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Filosofos do século XX Margot Fleischer, org. Moore Wittgenstein Quine Husserl Scheler 3 Heidegger Camus Sartre Merleau-Ponty Foucault Adorno Bloch | Marcuse lt EDITORA UNISINOS MAURICE MERLEAU-PONTY Fenomenologia nos limites da filosofia da subjetividade Erich Christian Schréder Quanto mais transparente e fechada parece ser a doutrina de um pensador que ele deixou a posteridade, tanto mais facilmente ela pode ser deslocada do desenvolvimento de sua questao basica e ser “representada”, isto é, tornada perceptivel a alguém de fora, que ainda nao se reconheceu no desenvolvimento de sua riqueza inter- na. Muitos tém a tendéncia de considerar tais doutrinas deslocaveis como a prépria filosofia — e pensadores, cuja obra é mais facilmente apresentavel num olhar de conjunto, como os filésofos mais signifi- cativos. , Mas também poderia acontecer que a liberdade e originalida- de, com a qual um pensador assume os desafios de sua situagao his- torica, sem com isso chegar a uma doutrina concisamente represen- tavel, perfaca sua grandeza. Sob este aspecto seria justificavel, con- forme penso, ocupar-se ainda hoje e sempre de novo com uma das figuras filos6ficas mais inc6modas, que permaneceu muito longe de uma doutrina objetivavel, mas em sua perspectiva basica uma das mais notaveis e particularmente mais ricas de nosso século: com Maurice Merleau-Ponty. MAURICE MERLEAU-PONTY 219 Nascido em 1908, em Rochefort-sur-Mer, ele ainda poderia es- tar vivo. Mas, com 53 anos de idade ele foi arrancado por uma morte stibita em meio ao trabalho de uma nova grande obra. Sua trajetéria externa, desde o tempo de colégio até sua atividade docente na cate- dra de Bergson no Collége de France (desde 1952), é notavelmente retilinea. Nao assim sua batalha por uma nova filosofia. Naturalmente é possivel dizer qual tem sido seu tema central e seu habito metodolégico: seu tema era a relacdo entre uma conscién- cia encarnada e o proprio ser, e seu método era 0 fenomenoldgico. Com isso, todavia, se diz realmente de menos ou demais, conforme se usam os conceitos caracteristicos em qualquer sentido tradicio- nal, ou nao. Mesmo quando se descreve a trajetéria evolutiva do pensamento de Merleau-Ponty, dizendo que primeiro o teria cativa- do a conexao de fendmenos psiquicos e fisicos, tendo ele tentado dar a conhecer essa conexao sem ingénuas conviccdes ou Ppreconceituo- sas construcoes tedricas, ao passo que mais tarde se teria esvanecido a esperanca do desvendamento de um todo estrutural unitario de todas as experiéncias basicas essenciais, pelo envolvimento com os fendmenos, modificando-se 0 sentido da perspectiva fenomenol6- gica até torna-la irreconhecivel; isso porque ao questionador mais profundo teria ficado mais claro que é propria das experiéncias uma multiplicidade de sentidos de principio, que contradiz a qualquer tentativa de fixagao teérico-conceitual. Mesmo entao, se mencio- naria apenas o que 0 filésofo tinha em mente, sem ter mostrado algo a respeito, muito menos estar-se sabendo, entao, qual o motivo que © fez perguntar precisamente dessa maneira e por que a admissao dos desafios da situagao 0 conduziu precisamente nessa diregdoea uma perspectiva tao original. E verdade que, no inicio desta explanaco introdutoria, eu nao posso pendurar as uvas alto demais, se nao quisermos sentir-nos forgados a reconhecer que elas teriam sido amargas demais. A ob- servacao prévia s6 quer mencionar a especial dificuldade de se che- gar ao “centro motor” dessa filosofia, o que pressup6e a aceitagao de uma perspectiva diversa das concep¢6es tradicionais (também da filosofia fenomenoldgica). 200 ERICH CHRISTIAN SCHRODER Se Merleau-Ponty, numa nota de trabalho de janeiro de 1959, fala sobre “nossa situagao da nao-filosofia”, dizendo: “A crise nunca foi tao radical”! e se ele, numa anotacao um tanto posterior, assume « procura pela origem de “nossa nao-filosofia ... por meio de ... uma auto-reflexdo sobre nossa cultura que € ciéncia’”, entao isso lembra o esforgo tardio de Husserl, de entender a “crise das ciéncias euro- pcias”’ e indicar caminhos para sua superacao. Mas, enquanto Hus- serl encontrou “a idéia hist6rico-filoséfica (ou 0 sentido teleoldgico) da humanidade européia” na ciéncia, cujos tradicionais persona- gens hist6ricos, sob a influéncia da “reducao positivista da idéia de ciéncia para uma simples ciéncia de fatos”’ acabaram conduzindo a uma “crise” da ciéncia como perda de seu significado vital”’, que, pela filosofia fenomenolégica como “ciéncia rigorosa” — isto é, como realizacao da fundamentagao ultima e responsabilidade ultima da- quele sentido teleolégico —, poderia e deveria ser superada, Mer- leau-Ponty julga a crise como tao radical, que ela nao pode mais ser explicada com os meios tradicionais da reflexao filos6fica. Quero primeiro tentar dizer o que penso com isso, e fazé-lo an- tes numa pardafrase livre, do que por uma interpretacao proxima do texto. Se, dessa forma, a perspectiva basica do pensamento e ques- tionamento de Merleau-Ponty pode ter ficado um pouco mais clara, eu gostaria de analisar 0 sentido que Merleau-Ponty reclama para a reflexao filos6fica como origem de uma “nova filosofia”. Numa ter+ ceira e ultima parte, num traco mais amplo, esforcar-me-ei por indi+ car, como eu 0 vejo, o significado ainda atual desse pensamento. 1 VI,219/215 (A cifra antes do traco diagonal designa o numero de pagina da eile do original francesa, e a cifra apés o traco diagonal a pagina da tradugio aleml, ~ Cf. breve bibliografia). 2 vi, 237/237. 3 E, Husserl, Die Krisis der europitischen Wissenschaften und die transzendentale Pie nomenologie [A crise das ciéncias européias e a fenomenologia transcendental Husserliana, vol. VI, ed. por W. Biemel, Den Haag, 1954. Ibid., 314. 5 Ibid. 3. 