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Mar dénio DE UMA LONGA HISTORIA FACAMOS UMA PEQUENA Ces certeza, vor’ j4 ouviu falar da Grécia, aquele pais europeu banhado pelo mar Mediterraneo, Mas e daquela outra Grécia, bastante afastada na historia que foi o bergo de uma das maiores civilizagBes que a humanidade conheceu, alguém jé ouviu falar? Bem, vamos por partes. Foi por volta de 2000 a. C. (antes do nascimento de Cristo) que surgiu essa regio hoje reconhecida como Grécia, a qual se formou a pantirda invasio de uma série de povos invasores, que se espa- Iharam primeito pelo continente ¢ depois pelas ilhas ao redor. Pouco se sabe sobre esse perfodo € as principais Fontes hist6ricas sio atribut- das a um poeta chamado Homero, que nos legou duas grandes obras: a Mada e a (Odie, Enquanto a primeira tata das guerras da época, a segunda narra as peripé- cias de Odisseus (Ulisses), rei de ftaca. © que importa ¢ entender que foram virios (5 povos que ajudaram a formar essa civilizagdo: helenos, aqueus € mais tarde os d6tios e 0s jOnios, s6 para citar os grupos mais relevantes. Que tal falar agora da localizacaa dessa Grécia? Afinal, os limites geografi- cos dos paises esto sempre se alterando. Entio vamos ti: a Grécia antiga — chamada Hélade, pelos antigos gregos (dai vem 0 nome da civilizagao heléni- a) — ocupava o Sul da peninsula dos Balcas, as ilhas dos mares Egeu e Jonio eo litoral da Asia Menor. A Grécia européia, por sua vez, dividia-se em trés re- sides: a Grécia continental, a Grécia peninsular e a Grécia insular. Voce j4 deve estar notando que a Grécia ndo era uma nacdo igual as que hoje conhecemos, consistindo numa série de cidades independentes que tinham ‘em comum apenas a sua lingua, sua cultura e uma grande mitologia. No inicio essas cidades viviam da agricultura e do pastoreio; mais tarde desenvolveram:se cartesanato ¢ 0 comércio, e foi nesse periodo, também, que comegou a escra- vidio — jé que os povos inimigos vencidos nas batalhas tomavamse cativos —, assim como estouraram diversas guerras civis, que levariam, anos depois, 4 decadéncia da civilizacao grega. ‘Mas é melhor esperar um pouco; tudo tem um comeco, um meio e um final, Que tal falar agora de alguns elementos tipicos das cidades gregas? A Acrépole (acro = alto) representava o centro da cidade ese situava numa colina bem alta, que RN abrigava, ainda, a residéncia do rei (basleus) e 0 templo das divindades locais. A parte baixa da cidade, juntamente com a Acrépole, constituia a pélis. Havia tam- bém a dgora, que era uma espécie de centro de reuniao da populacao. Além disso, apesar de ndo serem muito grandes, essas cidades tinham gindsios de esportes, fontes para o abastecimento de agua € teatros (que no século v a. C, conhece- ram autores importantes como Fsquilo, S6focles e Euripides), Dentre as varias cidades gregas, duas se destacaram: Esparta e Atenas. Esparta dominou a regido a partir de 0 a. C, e imps uma cultura militar a seu povo. Atenas, cujo perfodo de gléria ocupou © séeulo v a. C., nos deixou um dos maiores exemplos de luta pela democracia e pela cidadania. Ou seja, estamos falando da faculdade que todos nés temos, de lutar pela igualdade de direitos € pelo acesso ao lazer, ao trabalho, enfim, a vida, ‘Mas essa historia nos levaria muito longe e, no momento, o que precisamos saber é que por volta do século w a. C., achando-se os campos devastados pelos conflitos, o comércio prejudicado pela concorréncia de outros povos, ¢ 0 exérci- to composto por mercendrios — isto ¢, profissionais que eram deslocados de ‘outros lugares para defender as cidades —, a Grécia