
como os olhos cheios d’água.
- E como ela costumava ficar com ela no cabelo quando a encontrava – disse Alvin de
forma carinhosa.
- Ela a chamava de princesa de Brendem. – sussurrou Noldir entre um tímido sorriso
gerado das boas recordações.
- Acho que ela mandou essa flor para nos dar boa sorte! – sorriu Alvin.
- É mais do que isso meu filho, ela está querendo dizer que está conosco, e estará
onde quer que formos. Obrigado minha querida. – disse Noldir dando um beijo suave na
flor que agora repousava em suas mãos.
- Vamos! – continuou, limpando o rosto e prendendo a flor em seu gibão – Temos que
chegar a Noil antes o anoitecer.
Alvin entendeu, foi como a algumas horas quando estavam pensativos antes de partir,
seu pai queria quebrar aquela tristeza ocupando-se com alguma coisa. Não tocou mais no
assunto. Noldir movimentou o velho Trolstan e seguiram em frente. Finalmente haviam
atravessado a ponte.
A estrada que se seguia era a continuação da anterior, apesar de ser um pouco mais
larga e irregular. Entravam agora nas terras da última vila dentro do reino de Septy, Noil,
a menor dentre as chamadas vilas da fronteira, Noldir já esteve por lá há alguns anos
vendendo legumes, e conhecia algumas pessoas que segundo ele lhes garantiria abrigo.Isso
era uma coisa admirável, a união dos campônios. Sem ter a quem recorrer ou quem se
importe com eles, davam sempre um jeito de se ajudar, talvez seja por compartilharem as
mesmas dores, companhia constantes para uma população que depende do clima e das
chuvas, coisas que podem variar de acordo com a vontade dos deuses e que estavam cada
vez menos previsíveis.
Por todo o reino havia plantações de cereais; principalmente trigo e cevada, legumes;
principalmente o nabo, além de alguns pomares de frutas. Fora as plantações ainda existiam
as criações, a maioria ovelhas e porcos.
Se comparado a outros reinos, Septy era bom para seus camponeses, não havia taxas
esmagadoras a serem pagas e seus nobres senhores não eram conhecidos por sua crueldade,
porém a cota da nobreza nas colheitas sempre deveria ser cumprida independente da
produção e essa não era uma cota baixa, o que muitas vezes causava a fome e impedia os
camponeses de saírem de sua pobre condição. Enfim, era uma vida dura e de muito
trabalho, mas com suas vantagens, e tanto Alvin quanto seu pai concordavam com isso,
camponeses não se envolviam em guerras e tinham sua segurança garantida por seus
senhores, parece pouco, mas uma garantia de segurança mesmo que superficial, é algo
almejado por muitos em um mundo como esse, um lugar conturbado por disputas entre
reinos, feudos e cidades, guerras entre tribos e raças, e assolado por horríveis criaturas
errantes. Mas Alvin era alheio a isso, nunca havia sequer visto um Orc ou um Duende
negro, criaturas famosas em lendas de guerreiros.
Parte da expectativa de Alvin era justamente essa, encontrar criaturas misteriosas e
seres desconhecidos, quem sabe sua taverna não seria freqüentada pelos mais diferentes
tipos de guerreiros e viajantes? Ele estava ansioso, queria poder chegar logo a tal cidade e
experimentar viver em outro reino, conhecer pessoas diferentes com suas histórias e seus
sonhos, qualquer coisa mais agitada que a vida de interminável labuta em Brendem.
A estrada se seguia pelo campo, porém logo começaram a encontrar rebanhos e mais
rebanhos de ovelhas que por ali pastavam, eram muito interessantes aqueles pequenos
animais brancos como neve em meio aos pastos verdejantes, calmos, mastigando
incessantemente o capim ainda verde do verão, passavam a tranqüilidade da vida humilde
que Alvin conhecia muito bem. Os pastores que delas cuidavam acenavam em
cumprimento e às vezes vinham até os viajantes trocar algumas palavras, perguntando de
onde vinham e para onde iriam, desejando-lhes boa sorte.
Já estavam andando há horas quando o sol indicou o meio-dia.
- Já percorremos a maior parte do caminho, e meu estômago está roncando, que tal
prepararmos aquela lebre? – disse Noldir a seu filho.
- Acharia ótimo, também estou com muita fome e desejoso da sombra de uma árvore
– respondeu Alvin a seu pai.
Os dois seguiram até encontrarem uma árvore que lhes presenteasse com sua sombra,
pararam a carroça e Noldir preparou a fogueira utilizando “pedras-de-faísca” que carregava
consigo .
- Cuide de Trolstan enquanto eu preparo a caça para comermos – ordenou Noldir.
Alvin apenas acenou positivo e saiu para realizar a tarefa de alimentar seu animal que
nem dava sinais de cansaço. Ele despejou água em um balde e o liberou do cabresto para
Trolstan ali pastar. O garoto se dirigiu para os fundos da carroça de onde tirou uma espiga
de milho.
- Tome meu amigo, e obrigado – disse enquanto acariciava a cara do Animal.
Logo se voltou para seu pai que lhe pediu para que trouxesse o vinho. Este respondeu
prontamente e voltou com o cantil de couro e também com o sal para temperar a lebre.
Em alguns minutos a pobre presa já assava sobre o fogo, o garoto tentava dormir
sobre a árvore, mas o cheiro da carne assando junto com sua fome eram um grande estorvo
para seu sono, que não era pouco, pois Alvin não conseguira dormir a noite toda ansioso
pelo dia que viria. Cochilava quando escutou algo que imediatamente o despertou:
- Venha garoto, está pronto!
Seu pai já havia retirado a carne do fogo e desmembrado alguns pedaços. Alvin se
atirou logo à coxa que tinha direito e a destroçou com vontade, seu pai riu ao conferir que
ambos se alimentavam de maneira desesperada e que nunca uma lebre foi tão saborosa.
Depois de um pouco de descanso seguiram seu caminho, passando o resto do dia por
uma paisagem que custava a mudar. Quando o sol já se recolhia entraram em Noil uma vila
de pequenas proporções, porém não muito diferente de Brendem, as casas eram muito
parecidas e dispostas da mesma forma; em torno de uma praça modesta mas bem cuidada.
Noldir se dirigiu para um casebre na parte norte onde ao escutar o barulho da carroça
um homem abriu a porta curioso.
- Boa noite meu rapaz, como tem passado? – sorriu Noldir.
- Muito bem meu senhor, creio que gostaria de falar a meu pai? – respondeu um
homem jovem de características rudes.
- Por favor – disse Noldir com ar descontraído apesar do aparente cansaço.
O tal homem se recolheu, mas manteve a porta aberta demonstrando confiança, logo
uma silhueta surgiu com os braços abertos e um largo sorriso:
- Ora se não é Noldir, quase não acreditei quando meu filho me disse de tua presença.
Vamos homem, desça dessa velha carroça e venha provar um pouco de caldo de
galinha.
- Seria ótimo velho amigo. – o pai de Alvin saltou com um entusiasmo quase infantil
ajudando o filho a desmontar em seguida.
- Seldar! – gritou o velho para dentro da casa, sendo prontamente atendido pelo
homem que os havia recebido – Leve o pobre cavalo para a estrebaria e cuide dele.
Quanto a vocês entrem, e me ofenderão se sentirem-se menos à vontade que em suas
próprias casas.
A casa era humilde como todas as outras que Alvin conhecera, feita de barro e
coberta com folhas-da-costa, tinha dois cômodos: um onde se cozinhava e comia e outro
onde todos dormiam, o chão era de terra batida coberto com feno, a cozinha possuía uma
larga ripa sobre dois cavaletes de madeira, cercada por alguns bancos pequenos e uma
bancada mais extensa que parecia ser nova. Em um dos cantos estava um forno de barro
bem feito com a madeira estralando em seu interior. Ante ele encontrava-se uma velha
senhora que se virou para os homens que entravam e lhes prestou uma tímida reverência
com a cabeça. Ela estava mexendo algo em uma velha panela, preta como o carvão, de
onde exalava um aroma delicioso, assim como as refeições que a mãe de Alvin preparava.
Os três se sentaram à mesa, a senhora que cozia se aproximou com uma jarra de barro
e uma cuia por onde lhes foi servido vinho. O velho deu o primeiro gole e passou a vez para
Noldir que fez uma reverência e tomou uma longa golada, logo foi a vez de Alvin.
- Não esperava acolhida menos digna vinda de um homem de bom coração como
você, Jhaldar. Disse Noldir.
- É sempre um prazer receber amigos em minha morada. Mas diga-me, ó Noldir filho
de Pollderin, como vai a formosa vila de meus avós?
- Vai como sempre foi, Jhaldar, com dificuldades – baixou a cabeça mas logo se
recompôs – Porém as flores nunca estiveram tão belas.
- Vejo que sim. – o velho deu um sorriso e apontou para a magnífica flor exposta no
gibão.
Noldir nada respondeu, e houve então um breve silêncio entre os três. Enquanto tudo
se passava Alvin reparava naquele que lhes acolhia. Era um homem de muitos invernos, sua
barba branca e dispersa parecia feixes de algodão mal acomodados sobre sua face ao redor
de um grande nariz arredondado. Quase não possuía cabelos, seu sorriso largo já não
contava com todos os dentes o que lhe dava um aspecto engraçado. Era muito peculiar a
forma enfática que movia suas mãos enquanto falava. Alvin pensou que ele era exatamente
como a maioria dos velhos camponeses que conhecia e imaginava se um dia também seria
assim. Seus pensamentos foram interrompidos pela senhora que colocava as tigelas sobre a
mesa para lhes servir o caldo.
Nesse momento Seldar retornou e se sentou ao lado do pai. Noldir deu-lhe uma
olhada com simpatia e se voltou para Jhaldar:
- Teu filho parece ser um homem saudável e pelo porte deve trabalhar por três – nesse
momento pousou sua mão sobre o ombro de Alvin – Espero que meu garoto siga este
caminho.
- Não se deixe enganar, meu amigo, pois justamente a indisposição de Seldar para o
trabalho pesado tem sido motivo de minha tristeza. Sabe que perdi meus três outros filhos,
ele é o único braço de que disponho – o velho olhou para o filho com um ar de ironia – E
ainda tem a coragem de me dizer que se tornará domador de cavalos.
- Domador de cavalos? – indagou Noldir a Seldar que parecia incomodado com os
rumos da conversa – Ora, domar cavalos é algo de se admirar, porém cada um de nós
nasceu para uma função e creio que a nossa é lavrar a terra.
Seldar não respondeu, apenas baixou a cabeça e se concentrou na refeição.
Alvin prestava a atenção no que seu pai dizia e pensava na função para qual nascera, a
mesma de seus pais e avós.
Enquanto se perdia em tais pensamentos apreciava aquele caldo que grosso e bem
temperado preparado pela senhora que já havia se recolhido para o outro aposento. Alvin
nunca entendeu por que as mulheres não se sentavam com os homens à mesa, odiava
quando sua mãe se recolhia para comer sozinha quando algum parente os vinha visitar.
Certa vez perguntou a seu pai que não soube lhe responder e se irritou quando Alvin
continuou a indagá-lo. “Não é de meu dever questionar as tradições, e nem de qualquer
outro homem de bem, portanto pare de me amolar com essa conversa”. Apesar de não saber
de quem é esse tal dever, Alvin sabia que estas tradições vinham de muito tempo e que
realmente não cabia a ele desrespeitá-las, aqueles que ousam fazê-lo nunca foram bem
vistos, e a última coisa que ele queria agora era mais problemas.
Na mesa a conversa entre o Noldir e Jhaldar estava animada, discutiam sobre coisas
da roça e sobre as criações, o anfitrião às vezes dava longas gargalhadas o que fazia todos
sorrirem por seu jeito cômico.
- Desculpe, garoto, mas ainda não me disse seu nome – disse o anfitrião a Alvin.
- Alvin-Noir, senhor – o garoto não conseguiu conter um sorriso, foi um gesto de
simpatia do velho, pois estava acostumado a ser ignorado em conversa de adultos.
Logo a mulher do velho entrou na cozinha anunciando que as camas já estavam
postas, e perguntou em voz discreta se já haviam se satisfazido.
- Perfeitamente senhora, seu caldo estava realmente fabuloso, espero poder voltar em
outra ocasião para repeti-lo – foi a primeira vez que Alvin falou, os demais pareceram nem
tê-lo escutado, mas a senhora fez um longo gesto de agradecimento.
A conversa seguiu entre os dois homens por mais algum tempo, o menino apenas
escutava tentando aprender algo com o diálogo, até que Jhaldar olhou-o com expressão
amigável e disse::
- Está calado garoto, já com saudades de casa?
- Não senhor, tua acolhida não me deixaria com saudades nem que minha casa fosse o
palácio do Duque – respondeu.
- Vejo que sabe ser cortez. É um bom homem assim como seu pai.