6 Ibidem. MAURICE MERLEAU-PONTY 221 Il No subtitulo de minha contribuicao fala-se dos limites da filo- sofia da subjetividade. A expressao “filosofia da subjetividade” tudo, menos algo inequivoco. Porém, aqui nao é 0 lugar para expli- car a filosofia da subjetividade, de Descartes até Husserl e Sartre, com a intengao de uma compreensao conceitual suficiente dessa corrente central da filosofia moderna. Gostaria de toma-la apenas como base, ante a qual a figura da filosofia de Merleau-Ponty se des- taca de maneira particularmente nitida, porque ela emerge desta base, mas ao mesmo tempo se relaciona com ela de maneira pro- gressivamente critica. Disso vai resultar, entre a figura ea base, uma relagao reciprocamente elucidativa, uma relacao “diacritica”. Em comparacao com as promessas de uma reflexao filos6fica — como ela é aceita desde Descartes na forma de fundamentacao da autoconsciéncia, do eu-penso ou cogito, como seu ponto de partida absolutamente certo, tendo assim criado a perspectiva da enfim exi- tosa realizagao da pretensao de um saber seguro -, em Merleau- Ponty a reflexao parece fluir sempre para o paradoxo. Assim, p- ex., no texto em que ele justamente trabalhava quando faleceu e que, em publicagao péstuma, trazia o titulo Le visible et l'invisible, consta numa passagem do 1° Capitulo: “O mundo é aquilo que eu percebo, mas sua proximidade absoluta, da forma como ela é provada e ex- pressa, de maneira inexplicavel torna-se também uma distancia ir- tevogavel”.” E, um pouco mais abaixo, numa anotacao marginal, es- creve Merleau-Ponty: “Ao mesmo tempo posso contar com aquilo (Jue vejo e que é profundamente ligado com aquilo que 0 outro vé - ‘udo fala a favor disso: nds realmente vemos a mesma coisa e a pro- pra coisa —, € ao mesmo tempo eu jamais alcango a vivéncia do ou- 'ro.O mundo € 0 lugar no qual nos encontramos. Cada tentativa de ERICH CHRISTIAN SCHRODER restaurar novamente a ‘propria coisa’ expressa realmente a tentati- va de retornar ao meu imperialismo e ao valor de minha coisa”. Essas citagdes ainda sao obscuras sem o seu contexto. Eu ape- nas as aduzi, para extrair-Ihes um aceno que aponta para a perspec- liva basica da reflexéo de Merleau-Ponty. O problema que aqui é apontado é 0 do “meu imperialismo”, isto é, do imperialismo do Cogito, que promete conhecimento seguro, porque é subiectum (su- jeito) de todas as representacoes de algo existente; isto é, o ente, caso deva ser certo como ente, deve poder encontrar em si — como unifi- cado consigo em coincidéncia -, em que 0 sujeito pode ser entendi- do numa extrema pujanca de significados: tanto como aquilo que 0 ente s6 conhece como sua impressao, a qual ele esta sujeito (“sub- metido”), e também como aquilo para o qual ele mesmo ~ 0 Eu -é condigao da possibilidade (“sujeito transcendental”) ou ainda con- digdo da realidade (“sujeito absoluto”). Merleau-Ponty alude oe possibilidade de principio da coincidéncia com a expresso “ meu imperialismo”. Sua reflexo sobre as estruturas historicas de senti- do de uma coincidéncia entre 0 sujeito de percepcao e a coisa, entre 0 Cogito, 0 ente e o outro, que pertencem a um mundo, conduz de fato a questao, qual motivo que atua atras da vontade para a coinci- déncia por meio de conhecimento — e na solugao dessa questao re- sultam muitos paradoxos, que lentamente corroem 0 imperialismo da coincidéncia. Que o conhecimento, desde o século XVII, se tornou instrumen- to de dominagao, ja nao deveria causar tanta estranheza como diag- nose. Isso esta conexo com 0 inicio e o desenvolvimento da filosofia da subjetividade. E verdade que nao basta o aceno para citagées fre- qiientemente utilizadas - das quais eu logo gostaria de apresentar uma selecao — para tornar compreensivel a radical mudanga que re- sultou da passagem para a modernidade e que em suas repercus- ses se tornou até hoje sempre mais visivel e ameagadora. Mas tal- vez.as citagdes possam ao menos dirigir o olhar na diregao pensada. 8 VI, 26/26. MAURICE MERLEAU-PONTY N 8 Antes de 1620, Francis Bacon iniciou a tentativa programiatica de uma grande renovagao das ciéncias, na base de uma experiéncia a ser libertada de preconceitos antropomorfos, a qual deveria servir a finalidade de arrancar a natureza os seus segredos, para domi- na-la. No comego do Novum Organum encontra-se a famosa frase: Natura enim non nisi parendo vincitur (“Porque a natureza s6 é venci- da se lhe obedecermos”); isto 6, temos de submeter-nos a natureza como seus conhecedores, s6 deixando nossa consciéncia, purificada dos preconceitos, ser determinada pelas estruturas e leis da nature- za, para, agindo de acordo com essas estruturas ¢ leis, podermos re- construi-la e assim dominé-la. René Descartes, em sua primeira publicagao, O Discurso do Mé- todo, de 1637, para a estruturagdo de um conhecimento realmente certo, considerou indispensavel a mais severa submissao do espirito humano a exigéncia por clareza matematica e distincdo de todas as representag6es relevantes para o conhecimento, profetizando, para um conhecimento “objetivo” assim regulamentado, que ele nos fa- ria maitres et possesseurs de la nature, mestres e possuidores da natu- reza. Gottfried Wilhelm Leibniz encontrou o auténtico conhecimen- to naquela definigao do ente, que “(é) tanto real como causal, por- que entao ele encerra em si a possivel gestagdo da coisa”, como se lé em seu Discours de la Métaphysique de 1686. E Kant escrevia um século mais tarde, na Critica da capacidade de julgar [Kritik der Urteilskraft], de 1790: “porque s6 se entende ple- namente tanto quanto se pode fazer e tornar real por conceitos”. A série de exemplos poderia prosseguir, mas tais citagdes, as- sim isoladas, s6 aludem superficialmente a tematica. Somente quan- «lo, no contexto histérico, se vé qual o motivo que promoveu essa vi- rada para a dominagao da natureza por meio do conhecimento, po- de-se mensura-la em todo 0 seu alcance. O motivo é muito mais an- ligo que a filosofia moderna. Ele carrega toda a histéria do pensa- mento ocidental e provém da Antiguidade. S6 posso insinua-lo bre- vemente, Segundo Platao e Aristételes, o homem - 0 ser mortal—é um ser vivo natural, que participa simultaneamente do divino, enquanto sICH CHRISTIAN SCHRODER sta fazao & Sua caracteristica essencial, podendo ele por isso, no co- nhecimento livre, isto 6, nao utilizavel para qualquer fim pratico, do ser divino, assemelhar-se a Deus e assim superar, embora nao