enfraqueceu-se, sendo facil- mente vencida por poténcias como a Macedénia e mais tarde Roma. Pode-se dizer que as civilizagdes si0 como as pessoas: nascem, conhecem seu apogeu € depois morrem; ou melhor, descansam e deixam muitas lembrangas. CULTURA NA GRECIA: CONVERSANDO COM OS MITOS Se alguém Ihe disser que existem povos superiores a outros, ptrvipe. © que existem so povos pirtkiNtES entre si, com desejos ¢ intengdes variadas. Na ver- dade, a maioria das nagdes faz de tudo um pouco, mas determinados aspectos recebem mais énfase: algumas apostam na tecnologia, outras nos rituais; algu- mas investem tudo no comércio, outras se especializam na anélise das plantas; © outras, ainda, “nascem com o desejo de cultura’, Os gregos tinham uma “queda” pela cultura e por isso mesmo a desenvolveram até nao mais poder: no teatro, na ante, mas sobretudo na religito € em seus mitos. Voce sabe o que é ser politeisia? Significa acreditar em muitos deuses. E ¢ isso que faziam os povos gregos. Julgavam que seus deuses eram os senhores do céue da terrae que habitavam em um monte Olimpico, que depois recebeu 0 nome de Olimpo. Por outro lado, esses deuses eram todos antropomorfes, ou seja, tinham forma humana, sentimentos, virtudes, mas também carregavam suas fraquezas. E era com eles e entre eles que se desenvolviam mitos e mais mitos. E 0 que é um mito? Imagine uma bela historia, Pense agora num enredo cheio de cenas fantasticas. Essas situagdes aparentemente desligadas da sua vida dialogam nao 8 com sua experiéncia imediata, mas com os seus problemas e com suas inquie- ‘aces mais profundas: E tem mais: repare que essa mesma historia faria sentido para todo o seu grupo de amigos, Pois o mito & quase isso, com a diferenga de que ele € sempre coletivo, Cada povo tem suas proprias contradigoes e, em vez. de 86 se lamentar, acaba criando, Pois é, a humanidade nao se contenta apenas em sobreviver, gostamos de pensar sobre a realidade, imaginar e criar simbolos. ‘Mas assim como nas historias que voce lé — as quais trazem herdis fortes ou fracos, pessoas inteligentes e poderosas ¢ outras tao desfavorecidas —, também nos mitos gregos as personagens se repetem, e guardam uma clara divisdo de areas de atuagdo. Voce veré como existe uma hierarquia entre esses deuses e cada um a sua maneira cumpre funcdes definidas: Zeus era 0 senhor todo-poderoso do céu e da terra, A ele, seguiam-se Hera, irma e mulher de Zeus; Febo ou Apolo, deus do Sol ¢ protetor das artes; Ares, deus da guerra; Hefaisto, ferreiro dos deuses; Hermes, © mensageiro do Olimpo e deus do comércio; Posdiden, deus do mar; Palas Atena, deusa da sabedoria; Afrodite, deusa do amor ¢ da beleza; Deméter, deusa da agricultura; Artemis, deusa da caga; Héstia, deusa do fogo; Dioniso, deus do vinho; e Hades, soberano das profundezas. Além dessas personagens, havia ainda os herdis ¢ as Musas, que eram considerados divindades menores, mas ‘nem por isso desempenhavam papéis menos importantes nos enredos. Sio muitos nomes € variadas as historias que revelam como entender a mitologia grega, € como adentrar um recinto que tem varias portas: todas levam a0 lugar certo — 0 mito esta sempre onde deve estar —, mas sio diferentes os lugares a que se pode chegar. Seu desafio de agora em diante nao € tao facil como parece. Afinal, a estru- “tura dos mitos nao segue a mesma linguagem do nosso dia-adia. Nao tem seqiiéncia, as vezes até parece nao ter logica, e guarda uma moral diferente daquela a que estamos acostumados. Mas, tal qual a lembranca desorganizada dos nossos sonhos, que mal-e-mal reconhecemos pela manha, assim sio os “mitos: falam mesmo quando parece que nada dizem. E s6 se deixar levar. Mitos sio bons para pensar, Huminam nossa historia pessoal e coletiva, _nossos medos e desejos e conversam sobre eles por meio de imagens ¢ de ale- _gotias, Os mitos gregos, ao falar de si proprios, falam muito de nds mesmos. Afinal, nosso mundo também esta cheio de mocinhos e vildes que fazem parte da televisio e do cinema mas estio também na imaginagio de cada um, ¢ _muitas vezes, até parece que moram bem embaixo dos nossos travesseiros. ‘Vamos ao convite. Agora que voce ji conhece tantos herGis e tantos conceitos, NO LABIRINTO SECRETO DOS MITOS GREGOS uem sio realmente esses famosos deuses gregos? Foi o que me perguntel quando decidi falar a vocés sobre os mitos da antiga Grécia, ‘Consultei varios livros, alguns especialistas, mas tinha a impressio de ‘que, quanto mais eu lia, menos eu aprendia. Havia tantas verses para cada historia... Qual seria a mais verdadeira? Eu estava assim indecisa quando ouvi o som da televisao que meus filhos haviam ligado na outra sala, Passei a pensar no que eles andavam assistindo: ‘Super Honiem, Cavaleiros do Zodiaco, Batman... De repente, percebi que esses filmes t@m muito dos antigos mitos gregos: o Super-Homem, por exemplo, me lembrou Apolo, com sua forga e beleza; a Mulher-Maravilha, notei que € bastante parecida com a deusa Artemis, ambas lindissimas guerreiras; a esperteza de Batman me recordou a de Hermes, o deus mensageiro. Acabei concluindo que todas as historias sa0 novas e velhas ao mesmo tempo, Vou tentar explicar esse quase-mistério: quando uma histéria nasce, € como se ela fosse feita de muitas camadas. Certos trechos tem o poder de reavivar a época em que a historia foi criada; outros dio origem a outras historias E como quando as pessoas sentam ao redor de urna mesa ¢ uma delas comega a contar uma historia de assombracao. Todo mundo quer partic pare passa a contar os casos que conhece, E cada caso é um caso, embora todos sejam meio parecidos, Podemos ainda comparar a miisica, que tem seus temas e variagées, com os mitos; nestes também os temas parecem se repetir, s6 que em cada historia surge uma novidade, uma variacao, e sentimos vontade de voltar a0 inicio e lé-la mais uma vez para entender melhor o todo. E claro que os criadores dos super-herdis de nosso século leram muita mitologia grega, Os monstros, os poderes fantdsticos dos deuses, os mun- dos secretos, como o Olimpo: tudo isso est presente nas nossas aventuras modemas ¢ interplanetarias. Quando percebi tudo isso, as histérias comecaram a existir dentro de mim, Convidei os deuses para que se apresentassem a vocés e contassem a ‘sua propria versio de cada aventura. E ler para conhecer. Nessca Sou a deusa da sabedoria. ‘Nasci a margem do lago Tritonio, na Libia. Sou filha de Zeus, o deus do universo, e de Métis, a deusa da prudéncia. De meu pai, hetdei o poder da luz ¢ do cosmos; de minha mae, recebi a forca do pensamento. Nasci guerreando. Meu corpo € veloz, minha langa € magica € a mira perfeita, Vivo no Olimpo, o reino das nuvens, 0 universo etemo mas invisivel que paira em torn do mundo dos homens. Ha quem pense que desapareci. Mas; enquanto existirem criancas, en- quanto 03 homens forem capazes de fantasiar, estarei viva, usando minhas armas e sabedoria para proteger os que tém coragem, ousadia e talento. Foi por admirar a forca da juventude e a pureza de espirito que resolvi ajudar Perseu, o mais nobre de todos os jovens guerreiros da antiga Grécia. ‘Tudo comegou inesperadamente, no meio de uma festa. O DIA EM QUE VI PEGASO NASCER Eu costumava observar Perseu do alto