O diálogo foi logo diminuindo de ritmo até que o peso do dia cansativo de ambas as
partes os levasse para as camas no cômodo ao lado. O aposento era pequeno mas
aconchegante, em um dos cantos estava uma velha cama onde dormiam Jhaldar e sua
esposa, a seu lado, sobre o chão coberto de feno havia um pedaço de couro que serviria de
cama para Noldir e seu filho, e um terceiro para o repouso de Seldar.
Sentindo agora o cansaço da viagem, Alvin apagou a tocha na parede de barro e se
deitou, pensando em como seria sua pousada no dia seguinte. O garoto acostumara-se a
pensar no amanhã às vezes cedo demais, isso se devia aos maus tempos que passara onde
comia hoje sem saber se o faria amanhã.
Assim pensativo ele despediu-se de seu primeiro dia de viagem.
Alvin acordou com ânimo, seu pai puxou o rústico cobertor de couro que o cobria, o
garoto apenas sinalizou mas não teve forças para abrir os olhos, só o fez quando o cheiro de
pão saído do forno fez roncar seu estômago e esquecer a preguiça.
O garoto ergueu-se espreguiçando e foi até uma bacia com água fresca que serviu
para lavar-lhe o rosto e despertá-lo. Pela temperatura o dia com certeza seria agradável,
podia imaginar ser muito cedo, pois a luz mal entrava pela janela meio-aberta do aposento.
Na cozinha os demais já conversavam animados, ele aproximou-se e logo recebeu o
convite de Jhagar para se sentar à mesa. Havia sobre ela pão quente e um caldo parecido
com o que fora anteriormente servido, a velha senhora não estava presente, provavelmente
cuidando dos porcos que grunhiam fortemente no chiqueiro ao lado da casa.
A conversa não era muito diferente daquela que Alvin estava acostumado, Noldir
elogiava com reverência a hospitalidade do amigo que sorria de maneira simpática.
- Como dormiu, garoto? Bem, pelo que vejo – disse Jhagar a Alvin.
- Sim senhor, de tão aconchegante tive de fazer grande esforço para poder me levantar
– respondeu sorrindo.
- Porém é preciso sair o quanto antes – disse Noldir tomando o caldo com pressa e
olhando Alvin por sobre os ombros – Temos que viajar à luz do sol o maior tempo possível.
- Apesar de apreciar tua companhia sou obrigado a concordar, meu amigo – disse
Jhagar com expressão séria – As estradas são perigosas sobre o manto da noite.
Alvin apressou-se em sua refeição e logo foi ajudar Seldar a preparar o cavalo.
- E então Noldir, qual será tua próxima parada? – disse o velho amigo.
- Na verdade não sei, sabe se há bom abrigo a um dia de viagem daqui?
- Ah, não se preocupe, o sul do reino tem inúmeras pequenas aldeias espalhadas pelo
caminho, creio que não terá problemas com tal – respondeu Jhalgar com ar seguro.
- Assim espero – disse Noldir enquanto reparava nos jovens que se aproximavam
puxando Trolstan pelas rédeas.
Noldir deu um forte abraço no anfitrião e despediu-se com alegria:
- Obrigado mais uma vez, Jhalgar, espero poder retribuir-lhe o quanto antes.
- Não se preocupe, tua companhia já foi a retribuição. Boa viagem.
Noldir sorriu e subiu na carroça, acomodando-se ao lado de seu filho.
- Adeus, e obrigado – acenou Alvin para os homens que observavam a carroça que
começava a se mover rumo a saída.
A cidade ainda estava despertando, algumas mulheres se dirigiam ao poço e enchiam
bacias de água enquanto conversavam e riam bastante alto, na praça um homem arriava seu
cavalo enquanto outro amolava um instrumento. Uma rotina que se repetia há séculos
naquele lugar.
Esse momento lembrou Alvin da saída de Brendem dias atrás enchendo-o de
melancolia, talvez o mesmo acontecia com seu pai, pois este não disse sequer uma palavra
até que a vila sumiu atrás deles.
A estrada continuava a mesma, a paisagem também. O garoto deitou-se na carroça,
cobrindo suas pernas com uma manta de lã, Noldir apenas olhou, continuando calado. Em
pouco tempo Alvin dormia novamente.
Quando abriu os olhos o sol já brilhava, estavam agora passando por uma parte mais
estreita com árvores altas que cercavam ambos os lados do caminho, quando a alguns
metros um homem mal vestido esperava parado junto à margem.
Logo que a carroça começou a aproximar-se o homem veio de encontro aos viajantes.
Ele ergueu um dos braços em cumprimento:
- Bom dia amigos. Por acaso há lugar nessa carroça?
- Quem é e para onde vai? – disse Noldir com voz firme.
- Sou Fledil-ellin e vou para onde o destino me levar, nesse caso vocês – o homem
sorriu.
Noldir parecia não saber o que fazer diante daquela figura estranha no meio da
estrada. Fledil era um homem alto, de meia idade, vestido em um gibão verde esfarrapado.
Chamava-lhe a atenção os longos cabelos castanhos e brilhantes, bem como a face lisa e a
pele branca, sem as manchas comuns àqueles que trabalham sob o sol.. Carregava nas
costas uma espécie de mochila de couro e levava um cajado nas mãos.
Apesar do perigo que este andarilho poderia representar, Noldir pensou que não teria
nada de muito valor a ser roubado, além disso, sentia-se mal em negar ajuda a alguém
depois da ótima recepção que teve em Noil. Pensou por alguns minutos. Talvez esse
homem possa até mesmo animar a viagem com um pouco de boa conversa.
- Está bem. Pode subir Fledil-ellin. Será mesmo interessante mais alguém para
prosear, pois ainda temos o dia inteiro de viajem – completou o pai de Alvin.
O homem sorriu e saltou imediatamente ao lado do condutor.
- Se é boa conversa que quer, pode dizer-se com sorte – falou Fledil-ellin de maneira
alegre.
Noldir apenas balançou a cabeça colocando Trolstan novamente em caminhada.
- E então, viajantes, para onde estão indo? – indagou o homem em trapos.
- Para qualquer vila que sirva de abrigo a um dia de viajem ao sul.
- Conheço várias. Deram sorte novamente, pois não há maior guia do que eu por estas
paragens! – Disse o passageiro em tom orgulhoso.
- Por falar nisso, de onde vem, Fledil-ellin? – Intrometeu-se Alvin.
- De todos os lugares por aqui, sou errante sem lar e sem pátria.
- E posso saber de que vive? – perguntou Noldir curioso.
- Ora, os bosques desta estrada me dão de comer. E garanto-lhe que ótimas refeições
meu caro amigo – respondeu de modo esnobe.
- Mas diga-me, caro “guia”, não sabe que estes bosques são de propriedade do Duque
e seus barões, sendo portanto a caça proibida? – falou Noldir desconfiado.
- Sim, é claro que sei, porém a caça e os frutos não sabem, pois nunca me negaram
sua boa sustança – ao dizer o estranho arregalou os olhos e gargalhou olhando ao redor.
- Pois espero que os senhores não descubram, ou tua sustança passará a ser a lavagem
dos calabouços.
- Não se preocupe... como se chama?
- Noldir.
- Pois bem Noldir não se preocupe, sou o que os sábios costumam chamar de “raposa
esperta”. – novamente Fledil-ellin gargalhou sozinho.
Pai e filho entreolharam-se sem comentar o óbvio: devia tratar-se de um maluco.
A viajem seguiu calma como o esperado, os três se falaram pouco, senão nas poucas
vezes que o maltrapilho se gabava se sua boa vida pelas florestas e charnecas da região.
Assim que a fome os tomou fizeram a primeira parada, onde Alvin e seu pai
dividiram o almoço com o viajante que ficou profundamente agradecido.
Depois de algum descanso partiram novamente percorrendo aquela sóbria porém
maçante paisagem, balançando seus corpos ao ritmo constante dos passos de Trolstan, que
incansável, trilhava o caminho sem ter como manifestar-se. .
Algumas horas além, encontraram uma bifurcação. Noldir parou Trolstan e passou a
mão por seus cabelos pensando que rumo tomaria, Fledil-ellin logo se intrometeu;
- Garanto-lhe, ó amigo, que o melhor que pode fazer é seguir pela esquerda, se é
abrigo que deseja – o homem disse com bastante segurança, fazendo Noldir decidir
obedecê-lo.
Após mais algumas léguas e mais algumas bifurcações decididas por Fledil-ellin a
estrada mostrou-se mais firme e bem delineada, o que indicava constante trânsito. Alguns
metros à frente o caminho passou a ser cercado por uma plantação de cevada de um lado e
de trigo do outro. Era um bom sinal, já há algum tempo que não viam marcas de outras
pessoas.
Vindo de encontro, três soldados bem armados montados à cavalo aproximavam-se
calmamente, ainda distantes. Ao percebê-los a expressão do viajante mudou, pareceu ao
mesmo tempo preocupado e assustado, jogando-se com habilidade para a parte traseira da
carroça e escondendo-se ao lado de Alvin.
Os soldados fizeram um sinal para que Noldir parasse, e este estava assustado. O
homem poderia ser um criminoso, e escondê-lo poderia causar-lhe terríveis problemas.
Os homens do Duque vestiam-se ricamente, todos com uma cota de metal e um elmo
que lhes cobria parte do rosto, por cima da cota um talabar amarelo com uma serpente
vermelha estampada. Exibiam espadas na cinta e tinham superioridade no olhar. Um deles,
que carregava um estandarte com a serpente, dirigiu-se a Noldir.
- De onde vem e para onde se dirigem, campônios?
- Partimos de Brendem com destino há Korllux, senhor – Noldir nem sequer ergueu
os olhos.
- Por um acaso pediram permissão ao Duque para saírem de suas terras? – o soldado
ergueu a uma das sobrancelhas e dirigiu seu olhar para Alvin que sorriu de volta.
- Com todo o respeito, ó grande soldado, eu sou um homem livre – disse Noldir com
o olhar baixo e a voz tímida.
O soldado esboçou um sorriso de desdenho.
- E o que levam consigo aí na carroça?
- O pouco que temos, meu senhor, pois estamos de mudança definitiva – respondeu
Noldir de maneira humilde.
- Espero que tragam consigo um pouco de vinho, pois tenho sede.
- Claro, meu senhor. Alvin, pegue o cantil! – ordenou seu pai.
Ergueu então uma das mantas e começou a procurar o que seu pai havia lhe pedido,
nervoso e com medo do homem que sem querer ocultavam ser descoberto. O garoto tateou
os pertences até que depois de alguns momentos lançou o cantil a seu pai que
reverentemente entregou-o nas mãos do soldado.
O guarda deu um longo gole depois o passou para os companheiros que também
mataram sua sede. De maneira desdenhosa arremessou-o de volta a Noldir.
- Muito bem, camponês, siga teu rumo e cuidado com as estradas.
- Obrigado senhor - ao dizer Noldir acenou e tocou Trolstan que recomeçou a
caminhada a passos lentos.
A carroça continuou a seguir até que se afastou da vista dos soldados, mal isso
aconteceu, Noldir puxou o manto que a cobria com um movimento brusco, exibindo Fledil-
ellin encolhido como um coelho.
- Pule fora patife! Deve ser um criminoso e não preciso de mais problemas!
- Acalme-se, meu senhor, não cometi crime algum senão ser um homem miserável!
Esses soldados infames me levariam para os calabouços apenas por eu não ter uma casa
para o pernoite. – respondeu o viajante com ar de indignação.
- Não cairei em tua lábia! Saia antes que eu o faça sair a força! – Noldir com a voz
ríspida pôs a mão sobre seu cajado.
- Espere, está me condenando sem ter eu cometido qualquer injuria! Dê-me uma
chance, senhor, e poderei te provar que sou um homem de palavra e honra e que minhas
vestes maltrapilhas não são um sinal de mau-caráter! - Fledil-ellin encarou-o.
- Como pode achar que te julgo pela miséria? Não vê que não possuo muito mais que
você? – Noldir afastou sua mão do cajado, fazendo o viajante respirar melhor – Mas nunca
vi um homem de bem se esconder da milícia como um frango da raposa.
- Como disse, me escondi apenas porque não confio no julgamento daqueles homens,
que diferente de ti, julgam pelas posses e não pelo coração.
Noldir olhou decidido para Alvin, este olhou de volta.
- O que acha Alvin?
O jovem se arrepiou, era a primeira vez que seu pai pedia sua opinião em algum
assunto, não sabia o que fazer, sentiu-se alegre, porém receoso em decepcioná-lo. Olhou
demoradamente para o viajante, e por algum motivo não sentiu a maldade em seu olhar.
Ainda com a vista no maltrapilho Alvin falou balançando a cabeça:
- Ele não cometeu crime algum contra nós, e por mim pode continuar conosco.
Seu pai quieto apenas resmungou e tocou Trolstan que retomou sua toada. Em
silencio o viajante juntou as mãos e com um largo sorriso no rosto fez um aceno para o
garoto.
Alvin não respondeu ao agradecimento, estava pensativo demais para sequer notá-lo,
orgulhoso de si mesmo por ter a confiança daquele que mais amava e por ter sido
considerado um homem, que teve sua opinião respeitada. O garoto fechou os olhos e se
deixou levar por esses agradáveis pensamentos.