ple- namente, a mortalidade com toda a sua miséria, relativizando-a até o suportavel. Essa “revolugao do modo de pensar” é a origem does- pirito europeu. Para perceber plenamente sua plenitude, podemos relembrar que, na apresentacao da religiao mitica dos gregos em seus antigos poemas classicos, usurpar a divindade — hybris ~erao pior dos crimes humanos e a razao permanente da culpa vingan- do-se na tragédia. (Talvez seja conveniente lembrar neste contexto, que também na religiao judaica o comer da arvore do conhecimen- to, portanto o querer ser como Deus, foi punido com a expulsao do paraiso.) ; O motivo principal da assemelhagao ao divino por um conheci- mento racional tedrico auto-suficiente manteve-se, em multiplas transformagées, como determinante na historia intelectual euro- péia, o que aparece de maneira especialmente marcante na reconci- liacdo e fusao da pretensao filos6fica de conhecimento com a fé cris- ta, no decurso da Idade Média - apés inicial e decidida oposigao em Paulo e nos primeiros Pais da Igreja. A fusao de uma vontade de conhecimento filos6fico com a fé cristé conduz a uma mudan«a significativa da propria compreensao de Deus: do Deus que, como razao imanente do mundo, manteve ordenadamente em movimento a Physis eterna e incriada — mas também do Deus que, no comeco, de maneira incompreensivel cha- mou 4o ser 0 céu e a terra -, surgiu o construtor extramundano do Universo, como Tomas de Aquino, com recursos do pensamento aristotélico, procurou compreendé-lo em analogia com o artifice hu- mano - 0 produtor de artefatos. Entao — no século XIII, em Tomas — jaera clara a idéia de o conhecimento mais seguro ser 0 do produtor ou construtor em relacdo a sua obra.” E, se 0 motivo basico da assemelhacao ao ser e agir divino sempre ainda tem forca por meio do conhecimento tedrico auto-su- 9 Ch.p.ex. Tomas de Aquino, Quaestiones disputatae de veritate, qu. I, art. 5 MAURICE MERLEAU-PONTY 225 ficiente, entéo o préprio conhecimento teérico adquire um trago fundamental técnico-produtivo — que pode ser percebido na moder- na idéia de conhecimento e em sua concretizacao nas ciéncias. Enquanto a fundamentacao metafisico-teolégica de todo o sa- ber também era geralmente consciente e aceita nas ciéncias, isto ¢, enquanto um fisico matematico como Newton, p. ex., ainda podia falar do espacgo absoluto como sensorium dei (“Sensibilidade de Deus”), predominava uma postura do deixar-se determinar, que concebia a subjetividade primariamente na submissao da conscién- cia humana sob a ordem “divina” da natureza, e assim, sob a auto- disciplina metédica do conhecimento objetivo. Mas a intencao era, em tltima andlise, a de reconstituir 0 paraiso como dominacao so- bre a natureza, por forga do dote “divino” da capacidade de conhe- cimento. Mas, se 0 poder dessa autodisciplina metédica do conhecimen- to objetivo, o retorno ao eu-penso da autoconsciéncia como tinico palco para o surgimento do real, é, assim, simultaneamente percebi- do como base auténtica de éxito na reconstrucao de processos natu- rais, entao lentamente vai retrocedendo a base teoldgica do motivo do conhecimento. A decisao de sé fazer valer como real 0 que é ca- paz de contar no processo progressivo de objetivacao irresponsavel da natureza — portanto, do lado subjetivo, a consciéncia cientifica purificada de todas as perturbadoras interferéncias da vida huma- na, reduzindo-se a um palco livre; e do lado objetivo, o ente reduzi- do ao matematicamente calculavel -, essa deciséo deixa o homem parecer sempre mais como manipulador, dominador e explorador da natureza (também de sua propria “natureza”). A aspiragao por semelhanga com Deus, que desvenda sempre mais nitidamente seu verdadeiro nticleo — a angustiada recusa de um reconhecimento e, com isso, de num conhecimento da finitude humana -, produz, nao mais apenas novas teorias metafisicas, porém uma real modificagao do mundo, com tendéncia catastréfica. O ensaio de Merleau Ponty, publicado no ano de sua morte, O olho ¢ 0 espirito, comega com as frases: “A ciéncia manipula as coisas « renuncia a habita-las. Ela faz das mesmas modelos internos para s1, clabora, segundo suas caracteristicas distintivas ou varidveis, as 200 ERICH CHRISTIAN SCHRODER modilicagoes permitidas pela definigéo desses modelos e posicio- tase at apenas de vez em quando ante o mundo real. Ela é e sempre for esse pensamento admiravelmente ativo, inventivo, despreocu- pado, essa decisao de tratar qualquer ente como ‘simples objeto’, islo 6, ao mesmo tempo como se ele absolutamente nao nos interes- sasse e contudo fosse predestinado para nossas incursées artisti- cas”. Contra essa tendéncia das ciéncias, que ele alias nao despreza- va, 0 pensamento de Merleau Ponty procurava, desde 0 inicio, fazer valer o sentido préprio do ente, olhar para as “proprias coisas” e de certa forma deixé-las falar. A partir de tal intengao, torna-se com- preensivel que ele foi fortemente marcado pelo “movimento feno- menoldgico”, cuja palavra de ordem era “as préprias coisas!”. Mas ele nao deixou de considerar que o conhecimento fenomenoldgico nao podia sucumbir novamente a pretensao de positividade da filo- sofia da subjetividade, enquanto coincidéncia direta entre 0 sujeito cognoscente e 0 objeto conhecido e plena visaéo de conjunto (e com isso de dominio sobre o ente). Para uma nova filosofia, segundo seu ponto de vista, era indispensavel e premente, contra a linha basica de uma histdria tao longamente atuante, configurar a “capacidade de percepgao, que nao quer dominar”." A ressalva, que a nova e di- versa reflexao fenomenolégica deveria superar a filosofia da subje- tividade, também determinou a relacao de Merleau-Ponty com a fe- nomenologia de Husserl e conduziu ao conhecimento cada vez mais nitido de que a crise, que “jamais foi tao radical”, é uma crise da “pretensao divina de dominacgao da filosofia da subjetividade, de 10M. Merleau-Ponty, L’ceil et l'esprit, in: Les Temps Modernes, 17e année, numéro spécial 184-185, Paris, 1961, 193; trad. alema in: M. Merleau-Ponty, Das Auge und der Geist, Philosophische Essays, ed. e trad. por H. W. Arndt, Reinbek, 1967, 13, reed. Hamburgo, 1984 (Sigla: OF). 