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Proeesso Penal e Democracia Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Constituigao da Republica de 1988 Geraldo Prado Diogo Malan aM TET OSC eae Ole ome Beni Peete ecg te André Luiz Nicolitt eM ee eMC e ec ea en acd Rona rented Rent cai) ee er eg elie Ppiceten uo Ket pee a el oren rmeeg fev Ce keer itg corer eN arte Rene Cua MR MMS Wrenn an ice Ket ae) Penn Ira ike s Wer Kee Cer) Peo a es ery PERS Re ct eRe eam fer pokes enemy De ACC Ret te REMMI DCM sz wet Ree Co Cm nicy Renoir iene een ec) Rubens R R Casara Salo de Carvalho Senta celta REI rere Mets eM Rete) Siem erat) P Lumen Juris|Editora O Fim da Farsa da Presungao de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitorio? STF, HC 91.232/PE, Min. Eros Grau Alexandre Morais da Rosa* “A parandia é a certeza para um sujeito de ter o saber da verdade, da verdade absoluta.” Charles Melman I. Para situar a questao 1. Santo Agostinho narra, em suas “Confiss6es”,! algo que pode situar o didlo- go a partir das desventuras de Alipio: “Alipio, pois, passeava diante do tribunal, sozi- nho, com as tdbuas e o estilete, quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrao, levando escondido um machado, sem que Alipio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dos banqueiros, e se pds a cortar o seu chumbo. Ao ruido dos gol- pes, os banqueiros que estavam embaixo alvoragaram-se, e chamaram gente para prender o ladrao, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o vozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para nao ser preso com ele. Ora, Alipio, que nao o vira entrar, viu sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém, saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e se pés, admirado, a examind-lo. Bem nessa hora che- gam os guardas dos banqueiros e o surpreendem sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes, alarmados, haviam acudido. Prendem-no, levam-no e gloriam-se diante dos inquilinos do fato por ter apanhado o ladrao em flagrante, e j4 0 iam entregar aos rigores da justi¢a.” Onde fica a presuncao de inocéncia na prisao em fla- grante? Existe, de fato, processo penal nesses casos? Tudo nao passa de um jogo de cena? Enfim, até que ponto a “Inocéncia” pode ser levada? Como isso funciona depois de mais de 20 anos de Constituicao? Articular a resposta parece ser o desafio. 2. Presumir a inocéncia,? no registro do Cédigo de Processo Penal em vigor, é uma tarefa herculea, talvez impossivel, justamente pelos condicionamentos que o * Pés-Doutor em Direito (Faculdade de Direito de Coimbra e UNISINOS). Doutor em Direito (UFPR). Mestre em Direito (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIVALI (SC). Membro do Nucleo de Direito e Psicandlise da UFPR. Juiz de Direito (SC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com. SANTO AGOSTINHO. Confissées. Trad. J. Oliveira Santos. Sao Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 130-131 2 Quando Geraldo Prado convidou-me para escrever nesta coletinea de artigos sobre os 20 anos da Constituicao da Republica e o Processo Penal, indicou-me o tema da “Presungao de Inocéncia”. Confesso que fiquei um tanto quanto desapontado com 0 contetido, pois me pareceu, de plano, que nao ha muito mais coisa a se falar sobre o “Principio da Presungao de Inocéncia” do que 0 que ja foi bem-dito por muitos, embora haja um déficit de efetividade na pratica forense de todos os dias. Ledo engano! Ao me debrucar so- Alexandre Morais da Rosa lugar estabelecido para o juiz, na estrutura, impde. Com efeito, a “Presungio de Inocéncia”, embora com alguns antecedentes histéricos, encontrou reconhecimento na Declaragao dos Direitos do Homem, em 1789, seu marco ocidental, segundo 0 qual se presume a inocéncia do acusado até prova em contrario reconhecida em sen- tenca condenatéria.3 Neste sentido a Constituigao da Republica — CR, em seu art. 5°, inciso LVII, disp6s: “Ninguém serd considerado culpado até o transito em julgado de sentenga penal condenatéria.” Mesmo que se possa exclusivamente discutir a com- patibilidade desse dispositivo com a prisao cautelar, no caso, pretende-se seguir outro caminho nao excludente: o de entender qual o motivo porque, desde a matriz, © pensamento esté condicionado pelo modelo de pensar inquisitério, partindo de duas pontuacées. IL. A pontuagaéo Hermenéutica 1. A primeira 6 hermenéutica. Ainda que a ciéncia se constitua como um dis- curso aparentemente completo, desde a mirada da Filosofia da Linguagem,‘ pode- se dizer que a causalidade dos princfpios é da ordem do Real, eis que inexistem con- dig6es de enunciagao de alguma relagao de causalidade classica (causa e efeito), mas 0 encontro com o impossivel, com a falta: “Todos sabem que, para estruturar cor- retamente um saber, é preciso renunciar 4 questao das origens.’> Logo, os princi- pios estao na beira do Real de Lacan ~ aquilo que nao cessa de nao se escrever -, sendo, assim, impossivel de ser dito no todo. Na origem esté um mito, dado que é impossivel dizer, apontar, de fato, como tudo comegou. Atribui-se um principio para dar conta da largada de significantes. A esséncia da esséncia da linguagem ¢ da ordem do impossivel; nao se tem acesso, definitivamente, salvo pela transcendén- cia Metafisica e/ou Imagindria. Por isso, quando Kant6 articula a nogao de Sistema o faz a partir de um principio capaz de catalisar, por seu vazio iluminado, como palavra, o sentido que se articula, ao depois. O principio surge, entao, da impossi- bre o tema a coisa mudou de figura justamente porque ~ arrisco dizer ~ o “Principio da Presungio de Inocéncia”, conforme preconizado pela Constituigao da Republica e aplicado pelo senso comum teérica (Warat), 6 uma grande farsa! 3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razén. ‘Teoria del garantismo penal. ‘Trad. Perfecto Andrés Ibatier et. al. Madrid: Trotta, 2001, pp. 549-551; STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convengio americana sobre direitos humanos e sua integracio ao proceso penal brasileiro. Sio Paulo: Revista dos Tibunais, 2000 GRANDINETTI, Luis Gustavo; CARVALHO, Castanho de. Processo penal e (em face da) constituigao: prin- constitucionais do processo penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; BIZZOTTO, Alexandre; RODRIGUES, Andreia de Brito, Processo penal garantista: visio constitucional e novas tendéncias, Goiini: AB, 2003, p. 51 4 WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigagées filoséficas. Trad. José Carlos Bruni. Sio Paulo: Nova Cultunl, 1999. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 5 LACAN, Jacques. O semindrio: o avesso da psicanilise. Trad. Ari Roitman. Rio de Janeiro: jorge Zahar, 1992. (Livro 17), p. 16 6 KANT, Emmanuel. Critica da razio pura. Trad. J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000 O Fim da Farsa da Presungdo de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitério? STF, HC 91.232/PE, Min. Eros Grau bilidade de dizer 0 todo.7 Miranda Coutinho resgata a visio de princfpio (do latim, principium) como sendo 0 inicio, origem, causa, génese, entendido como motivo conceitual sobre o qual se funda, por metonimia, a cadeia de significantes,8 poden- do estar positivado (na lei) ou nao. 3. Conquanto este momento primevo seja impossivel, porque a verdade é muito — no inicio era o Verbo -, tal regresso se mostra absolutamente necessdrio, mesmo que seja um mito; mito necessdrio para o mundo da vida.? Consoante afirma Miranda Coutinho: “Nesta parca dimensao, 0 mito pode ser tomado como a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, nao pode ser dito.” Eo mito, uma vez instalado, reproduz um efeito alienante por parte dos atores juridicos, caso nao se o desvele como tal, isto é, como uma nao-realidade que sustenta a reali- dade. Por outras palavras, nao é a causa do principio que esta