O ritmo da viagem se seguia, uma brisa fria já começava a soprar indicando o


entardecer, as últimas horas foram de silêncio entre os viajantes, um clima ruim foi
estabelecido depois da discussão entre os homens, apenas a passada de Trolstan irrompia a
quietude mórbida da estrada, agora cercada por uma campina de arbustos floridos.
Estavam agora descendo por um vale, na baixada já identificavam a fumaça das
chaminés de duas grandes vilas bem próximas uma das outras, ao longe uma humilde torre
as guardava. Noldir aliviou-se ao vê-las, poderiam agora passar a noite em segurança.
O barulho da toada se modificou quando a alguns metros a estrada de terra mal
cuidada tornou-se de pedra firme, o que permitiu impor um ritmo mais veloz, logo à frente
notaram uma pequena guarita de madeira à margem esquerda, um homem dormia
debruçado sobre sua abertura. Com a aproximação do barulhento Trolstan a figura
despertou de supetão assustando-se. Ele logo se recompôs e acenou para que parassem.
- Hol! – exclamou o guarda.
- Que os deuses o acompanhem meu senhor – disse Noldir.
- Para onde vão? – disse o homem sem cerimônias. Ele vestia um gibão gasto e
amarelado, em seu peito havia um brasão mal pintado que parecia ser de uma ave, usava
um elmo que cobria também parte do nariz, era baixo, com um grande bigode louro e a tez
bronzeada. Empunhava uma longa lança adornada com tiras de couro.
- Para um lugar que possa nos dar abrigo durante a noite – o pai de Alvin baixou a
cabeça.
- Saibam que adentram Ferlmut, domínio de Lord Bakorl sangue de Henry o
Perseguidor, aquele que lutou cem batalhas e saiu vitorioso! – disse o soldado terminando
com um gesto de reverência – Apresentem-se viajantes.
- Sou Mallin-noldir prole de Trispin-pollderir de Brendem, esse é meu filho Alvin-
noir, ao meu lado um andarilho que levo por compaixão... – Noldir foi interrompido pelo
maltrapilho.
- Pode me chamar de Logh “raposa esperta” – disse sorrindo.
O guarda olhou espantado para Fledil-ellin como se só agora o tivesse notado, o
mesmo o encarou por alguns segundos e disse com um olhar frio que beirava o ódio.
- Não gostei de você andarilho, e pelos deuses, não entrará nos domínios de meu
senhor.
Ao ouvir o homem Fledil soltou uma gargalhada, espantando Alvin e seu pai.
- Ora, que terríveis ameaças um pobre maltrapilho pode trazer para um reino com essa
potência? – o andarilho terminou a frase com uma exagerada reverência.
O soldado pendeu sua cabeça para o lado de uma forma estranha, como se tivesse
perdido sua vontade, e logo se voltou para os três.
- Muito bem! – tinha a voz trêmula – Saibam que nestas terras reinam a paz e a
ordem. Arruaceiros e ladrões são expulsos com chibatadas no lombo!
- Não se preocupe caro soldado, pois não pretendemos dar afazeres a teu carrasco –
mais uma vez “raposa esperta” se intrometeu.
- Pois bem, sigam em paz - o guarda respirou fundo como quem perde a paciência e
deu passagem aos viajantes que já observavam o arco de entrada da primeira vila.

Assim que tomaram uma distância segura da guarita Noldir se virou para o homem a
seu lado.
- “Logh”? Achei que se chamava Fledil-ellin! Deve mesmo se tratar de um criminoso
afamado!
- De forma alguma, meu senhor, apenas não gosto de meu nome na boca de qualquer
um. Além do mais, detesto esses soldados! Malditos sejam! Julgam-se senhores dos céus
apenas por possuírem uma lâmina a cintura!.
- Pois não quero me envolver com soldados e muito menos com suas lâminas! –
Noldir exaltou-se
- Não se preocupe, caro amigo, já disse que não sou perigoso, apenas um tanto quanto
inusitado! Fledil parecia estar de brincadeira.
Noldir não tinha a mínima idéia do que seria uma pessoa “inusitada”, e por algum
motivo que desconhecia, achava-se certo de que o homem não tinha más intenções.
- Diabos! Apenas não me traga problemas – Noldir balançou sua cabeça em negação
voltando novamente sua atenção para a vila que se aproximava.
Enquanto os homens dialogavam os passos de Trolstan se mantiveram na mesma
toada, conduzindo-os até o vilarejo onde passariam a noite.
O vilarejo estava no centro de uma grande plantação de cevada, os sinos da
magistratura tocavam anunciando o fim da dura jornada dos camponeses que rumavam
calmamente para o corgo para lavar suas ferramentas e tratar dos animais. Alguns homens
próximos a estrada erguiam suas cabeças mas poucos cumprimentavam os viajantes,
pareciam fatigados, e até mesmo tristes.
A entrada do lugar era simples porém bem cuidada, no arco de pedra estava escrito
“Jarlwen, terra do imaculado sangue de Henry”, este era cercado por um jardim impecável.
Os viajantes não demonstravam qualquer sinal de curiosidade pelo lugar que estavam
conhecendo, era exatamente igual a qualquer outra vila na qual já tinham posto os pés.
Alvin estava distraído, intrigado sobre a placa de entrada: “este tal de Henry deve ser
alguém importante”, pensou. O garoto se animava com a idéia de que poderia conhecer
pessoas de diferentes e importantes, com suas histórias magníficas. Ia com estes
pensamentos quando algo lhe chamou a atenção. No fim da rua uma imensa silhueta se
destacava, Fledil e Noldir também espantaram-se. Era uma enorme macierira! Trolstan
continuou a caminhar até se aproximar o bastante para que os três pudessem observar de
perto aquela planta magnífica.
A árvore se encontrava na praça central, tinha um tamanho no mínimo cinco vezes
maior que de qualquer outra de sua espécie, estava carregada de frutos, exalando um
perfume maravilhoso. Era, sem dúvida, o maior espetáculo que já haviam observado.
Próximo à macieira estava o poço e um gramado onde a estátua de um guerreiro
sobressaia em meio aos frutos vermelhos que tingiam o chão a seu redor. A praça é o local
mais importante das vilas e aldeias, lá são discutidas questões sobre o plantio e a colheita,
são realizadas as festas e os julgamentos e é também aonde o senhor vem receber seus
impostos e demonstrar sua autoridade.
As casas não eram muito diferentes daquelas que Alvin conhecia, exprimiam a mesma
simplicidade e aconchego, porém as ruas forradas com pedras deixavam-nas com aspecto
melhor que aquelas manchadas de barro em Brendem.
Apesar de terem atravessado a rua principal, os viajantes não encontraram sequer uma
pessoa no caminho, o que lhes causou certa estranheza. Mesmo com os adultos na lida é
comum a presença de crianças bem pequenas a perambular, principalmente em torno de
viajantes estranhos.
Noldir soltou as rédeas, encostou-se e esticou os braços respirando fundo.
- O que faremos agora pai? – Alvin pôs a mão em seus ombros.
- Vamos esperar que voltem do trabalho e procurar alguém de espírito hospitaleiro.
Logo o silêncio deu lugar ao falatório dos trabalhadores que voltavam de seus
afazeres. As mulheres traziam crianças no colo, e os homens ferramentas e lenha sobre os
ombros. A confusão aumentou quando uma grande vara de porcos invadiu as ruas sobre o
comando de seus pastores, que apesar do cansaço pareciam se divertir com a bagunça
causada por sua passagem. O lugar estava movimentado para seu tamanho, porém as
pessoas não davam atenção aos viajantes. Era como se estes não estivessem lá.
Noldir desceu de seu lugar e foi de encontro a um senhor que passava calmamente por
eles.
- Com licença, ancião, saberia onde um homem cansado poderia arrumar abrigo por
uma noite?
O homem parou, e em silêncio olhou-o de cima a baixo.
- Não, não sei. Com licença – o velho continuou seu caminho sem olhar em seus
olhos.
Noldir lançou um olhar para Alvin e Fledil-ellin que esperavam na carroça. Estes
deram de ombros. O pai de Alvin fez um sinal para que esperassem e saiu em meio às
pessoas, que pareciam evitá-lo.
Alvin ficou na carroça como seu pai pediu, observando-o sumir em meio à pequena
multidão.
O garoto não sabia por que estavam sendo tratados com tanta desconfiança, olhou
para Fledil-ellin que não parecia nem um pouco cansado, diferente dele e de seu pai. O
homem olhava a multidão com curiosidade e às vezes gargalhava quando um grupo de
pessoas desviavam seu caminho para não cruzarem com eles.
- Devo então chamá-lo de Logh nesta cidade? – disse Alvin com ar de desconfiança.
- Pode chamar-me de amigo - Fledil-ellin sorriu.
Alvin sentiu certa sinceridade naquele sorriso, que aliás, tinha também sua estranheza,
seus dentes eram bastante brancos e conservados, melhores mesmo que de seu pai, bem
diferente do sorriso amarelo e pútrido que costuma ver em andarilhos e mendigos.
Novamente ele se perdia em pensamentos quando viu seu pai se aproximar por uma
ruela, podia reconhecê-lo ao longe, pois se diferenciava em altura e vigor. Ao lado de
Noldir vinha um homem baixo e magro, de vestes simples e barba mal feita, vinham
conversando e gargalhando.
Ao se aproximarem da carroça o homem parou de sorrir mudando sua expressão de
contente para apreensivo. Noldir percebeu a repentina mudança mas não comentou e de
maneira descontraída foi logo apresentando os demais:
- Esse é Alvin, meu filho, um rapaz forte como lhe falei. O outro é Fled... quer dizer,
Logh, um andarilho que levo por compaixão.
- Muito prazer Alvin – disse o homem sem tirar seus olhos de Fledil-ellin.
- Esse é Mallerir, um conterrâneo nascido em Brendem – Noldir soltou um sorriso.
O homem continuou impassível diante da situação, olhando o maltrapilho como se
este fosse um antigo inimigo.. Mallerir olhou para o pai de Alvin com o canto dos olhos:
- Tudo bem quanto a vocês dois, mas o pobre diabo que carregam não levarei comigo.
Os três olharam para Fledil-ellin este apenas baixou sua cabeça de maneira servil:
- É claro. Não pretendo ser um empecilho para vossa estadia, já fizeram o bastante por
mim me carregando até aqui – o viajante fez uma reverência e saltou da carroça antes que
Alvin e seu pai pudessem fazer alguma coisa. O garoto apenas acompanhou com os olhos o
homem desaparecer nas ruelas a sua frente.
Mallerir voltou a sorrir parecendo aliviado com a ausência de Fledil-ellin:
- Vamos, minha casa os espera!
Noldir acenou para seu filho que pôs Trolstan a andar enquanto caminhava ao lado do
novo amigo.

Alvin e seu pai cruzaram a vila de ruelas estreitas e bem cuidadas que aos poucos iam
se esvaziando a mediada que o povo cansado voltava para a tranqüilidade de seus lares.
Os aldeões pareciam agora, diferentemente de minutos atrás, mais acostumados com
sua presença pois a maioria os cumprimentava, alguns alegremente.
Logo os três estavam diante do casebre de Mallerir que gesticulou para Noldir
pedindo que entrasse, dirigindo-se a Alvin logo em seguida:
- Espere um pouco, rapaz, deve levar o animal para a estrebaria.
Alvin não respondeu, apenas permaneceu onde estava enquanto os homens entravam
pela velha porta de madeira. Depois de alguns segundos uma garota saiu por ela, era tão
magra que passava a impressão de que poderia se quebrar a qualquer momento. Seus olhos
azuis-escuros passavam com facilidade suas emoções, e apesar da pobreza estampada no
vestido de linho surrado, tinha um semblante descontraído, e parecia contente. A jovem
pôs-se a sorrir para o garoto dizendo de maneira servil:
- Olá, vim lhe ajudar com o animal – a garota sorriu, seus dentes brancos davam um
bonito contraste com sua pele morena advinda do trabalho na roça.
- É Trolstan – Alvin sorriu de volta.
A garota prontamente pegou o cavalo pelas rédeas e começou a conduzi-lo.
O viajante pulou da carroça e começou a acompanhá-la, logo tirou as rédeas de sua
mão com um pouco de rispidez, como se estivesse enciumado. Ela não se opôs e seguiram
para a estrebaria que já podia ser vista a alguns metros.