do Olimpo e acompanhar seu tseinamento de guerreiro. Ele era jovem, veloz, esperto, mas gostava de ten- tat fazer coisas além de suas forgas. Convidado para jantar na casa do rei, Perseu decidiu que precisava impressioné-lo. E declarou, diante de todos os convidados, que arriscaria a vida para matar Medusa, minha monstruosa inimiga, a criatura gigan- tesca que destruia todos os que se atrevessem a entrar em seu esconderijo has cavernas. Medusa era o nome de uma das trés cabecas das gérgonas que habi- tavam 0 corpo de um enorme dragio. Suas patas mortais eram de bronze, e B ATENA Deusa da ‘sabedoria Protege a luz © 0 cosmos. ‘as pequenas asas, de ouro. Seu olhar era to poderoso que transformava ho- mens em estituas de pedra. Para vencé-la seria necessaria muita fora, agili- dade e toda a protecio do mundo, Quando me contaram que Perseu havia se oferecido para enfrentar a fera, admirei sua coragem e resolvi ajudé-lo, Assim que a luta entre ambos foi marcada, tive uma idéia: chamei a minha presenca Hermes, meu irmao, ‘0 mensageiro dos deuses, ¢ juntos nos revelamos a Perseu. Nos lhe dissemos que precisavamos estar ao seu lado durante a luta € que, caso desejasse a vitoria, deveria obedecer as nossas ordens. Primeiro Ihe pedimos que procurasse as ninfas, as jovens magicas dos Jagos e rios, pois elas 0 amavam e fabricariam uma arma especial para ele. Perseu obedeceu, ¢ das lindas ninfas ganhou sandélias aladas, uma sacola magica ¢ um capacete que Ihe conferiu o poder da invisibilidade. Hermes, achando que Perseu necessitava de mais uma arma, ofereceu- the uma langa, leve e cortante como a minha. Quanto a mim, resolvi acom- panhé-lo pessoalmente e lutar ao seu lado caso fosse preciso. No dia do combate, desci até a gruta do monstro e me escondi num ‘canto, O lugar era repugnante. A fera exalava um cheiro horrivel, o ar esta- va timido e pesado, por todos os lados eu via estétuas de pedras, na verdade 165 corpos dos guerreiros assassinados por Medusa e suas irmas, A entrada de Perseu foi inesquecivel. Ele rasgou os céus como uma ‘guia. Rapidamente aplicou um golpe certeiro no monstro ¢ cortou uma de suas cabecas. Sangue verde espalhou-se por toda a caverna, ¢ as duas cabecas restantes comegaram a urrar. Ainda voando, Perseu afastou-se ¢, em segui- da, apontou sua langa contra a segunda eabeca, Ela também caiti por terra. $6 que, quando isso aconteceu, uma das patas do monstro o atingiu e Per- seu perdeu 0 equilibrio. Seu capacete despencou no chao e ele imediata- mente se tornou visivel. — Ah! Jovem atrevido! — gritou a Medusa com sua vor grossa ¢ tene- brosa, No ar, Perseu voava em circulos, mantendo-se de costas para o mons- tuo. Ele sabia que, caso a fitasse nos olhos, se transformaria numa estatua. — Agora vocé ndo me escapa! Percebi que precisava entrar em cena. Lembrei-me de que tinha um escu- do comigo. Gritei: — Perseu! Apanhe o escudo, proteja-se! Recuperando as forcas Perseu agarrou meu escuclo no ar. Ele havia sido forjado pelas ninfas. Sua superficie brithava com a limpidez das aguas refletia imagens como um espelho. Empunhando-o, Perseu desafiou a fera: — Olhe para mim, criatura medonhat ‘Quando ela percebeu o truque, era tarde demais, Perseu levantou o escu- do na altura da cabeca do monstro. Assim que Medusa olhou para a propria imagem refletida em sua superficie polida, sentiu 0 corpo todo enrijecer-se ¢ transformar-se numa gigantesca estitua acinzentada, Perseu desceu ao solo ¢ eu o amparei. Ele se recostou contra a parede €, a0 seu lado, presenciei uma das mais belas cenas de minha longa vida de deusa. Do sangue verde e viscoso das