11 Acitada formulacao provém de L. Landgrebe, Der Weg der Phiinomenologie. Das Problem einer urspriinglichen Erfahrung [O caminho da fenomenologia. O proble- ma de uma experiéncia origindria], Giitersloh, 1963, 141. Landgrebe pertence aos fenomendlogos alemaes, os quais tentam retirar a fenomenologia do circulo restrito da filosofia da subjetividade MAURICE MERLEAU-PONTY 227 seus predecessores e de suas filhas, as ciéncias modernas, cuja pers- pectiva de futuro, onerada de conseqiiéncias, requer uma radical mudanga de concepgao do conhecimento, a qual pertence, em pri- meiro lugar, uma nova percepc¢ao da essencial finitude do existir humano no mundo. Esta permitiria que se visse, como possivel e ne- cessaria, uma rentincia a pretensao de semelhanca com Deus ~ seja em que sentido for —, a qualquer euforia construtiva do pensamento tedrico, a propria tendéncia coincidente no querer saber. O conheci- mento humano deveria conceber sua finitude (conhecida desde a Antiguidade, mas ainda nao entendida), nao como algo a ser supe- rado, porém como sua especifica possibilitagao. Na elaboragao des- sa tarefa, Merleau-Ponty usa as possibilidades metodoldgicas da fe- nomenologia, sem contudo manter a originaria pretensao husserlia- na por “estrita cientificidade”, que também ainda aparece como ex- pressao tardia da filosofia da coincidéncia. Dessa forma, ele confere 4 fenomenologia um cunho caracteristico, na qual torna-se poten- cial critico mais eficaz a percepcao sempre mais refinada pelo que a lilosofia tradicional tem de imperialista, por sua funesta tendéncia de apropriar-se do ente numa pensée de survol, num pensamento que o sobrevoa e assalta. Il Quando se diz que em Merleau-Ponty o conhecimento humano lenta entender sua finitude, nao como limitagao a ser superada, mas vendo seus limites ao mesmo tempo como sua propria possibilida- de, que, portanto, a intengao basica dessa filosofia se direciona para tima aceitagao e afirmagao da finitude, com base numa nova com- preensado de sua esséncia, isso, naturalmente, ainda nao é compre- ensivel como simples afirmagao. Por isso, eu gostaria de tentar, nes- ta parte de minhas explanagées, esclarecer pelo menos indicativa- mente ¢ ‘ssa afirmagao, pelo fio condutor da problematica reflexiva desenvolvida por Merleau-Ponty. 228 ERICH CHRISTIAN SCHRODER Eu acabei de dizer que Merleau-Ponty assume, como Husserl, uma “reflexao radical”, mas que ele se vé necessitado a concebé-la em seu significado e em sua capacidade de rendimento, de acordo com sua postura mental “antiimperialista”. Husserl estava convencido de que a “crise das ciéncias euro- péias” sé poderia ser superada, enquanto uma “reflexao radical”, como retorno a evidéncias absolutas de fundamentagao ultima, a se- rem estruturadas no mais austero olhar para o que se mostra a partir de si mesmo — precisamente o fenomenal em toda experiéncia, co- nhecimento e praxis — revele a origem comum do conhecimento e do sentido da vida humana num sujeito origindrio transcendental, restituindo, a todo “saber” tedrico buscado “em funcao de si mes- mo” na filosofia e nas ciéncias, sua “significancia vital”. Husserl pensava que o mundo, as coisas, os outros e eu mesmo, enquanto posso experimenta-los e entendé-los de modo puramente fenome- noldgico — portanto em seu significado —, seriam produtos de uma constituicdo originaria, e que, por isso, a reflexao filosdfica poderia descobrir 0 principio de constituicao, isto é, que a reflexéo poderia co-incidir com ele. Isso pressuporia que 0 centro constitutivo, en- quanto origem de todo significado, seria um eu-originario transcen- dental, 0 qual, como consciéncia até agora em estado latente, mas desvendavel e se constituindo a si propria, deve ser liberado na mais profunda camada de fundamentagao da nossa subjetividade especificamente humana, se apenas nos transpusermos para uma postura fenomenolégica, ou meramente observadora. Este pensamento torna compreensivel 4 razaéo por que Husserl podia encontrar o inicio da reflexao filos6fica numa livre decisao. Assim se diz, p. ex., em sua obra Idéias I” de 1913: “Em vez de ficar 12 _ Este é 0 titulo convencional abreviado de: E. Husserl, Ideen zu einer reinen phiino- menologischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einfiihrung in die reine Phiino- menologie {Idéias para uma pura filosofia fenomenolégica. Primeiro livro: Intro- ducao geral na fenomenologia pura}, primeiro surgido como | vol. Do Jalirbuch fiir Philosophie und phinomenologische Forschung [Anuério para filosofia e pesqui- sa fenomenol6gica], Halle (Saale), 1913, agora in: Husserliana, vol. Ill, ed. por W. Biemel, Den Haag, 1950. MAURICE MERLEAU-PONTY 229 agora nessa postura (a saber natural), queremos modifica-la radical- mente”." Uma tal modificacao seria “assunto de nossa total liberda- de”. Bem, se a reflexao sobre a experiéncia natural poderia retornar aos ultimos fundamentos constitutivos e o caminho da originaria constituigéo do eu originaério transcendental poderia ser levado “para frente” até cobrir a experiéncia natural, nao sendo apenas di- verso na diregao; se, portanto, minha consciéncia individual atual deve poder coincidir com 0 eu origindrio, entao poderia bastar uma livre decisao para fazer surgir uma teoria constitutiva, a qual, com absoluta certeza e total transparéncia, capta finalmente o que man- tém coeso o mundo em sua estrutura mais intima, podendo também superar a crise da racionalidade européia. Para Merleau-Ponty, no entanto, a representacao de tal cons- ciéncia originaria, que constituiria todo 0 sentido do ser, com 0 qual nosso pensamento poderia coincidir, é clara expresso do ha- bito imperialista da filosofia tradicional. “A busca pelas condigdes de possibilidade é fundamentalmente posterior a uma experiéncia atual, e disso resulta: mesmo quando posteriormente se determina seriamente o sine qua non dessa experiéncia, ela jamais poderia li- vrar-se de sua mancha congénita, de s6 ter sido descoberta post fes- tum, nem pode ela tornar-se o que positivamente fundamenta essa experiéncia.”" Na luz dessa percepcao, os anteriores esforcos de uma filosofia de reflexdo transcendental parecem ingénuos. “Pela reflexao, o Eu, perdido em suas percep¢ées, encontra-se novamente, enquanto reencontra essas percepgdes como pensamentos.”" Ou seja, ele, como autoconsciéncia reflexivamente consciente, nem pode tornar-se plenamente idéntico com 0 eu perdido em suas per- cepgoes, que, como tais, nao séo pensamentos. Assim, a reflexao fa- Tha em “sua tarefa e seu radicalismo, que é sua lei: porque o movi- 13 Ibid., 62, destacado em Husserl. 