No casebre Noldir era convidado a entrar por Mallerir, que não fazia muita cerimônia,
como se já se conhecessem há muito tempo, o que deixava o visitante mais à vontade.
- É simples, mas creio que já está acostumado – Mallerir falou ainda de costas para o
recém chegado.
- Claro, para homens como nós o aconchego está na simplicidade – respondeu.
Mallerir não falou, apenas deu um sorriso, olhando-o com o canto dos olhos.
O casebre ao redor deles era exatamente como os demais que infestavam as vilas na
região. Possuía dois cômodos bem pequenos e com poucos móveis. No canto de um deles
havia uma senhora de meia-idade que costurava um pedaço de tecido distraída. Ao vê-los
ela se levantou deixando seu afazer de lado. Mallerir se dirigiu a ela em um tom afetuoso.
- Essa é Vallisha, minha esposa. Vallisia, esse é Noldir.
Noldir a olhou nos olhos baixando a cabeça em reverência logo em seguida.
- Noldir é um conterrâneo, nascido em Brendem, minha terra – o anfitrião continuou.
A mulher apenas sorriu com um jeito envergonhado. Tinha a pele pálida, seu olhar era
apático, cansado, circundado por fortes oleiras, o que lhe dava uma má impressão. Noldir
gelou-se ao se lembrar de ver exatamente a mesma expressão na face de sua esposa pouco
antes de seu falecimento.
Os homens caminharam até uma mesa no centro do primeiro cômodo, esta era de
madeira maciça porém já parte carcomida por cupins. Ambos se sentaram enquanto Vallisia
escolhia a lenha para acender o fogo.
- Disse-me que é viúvo? – perguntou Mallerir.
- Pois é amigo, não tenho a mesma sorte que você – respondeu.
O anfitrião fez uma pausa. Passando os olhos pelo aposento e sussurrando com
cuidado, como que para não ser ouvido.
- Sim, mas temo pela saúde de minha companheira, ela está sofrendo de uma estranha
febre que vem durante a noite, já há dias que não deixo que me acompanhe no trabalho
pesado – o olhar do homem foi tomado por tristeza – Espero que a maçã traga sua saúde de
volta.
O visitante se emocionou, conhecia bem esta agonia, Noldir suspirou e disse com voz
firme:
- Não se preocupe, talvez ela precise apenas de um pouco de descanso.
- Tomara, conterrâneo, tomara! – Mallerir fez uma pausa – Gostaria que ela ainda me
desse um garoto, um macho, perdemos os dois que já tivemos quando ainda eram de colo.
- Meus pêsames – ao dizer o viajante baixou a cabeça.
Um silêncio se estabeleceu, apesar de tristes, essas mortes prematuras eram
terrivelmente comuns, o próprio Noldir teve duas irmãs que não teve tempo de conhecer.
Como que para quebrar aquele momento, Mallerir deu um sorriso e se dirigiu a seu
hóspede:
- E então? Conte-me mais sobre Brendem!
- Antes quero que me conte sobre como pretende melhorar a saúde de sua esposa
dando-lhe uma maçã! – o pai de Alvin estava curioso demais para mudar de assunto.
- Não é uma maçã qualquer, meu amigo! Vou lhe contar...

Rumo a estrebaria os dois jovens trocavam olhares em silêncio, Alvin estava fatigado
devido à viagem e a moça parecia não querer muita conversa, depois de alguns metros
chegaram a um estábulo de porte médio onde repousavam algumas mulas e cavalos, a
maioria do barão, estes podiam ser reconhecidos por uma ave marcada a ferro sobre as
ancas. O chão do lugar era recoberto de feno, e o cheiro de capim fresco podia ser
fortemente sentido, sinal que os animais já estavam sendo alimentados.
A garota não pediu para que Alvin esperasse enquanto foi atrás do cavalariço, porém
logo voltou.
- O cavalariço não está por aqui – a garota deu um suspiro – Vamos esperar um pouco
para pedir permissão para guardar sua montaria.
O garoto não respondeu, apenas mexeu as sobrancelhas e concordou com a cabeça.
Ambos encostaram-se na parede de madeira da estrebaria, o silêncio durou por algum
tempo até que a moça resolveu quebrá-lo:
- Sou Mikella, e você? – apesar de se dirigir a Alvin ela não o olhou.
- Alvin-noir – o garoto também olhava para baixo.
Mikella o encarou e sorriu:
- Devo então chamá-lo de Alvin ou Noir? – perguntou.
- Alvin. Pelo menos ainda – dessa vez respondeu olhando nos olhos da moça que
sorria para ele.
Fitaram-se um pouco em silêncio, quando o garoto recomeçou.
- Acho que logo assumirei meu segundo nome, você sabe, quando meu pai achar que
já sou homem feito. Então não mais serei tratado como um garoto.
- Acho Alvin um nome simpático, não tenha pressa – Mikella aumentou seu sorriso.
Apesar de reconhecer a tentativa da moça em ser simpática, Alvin não concordava,
não via a hora de se chamar Noir, de poder se sentar à mesa e dar suas opiniões. Poderia
então fazer qualquer coisa, entrar para a milícia, ter sua própria casa e até mesmo se casar.
- Seu nome também não é ruim – o garoto sorriu.
Antes que a conversa pudesse prosseguir, um homem obeso se aproximou cutucando
um grande bigode vermelho e ajeitando as calças com desleixo.
- Boa tarde senhorita Mikella! Estava a minha procura? – o homem gordo parecia
bastante contente em vê-la.
- Olá Zarlferin, este é Alvin, de Brendem. Será que poderia arrumar um lugar para o
repouso de sua cria?
O homem ficou um tempo olhando para o garoto como se o investigasse. Logo lhe
estendeu a mão. Um cumprimento bastante incomum para Alvin.
- Seja bem vindo Alvin. Como se chama o animal?
- Trolstan – Alvin lhe deu a mão, que foi agitada com força.
- Veja só, é um belo nome para um animal! Quem foi homenageado? – disse Zarlferin
em um tom próximo ao deboche.
- Um ancestral. Grande sábio e habilidoso guerreiro – Alvin encostou a ponta dos
dedos na fronte e baixou a cabeça em sinal de respeito, comum quando se mencionam os
mortos ancestrais.
- Gostaria de ter um grande ancestral para homenagear também, porém meu mais
glorioso ancestral foi um maldito criador de porcos do barão! – o homem gargalhou alto o
bastante a ponto de chamar a atenção dos animais nas baias.
O garoto apenas o olhou sem demonstrar interesse, não gostava daqueles que não
honravam seus ascendentes, criador de porcos ou não, aquele homem devia sua existência a
ele. O cavalo é a maior ferramenta dos homens, seja para o transporte, batalha ou trabalho
pesado, é uma grande homenagem ter seu nome dado a um animal.
Logo Zarlferin se reajustou e disse em tom mais sério:
- Não se preocupe, darei um jeito em Trolstan!
- Obrigado senhor – ao dizer, Alvin virou-se de costas sem cerimônias, caminhando
rumo a casa onde seu pai se encontrava. Foi rapidamente seguido por sua nova conhecida.
Enquanto caminhavam em quietos pelas vielas, agora pouco movimentadas, o garoto
reconheceu uma figura sentada atrás de um velho chiqueiro ao lado de um casebre. Era sem
dúvida Fledil-ellin que se mantinha oculto, aliás com bastante habilidade, já Mikella e os
demais aparentemente não o percebiam, Alvin porém o viu de longe. O garoto acenou
discretamente. O vagabundo apenas esboçou um sorriso.
O sol ainda estava à mostra, quando os jovens entraram na casa, Noldir e Mallerir
gargalhavam enquanto tomavam goladas de leite em uma cunha comum. O anfitrião olhou
com simpatia para os dois que se aproximavam:
- Como foi então? Espero que tenham conseguido.- disse Mallerir ao garoto.
- Tudo correu muito bem senhor, obrigado – respondeu.
Mikella se encaminhou para a cozinha para ajudar sua mãe enquanto o garoto se
sentou à mesa.
A conversa foi muito agradável e seguiu até o anoitecer quando os homens cansados
se recolheram para o pernoite. Os visitantes foram acolhidos na cozinha enquanto os donos
da casa dormiram na saleta principal.

Já haviam se passado várias horas, mas Alvin não conseguia dormir, pensava em seu
amigo viajante escondido atrás daquele chiqueiro sem nenhuma companhia senão os
porcos, devia estar com fome. E Alvin precisava fazer alguma coisa.
O menino se levantou nas pontas dos pés com muito cuidado para não despertar o pai,
caminhou até a cozinha passando devagar pelos anfitriões que dormiam. Chegou até o
forno onde as cinzas ainda ardiam, pegou uma cunha bem devagar e com cuidado encheu-a
com o caldo preparado no jantar. Pegou também uma maçã cozida que havia sobrado da
sobremesa. Dirigiu-se até a porta e saiu com bastante cuidado, tentando lembra-se com
precisão do lugar onde havia visto Fledil-ellin.
A vila calma e inofensiva durante o dia dava lugar a sombra e a escuridão durante a
noite. Poucas eram as tochas que iluminavam as ruelas, ficando a visão a mercê da
insuficiente luz da lua. Apesar da temperatura agradável, um vento frio soprava das escuras
plantações fazendo tremular as chamas das tochas e dando vida às sombras que eram por
demais assustadoras.
O jovem não gostava de estar ali sozinho, sempre ouviu sobre os perigos que se
escondem ao cair da escuridão, seu próprio pai dizia: “a noite pertence às bestas”, e isso era
algo que ele não queria descobrir por si próprio.
Alvin parou frente à porta de onde saíra pensando no risco que poderia estar correndo,
porém seu espírito prestativo não conseguiria deixar o estômago de um amigo vazio. Ele
respirou fundo e saiu a passos rápidos.
Logo que alcançou a primeira esquina, Alvin escutou alguns passos rápidos atrás de
si, as assustadoras histórias que ouvira começaram a tomar vida, sem conseguir se conter o
garoto tomou coragem e olhou para trás de modo repentino, mas nada avistou senão a rua
de onde veio.
Não foi difícil encontrar o lugar que procurava, logo já avistava a casa e o chiqueiro
em meio à escuridão e ao silêncio, tão denso que era quase insuportável.
Alvin começou a caminhar em direção ao esconderijo do amigo e mais uma vez
sentiu-se perseguido. Parou. Desta vez tinha certeza, alguém o seguia, o garoto se virou
para a escuridão e soltou um tímido sussurro:
- Quem se esconde?
Não houve resposta e Alvin sentiu seu corpo se arrepiar pensando se estaria sendo
vítima de um demônio invisível. Apressou seus passos em direção ao pequeno chiqueiro
onde até mesmo os porcos dormiam. Sem muito esforço reconheceu Fledil-ellin que o
esperava com um sorriso em meio às sombras. Este ergueu a cabeça e sussurrou:
- Ora se não é o jovem mestre?
Apressado Alvin lhe entregou o que trazia.
- Tome Fledil, pensei que estaria com fome. Amanhã iremos embora, nos espere na
estrada – o garoto parecia incomodado, o que chamou a atenção do maltrapilho.
- O que foi Alvin? – encarando o garoto de maneira séria.
- Não sei, tive a impressão de estar sendo seguido – respondeu.
Fledil exibiu seu belo sorriso:
- Não se preocupe, é só uma garota.
- Uma garota? Ora então... – Alvin logo pensou em Mikella.
- Não se preocupe jovem amigo, agora volte, se teu pai acordar ficará furioso – Fledil
baixou a cabeça preparando-se para comer – Não esquecerei teus cuidados, obrigado.
Alvin acenou e partiu, agora confiante por saber de quem se tratava o perseguidor.
Logo que saiu das sombras olhou para a rua a sua frente e disse decidido:
- Mikella? Vamos, pare com essa brincadeira.
Após alguns instantes a garota saiu de uma sombra projetada por uma tocha no centro
da ruela. Alvin caminhou até ela com pressa.
- O que está fazendo? Enlouqueceu?
- Desculpe – a garota parecia envergonhada – Eu só fiquei curiosa, vi você mexendo
na cozinha e quis saber o que iria fazer.
- Deveria ter me perguntado! Vim apenas alimentar um amigo. Agora precisamos
voltar!
Mikella concordou e começaram a andar lado a lado. Estavam quietos como de
costume quando a garota se manifestou:
- Já viu os olhos da estátua?
- Olhos da estátua? – Alvin se surpreendeu.
- É. Não viu aquela estátua na praça? Ela possui pedras no lugar dos olhos. Elas
brilham como diamante sobre a luz da lua – disse Mikella com altivez, como se tivesse
orgulho da escultura.
- Acho que não daria certo, nossos pais podem acordar – Não houve firmeza nas
palavras do garoto. Alvin estava curioso por quaisquer coisas novas que viesse a conhecer,
além do mais a noite não parecia tão tenebrosa na companhia de Mikella. Percebendo a
pouca convicção do visitante a moça o tomou pela mão de modo repentino carregando-o
com pressa pelas ruas. Por trás deles Fledil-ellin observava oculto sorrindo enquanto
partiam.