ausente, mas sua expli- cacdo que se encontra permeada pela falta, pelo inexplicavel onticamente, valendo a descricao de Pessoa: “O mito é 0 nada que é tudo. "10 4. Apesar de nenhum ator juridico duvidar da preponderancia da Constituigao sobre normas de hierarquia inferior, sua ineficacia é patente, dado que existe certo 7 MARQUES NETO. Agostinho Ramalho. Sobre os fundamentos da ética: da filosofia & psicanilise. In: Céfiso ~ Revista do Centro de Estudos Freudianos de Recife, Recife, n. 14, p. 95, 1999: “Aquela suposigao bisica, aquele fundamento primeiro, aquele primeiro princ{pio nao pode, todavia, ser ele praprio objeto de conhe cimento racional, pois nao pode ser demonstrado.” 8 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Introducao aos principios gerais do processo penal brasileiro. I: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 30, pp. 163-164, 1998. “Por evidente, falar de motivo conceitual, na aparéncia, ¢ nao dizer nada, dada a auséncia de um referencial semantico perceptivel aos sen tidos. Mas quem disse que se necessita, sempre, pelos significantes, dar conta dos significados? Ora, nessa impossibilidade é que se aninha a nossa humanidade, nao raro despedagada pela arrogincia, sempre imagi: naria. de ser 0 homem o senhor absoluto do circundante; e sua razio o summum do seu ser. Ledo engano! embora nao seja, definitivamente, o caso de desistir-se de seguir lutando para tentar dar conta, 0 que, se nao servisse para nada, serviria para justificar 0 motivo de seguir vivendo, o que nao é pouco, diga-se en passant,” 9 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Introdugao aos principios gerais do proceso penal brasileiro, pp. 164-165: "De qualquer sorte, nao se deve desconhecer que dizer motivo conceitual, aqui, ¢ dizer mito, u seja, no minimo abrir um campo de discussio que nao pode ser olvidado mas que, agora, no ha como desvendar, na estreiteza desta singela investigacdo. Nao obstante, sempre se teve presente que hi algo que as palavras nao expressam; nao conseguem dizer, isto é, hi sempre um antes do primeiro momento; um Jugar que é, mas do qual nada se sabe, a nao ser depois, quando a linguagem comega a fazer sentido, (..) Dai © big-bang a fisica moderna; Deus & teologia; o pai primevo a Freud e a psicanilise; a Grundnorm a Kelsen € um mundo de juristas, s6 para ter-se alguns exemplos, © importante, sem embargo, & que, seja na ciéncia, seja na teoria, no principium esté um mito; sempre! $6 isso, por sinal, ja seria suficiente para retirar, dos impertinentes legalistas, a muleta com a qual querem, em geral, sustentar, a qualquer prego, a seguranga ju- ridica, s6 possivel no imaginario, por elementar o lugar do logro, do engano, como disse Lacan; ¢ af esti 0 direito, Para espacos mal-resolvidos nas pessoas ~ ¢ veja-se que o individual esta aqui e, portanto, todos ~, ‘o melhor continua sendo a terapia, que se ha de preferir as investidas marotas que, usando por desculpa o juridico, investem contra uma, algumas, dezenas, milhares, milhdes de pessoas. Por outro lado ~ ¢ para nés isso ¢ fundamental ~, depois do mito ha que se pensar, necessariamente, no rito, Jé se passa para outra dimensio, de vital importancia, mormente quando em jogo estdo questio referentes ao Direito Processual ¢, em especial, aquele Processual Penal.” 10 PESSOA, Fernando. Poesias, Trad. Fernando Antonio Nogueira Pessoa, Porto Alegre: L&PM, 1996, p. 8. Alexandre Morais da Rosa gimento em nio se saber lidar com principios, quando em choque com regras, confundidas corriqueiramente com normas, A diferenciagio entre texto ¢ norma (Cordero),"! na interpretagio, & pressuposta e indispensdvel, De qualquer forma, é preciso despir se da visio meramente programatica ou informadora de suas proposigdes, reconhecendo-se a eficdcia cogente dos principios. Os atores juridicos entretanto, nio estado acostumados a lidar com principios, exigindo para o seu atuar 6 recurso imediato a