horriveis gérgonas saiu uma luz dourada e brithante que aos poucos foi tomando forma. Lentamente foram surgindo os contornos de um maravilhoso cavalo alado, ‘© magnifico animal aproximou-se de nés e abaixou a cabeca, balan- ‘gando a crina ondulante e prateada como se nos cumprimentasse. O nome Pégaso estampou-se em minha mente ¢ eu © acariciei. Em seguida, Perseu ‘montou no dorso do animal para que este o levasse até seu rei. Perseu pro- ‘metera entregar-ihe a cabeca cortada de Medusa, E que espanto meu jovem amigo causaria ao mostrar aos gregos seu Iuminoso animal e seu novo escudo, com a face tenebrosa de Medusa eter- yamente marcada em sua superficie magica! 5 HERMES Mca nome termes. Sou 0 deus da palavra, das viagens, do comércio e da misica. Acompanho os viajantes em suas jornadas, Revelo-me aos homens por meio de seus sonhos, de sua musica e de sua escrita. Quem se perde pelos caminhos da ‘Terra e da vida, deve fazer uma pausa chamar por mim. Posso surgi no meio de um cruzamento na estrada, ou ‘no momento de uma indecisio, para apontar a direcdo certa a seguir. Nasci numa quarta-feira, dentro de uma caverna no monte Cilene. Meu pai € Zeus, 0 deus do universo, e minha mae Maia, a mais bela ninfa das montanhas. Sou meio-irmao de Atena, por quem tenho muito -afeto e admiracio; juntos protegemos os Beatie da humanidade como Perseu, Hércules e Ulisses, Minha primeira aventura aconteceu quando eu ainda era quase um bebé. Por causa dela fui chamado de falso, ardiloso, o deus da mentira. Mas ‘nada disso 6 verdade. Vou contar-thes exatamente como tudo se deu. COMO INVENTEI A LIRA E A FLAUTA Quando nasci, senti que atavam meus pequenos bracos € pernas pen- _ sando que assim eu dormiria trangiilo em meu bergo. Mas sempre detestei a imobilidade. Deus do yoo e das viagens, nao suportava ficar preso um. “minuto sequer. Assim que me vi sozinho, me debati até libertar-me das Fugi de meu quarto e corti para os campos, onde meu irmao Apolo cui- "dava de um rebanho de gado. Lembro-me muito bem da sensagao indes- “critivel de liberdade que experimentei ao deslizar pelos prados verdes com 0 vento acariciando meu rosto e balangando meus cabelos. Amo a veloci- ‘dade, a rapidez, deus algum jamais foi capaz de movimentar-se com a ‘mesma agilidade que eu. 7 HERMES Deus das invengoes € da criatividade Protege a escrita, 4s viagens €.a miisica, 4m Quando Apolo me vit, pareceu feliz. Brincamos um pouco ¢ me diverti bastante. Ele me ensinou o nome dos animais, seus habitos, os segredos do oficio de pastor. Fiquei encantado com seus animais. Eu os desejei para mim. Mas nao queria roubé-los de meu irmao, como disseram mais tarde. O problema € que Apolo sempre foi um deus distraido. E quando Hime- neu, seu melhor amigo, veio visité-lo, ele simplesmente se esqueceu de uma parte do rebanho, Eu nao podia deixé-los daquele jeito: os pobres animais se perderiam pelo pasto, € foi por isso que resolvi levé-los comigo. Reuni doze vacas, cem novilhas e um touro. Prendi um galhinho na cauda de cada animal ¢ conduzi o rebanho através da Grécia até chegarmos a Pilos, L4, sactifiquei dois animais de meu rebanho e fiz uma oferenda de doze partes de carne de vaca para os outros deuses do Olimpo. Em seguida, guardei cuidadosamente meu rebanho num, local seguro, pedi aos deuses que eu havia homenageado que © protegessem € regressei a gruta de Cilene, © monte onde nasci. Quando cheguei, a entrada da caverna encontrei uma pequena tartaru- ga. Ela me fitou nos olhos e disse: — Hermes, olhe bem para mim, ‘Trago na alma a melodia da mtisica. Nao quero viver para sempre como um simples animal, Se