Os jovens pouco andaram até que a majestosa macieira se fizesse presente com seus
enormes galhos se estendendo como os dedos de um gigante por sobre a praça. A seus pés
ficava a imponente estátua de um nobre guerreiro, ainda pouco definida devido à escuridão.
Ao pisarem na elevação de pedra que constituía o piso central, pararam quase que
instintivamente de correr, como que em respeito àquela silhueta homenageada na pedra. Os
dois a circularam devagar apreciando cada detalhe. Alvin curioso não resistiu e se apressou
em reparar nos olhos do guerreiro.
Para seu espanto, havia duas pequenas gemas em seus olhos que brilhavam como se
tivessem luz própria, com um azul tão belo como aquele que erradia da lua. Alvin não
conseguia tirar os olhos daquela figura. Era sem dúvida a coisa mais impressionante que
vira até então, a luz era fascinante, quase hipnótica, oscilando cada vez que a lua era
coberta, dando a impressão de estar viva. A luminosidade daquele olhar marcava dois
pontos luminosos no tronco da incrível macieira e dava a sensação de conforto e segurança.
Só depois de muito tempo apreciando em silêncio aquele olhar mágico é que Alvin
começou a reparar a figura do guerreiro da qual fazia parte. A estátua era de mármore
branco, possuía uma altura não muito maior que a de um cavalo empinado, onde um
homem de meia idade bastante robusto, com um olhar altivo, tirava a espada da baia e
mostrava parte de sua lâmina. Tinha uma barba robusta e uma armadura completa, daquelas
que apenas os reis podem possuir.
O garoto se prendeu em cada detalhe da figura, apreciando fascinado a perfeição de
sua imagem sobre o brilho das pedras; o elmo que cobria parte da face, o escudo que levava
nas costas com a figura de uma ave em mergulho, o punhal que carregava na cintura preso a
um cinturão com uma inscrição desconhecida na fivela. Alvin nunca pensou que o ser
humano seria capaz de uma obra tão perfeita.
Mais uma vez Mikella quebrou a quietude:
- É lindo não?
Alvin não respondeu, como se não houvesse escutado, mesmo assim a garota
continuou, aproximando-se dele:
- Nós as chamamos de olhos de Zumara, por causa da deusa da lua. Dizem que quem
olha para elas tem restabelecida tanto a saúde do corpo quanto a da alma. Vê a macieira?
Possui essa grandeza devido à luz que a banha todas as noites!
Ele baixou seus olhos para os pés da estátua onde uma inscrição dizia em letras
trabalhadas: “Henry, mil vezes Henry, aquele que foi sagrado pela espada”. Logo se virou
para a companheira:
- Mas me diga, pelos deuses em Mashur! Quem foi o homem digno de tais
homenagens? – Alvin disse de modo solene, ainda fascinado.
- Foi um nobre, um conde de tempos antigos que defendeu estas terras das grandes
ameaças que as assolavam – respondeu.
- Mas conte-me, vamos, é exatamente pela oportunidade de conhecer tais maravilhas
que concordei em sair do meu vilarejo – Alvin fez uma expressão faminta, tal qual de um
cão pedindo por comida.
Mikella puxou seu vestido de linho e se sentou com cuidado aos pés do guerreiro, o
garoto fez o mesmo, ficando a seu lado.
A moça dirigiu seu olhar para a estátua e começou a dizer de modo calmo e suave
como se falasse para si mesma:

- Eis que se viu,


Nos olhos dos oprimidos
Na noite os corrompidos
O breu que lhes feriu

Das entranhas da terra


Dos males do mundo
Em nome da guerra
Ergueu-se o imundo

Decadente mal surgiu


Gritos foram ouvidos
Urros, gemidos
Do corpo o sangue se exauriu

Sai da boca que berra


O que fere o moribundo
É a névoa que erra
É o negro profundo!

A dor os nobres reuniu


Barões enfraquecidos
Temerosos, encolhidos
Choravam reprimidos
Ante o mal que os invadiu

.........................................

Diante da sina
Os exércitos assustados
Debandavam malogrados
Fugindo à carnificina

O povo de morte caía


Estraçalhados por tais horrores
Viam que tudo se devia
Ao abandono de seus senhores
O mal às fortalezas não fascina!
De nada serviam os soldados
Todos à morte estavam fadados
Pelo toque do breu que lancina

A sombra por feitiço atraía


A seu encontro partiam os senhores
A cada passo o bravo gemia
Via erguer-se grande seus temores

A esperança sobreviveu à chacina


Aqueles que escaparam imaculados
Sob um herói foram guardados
Marcando os crimes registrados
Escritos com a letra que o leão assina

...............................................

Girando sob o corcel sorrateiro


Eis que ergue-se temerário o mangual
Gema e morda-se de medo, ó mal!
Está a caminho magnífico cavaleiro!

Diante da morte ele desafiava


Como um trovão na memória
Um grito que nos sonhos ressoava
Era o amanhecer da história

Como um exército inteiro


Entrou-se nas sombras do mal
Contra um inimigo sem igual
Era consumido nosso companheiro

Todos viam a morte que regozijava


Notavam o heróico perecer em glória
O povo ainda no valente acreditava
E logo presenciaram a vitória!

Observaram em brados o rosto faceiro


Sorrindo para a sombra fatal
Sua espada em luz espectral
Deu a maldição um funeral
Foi derrotado o nevoeiro!

.........................................
Henry não havia acabado
Daria fim de uma vez à matança
Ergueria a alma da esperança
Seguiria até a fonte o mal falado

Percorreu mundos em perseguição


A vitória então o abraça
Dispersava a cada dia a maldição
Como o leque à fumaça

Noventa e nove batalhas haviam passado


À fonte do mal ele avança
Fizera com a bravura uma aliança
O mal era aniquilado

Uma gruta era do terror o coração


Uma besta ancestral esfumaça
Pelas narinas a escuridão
Os homens são sua caça

Com a astúcia a seu lado


Adentrou-se com confiança,
Vencendo-a como uma criança
Deixando-nos como herança
A terra do mal foi exilado

........................................................

Ao horizonte inda vê-se ao longe


A capa do guerreiro que vaga
Dos deuses o grande monge!
Aquele que livrou-nos da praga.

Henry,
Mil vezes Henry,
Aquele que lutou cem batalhas
E saiu vitorioso!

Imediatamente, antes mesmo de gabar-se da honra conquistada o herói pediu a seus


homens que selassem a gruta maldita de onde nenhuma escuridão jamais então surgiria.
E é isso, é essa incrível passagem que nos é contada desde crianças.
Henry viveu ainda por muitos anos até que os deuses o chamaram.
E é exatamente por isso que Ferlmut possui tantas vilas e aldeias, as pessoas aqui
acolhidas nunca mais quiseram sair da guarda de seu herói e salvador, e os nobres que às
abandonaram não tinham coragem para exigir que voltassem.
Essa escultura existe para nos lembrar que a coragem pode vencer a escuridão! Um
sábio viajante, que por aqui passou há muito tempo, disse que as trevas tiravam seu poder
do medo e da angústia, e foi exatamente em um homem que não conhecia tais sentimentos,
Henry, o Perseguidor, que elas acharam sua destruição!

Alvin ficou impressionado, não conseguia esquecer a história que acabara de ouvir,
sua vontade era de ouvi-la por mais cem vezes, tantas quanto foram as batalhas do grande
Henry!
Reparava agora na espada que o guerreiro brandiu contra o mal, não era como
qualquer outra que o garoto havia visto na cintura dos soldados. A arma tinha o cabo todo
trabalhado com detalhes de beleza quase sobrenatural, realçada pela postura do barão que
ao expor a lâmina, avisava a escuridão do perigo em desafiá-lo.
- Quando ele morreu seu filho trouxe essa estátua e plantou a macieira, a árvore
preferida de seu pai, em todas as vilas de suas terras, mas apenas aqui em Jarlwen ela é tão
magnífica. Dizem que essa vila foi o primeiro domínio de sua família e por isso nutria
grande apresso por ela – continuou Mikella.
- Mas e esses frutos pelo chão? Por que não se alimentam deles? – perguntou o garoto
ainda com os olhos na estátua.
- Esses frutos são como cada gota do sangue que Henry deixou na terra para nos
salvar e só nos alimentamos de um deles quando estamos doentes. Dizem que possuem a
capacidade de curar – respondeu.
Alvin estava encantado e surpreso por nunca ter ouvido falar daquele guerreiro. Que
outras histórias e aventuras conheceria? O garoto tinha agora um novo fôlego para seguir
viajem. Mikella levantou-se e com cuidado baixou um dos galhos de onde apanhou uma
das frutas, ela a enrolou em um lenço de modo solene e entregou ao novo amigo.
- Tome, talvez precise. A viajem ainda não acabou e sei que viajar ao sol e ao sereno
não faz bem a ninguém.
- Obrigado, de verdade – o garoto sorriu – Mas acho que devemos voltar.
Mikella concordou com um sorriso e mais uma vez saíram pelas ruas até sua casa.
Os dois abriram a porta com cuidado, mas isso não a impediu de ranger, o que os fez
encolher os ombros e andar ainda mais devagar. Alvin atravessou o pequeno aposento e
deitou-se em seu lugar, ao lado de seu pai, que para seu espanto o acompanhava com os
olhos. Estava com o semblante sério, com a testa franzida. O garoto teve certeza de que
teriam uma boa “conversa” no outro dia.