14 Ibid., 65, destacado em Husserl. 15 VI, 69/68, 16 VI, 68/68. 230 ERICH CHRISTIAN SCHRODER mento da reconquista, a reaquisi¢ao, 0 proprio retornoa si mesmo, a prossecugao de sua adequacio interior, mesmo a aspiracao de coin- cidir com um principio criador, que nés mesmos ja somos ... — todas essas operacées subseqiientes da re-constituigéo ou da recomposi- Ao nao podem ser nenhuma imagem espelhada da constituigao in- terior e do vir a ser (a saber das coisas e do mundo)...: A reflexao re- cupera tudo, exceto a si mesma enquanto esforgo da reconquista, ela clareia tudo, exceto sua propria funcao”.” A ingenuidade da reflexao transcendental tradicional esta na opiniao de que ela poderia reconstruir intocadamente e sem modifi- cago os seus “objetos”, da mesma forma como eles teriam sido constituidos por uma origem transcendental, pensando que “nossa ligacao originaria com 0 mundo sé poderia ser entendida, enquanto ela a separa, para novamente reconstitui-la, enquanto ela constitui e aperfeicoa”."" O que, por conseguinte, perfaz aqui a ingenuidade, éa conviccao nao fundamentavel de que o pensamento reflexivo possa coincidir com o ser real, na tentativa de “fundamentar o mundo existente sobre um pensar o mundo””, j que a reflexao “a cada ins- tante se alimenta da anterior presenga do mundo, a qual ela deve tri- buto e da qual ela extrai toda a sua energia”." Com outras palavras: a ingenuidade esta na crenga de que “nossa ligacao originaria com 0 mundo” seria realmente separavel e analisavel. Aessa crenga subjaz a concepcao de que o mundo e cada coisa e também nossa consciéncia seriam compostas unicamente por ele- mentos positivos plenamente determinados e de sentido univoco (adequadamente fixavel em conceitos), (que portanto 0 mundo eo ente, ao menos “em si”, poderia tornar-se plenamente transparente em sua existéncia e em sua génese para qualquer pensamento con- 17 VI,55/54. (A traducao desta citacao, e eventualmente de posteriores citagdes, foi ligeiramente modificada pelo autor.) 18 Vi, 54/53. 19 VI, 55/55. 20 Ibidem. MAURICE MERLEAU-PONTY 231 ceitual - mesmo que fosse divino). Porém, ao olhar fenomenolégico de Merleau-Ponty, transparece antes que significados fixaveis, uni- dades de sentido conceitualmente compreensiveis, sao apenas cris- talizagdes da viva génese de sentido de nossa vida no mundo, as quais nao se diluem na liquidez nao objetivavel da atual realizado da experiéncia (assim como um sal nao se dilui numa solucdo), per- fazendo, como sedimentos, o passado relativamente estavel de nos- sO ver, pensar e experimentar, nos quais a consciéncia tem seu fun- damento. Mas essas insolubilidades nao sao possiveis sem o fluxo experimental atuante, e pela andlise elementar também nao conse- guimos retornar a esse fluxo experimental. O mundo sempre atual de nossa experiéncia viva é um campo de “dimensdes”, articulagées, planos, dobras, angulos, configura- ses”, que, tomadas por si, nem sempre tém um significado positi- vo, mas que, pelas relagoes entre elas, tornam-se reciprocamente significativas, constituem-se um sentido. E Merleau-Ponty esfor- ca-se, desde 0 inicio e em sempre novas aproximacées, em descre- ver essa “flora de sentidos”, em conjurar a riqueza da experiéncia e de suas liberagdes, sombreamentos, relacdes simbdlicas e metaféri- cas, em interrogar sobre isso a percep¢ao, a experiéncia, o pensamen- to. Uma reflexao fenomenolégica, em oposicao a reflexao transcen- dental tradicional, nao é, pois, a reconstrugao de nossa praxis vital em seus elementos apenas positivos, porém precisamente “interro- gagao”, uma palavra que, no fragmento O visivel e 0 invisivel, serve para varios titulos de capitulos. “Interrogacao” é também o programa de uma filosofia da fini- tude, que nao quer dominar o ente, porém encontrar-se com o ser ainda cristalizado em significados positivos, mas ainda mudo e pré-predicativo (étre brut). Uma frase do escrito de Husserl Medita- (des cartesianas, fascinou repetidamente a Merleau-Ponty, mas tam- bém despertou sua suspeita: “O inicio é a experiéncia pura e por as- sim dizer ainda muda, que agora deve ser trazida a pura expressao ‘1 VI, 277/284. 232 ERICH CHRISTIAN SCHRODER de seu préprio sentido”.” O que fascinava Merleau-Ponty era a pa- radoxal tarefa da filosofia, de trazer a fala “a experiéncia ainda muda”, e sua suspeita valeu ao otimismo de que, por esse “tra- zer-a-fala” se poderia chegar a real coincidéncia entre a muda expe- riéncia e aquilo que podemos dizer sobre isso. E verdade que todos os significados exprimiveis se relacionam “com um universo nao elaborado do ser e da coexisténcia, mas “esse proprio universo nao permite, em principio, nenhum processo de aproximagao objetivante ou reflexiva, porque ele esta sempre distante, no horizonte, latente ou oculto ... O ente real, presente, tiltimo e primeiro, a propria coisa chega fundamentalmente a clareza transparente apenas por meio de suas perspectivas, ele s6 se apresenta a quem nao quer possui-lo, mas apenas vé-lo, ... a quem esta preparado para deixa-lo ser ena filosofia é proibido falar de solugdo: como aproximagao ao distante enquanto distante, a filosofia também é¢ interrogagao sobre aquilo que nao fala. Ela interroga nossa experiéncia do mundo também so- bre o que é o mundo antes de ele ser algo de que se fala, e como ele se entende por si mesmo, antes de haver sido reduzido a um conjunto manipulavel e disponivel de significados. Ela pde essa questao a nossa vida emudecida, ela se dirige Aquela mistura entre o mundo e nés, que precede a reflexao ... Se este paradoxo nao é nenhuma im- possibilidade e se, nao obstante, a filosofia pode falar, entao é por- que a fala nao é apenas a instituicado conservadora de significados fi- xados e adquiridos, mas porque sua propria forga de acumulagao procede de uma capacidade de prévia assungao ou posse ... € por que a fala que surge, ao menos de forma indireta” — no texto se diz “Jateralmente”, i. é, nao diretamente, mas de certo modo pelo lado — “da expressao a uma ontogénese, da qual ela mesma participa. Mas disso resulta que os conceitos mais significativos da filosofia nao sao necessariamente aqueles que encerram em si 0 que dizem, sao antes aqueles que mais energicamente se abrem ao ser oan 22 E. Husserl, Cartesianische Meditationen, Husserliana, vol. 1, ed. por S. Strasser, Den Haag, 1950, 77. 