regra juridica, como bem aponta Lenio Streck.!2 A incapacida de instrumental-pratica dos principios, portanto, fica prejudicada diante da forma cdo positivista-legalista — leguleio — que informa o senso comum terico dos juristas (Warat), com forte apropriagdo equivocada da racionalidade Weberiana, manifesta da pelo legalismo fetichista principios constitucionais, ciente de que, entre texto e norma, existe um intrincado asteiro, urgente, contudo, dar-se efetividade aos processo de atribuigio de sentido,'3 5. A segunda é da heranga inquistoria. O Proceso Penal estd situado numa estrutura que possui caracteristicas diversas ¢ se divide, historicamente, nos siste mas'4 Inquisitério ¢ Acusatério, surgindo contemporaneamente modelos que guar- dam caracteristicas de ambos sem que, todavia, possam ser indicados, no que se rele re 4 estrutura, como sistemas mistos.'5 Sio mistos por acolherem caracteristicas de 11 CORDERO, Franco, Guida alla procedura penale, Torino: UTET, 1986, pp. 17-18, 12. STRECK. Lenio Luiz, Verdade e Consenso. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2008, A tensio entee 0 texto eo sentido resultante da norma esteve banhado pela cisio sujeito/objeto, De um lado o sujeito universal, capat de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de esséniia, O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade, A estrutura era metafisica © herdads da Escolistica, A superacio do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinglo para os colocar ni campo tinico: a linguagem. A extragio da esséncia do texto desliza para o registro do Imaginario, contract nando com uma certa auséncia de mediagdo Simbslica decorrente da (de)formagio filos6tica dos atores jut dicos. FL impossivel a existéncia de um método universal, Por isso manipula-se (este & 0 termo) 6 métolo conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do pro cesso de compreensio latente, existente desde sempre, ¢ rejeitado por uma tradigho inauténtica do ditt, Para alcangar alguma sofisticagdo no campo juridico, como apontaram Lenio Streck ¢ Ernildo Stein, as eon tribuigdes de Heidegger e Gadamer sio fundamentais. Ao trazer a compreensio vinculada ao ser al, a pur tir das nogdes de circulo hermenéutico e diferenga ontoldgica, proporciona uma nova maneita de embat hermenéutico, Diz Streck: "Em outras palavras, antes de argumentar, o intérprete jd compreendew” 13. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de, Glosax ao ‘Verdade, Duvida ¢ Cortera’, de Frances Carnelutti, para os operadores do Direito, fn: Anusrio Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001-2002) Rio de Janeiro, 2002, pp. 177-182. 14 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de, Critica & Teoria Geral do Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 16-17: "Tenho a nogio de sistema a partir da versio usual, caleala na nogi et moldgica grega (systema-atos), como um conjunto de temas juridicos que, colocadas em relagio por ih principio unificador, formam um todo orginico que se destina a um fim, E fundamental, camo parece obvi, ser 0 conjunto orquestrado pelo principio unificador ¢ voltado para 0 fin ao qual se destina 15 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 2004; PRADO, Getallo Sistema acusatério: a conformidade constitucional das leis processuais penais, 3* ed, Rio de Janeiro Lusnen Juris, 2005; THUMS, Gilberto, Sistema processuais penais: tempo, tecnologia, dromologla, garantisino Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, © Fim da Farsa da Presungio de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitério? STF, HC 91.232/PE, Min, Bros Grau ambos os sistemas, sendo uma incongruéncia légica eventual denominagio de um terceiro género, consoante adverte Miranda Coutinho.!6 Isto porque a compreensio de sistema decorre da existéncia de um principio unificador, capaz de derivar a cadeia de significantes dele decorrentes, nao se podendo