Logo o sol apareceu e Alvin foi despertado por Mikella, que não havia ido aos
campos para poder tratar de sua mãe ainda adoecida:
- Acorde! – a garota cutucou-o com o pé – Seu pai e o meu já saíram.
Alvin saltou da cama. Seu pai não o acordara, e isso era um mau sinal. O garoto
apressou-se em comer seu pedaço de pão e tomar a pequena caneca de leite.
- Para onde foram? – perguntou com a boca cheia.
- Estão nos fundos. Meu pai pediu para que Noldir o ajudasse a consertar uma carroça
antes de partir – respondeu Mikella.
O jovem saiu a passos rápidos ao encontro de seu pai.
Nos fundos do casebre os homens conversavam sorridentes. Noldir erguia uma das
rodas que parecia como nova, enquanto Mallerir o apoiava. Alvin se aproximou em
silêncio.
- Bom dia, rapaz! – disse o anfitrião.
- Bom dia senhor. Posso ser útil? – respondeu disfarçando a preguiça.
- Dois homens aqui bastam! Mas pode olhar e aprender! – interrompeu Noldir.
Percebendo a indisposição de seu pai o menino fez como lhe foi ordenado,
observando em silêncio.
Depois de algumas horas o serviço estava pronto. Millerir sorriu satisfeito e deu um
abraço afetuoso em seu hóspede dizendo:
- Obrigado meu amigo. Não esperava que fosse um marceneiro.
- Estou apenas respondendo à altura de tua hospitalidade, caro amigo – respondeu.
- Venha, tenho algo para vocês – o aldeão pediu para que o seguisse.
O homem os conduziu para a cozinha de onde tirou um bom pedaço de pernil
defumado.
- Tome – estendeu-o para Noldir – Para a viagem.
- Obrigado, Mallerir – Noldir fez um sinal de reverência erguendo o presente,
dirigindo-se então a seu filho:
- Alvin, vá buscar Trolstan.
O garoto não respondeu, apenas saiu em disparada tentando se mostrar prestativo.
Assim que voltou com a carroça Alvin notou seu pai ao lado dos anfitriões na porta da
casa, provavelmente estavam se despedindo, falavam alto e sorriam um para o outro
enquanto ele não conseguia tirar os olhos da maravilhosa macieira e da estátua a seu pé,
aproximou-se devagar, Mikella veio a seu encontro:
- Então estão indo embora? – disse com certa tristeza.
- Sim, gostaria de ficar mais uma noite para apreciar os olhos-de-lua do grande
Henry! – Alvin sorriu.
Olhavam-se quando Noldir ergueu os braços e acenou bruscamente, gritando em tom
ríspido:
- O que está esperando, garoto! Quer pegar a noite em viagem?
Imediatamente seu filho apressou o passo e entregou as rédeas ao pai, este abraçou
Mallerir e sussurrou mais alguns agradecimentos.
Calado Alvin tomou seu lugar na carroça, verificando ansioso se a maçã ainda estava
guardada em sua mochila, fazendo Mikella sorrir ao perceber o valor que o novo amigo
atribuiu a seu presente.
- Bom, meu amigo, se bem entendi, não terei dificuldades em chegar a meu destino.
Espero que nos encontremos em breve para que eu possa retribuir suas gentilezas – Noldir
baixou a cabeça em respeito.
- Que os deuses o acompanhem! Boa sorte! – respondeu Mallerir, em um tom
emocionado.
O menino apenas acenou para aqueles que lhe deram acolhida, especialmente a
garota, que apesar de ter conhecido a tão pouco tempo, lhe encantou como poucos o
fizeram. De certa forma Alvin sabia que este encanto era em parte mais um dos “grandes
feitos” de Henry e sua aventura maravilhosa. Em seu íntimo estava ansioso para contar a
seu pai sobre a história que ouvira, queria compartilhar a emoção que sentira ao notar as
gemas brilhantes no olhar altivo do guerreiro de mármore, porém, sabia que algo estava
diferente entre eles. Achou melhor não comentar.
Passaram pela vila rapidamente, Trolstan parecia revigorado depois do aconchego da
estrebaria. O jovem agradeceu aos deuses por não ter tido que encontrar novamente com o
homem que guardou seu animal na noite passada, já que esta manhã foi atendido por outro.
Sentiu-se desconfortável por lembrar de como aquele bonachão debochava de seus próprios
ancestrais.
Assim que se aproximavam da saída, Noldir encarou o filho com o canto dos olhos e
disse de maneira preocupada:
- Onde foi com a moça?
- Eu fui levar algo para Fledil comer, o havia visto e pensei que talvez estivesse com
fome. Mikella me seguiu e... – Alvin foi interrompido.
- Não devia sair no meio da noite! Quantas vezes já lhe disse isso? – Noldir irritou-se
– É assim que espera conseguir minha confiança? Ora, sai no meio da noite com a ponta
dos pés como um salteador e se demora com a filha de nosso anfitrião, fazendo sabem lá os
deuses o quê!
Alvin aprendera a ficar em silêncio enquanto seu pai lhe passava sermões, nem
mesmo tentou desculpar-se.
Noldir porém prosseguiu, agora baixando o tom de voz:
- Que isso não se repita caso queira um dia ser considerado homem.
Seu pai mexera no ponto exato da ferida, o garoto estava ansioso para se tornar um
homem. Engoliu seco, esforçando-se para não derrubar uma lágrima. Os dois rumaram em
silêncio até o arco final, caindo mais uma vez na típica estrada de terra batida a qual
estavam acostumados.
A paisagem continuava a mesma, senão pela terra que parecia mais forte,
avermelhada. Continuavam cercados por plantações de cereais, que eternas, esperavam os
servos que logo iriam a seus cuidados.
Por um momento o garoto esquecera de seu amigo andarilho, porém, logo o avistou,
inesperadamente como de costume. Fledil esperava às margens da estrada, da mesma forma
que quando o encontraram pela primeira vez. Noldir não fez comentário algum enquanto se
aproximavam, mas não parecia muito feliz, passando pelo homem como se nem mesmo o
conhecesse.
O maltrapilho começou a acompanhá-los andando a passos rápidos:
- Vejo que estava com saudades amigo Noldir! Vim te encontrar para seguirmos com
nossa viagem.
- Vá embora, esta carroça já está cheia o bastante! – retrucou o homem sem nem
mesmo olhar para o outro.
- Ora, achei que minha companhia fosse de seu agrado – disse Fledil com ar de
súplica.
- Pedi apenas que não nos trouxesse problemas, mas vejo que te perseguem como o
lobo às ovelhas. – Noldir o olhou – Parece que quando está conosco tratam-nos com
desconfiança, além disso, Alvin podia ter se metido em encrencas quando tentou lhe ajudar.
- Veja, meu amigo – Fledil fitou-o nos olhos – As ovelhas não clamam pela
perseguição dos malvados predadores, sou ,portanto, uma vítima assim como elas. Vítima
casual do nascimento, que me colocou em tão miserável situação que até mesmo os
campônios têm-me como patife ao olhar a pobreza de meus trajes e a rudeza de meus
modos! Quanto a Alvin – continuou – não sou eu quem o coloca em perigo, mas sua
generosidade, coragem e amizade, o que é claro, penso serem virtudes que te orgulham.
Noldir encarou-o e respirou fundo, como quem se sente fatigado, fez uma pausa e
sinalizou para que o viajante embarcasse. Alvin contentou-se com a decisão, recebendo o
amigo com um largo sorriso. O garoto estava orgulhoso dos dizeres do amigo a seu
respeito.
A viagem seguiu silenciosa, no ritmo constante de Trolstan. Depois de algum tempo
de andanças, atravessando paisagens imutáveis, chegaram a uma bifurcação de quatro
caminhos, não havia placas ou quaisquer outros indicativos do caminho a se seguir. Noldir
parou frente a ela, coçou a barba e resmungou:
- Humm, de acordo com Mallerir, devo seguir por este caminho – pôs então Trolstan a
andar.
- Devo adverti-lo que está seguindo o caminho errado – disse Fledil em tom suave.
- Já esteve aqui antes, maltrapilho? – Noldir parecia irritado.
- Não senhor, mas sei o que digo.
- Pois deve tratar-se de um maluco, como pode dizer-me a direção sem nunca antes
ter por aqui passado? Eu irei de acordo com os conselhos de meu amigo.
Fledil nada disse enquanto o condutor seguiu o caminho que planejava. Alvin parecia
confiar mais no miserável, uma figura curiosa, que de fato emanava um certo mistério. Às
vezes ele parecia ter uma inteligência incompreendida, assustando o menino com o modo
que debochava das coisas mais comuns da vida.
Andaram por mais algum tempo pela estrada que cada vez mais parecia irregular,
cada vez mais era cercada por florestas e menos rastros humanos eram notados, até que no
final do dia, estava coberta por um pântano praticamente intransponível. A estrada, agora
uma trilha lamacenta, mostrava-se totalmente esburacada e coberta por lama e lodo.
Como que por despeito, Noldir insistiu na travessia, o que estava ficando perigoso. Os
passageiros entreolhavam-se em silêncio. Alvin conhecia a teimosia do pai, mas nunca a
vira chegar a tanto. Essa viagem não devia estar fazendo-lhe bem.
- Maldição! – Noldir passou as mãos pela cabeça – Acho que teremos de armar
acampamento por aqui, já devíamos estar chegando a Korllux.
Alvin quase não conteve seu desespero, passar a noite cercado por um pântano era
perigoso demais até mesmo para quem almejava aventuras. Milhares de criaturas
asquerosas habitavam esses lugares, e estavam a horas do último resquício de civilização
que haviam encontrado.
Seu pai no fundo lamentava-se, sabia que seu aferro os colocara naquela situação.
Devia ter voltado logo que percebeu a ausência de plantações e caminhos.
Enquanto Noldir refletia, Fledil desceu de seu lugar para examinar o local a procura
de uma clareira ou de pelo menos um lugar mais seco para montarem acampamento. Alvin
o observava com atenção e indisfarçada simpatia, sentia que aquele homem tinha coisas a
lhe ensinar.
- Acho que podemos ficar ali – Fledil-ellin apontou para um ponto a alguns metros.
Noldir não respondeu, apenas saltou de seu lugar e começou a soltar as rédeas de
Trolstan que baforava de cansaço devido às andanças pelo barro.
- Alvin, você e o outro ficarão na carroça, eu montarei guarda enquanto dormem –
disse o pai sem olhá-los.
O garoto ainda intimidado nada respondeu, pegou o cavalo e saiu em seu cuidado.
Fledil nada disse, apoiava-se em seu bastão, movendo-se apenas para espantar alguns
insetos que ora lhe importunavam.
Noldir logo se apressou a estivar o linho sobre a carroça, que lhes serviria de abrigo.
Alvin em um pequeno espaço entre os pertences e os homens debaixo, entre as rodas,
revezariam-se sobre uma velha colcha de retalhos.
Depois de algum tempo pensativo, o pai do menino abaixou-se para preparar a
fogueira, estava extremamente embaraçado pela situação, não era homem de colocar a vida
dos outros em risco por conta de seu orgulho. Sem que lhe fosse pedido, o miserável
aproximou-se com o que pôde conseguir de lenha seca. Após algumas tentativas o fogo
finalmente começou a trepidar, os homens se olharam por alguns instantes, desviando
depois sua atenção para Alvin que se aproximava sorrindo.
- Trolstan parece feliz com sua costumeira espiga de milho! – disse.
- Nosso amigo animal parece ser o mais contente por aqui! – Fledil olhou ao redor e
soltou um sorriso – Por um acaso tem outra espiga na carroça Alvin? Talvez também
funcione com seu pai – encarou-o com o mesmo sorriso.
Noldir olhou-o com surpresa, pego desprevenido com a indecorosa brincadeira.
Talvez o homem teria se ofendido se a incontida gargalhada de seu filho não fizesse com
que um sorriso e depois uma tímida risada brotassem de seus lábios.
Os três fitaram-se, agora de forma diferente. Alvin reconheceu o talento do
maltrapilho com as palavras, já seu pai encarou Fledil de modo descontraído dizendo:
- Deve se tratar de algum bufão fugitivo, mendigo! Nunca vi tantas cretinices saírem
de uma mesma boca em tão pouco tempo!
- Engana-se, meu senhor, os bobos cheiram melhor – piscou para o garoto.