23. Vi, 137-139/137s. MAURICE MERLEAU-PONTY aM A reflexao filos6fica, nesse novo sentido, colhe, portanto, da imediatez da emersao numa praxis, porém nao com base numa “li vre decisao”, e sim porque a praxis de nossa propria vida no mundo. pressiona por explanacao, para nisso completar o seu sentido, por que ela tende constantemente para uma “ruptura de nossa familia ridade com o mundo”, como se diz na Fenomenologia da percepgio.’* Mas isso significa que, em principio, é tirada da filosofia a possibili dade de coincidir com a praxis, cujo sentido ela expée. Visto a partir dos preconceitos da tradicional filosofia da subjetividade, isso signi- ficaria a impossibilidade de um auténtico conhecimento, porque a coincidéncia entre pensamento e ser eram seu primeiro artigo de fé Porém, se a gente se livra dessa “crenca”, ha de mostrar-se que uma possibilidade humana de conhecimento do ser s6 resulta dessa po- sigdo fundamentalmente excéntrica do pensamento pela realizagao viva do ser, que Merleau-Ponty, no fragmento péstumo diversas ve- zes citado, chamou de “privativa nao-coincidéncia”, uma “coinci- déncia vinda de longe”.” Em outra passagem, tentei esclarecer mais ou menos assim essa importante virada™: Consciéncia e realidade s6 podem concordar de um modo que permanece fundamentalmente privado de sua finalizagao, ou seja, devido a quebra na familiarida- de com o mundo, devido a guinada para fora do despertar numa praxis viva, a partir de cuja distancia o ente como tal pode, de fato, tornar-se plenamente manifesto. Essa evidéncia do “algo como algo” — entendido em seu sentido mais amplo e relacionado com qualquer praxis possivel — deve-se, assim, a uma “privagao”. Mas é proprio dessa privacao separar e interpretar constantemente a aber- tura do mundo, nossa abertura para as coisas, para os outros (e tam- 24 PhW, VIII/11 (cf. breve bibliografia). 25 Cf. VI, 166/165 26 Cf. do autor: “Jede Rede ist Schwveigen”. Anndherung an Merleau-Ponty's Hermeneu- tik der Erfahrung, in Sein und Geschichtlichkeit — Karl-Heinz Volkmann-Schluck zunt 60. Geburtstag ["Cada fala é um silenciar”. Aproximacao a hermenéutica da ex- periéncia de Merleau-Ponty, em ser e historicidade ~ pelo 60. Aniversdrio de Karl-Heinz Volkmann-Schluck], ed. por I. Schiissler e W. Janke, Frankfurt a. M., 1974, 154. 234 ERICH CHRISTIAN SCHRODER bém de cada um para consigo mesmo) contra a tendéncia a imedia- tez na realizagao da vida. A pretensao da reflexao dirige-se para uma positiva coincidéncia com 0 real. Mas ela s6 pode levantar essa pretensao, porque ela emerge da coincidéncia que sempre ja ocor- reu em cada praxis atuante, dirigindo-se para aquela distancia, a partir da qual algo realmente pode ser pensado. Assim, ela simulta- neamente tem seu fim sempre nas costas, nao podendo jamais al- canga-lo. Mas essa situagéo constitui, em primeirissimo lugar, 0 acesso ao ente como tal, 4 sua compreensao “como algo”. Aqui pode ser feito apenas um aceno a razao mais profunda da impossibilida- de de alcangar uma coincidéncia entre pensamento e ser. Ela ja fora percebida bem cedo por Merleau-Ponty. Ja na Fenomenologia da per- cepgiio ele falava do “paradoxo do tempo””. E verdade que né fala- mos do tempo como se o pudéssemos abranger e objetivar como um todo, mas “do meu tempo eu jamais posso apossar-me, enquanto eu nao me entendo plenamente, e esse instante jamais pode chegar, porque, se ele chegasse, ele sempre seria apenas um instante circun- dado por um horizonte de futuro, o qual, de sua parte, necessitaria de um desdobramento para poder ser entendido”.” Com esse para- doxo, relaciona-se a fala do “enraizamento do ser objetivo nas du- plicidades de sentido do tempo”: “Nao posso entender o mundo como soma das coisas, nem o tempo como soma de punctiformes “agora”, j4 que nenhuma coisa pode exibir-se em suas plenas deter- minacées, se as outras coisas nao se retraem na vagueza da distan- cia. Nada presente pode mostrar-se em sua realidade, sem excluir a simultaénea presenga de um presente anterior e de um futuro, e as- sim um conjunto de coisas, ou de algo presente, é um contra-serr so.” Por isso “vivenciar uma coisa nao significa coincidir com ela nem atravessd-la inteiramente em pensamento’". Pois coincidir 27 Phw, 419/418. 28 PhW, 398/397. 29 PhW, 384/384. 30 Ibidem. 31 PRW, 376/376. MAURICE MERLEAU-PONTY 2 com a coisa vivenciada significaria tornar-se idéntico com ela, de certa forma dissolver-se nela; mas entao faltaria a distancia, a partit da qual nés a poderiamos conceber como algo que tem um sentido, um significado. “Vivenciar” (experimentar) nao expressa, pois, “co: incidir”, porém “garantir” as coisas “o espago oco, 0 espago livre que elas requerem”, para poderem aparecer como algo que tem sen- tido, que realmente pode ser entendido. Da mesma forma, 0 “viven- ciar” de um ente nao significa uma plena penetracao pensante, por- tanto uma suspensao, dentro da consciéncia pensante, de tudo o que ela é e do que nela e com ela existe, porque, neste caso, ela per- deria a transcendéncia e o fechamento de seu ser-em-si, seu sentido proprio e sua autonomia ontoldgica, coisas todas que pertencem ao sentido de um real experimentado. Esse “nem-sequer” de uma coin- cidéncia, na qual 0 “vivenciar” desaparece na coisa ou a coisa se dis- solve totalmente na consciéncia, é simultaneamente também um “tanto-como”: tanto coincidéncia na