vocé me tirar a vida, prometo que the darei em troca os mais belos sons que ja se ouviram na Terra. Obedeci & pequena tartaruga e a matei, Joguei suas entranhas fora, lavei Seu casco e, por algumas horas, eu nao soube o que devia fazer. Aquele casco vazio nao produzia som algum, Por que seré que a tattarugazinha havia me pedido que a sacrificasse? Adormeci com seu casco no colo. Nao me recordo bem como surgi a idéia, Nao sei se foi de meus sonhos. Mas quando despertei eu sabia muito bem o que deveria fazer. Apanhei as cordas que fizera com as tripas das ‘yacas que eu havia sacrificado, Depois as amarrei no casco da tartaruga, esti- cando-as com toda a minha forca. Ao tocé-las com os dedos para me certi- ficar de que estavam bem atadas, percebi que produziam sons maravilho- sos, A pequena tartaruga havia se transformado num instrumento musical. Finalmente eu compreendia seu pedido: Chamei esse instramento de lira e me pus a tocé-lo por horas a fio, Anos depois, os homens inventaram um outro tipo de lira que vocés, pequenos amigos, j4 devem ter visto em algum lugar, No lugar do casco da tartaruga puseram uma barra torcida em forma de Ue nela esticaram as cordas. Nao sei muito bem por qué, mas as ima- gens de anjinhos que os homens comecaram a pintar sempre os mostravam sentados em nuvens tocando minha lira, Mas agora voltemos a nossa histéria. Meu irmao Apolo, que me busca- ee S= « va enfurecido pelos campos, nao conseguindo me encontrar, foi até Zeus, 1. nosso pai, ¢ pediu-lhe que me punisse por ter Ihe tomado os animais. $6 ‘que, como eu ja disse, eu nao os havia roubado. Apolo os esquecera pelos cam- pose, sem mim, eles provavelmente nao teriam sido capazes de sobreviver. Na manha seguinte, meu pai e meu irmao entraram na cavema absolu- tamente furiosos comigo. Gritavam para que eu devolvesse os animais a0 rebanho de Apolo. Quando os avistei, nem sequer respondi; estava muito entretido com minha maviosa harpa. Assim que Apolo ouviu a doce melodia de meu novo instrumento, dese- jou minha harpa mais do que qualquer outra coisa na vida. — Se Hermes me entregar esta harpa, cu the darei em troca todo © meu rebanho — declarou a nosso pai. Cansado das disputas entre seus dois filhos, Zeus concordou imediata- ‘mente, Afinal, tinha assuntos bem mais sérios a tratar. Depois desse acerto de contas, libertei meus animais nos pastos ¢, certo dia, ao entardecer, inventei outro instrumento: a flauta. Eu observava as ar- vores € a melodia do vento quando ele as movimenta. Pensei que, se cu apanhasse um pedaco de madeira oca, bem fininha, € nela soprasse, seria ‘capaz de produzir um som musical. No infcio nao deu muito certo, mas, ‘quando percebi que precisava fazer alguns furinhos na madeira para que 0 ar puudesse atravessé-la, consegui, por fim, Foi maravilhoso! Apolo novamente se encantou com a musica que eu tocava e, em troca ‘de minha flauta, ofereceu-me seu cajado de ouro, Mas eu nao o aceitei. ‘Descjava outra coisa. Sempre sentira citimes de Apolo porque ele era capaz -de prever o futuro, Eu ja tinha observado que ele atirava pedras no chao, -examinava 0 desenho que formavam e dizia tudo o que estava para aconte- _ cer. Eu ja havia tentado fazer isso varias vezes, mas nunca tinha conseguido. ‘Portanto, ofereci-the minha flauta em troca desse conhecimento. Apolo _aceitou no mesmo instante. Apanhou pequenos pedregulhos e me ensinou “aentender o desenho magico que tragavam ao cairem no chao. Cada angu- lo indicava um acontecimento oculto no futuro. Eu sabia que o estudo da -adivinhacao me ajudaria a evitar problemas, a tomar decisoes, a mudar 0 uso de minha vida, Fiquei muito satisfeito com o que aprendi. Mas quem ficou ainda mais contente foi Zeus. Vendo que eu era um 0 capaz de tantas invencoes, escolheu-me para set seu mensageiro. eu pai sabia que adoro viajar, que sou infinitamente curioso e que tenho “enorme talento para aprender os diferentes idiomas dos homens. E é assim “que tenho passado os séculos; viajando, conversando, inventando novi- dades e protegendo os seres cuja mente é inquieta como a minha. 