A noite começava a cair, com ela toda a sorte de insetos e criaturas do lugar
começavam a ressoar seus cantos bizarros. A assustadora sinfonia realçava ainda mais a
sombria condição do lugar. O pântano que os cercava era denso, o limo e lodo espalhavam-
se por todo o solo até cobrir as árvores baixas e feias que brotavam desfiguradas da terra
negra. O cheiro era pútedro e desagradável, era mais forte quando o vento soprava do oeste,
chegando a causar um desconforto insuportável. As sombras e vultos de todos os tipos,
oriundos das mais diversas espécies, abundavam e davam uma terrível impressão a tudo
que os cercava.
Os viajantes pareciam se esforçar para não entrar em desespero. Há séculos as
terríveis criaturas errantes foram extintas do reino de Septy, porém não faltavam histórias
de monstros remanescentes que habitavam lugares malditos justamente como este. O único
que, talvez por loucura ou desapego à vida, não mostrava-se preocupado era Fledil, que
apesar do silêncio imposto pelo temor, assoviava e às vezes sorria sem motivo.
O jovem estava para indagá-lo sobre sua despreocupação quando um arrepio
percorreu sua espinha ao perceber um enorme camundongo escalar com pressa um toco
podre há alguns metros. Alvin nunca tinha visto uma criatura tão asquerosa.
Enquanto o garoto observava atentamente a cena e Fledil mascava a ponta de um
graveto, Noldir levantou-se de supetão como se lhe tivessem beliscado o traseiro. O homem
apontou para o Norte com um semblante quase triunfal na face iluminada pela fogueira
trepidante. O homem exclamou com vontade:
- Vejam, ora se não é um abrigo! Como não o reparamos antes? Devíamos mesmo
estar cansados da viajem! Veja, andarilho, Noldir filho de Pollderir ainda é capaz de
arrumar um lugar seguro para os seus! – estava realmente entusiasmado.
Os outros levantaram-se com convicção, surpresos pela notícia. Ao olharem para a
direção que lhes era apontada viram estupefatos uma robusta torre de pedra a cerca de
trezentos metros. A torre, iluminada pelo débil fio de luz da lua minguante parecia, acima
de tudo, assustadora. A inusitada construção possuía uns 30 metros de altura e era negra
como o pântano que os cercava.
- Não acha estranho, meu senhor, que esta construção só se revele sobre o manto da
noite? – questionou Fledil.
- Ora, mas é realmente sobre este manto que ela se faz necessária como abrigo! –
encarou o filho – Vamos, suba em Trolstan! Não acredito que aquela torre seja desabitada,
é provável que ali se encontrem eremitas famintos por ajudar viajantes como nós. Não me
espantará se formos recebidos como reis! Amanhã voltaremos para pegar nossa carroça. –
Noldir, provavelmente ansioso por concertar seu erro, pegou uma tocha e saiu na direção da
construção a passos firmes.
Fledil, pela primeira vez, olhou-os com uma altivez pouco comum a andarilhos, mas
logo voltou a sua forma corcunda e sorriu. O mendigo pensou na coragem quase inocente
de Noldir. Era um homem que pouco conhecia das coisas do mundo, das maldades e
armadilhas que espreitavam fora das vilas de camponeses, que consideram um companheiro
de labuta tal qual um irmão de sangue. O maltrapilho pensou nos muitos perigos que
podiam aguardá-los, mas não os temia, afinal não tinha motivos para isso.
Alvin pôs o cabresto em seu cavalo, carregando-o em seguida com as mantas com as
quais se protegeriam do frio.
Os três se aproximavam da misteriosa torre, quase que atolada em um lamaçal. Cada
passo era uma experiência terrível, inclusive para o animal que parecia temer pisar sobre
uma serpente, tamanho era o protesto contra as ordens do camponês que o puxava pelas
rédeas. Noldir e Fledil estavam com lodo já acima dos joelhos e Alvin observava atento de
cima de sua montaria.
Já que estava em menor dificuldade, ele foi o primeiro a reparar no que os esperava:
A torre pouco iluminada era assustadora. As pedras que a compunham eram de uma
negritude única, pelo menos para o garoto. Não possuía muitos detalhes, apenas a ruína do
tempo lhe servia de adorno. O lugar parecia tratar-se apenas de um secular posto avançado
de algum exército há muito esquecido.
- Bem, aqui estamos – Noldir limpou o suor da testa.
Estavam de frente a uma grande porta de madeira, podre e enegrecida, mas ainda de
pé. Provavelmente estavam sobre o fosso coberto pela lama.
Não havia sinal algum de vida em seu interior, mesmo assim o camponês resolveu
bater e gritar por ajuda:
- Olá, alguma alma caridosa nesta torre poderia nos dar guarida? – não houve
resposta, mas ele insistiu – Olá, somos três viajantes, que vêm em paz e têm fome!
Noldir olhou para os lados e forçou a velha porta devagar, olhando pela fresta que
aumentava conforme ela se movia, até que abriu-se por completo.
O interior era completamente escuro, mal se podia enxergar um passo à frente,
algumas frestas por onde a minguada luz entrava demonstravam tratar-se de uma sala bem
ampla e destruída. Apesar dessa situação a necessidade de abrigo parecia ainda maior que o
terror que a torre inspirava.
- O que acha, Fledil? – disse Alvin, reparando no pai que exitava em continuar.
- O que vou dizer, meu pequeno amigo? Minhas opiniões não são levadas muito em
conta ultimamente – olhou para o outro.
- Bem, vejo que está desabitada. Iremos então nos apropriar dela por esta noite. –
Noldir respirou fundo adentrando enquanto falava.
Alvin desceu de sua montaria devagar, enquanto seu pai era seguido torre adentro por
Fledil, que parecia estar se divertindo com tudo aquilo. O garoto entrou com Trolstan, que
estava arisco e parecia bastante assustado.
Os viajantes encontravam-se em um grande salão, ao centro uma mesa velha e úmida
jazia sobre o chão, quase tão cheio de barro quanto o exterior. O silêncio era bruto o
bastante para que o garoto escutasse a respiração de seus companheiros e o vôo dos insetos
que abundavam.
Ao redor da mesa caída algumas peças de barro quebradas e mal feitas enfeitavam o
local, em uma das extremidades havia algo parecido com um altar, enquanto na outra uma
escada circular junto à parede subia em direção ao andar superior.
Alvin soltou de seu amigo e passou a andar pelo aposento, próximo a velha mesa
sentiu o tilintar do aço ao pisar em uma espécie de bandeja prateada, abaixou-se para pegá-
la, mas achou melhor não mexer naquilo que não lhe pertencia. A disposição dos objetos
trazia-lhe a estranha impressão de que aquele lugar fora deixado às preces.
Com cuidado ele aproximou-se do altar, era de pedra, bruto e rústico como tudo
naquela sala, nele inscrições desconhecidas e desenhos de animais estranhos abundavam,
talvez tenha sido criado há muito tempo, numa época onde os deuses pagãos eram adorados
como verdadeiros. Possuía quatro degraus onde cacos de porcelana eram notados, no
último, os restos de uma grande estátua de barro repousavam, causando péssima impressão
ao garoto que saltou de susto quando as mãos de Fledil repousaram sobre seu ombro.
- Não se impressione, meu amigo, são apenas bobagens – disse o maltrapilho.
- Nunca gostei dessas coisas de deuses esquecidos e criaturas ancestrais, causam-me
medo – respondeu.
- Bem! Acho melhor que repousemos agora! – o dizer de Noldir ecoou andar acima,
parecendo ter resposta, o que fez com que olhassem para as escadas.
- Concordo – disse Fledil caminhando na direção do camponês que ajeitava-se
próximo à parede.
Logo Alvin estendeu uma das mantas desgastadas que trazia sobre Trolstan e deitou-
se sobre ela no canto mais seco que conseguiu encontrar próximo a seu pai.
As horas pareciam não passar, o garoto virava-se sobre o desconfortável solo de pedra
sem conseguir esquecer os últimos acontecimentos, não tirava nem por um segundo seus
olhos da escada, sentia uma imensa necessidade de explorar aquele lugar, de conhecer sua
história. A torre carcomida já havia sido uma imponente construção a destacar-se na
paisagem, talvez heróis guerreiros haviam travado suas últimas batalhas no salão onde
agora dormiam. Homens de uma época diferente, onde deuses de poderes misteriosos e
desconhecidos exerciam sua influência livremente sobre este mundo. O fascínio do menino
por tais acontecimentos acendia-lhe uma chama que não podia controlar. Seu pai havia
ficado muito descontente com seu comportamento na última noite, mas não conseguiria
dormir deixando de conhecer os mistérios que o aguardavam alguns degraus acima.
Assim, Alvin respirou fundo, levantou-se na ponta dos pés e caminhou com cuidado
até o outro extremo do rústico salão, respirou fundo, e pôs-se sobre o primeiro degrau com
calma, porém ansioso pelo segundo, que levou-o ao terceiro, até que logo vencia os
degraus com determinação.
Deitado em seu lugar o mendigo acompanhava o garoto com os olhos, deixando
escapar um sorriso numa expressão próxima ao triunfo, que Alvin certamente não
entenderia se tivesse visto.
A cada passo o coração do garoto se agitava, suas mãos estavam geladas e
encharcadas de suor, o medo era severamente derrotado por sua curiosidade juvenil, até que
ao fim da escada deu-se de frente para um corredor estreito.
O corredor era, diferente do resto, razoavelmente iluminado devido a uma grande
janela gradeada que encerrava-lhe a extremidade leste. Próximo à janela uma escada de
madeira parte ruída inclinava-se para o andar superior, duas portas, uma delas entreaberta,
podiam ser vistas no caminho.
O garoto vagarosamente caminhou para a abertura mais próxima, notando pela fresta,
que assim como o corredor, a sala estava menos escura que o resto da torre. Uma cor
azulada emanava dela, certamente possuía alguma janela por onde a luz da lua adentrava,
Alvin respirou fundo e moveu a porta rapidamente.
O cômodo estava vazio senão por algo que já deve ter sido uma espécie de cama
razoavelmente grande e um baú a seus pés, completamente destruído.
Sem mais o que lhe chamasse a atenção Alvin seguiu para a porta logo à frente.
Encontrava-se fechada. Tomando muito cuidado para não fazer barulho, temendo a fúria de
seu pai, o menino forçou-a devagar, fazendo-a escancarar sem esforço algum, já que estava
podre como todo o resto.
O lugar estava completamente vazio, um leve cheiro de carne podre manifestava-se
de seu interior, provavelmente oriundo dos ratos e outras criaturas peçonhentas as quais
Alvin tentava não pensar encontrar. Nada mais.
Sabia que poderia voltar agora, mas ainda havia a velha escada de madeira, e sua
mórbida curiosidade ainda não estava saciada.
Ele caminhou até ela cautelosamente. Parou em frente ao que já foi uma robusta
ferramenta para ajudar os soldados a subir em defesa do último andar. O objeto tinha quase
três metros de altura, apoiado junto à parede. Alvin continuou ainda mais devagar, já que
temia também se machucar caso despencasse. Não que o jovem tivesse medo dos
ferimentos em si, mas tremia só de pensar em como os explicaria a seu pai. A escada rangia
com vigor conforme a escalava, até que ao final o menino viu-se em uma ante-sala que
provavelmente daria saída para o topo da construção.
Como os demais, o aposento estava vazio, senão por uma poltrona e alguns outros
móveis pouco identificáveis, além de uma velha cortina que balançava frente à janela. O
único som que se ouvia era o vento que assoviava no lado de fora. Alvin decidiu voltar,
porém interrompeu seus passos quando uma voz gélida e cansada veio da janela mal
iluminada:
- Garoto, espero que não tenhas pressa para partir, pois este aposento será teu jazigo!
Alvin gelou-se, não consegui mexer um só músculo ante aquela voz gutural. Era
estranha e rouca, a mais ameaçadora que já ouvira. Alvin estava com medo, como nunca
teve. O garoto tirou forças de algum lugar muito especial que possui dentro de si, virou-se e
deu de cara com uma silhueta assustadora, aqueles trapos que acreditava ser uma velha
cortina eram na verdade um longo manto de um homem alto e robusto, vestes que faziam as
de Fledil parecerem feitas de seda real.
Tomando forças não se sabe de onde, o garoto gaguejou:
- Me...me desculpe senhor, não tive a intenção de incomodá-lo.
O homem ainda de costas apenas baixou a cabeça, que contemplava o pântano lá fora.
Alvin esboçou um movimento quando o homem suspirou, a respiração era profunda e
barulhenta como de um moribundo. O jovem não teve coragem para se mover.
- Não devias ter invadido minha morada, não escaparás à óbvia conseqüência. Iria
mais tarde ao encontro de vós. Poupa-me trabalho vindo por conta!
O homem então virou-se, trazendo a mais horrível visão que o garoto já tivera. Seu
rosto era cinzento e enrugado, seus dentes pútridos mostravam-se pela boca sem lábios, um
dos olhos era turvo, negro como o de um cão. A magreza quase cadavérica da face
desfigurada contrastava com um porte físico invejável, dando-lhe uma impressão ainda
pior. A presença maldita incitaria terror até no mais temerário dos homens
Alvin foi ao chão em desespero, tentando fugir de maneira descordenada, procurando
de qualquer maneira rastejar-se até a escadaria. Tentava gritar, mas não conseguia. Passos
pesados moviam-se até ele, seus sons pareciam-lhe o bater de marretas no assoalho. O
andar da criatura era lento, porém, determinado. O garoto estava a ponto de perder os
sentidos, em sua cabeça vinha a imagem de seu pai e suas advertências na noite passada,
pensava em sua mãe.
Os paços se aproximavam, o garoto estava quase à boca do alçapão que dava para a
escada, quando para seu desespero percebeu que algo subia por ela. Estava encurralado,
seria vítima fácil daquele demônio.
Foi quando reconheceu a face suja de Fledil-ellin que sorria enquanto subia
vigorosamente a escada.
Fledil chegou quase que instantaneamente até eles, olhando para Alvin a seus pés e
ignorando totalmente a criatura, que fez uma terrível expressão de curiosidade para com a
determinação do maltrapilho que a ignorava.
- Alvin, vá para junto de seu pai! – disse Fledil confiante.
O garoto obedeceu prontamente, rastejando até o buraco, despencando desajeitado e
correndo como um louco.
Noldir acordou surpreso com o filho que chegava até ele aos tropeços e soluços de
desespero.
- O que foi, filho meu? – Noldir desesperava-se.
Alvin ainda não tinha fôlego suficiente para falar.
- Acalme-se, oras! Vamos, fale – o pai parecia tão ansioso quanto o filho.
- É Fledil... precisa de ajuda...lá em cima! – apontou as escadas.
Imediatamente o camponês juntou seu bastão e seu punhal, adiantando-se rumo ao
andar superior, quando surpreso, deparou-se com o mendigo que caminhava calmamente
em sua direção.
- Mas que diabos, homem! O que está acontecendo? – Noldir pasmou, pois esperava o
pior.
- Acalme-se, amigo, por que está armado? Volte a dormir, fui apenas conhecer o lugar
– passou por Noldir em direção ao garoto que o observava perplexo.
- Mas Alvin me disse...- Noldir ainda estava agitado.
- Ele deve ter tido algum pesadelo, notou minha falta e se assustou. Não há nada lá em
cima senão velharias sem valor – a calma de Fledil contaminou a ambos.
Noldir guardou o punhal e caminhou de volta enquanto o mendigo piscava para
Alvin que ainda não acreditava no que via.
- Bem, se é assim, vamos descansar, deveremos amanhã sair mais rápido que de
costume para recuperar o tempo até a encruzilhada.
Os três se deitaram, mas o garoto não dormiu, mais uma vez não conseguia tirar seus
olhos da escada à sua frente. Só de imaginar aquela figura assustadora e seus passos
pesados pela escada um arrepio lhe percorria a espinha. Fledil, ao contrario, parecia dormir
o sono dos deuses. Como ele podia? Não contemplou também há pouco tamanho horror? O
garoto não conseguia imaginar o que se passara, tentava de todas as formas se convencer de
que aquilo havia ido embora, expulso pelo maltrapilho companheiro, mas não havia
escutado um ruído sequer que demonstrasse um combate entre os dois, então, pode ser que
a língua afiada do amigo tenha convencido a criatura a deixá-los em paz. Alvin estava
ansioso por respostas e assustado como nunca antes havia imaginado.
Logo as frestas da ruína encheram-se de luz, o sol nascente deixava-a menos
assustadora, transformava como que por mágica aquela torre sinistra em uma simples ruína
úmida e mal cheirosa, encoberta por lodo e musgo, exalando o cheiro de lama podre
daquele pântano asqueroso.
Noldir levantou-se, como sempre estava acostumado a pôr-se de pé com o primeiro
cantar dos pássaros. Delicadamente acariciou Trolstan, que parecia descansado e dócil
novamente.
O homem aproximou-se de seu filho.
- Alvin, acorde. Já está na hora.
O garoto não respondeu, apenas virou-se calmamente. Mal sabia o aldeão que seu
filho não dormira a noite toda, ansioso pela proteção dos raios solares. Nunca uma noite
havia sido tão longa na vida do menino. Não podia nem sequer fechar seus olhos sem que a
imagem da bizarra figura preenchesse sua mente. Levantou-se, porém com toda a atenção
nas escadarias em ruínas.
Enquanto isso Fledil espreguiçava-se, contorcia seu corpo robusto e bocejava com
vontade. Nesse momento Noldir saía através da velha porta puxando Trolstan que o
acompanhava em lenta toada.
- O que houve ontem, Fledil? O que era aquilo? Como você escapou? – Alvin,
aproveitando a ausência do pai demonstrou sua sede de respostas.
- Nada demais garoto, apenas disse ao eremita que não nos incomodasse, pois não
éramos uma ameaça, apenas viajantes, pobres como ele – respondeu descontraído.
- Mas era um monstro! Não se tratava de um ser humano! – Alvin olhou-o com os
olhos arregalados, ainda vermelhos devido à péssima noite de sono.
- Está fantasiando, meu jovem, era apenas um velho desmiolado que há muito habita
estas ruínas. Era velho e doente, mas não tinha nada de monstruoso. No entanto devemos
convir que uma dieta de sapos, insetos e serpentes não deve fazer bem para as feições –
Fledil riu-se.
- Eu não... – Alvin foi interrompido.
- Esqueçamos esta história, meu pequeno amigo, garanto-lhe que sua imaginação foi a
maior responsável pelos perigos que julga ter passado – dirigiam-se para fora da torre,
enquanto falavam – Fico espantado com sua curiosidade. É pior que um gatuno! As escadas
poderiam ter desabado sob seu peso, isso sim foi perigoso e deveras arriscado! – Alvin
tentava interromper o discurso do amigo, mas este não dava brechas – Olhe para trás e veja
no que a claridade transformou a assustadora e negra torre. Percebe? Apenas um
amontoado de pedras e limo, nada há de se temer dela, senão que caia sob sua cabeça! Seria
o mesmo se encontrasse agora o pobre velho que a habita.
Saíram pela velha porta enquanto falavam. Alvin agora dobrava, desajeitado, a última
manta usada pelos homens durante o repouso, pendurando-a no ombro junto as demais
enquanto fechava cuidadosamente a carcomida porta atrás de si. O menino deu uma última
espiada no palco da mais terrível noite de sua vida, respirou fundo e correu para alcançar os
homens que conversavam a alguns metros.
Neste instante Noldir dava as últimas espigas de milho a Trolstan que mastigava-as
com vontade, fazendo grande barulho. O assunto com Fledil não pôde continuar, mas Alvin
não estava nem um pouco convencido da conversa do maltrapilho.
Noldir pegou um pão, já mofado, limpou-o e partiu em três.
- Comam, é só o que temos.
Os dois pegaram sua parte e puseram a alimentar-se. Com o pão ainda na boca o
aldeão passou a preparar a carroça, prendendo-a ao animal.
- Vamos, devemos nos apressar – o homem assumiu seu lugar às rédeas, Fledil
sentou-se a seu lado, enquanto Alvin retornou a sua tradicional posição na parte traseira e
cobriu-se. Mais uma vez os três partiram pela estrada lamacenta rumo a Korllux.
Apesar da satisfação em estar saindo daquele lugar, os olhos do garoto ainda estavam
na velha torre, ele não conseguia esquecer o horrendo encontro, e agora sua vontade de
conhecer o desconhecido estava contaminada com um grande receio, nunca havia parado
para pensar que estes fabulosos perigos e as sonhadas maravilhas poderiam custar sua vida.
Sob a proteção e o calor do sol, Alvin finalmente adormeceu.