distancia, privada de finaliza- ao (“privativa nao-coincidéncia”), como também pensante percep- ao de sentido, mas fundamentalmente limitada, que respeita a coi- sa em sua transcendéncia. Toda a nossa experiéncia corporalmente mediada manifesta essa duplicidade ou ambigiiidade: jamais somos apenas objeto, coi- sa, algo, e jamais somos apenas sujeito, consciéncia transparente para si mesma — e de outra parte: o ente nao é jamais apenas um constitutivo de uma consciéncia (transcendental ou divina), mas também jamais apenas puro em-si, encerrado em si. Experiéncia, co- nhecimento, compreensao do real sem sombreamentos e sem impe- netrabilidade, é impossivel, porque nenhuma reflexao, por mais es- forgada que seja, pode superar a impenetrabilidade da duragao que se insere entre uma existéncia vivida e sua contemplagao reflexiva. A ambigiiidade do tempo esta fundada na ori-ginaria [wr-spriin- glich] dissociag&éo de presente e passado e futuro, que constante- mente se realiza como “sintese de passagem” e que é a especifica realizagéo de nossa existéncia, de nossa vida, nosso corpo e nossa 32. VI, 138/137. 236 ERICH CHRISTIAN SCHRODER consciéncia: “A perspectiva temporal, a confusao da distancia tem- poral, essa espécie de ‘murchamento’ do passado, cujo limite é 0 es- quecimento, nao sao acasos da memoria, nem expresso da degra- dacdo de uma consciéncia do tempo, em principio total em sua con- cretizacao empirica, porém expressao de uma ambigiiidade inicial: conservar é manter, mas a distancia. Novamente: a ‘sintese’ do tem- poéuma sintese de passagem, o movimento de uma vida em desdo- bramento, e ela absolutamente nao deve ser realizada senao por meio da vida desta vida; nao existe um lugar do tempo, o tempo é ele mesmo, que carrega a si mesmo e sempre de novo se apreserr ta”.” Mas isso significa: “A temporalidade nao é uma existéncia in- ferior. E antes o ser objetivo que nao é plena existéncia”." A reflexao, que segundo Merleau-Ponty é realmente radical e co-reflete sua propria fungao, s6 pode “desarticular” a fé ingénua e objetivante do mundo, “para ver 0 mundo, ... ela deve buscar nela propria o mistério de nossa vinculagao perceptivel a esse mundo, ela deve usar para isso as palavras, para dizer essa vinculagao pré- l6gica (i.¢é, apontar para ela), ela deve submergir no mundo, em vez de domina-lo..., ela deve interrogar o mundo...” Assim se mencio- na como a finitude de nossa compreensao do ser, que consiste na inevitavel retengdo da coincidéncia realizada, significa, sim, uma li- mitacao: mas ver nela algo que deveria ser superado repousa num desconhecimento do fato de que ela é, simultaneamente, a possibili- tacao de toda a abertura do ser e de toda a nossa abertura para o ser. 33 PhW, 483s. /481 34 PAW, 383/383. 35 VI, 61/61. MAURICE MERLEAU-PONTY 27 IV Talvez as precedentes explanacées tenham ao menos levantado a suspeita de que em Merleau-Ponty se delineia uma nova compre ensao de filosofia, segundo a qual a verdade ja nao seria uma con cordancia exeqiiivel entre o pensamento e 0 ser, estabelecida trans- cendental e subjetivamente, com base na qual o pensamento pode- ria assumir a dominagao sobre o ente, porém “privativa nao-coinci- déncia”, uma relagao muito indireta, “lateral” e precaria entre pen- samento e ser, que seria capaz de dar um fim ao sonho de um domi- nio universal pelo saber, em face da riqueza em articulacoes do ser, em dimensées da experiéncia do ser, e em vista da “impenetrabili- dade do mundo”, que jamais pode ser plenamente esclarecida. Mas isso nao significa que Merleau-Ponty quisesse frear ou afastar as ciéncias que ensinam a manipular 0 real. Ele também nao subscreveria a frase de Heidegger: “Pensar em meio as ciéncias sig- nifica: passar ao lado delas, sem despreza-las”.” Ele antes se dedica intensivamente a elas e disso toda a sua obra da testemunho. E ver- dade que ele o faz, para rastejar 0 contato com o “ser nao trabalha- do”, 0 que sem dtivida também pode resultar para o pensamento cientifico, embora este nem sequer 0 pretenda, mas também, para relativizar a visao cientifica sobre as coisas, como derivada de uma experiéncia do ser originariamente indireta, possibilitada pela re- tencao da coincidéncia. Com isso ele naturalmente também queria contestar a racionalidade cientifica, de que ela pudesse ser a tinica legitima administradora de nossas relagdes de conhecimento com a realidade. Em O olho ¢ 0 espirito, Merleau-Ponty diz que a postura cientifica, segundo a qual a praxis construtiva da pesquisa se apre- senta como auténoma, nao tem nenhuma sensibilidade para a “im- ‘6M. Heidegger, Holzwege [Caminhos do campo, Frankfurt a. M., 1950, 195; ago- ra também: ed. completa, vol. 5, ed. por F.-W. Herrmann, Frankfurt a. M., 1977, 212. 238 ERICH CHRISTIAN SCHRODER penetrabilidade (opacidade) do mundo”.” Ela toma a realidade como mera positividade objetiva e talvez seja nisso a maior herdeira da tradic&o filos6fica da Europa. Ela age como se nao existisse nossa insergéo no mundo anterior ao pensar, que por primeiro também ainda possibilita a mais objetiva abstragéo. O pensamento das cién- cias é um “pensamento de sobrevéo (pensée de survol), um pensa- mento do objeto enquanto tal’.” “Dizer que o mundo, de acordo com a definigao, é 0 objeto X de nossas operagées, significa absoluti- zar a situagao de conhecimento das ciéncias, como se tudo 0 que era e é, 86 fosse determinado para 0 laboratério.”” Merleau-Ponty res- peita as ciéncias devido a sua eventual embora nao intencional pe- netracao até o ser, mas ele relativiza suas pretensdes de poder defi- nidor e procura atuar contra a perigosa tendéncia, de “o pensamen- to” se “reduz(ir) decididamente ao conjunto das técnicas de con- quista e apropriacao, que ele inventa”.” —— Se Husserl tentara enfrentar a crise da racionalidade cientifica, que se tornava ameagadora para nosso mundo humano, por uma racionalidade filos6fica fundante absoluta, dominando-a dessa for- ma, 0 que sem dtivida suporia que nossa razao filos6fica poderia coincidir com a da origem constituinte; Merleau-Ponty, com base em suas investigacdes na perspectiva fenomenolégica