17 ASDs7 Ma nome € Apolo. Sou o deus do Sol, do amor e da beleza. Sou também o protetor da medicina, da poesia e das artes. Meu filho, Asclépio, € 0 deus da cura. inhas companheiras s4o as musas, jovens maravilhosas que trazem a inspiragao e as idéias aos humanos. Nasci na ilha de Delos, sob uma palmeira. Tenho uma irma gémea, Artemis, a deusa da Lua e dos animais selvagens, Sou meio-irmao de Atena e Hermes. Artemis € eu sempre fomos muito unidos. Ela nasceu primeiro, ¢ era uma crianga tao forte e inteligente que auxiliou nossa mae na hora de eu vir a0 mundo, Portanto, o primeiro rosto que vi na vida foi a maravilhosa face de minha divina ima, a protetora das florestas e das montanhas. Passei o primeiro ano de vida afastado de minha familia. Ainda bebé, fui raptado por passaros sagrados que me levaram até a ilha do vento norte, que vocés agora chamam de Gra-Bretanha. Quando voltei para os bragos de minha mie, Leto, e de meu pai, Zeus, ambos ficaram tio felizes que sua alegria se espalhou pela natureza, as cigar- ras € passaros comecaram a cantar, ¢ as 4guas das fontes tornaram-se ainda mais puras. Esse foi o primeiro verao da antiga Grécia. Passei a ser muito amado pelos homens, por trazer-Ihes a luz, as flores e 0 calor de meu sol, ‘Mas nem tudo o que vivi foi to facil para mim quanto fazer nascer flo- res ou despertar o canto dos passaros. Quando ainda era menino, nossa mie foi ameacada pelo terrivel Piton, 0 monstro que nascera do fundo da terra e matava homens ¢ animais destruindo rios e fontes. Piton, além de feroz, tinha um aspecto horrivel: era um dragio esverdea- do extremamente mortal. Sua fungao era proteger um ordculo, um reci- piente em que guardava as Aguas magicas que Ihe revelavam o futuro, Quer dizer, usando 0 oréculo, Piton era capaz-de adivinhar quando seus inimigos se aproximavam, Essa vantagem, aliada 4 sua forca descomunal, 0 tornava 23 APOLO Deus do Sol e da satide Protege a medicina, a poesia e as artes, invencivel. Pensei que perderia a vida e nao seria capaz de salvar nossa mae. Foi entéo que Artemis resolveu ajudar-me. E nosso plano foi o seguinte... MINHA LUTA CONTRA O DRAGAO PITON — Apolo, sei que vocé ama a paz, a ordem, a sabedoria, mas, para vencer ‘um monstro tio destrutivo quanto Piton, é preciso usar de asticia e fazer da surpresa a melhor arma! — disse-me Artemis quando nos encontramos para decidir como salvar a vida de nossa mae. Observando seu belo rosto iluminado pelo luat, era-me dificil acreditar que minha pequena irma pudesse ser uma guerreira tao formidavel, jd que eu, mesmo menino, preferia a companhia das musas, a poesia e 0s cantos as lutas, corridas e perseguicdes. Olhei para o arco prateado de Artemis ¢ percebi que ele trazia a cur- vatura da lua brilhando no céu. Se eu era adorado pelos homens, minha inma era venerada pelas criancas e animais, os quais protegia. Vendo que eu continuava calado e pensativo, Artemis prosseguiu: — Apolo, agora vocé teré que agir como um guerreiro. Apanhe o arco flecha que ganhou de nosso pai. Varios animais ficavam ao tedor de Artemis sempre que ela sentava numa

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