Devido a uma estrondosa gargalhada o garoto despertou.


- Veja só, a mula era manca, acredita Noldir? Ela era manca – Fledil bateu nas costas
do homem que ria com vontade.
Alvin espantou-se ao ver seu pai neste estado, havia tanto tempo que não ouvia
gargalhadas dele que aquilo parecia surreal. O maltrapilho devia mesmo se tratar de um
habilidoso bobo. O garoto sorriu. Pela altura em que se encontrava o sol, devia ter dormido
horas a fio. Fledil virou-se para o jovem, apoiando-se no encosto.
- Ora, se o pequeno felino não acordou finalmente! Dormiu tanto, que por vezes
conferi sua respiração, com medo de que estivesse morto! – disse o mendigo ainda
sorrindo.
- Estou bem – sussurrou Alvin em meio a gemidos preguiçosos.
O caminho era agora novamente parecido com aquele que estavam acostumados. Sob
a sombra de uma figueira Noldir encostou cuidadosamente.
- Vejamos então suas inenarráveis proezas de grande caçador. Não foi assim que
acabou de dizer? Espero que suas ditas “peripécias miraculosas” sirvam pelo menos para
matar a fome do garoto – Noldir estava com expressão de deboche.
- Verá, meu senhor , que comerá como um rei! – o maltrapilho saltou da carroça com
agilidade, embrenhando-se no bosque que os cercavam.
Notando o tom pensativo de seu filho, que se punha de pé (ainda com a noite passada
no pensamento), o aldeão indagou-o:
- Espero que este duro ritmo de viajem não esteja lhe fazendo muito mal, meu filho,
dormiu a manhã toda – olhou-o nos olhos.
- Não nego que estou cansado, meu pai, mas é só. Já estou me acostumando. – o
garoto soltou um longo suspiro – Vou preparar a fogueira e o sal para temperarmos a caça.
Noldir gargalhou:
- Duvido que aquele falastrão traga algo melhor que um lagarto! Isso se não se perder
por aí! – completou.
- Não sei, acho que o mendigo já deu suficientes provas de sua astúcia – Alvin
retirava as pedras-de-faísca de uma bolsa de couro.
- Veremos! – o homem sorriu.
Enquanto juntava lenha das redondezas, Alvin dirigiu-se ao pai:
- Tem certeza que agora estamos no caminho certo?
- Dessa vez não há erro, encontramos com dois viajantes no caminho, e adivinhe, eles
vinham de Korllux! – o aldeão não conteve o entusiasmo. Alvin aliviou-se em saber.
Após algum tempo tudo estava pronto e a fogueira já trepidava à beira da estrada,
Noldir estava deitado sob sombra da árvore, enquanto Alvin espiava a mata, ansioso pelo
retorno do amigo.
Logo a figura do mendigo retornou sorrindo e cantando descontraída.
Alvin não acreditou, em sua mão estava um majestoso araúte cinzento, uma ave de
tamanha raridade e fineza que só é consumida pelos reis! Dizem que quando uma grande
dama morre volta na forma de uma araúte para olhar pelas florestas. A ave é grande como
um peru, na maioria cinzenta, com plumagens douradas nas asas e o peito coberto com um
verde brilhante, em sua cabeça uma espécie de coroa é formada sob penugens brancas. O
garoto a conhecia apenas por descrições de caçadores, e eram raros aqueles que já haviam
visto um.
Segundo as lendas a ave não pode ser morta pelo tempo, ou por quaisquer predadores
naturais, sendo invisível senão para os olhos humanos, cabendo aos mais heróicos
caçadores abatê-la. Consta que um araúte não pode ser morto sem sua vontade, ele se
entrega somente àquele que julga digno de sua caça. É o que dizem.
Reparando no que o mendigo trazia à mão, Noldir soltou soluços e começou a tossir
batendo no peito, engasgado com um graveto que mascava.
- Meu deus! Enlouqueceu, homem! Isso é um araúte real, se formos pegos assarão a
nós para o jantar ao invés dele! – o homem estava desesperado.
- Acalme-se, meu senhor, digo que não tem com o que se preocupar, duvido que os
homens do barão venham fazer rondas por aqui, além do mais, não encontramos com uma
patrulha sequer durante toda a passagem por Ferlmut – retirando um punhal Fledil passou a
depenar a ave com habilidade.
Noldir não sabia o que dizer, deixando que o mendigo preparasse o almoço. Na
verdade estava tão espantado com o que acabara de ver que não conseguiria discutir, ainda
não acreditava que o maltrapilho fosse capaz de tamanha proeza. O fato é que não mais
discutiria com ele... pelo menos sobre caça.
Os homens devoraram a comida com vontade, é certo que há muito que uma ave
dessas não é consumida ao relento e tão sem cerimônias como é feito pelo trio de viajantes.
Enquanto mordia com força parte do peito da ave Noldir olhou com respeito para o viajante
que apreciava calmamente um pedaço semelhante.
- Você não vai mesmo dizer a verdade? – o aldeão disse enquanto mastigava.
- Já disse, meu senhor. Eu a encontrei ciscando, aproximei-me devagar e dei-lhe uma
paulada certeira na cabeça! Depois cortei-lhe a garganta. – retrucou Fledil, com um certo
orgulho.
- Está insultando a minha inteligência, homem! Já vi caçadores experientes passarem
a vida sem nem sequer ver um desses, e você que não passa de um mendigo diz que o
matou com um porrete?! Ora! – o tom de Noldir estava diferente, parecia insultado pelas
constantes provas de astúcia do companheiro.
O andarilho olhou-o seriamente, ergueu uma das sobrancelhas e tomou fôlego para
dizer alguma coisa, porém, voltou-se para a comida em silêncio.
- Talvez ele esteja dizendo a verdade, pai! – Alvin finalmente se pronunciou.
- Duvido! A não ser que esse homem seja um bruxo ou coisa parecida! – Noldir
encarou novamente o andarilho.
- Realmente, senhor Noldir – Fledil tinha um tom irônico – O bastão que utilizei na
caçada estava sob encantamento – fez uma pausa – Estava encantado por minha perspicácia
e fez-se mágico pela agilidade de minhas mãos! Se lhe ofendi com meu sucesso evitarei
causar-lhe aborrecimentos da próxima vez, trazendo-lhe um sapo para o desjejum!
Fledil continuou sério, Alvin apenas observava, apesar de parecer infantil a atitude de
despeito de seu pai, o andarilho era realmente um homem muito estranho, capaz de alterar
os humores com apenas um olhar.
- Não pense que me ofende, maltrapilho, pois cessou-me o roncar do estômago, e lhe
confesso que nunca provei de uma carne tão saborosa, porém, me preocupo com o tipo de
homem que trago comigo. Deveras incomum! – disse o aldeão.
- Também me considero incomum, pois vivo sem um lar, mas minha habilidade de
caçador não devia lhe causar surpresa, desde que nos conhecemos disse-lhe que vivo do
seio da floresta e que nunca passara fome, ao contrário, sempre como bem por demais! –
olhou para Alvin e depois voltou-se para Noldir que retirava do animal uma coxa suculenta
– Me magoa sua desconfiança, pois considero-o um amigo, se de alguma forma tem
motivos para tanto isso se deve a atitude de outros, aqueles que me julgam pelas vestes e
modos, nada tendo a ver com o comportamento que lhes demonstrei.
- Concordo! – Alvin parecia ansioso por demonstrar sua amizade, lhe incomodava um
assunto tão desagradável a uma mesa tão farta.
Noldir apenas olhou para seu filho e tornou a comer, tendo, portanto, encerrado a
conversa.
Logo os homens retomaram seu rumo sem pressa, pois um caçador com o qual
cruzaram lhes disse estarem a apenas algumas léguas da cidade. A estrada era boa, o que
permitia andar com maior conforto e segurança. Tudo parecia bem, apesar do silêncio entre
os viajantes. O único que por vezes se pronunciava era Trolstan que soltava suspiros e
relinchos, sinalizando seu cansaço.

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