de uma “per- cepcao, que nao quer dominar”, entende razao j4 nao mais como a unica e sempre igualmente constitutiva, que poderia ser encontrada em qualquer lugar — numa natureza divina, nas estruturas de uma subjetividade transcendental, na linguagem, na historia -, porém como um sentido-de-praxis precario, plural, finito, o qual em toda a parte somente pode ser trabalhado, por nés humanos, para dentro do mundo e que tem a estrutura de nosso dia-logos, que pode ser exitoso, mas também fracassar. OE, 196/13. Ok, 194/14. Ibidem. OE, 193/13. MAURICE MERLEAU-PONTY 239 Pode-se supor que eu expus a perspectiva de Merleau-Ponty de modo demasiado positivo, demasiado “acritico”; mas talvez tal simplificacao seja perdoavel para uma explanagao introdutoria, que também pode fazer um pouco de propaganda em favor de um pen- sador, que injustamente ja nao é tao atual. Naturalmente houve de- senvolvimentos no pensamento do filésofo e com eles também osci- lagdes, becos sem saida e atalhos. Mas nao é possivel apresentar tudo isso num espaco pequeno. Foi minha intengao indicar a orien- tagao basica desse questionamento original e algo da fascinacao dessa “fenomenologia nas fronteiras da filosofia da subjetividade”, sem poder entrar em investigacdes particulares, nas quais se encon- tra a especifica contribuicgao e todo 0 colorido e novidade deste pen- samento. Talvez eu tenha decepcionado alguma expectativa, que gostaria de ter visto Merleau-Ponty tratado como “fenomendlogo da corporeidade” ou como “existencialista”, ou como “estruturalis- ta” avant Ia lettre. A mim pareceu mais Util para a ocasiao esbogar, numa primeira abrangéncia, sua perspectiva e postura basicas. Relevancia de peso e sempre atual dessa filosofia eu a vejo no fato de que, e como, ela mostrou que a fenomenologia, por causa da impossibilidade de satisfagdo de suas intencdes originarias teéri- co-constitutivas, deve transformar-se numa hermenéutica da expe- riéncia ~ e que ela, nesse novo caminho da explicacao do ser, pene- trou em profundezas ainda nao esgotadas. Merleau-Ponty pés ante os olhos, de que modo, numa conversao de direcées tradicionais de reflexao, por meio de todo 0 sentido ja fixado, pode-se procurar pelo encontro com o “ser ainda nao elaborado” e nao objetivavel. E que também se pode preservar o mundo, que pela praxis surge, mas nao € feito e jamais disponivel, de ser interiorizado como um simples cosmo, de sentido apenas pensado e com isso suspenso (no sentido de tornado demasiado facilmente — demasiado facilmente manipu- lavel), de ser dissolvido em mera fenomenalidade para um sujeito cle proprio ja abstrato — para, por conseguinte, manter perceptivel o peso de seu “indice de facticidade”, sem que nao pudesse ser alcan- cada a sempre almejavel racionalidade de nossa praxis vital huma- na. 240 ERICH CHRISTIAN SCHRODER Merleau-Ponty tornou claro que e por que toda a positivida- de, seja a da experiéncia cotidiana, seja a da aristotélica, ou também a da experiéncia cientifica moderna, deve sempre ser de novo fundi- da. “O que perfaz 0 filésofo”, disse ele em sua palestra de posse no Collége de France, “é o movimento que conduz incessantemente do saber ao nao saber, do nao saber ao saber, e uma certa tranqiiilidade nesse movimento.” Isso significa: 4 experiéncia observadora (ou contempladora) é “restituido aquele componente de negatividade e a ambigiiidade, sem o qual ela seria cega””. Breve bibliografia de Merleau-Ponty La structure du comportement (1942), 7a. ed., Paris, 1972. Die Struktur des Verhaltens, trad. e introd. por B. Waldenfels, Berlim-Nova York, 1976. Phénoménologie de la perception (1945), Paris, 1972. Phinomenologie der Wahrnelmung, trad. e introd. por R. Boehm, Berlim, 1966 (Sigla: PhW,). Signes, Paris, 1960. Le visible et l'invisble - suivi de notes de travail, texte établi par C. Lefort, Paris, 1964. Das Sichtbare und das Unsichtbare - gefolgt von Arbeitsnotizen, ed. por C. Lefort, trad. por R. Giuliani e B. Waldenfels, Munique, 1986 (na série: Ubergange, ed. por R. Grat- hoff e B. Waldenfels, vol. 13) (Sigla: VI). La prose du monde, texte établi et présenté par C. Lefort, Paris, 1969. Die Prosa der Welt, ed. por C. Lefort, trad. por R. Giuliani, introd. por B. Waldenfels, Munique, 1984 (na série: Ubergiinge, ed. por R. Grathoff e B. Waldenfels, vol. 3). 41M. Merleau-Ponty, Eloge de Ia philosophie, Paris, 1953 e 1960, 11; trad. alema in: ibid., Vorlesungen 1, trad. e introd. de A. Métraux, Berlim-Nova York, 1973, 16. 42 Ibidem, 29/26. MICHEL FOUCAULT Saida do pensamento Bernhard Waldenfels “’Qualquer um fala’, mas 0 que ele diz, ele nao o diz a partir de qualquer lugar”, assim se expressa Foucault com as meias palavras de Beckett.’ Quem, dessa forma, vincula 0 quem ao onde do falar, subscreve-se a um anonimato, que nao pode ser ampliado, nem para a singularidade de individuos auténomos, nem para a univer- salidade de uma razao oniabrangente. O que esta por tras das co- nhecidas declaracdes de morte: Deus esta morto, o homem esta morto, 0 autor esta morto..., 6 a rentincia a toda e qualquer centrali- dade, seja ela a de uma saida ou de um retorno. Quem capta a pala- vra, o faz “além de qualquer possivel comego”.’ Ele 0 faz, enquanto se introduz em cadeias e campos de redes, que permitem dizer algu- mas coisas e outras nao. Quem quer conquistar ouvidos, deve assu- mir posig&éo sob condigdes que ele nao domina. Isso certamente é uma rentncia a 0 sujeito, aa raz4o, mas certamente nao uma simples AS, 161/178 (A cifra antes do traco diagonal designa o ntimero de pagina da edi- ao original francesa, a que esta depois do traco diagonal, o da trad. alema. - Cf. breve bibliografia.) O teor das palavras da tradugao, aqui, como em outros ca- sos, foi precisado de acordo com a necessidade. Cf. mais adiante: O que é um au- for?, uma conferéncia de 1969, reimpressa in: M. Foucault, Schriften zur Literatur, Frankfurt a. M. - Berlim ~ Viena, 1979. Cf. 0 comeco da Conferéncia de posse: L’ordre du discours, Paris, 1971; trad. ale- ma: Die Ordnung des Diskurses, Frankfurt ~ Berlim ~ Viena, 1977.

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