admitir a coexisténcia de principios (no plural) na origem do sistema, como ja apontado, Assim é que no Sistema Inquisitorio o Principio Inquisitivo marca a cadeia de significantes, enquan- to no Acusatorio é o Principio Dispositivo que lhe informa. E 0 critério identifica- dor é, por sua vez, o da gestao da prova. Sendo o Processo Penal uma atividade mar- cadamente recognitiva, de acertamento de significantes, a fixagao de quem exercera a gestao da prova e com que poderes se mostra indispensavel, no que ja se denomi- nou “bricolagem de significantes”.!7 No Inquisitério 0 juiz congrega, em relacao & gestao da prova, poderes de iniciativa e de producao, enquanto no Acusatério essa responsabilidade é das partes, sem que possa promover sua producao. De outra face, no Inquisitorio a liberdade do condutor do feito na sua produgao é praticamente absoluta, no tempo em que no Acusatorio a regulamentagao é precisa, evitando que o juiz se arvore num papel que nao é seu.!8 6. Cordero! demonstra os motivos pelos quais 0 modelo Inquisitério se desen- volveu, atendendo aos interesses da Igreja e de quem comandava a sociedade, em face da expansdo econémica, exigindo que o poder repressivo fosse centralizado, com atuacao ex officio, indepentendemente da manifestacao do lesionado. O juiz passa de espectador para o papel de protagonista da atividade de resgatar subjetivamente a verdade do investigado (objeto), desprovido de contraditério, publicidade, com mar- cas indeléveis no resultado, previamente colonizado. Assume, para tanto, uma “pos- tura parandica” na gestao da prova. Enfim, longe do fair play, diz Cordero: “Los inqui- sitores adelantan afanosamente luchas contra el diablo.”20 Barreiros deixa evidencia- da as caracteristicas de cada um dos sistemas. No modelo Inquisitério: a) o julgador é permanente; b) nao ha igualdade de partes, jd que o juiz investiga, dirige, acusa e 16 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Critica & Teoria Geral do Direito Processual Penal..., pp. 17- 18: “Salvo os menos avisados, todos sustentam que nao temos, hoje, sistemas puros, na forma classica como foram estruturados. Se assim o é, vigoram sempre sistemas mistos, dos quais, ndo poucas vezes, tem-se uma visio equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba recepcionado como um terceiro sis- tema, 0 que nao é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado ou napolednico é a conjugacio dos outros dois, mas ndo tem um principio unificador préprio (...). Por isto, sé formalmente podemos considera-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a nocio referente a seu principio unificador, até porque estd aqui, quiga, 0 ponto de partida da alienagao que se verifica no operador do direito, mormente 0 proces- sual, descompromissando-o diante de um atuar que o sistema esta a exigir ou, pior, nio o imunizando con- tra os vicios gerados por ele.” 17 ROSA, Alexandre Morais da, Decis&o Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 18 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Trad. Alexandra Martins. Sio Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 15-16: 19 CORDERO, Franco. Procedimento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogota: Temis, 2000, v. 1, pp. 16-90. 20 CORDERO, Franco. Procedimento Penal..., v, 1, p. 90. Alexandre Morais da Rosa julga, em franca situagio de superioridade sobre 0 acusado; c) a acusagao é de oficio, admitindo a acusagao secreta; d) é es rito, secreto e nao contraditério; e) a prova é legalmente tarifada; f) a sentenga nao faz coisa julgada; e g) a priséo preventiva é a regra. JA no modelo Acusatério: a) o julgador ¢ uma assembléia ou corpo de jurados; b) ha igualdade das partes, sendo 0 juiz um arbitro sem iniciativa investigatéria; c) nos delitos publicos, a agao é popular e nos privados, de iniciativa dos ofendidos; d) 0 pro- cesso é oral, publico e contraditério; e) a analise da prova se dé com base na livre con- vicgao; f) a sentenga faz coisa julgada; e g) a liberdade do acusado é a regra.2! 7. Dentro desta diferenciagao e considerando a indeclinibilidade da Jurisdigao, decorréncia do ‘principio da legalidade’, compete ao Estado organizar a maneira pela qual 0 Processo Penal tendente a aplicagao ~ ou nao ~ de alguma sangao se dard. A separacao das funcées do juiz em relacao as partes se mostra como exigida pelo “principio da acusacgao”, nao podendo se confundir as figuras, sob pena de violacao da garantia da igualdade de partes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acu- sa¢ao, violentada flagrantemente pela aceitagao dessa confusao entre acusagao e 6rgio jurisdicional. Entendida nesse sentido, a garantia da separacdo representa, de um lado, uma condigao essencial do distanciamento do juiz. em relagio as partes que € a primeira das garantias organicas que definem a figura do juiz (Ferrajoli), e, de outro, um pressuposto do énus da contestagao e da prova atribuidos a acusagao, que so as primeiras garantias procedimentais da jurisdicao. 8. A assuncdo do modelo eminentemente acusatorio, segundo Binder,?? nio depende do texto constitucional — que 0 acolhe, em tese, no caso brasileiro, apesar de a pratica 0 negar —, mas sim de uma “auténtica motivacién” e um “compromiso interno y personal’ em (re)construir a estrutura processual sobre alicerces democri- ticos, nos quais o juiz rejeita a iniciativa probatoria23 e promove o processo entre partes (acusacao e defesa).24 Isto porque a tradicao “Inquisitria” herdada solapa esta garantia, partindo da prévia contengao do agente que é ainda mero acusado, na melhor perspectiva da “Criminologia Positiva”, segundo a qual o desviante, dada sua periculosidade, deve ser objeto de atengao estatal, para evitar uma hipotetica viola- Go da sociedade, tudo em nome da “Defesa Social”. Apesar da impossibilidade fati- ca da extingao das “prisées cautelares”,25 6 possivel se defender que para sua decre- tagéo ou manutengio devem concorrer os requisitos legais para tanto, nao sendo 21 BARREIROS, José Antonio. Proceso Penal, Coimbra: Almedina, 1981, pp. 11-14. 22 BINDER, Alberto M. Iniciacién al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p.7 23 LOPES JR, Aury. Processo Penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008 PRADO, Geraldo. Limite as interceptagdes telefOnicas e a jurisprudéncia do Superior Tribunal de Justiga Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005 24 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourengo, Para um Processo penal democriico Critica 4 metistase do sistema de controle penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 25 FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democritica, Trad. Carlos Arthur Hawker Cost lo Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 12, pp. 31-39, 2002 O Fim da Farsa da Presungao de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitério? STF, HC 91.232/PE, Min. Eros Grau bastante a mera referéncia a capitulacao, em tese, da conduta, havendo necessidade inafastavel da demonstracao, fundamentada, de sua excepcionalidade.26 Nao serve, portanto, a mera transcri¢ao dos termos legais, devendo-se comprovar argumentati- vamente as condicées faticas de tal medida, nao se prestando também a mera gravi dade da infragao imputada,?7 0 clamor publico?’ e os antecedentes.2° A garantia da “presuncao de inocéncia” precisa ser levada a sério, evitando-se prisdes anteriores ao julgamento definitivo, sob pena de se transformar a “presuncao de inocéncia a um inutil engodo, demonstrando que o uso deste instituto, antes ainda de um abuso, é radicalmente ilegitimo e além disso apto a provocar, como a experiéncia ensina, 0 esvaecimento de todas as outras garantias penais e processuais” 30 9. A tentagao “criminolégica” de “Defesa Social”,3! ou seja, de julgar 0 acusado e nao a hipotética conduta, escorrega — via (in)consciente ~ na cadeia de significan tes previstos na lei, até poque a legislagao utiliza-se de termos claramente ‘vagos’ ¢ “ambiguos” para acomodar matreiramente em seu universo semantico qualquer um, articulando-se singelos requisitos retéricos, valendo, por todos, a anemia semantica do art. 312 do CPP: ordem publica, ordem econémica, conveniéncia da instrugio criminal, assegurar a aplicacao da lei penal. De fato, aquele que conhece um pouqui nho da estrutura lingitistica pode construir artificialmente tais pseudo-requisitos, cuja falsificagao — pressuposto —, diante da contengao, sera inverificavel. Em outras palavras, se deferida a prisdo, os argumentos se desfazem. Afinal, 0 acusado estard 26 LOPES JR, Aury, Introdugio Critica ao Proceso Penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006 27 SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo legal. Sio Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 232: “Nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se Ihe imputa, deixe de merecer 0 tratamento que sua dignidade de pessoa humana exige.” 28 SANGUINE, Odone. A inconstitucionalidade do clamor piblico como fandamento da prisio preventiva. In SHECAIRA, Sérgio Salomao (Org,). Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva. Sig Paulo: Método, 2001, pp. 257-295. 29 BRASIL. Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul. Acérdao em apelagao criminal n, 70006140693, Relator Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, Porto Alegre. 12 de margo de 2003: “O ‘clamor piiblico’, a ‘intranqiiilidade social’ e 0 ‘aumento da criminalidade’ nao sio suficientes & configuragie do periculum in mora: so dados genéricos, sem qualquer conexio com o fato delituoso praticada pelo réu, logo no podem atingir as garantias processuais deste, Outrossim, o aumento da criminalidade ¢ o clamor piiblico sto frutos da estrutura social vigente, que se encarrega de os multiplicar nas suas proprias excrescéncias, Assim, néo é razoaivel que tais elementos ~ genéricos 0 suficiente para levar qualquer cidadio & cadeia ~ sejam valorados para determinar o encarceramento prematuro. ~ A gravidade do delito, por si sd, também nao justifica a imposicdo da segregacao cautelar, seja porque a lei penal ndo prevé prisio provisdria automatics para nenhuma espécie delitiva (e nem o poderia porque a Constituigio nao permite), seja porque nio desobriga o atendimento dos requisitos legais em caso algum. A unanimidade, concederam a ordem,” 30 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razao: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii, Sio Paulo Revista dos Tribunais, 2002, p. 445. 31 RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2002; NEPOMOCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentenga penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusdo da seguranga juridica: do controle da violéncia & violéncia do controle penal Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Alexandre Morais da Rosa preso e nao se poderao verificar os ditos motivos da prisao.32 De outro lado, as “pri- sdes obrigatérias”, “nos termos da lei”, violam expressamente a garantia da “presun- Gao de inocéncia”. Por fim, o magistrado, se assume a postura “eminentemente acu- satoria, jamais poder decretar a prisao de oficio.33 III. O sentido da Parandia no campo juridico 1. Em face da critica efetuada, a postura prevalente de interpretagao, via método, colmatadora da “epistemologia” herdada da Modernidade, nao pode ser mais acolhida trangiiilamente. Isto porque a visao da “Filosofia da Consciéncia’ atua com quadros mentais parandicos (Cordero), atendendo a seguinte dinamica: objeto — textos normativos — a frente, método nas maos, o intérprete do senso comum teérico dos juristas tem a certeza de que “a norma lhe diz, ele descobriu” ‘ou entao “ouviu a voz do Legislador, ele me disse”, 0 que, se ocorresse num set terapéutico, por certo seria enquadrado como parandia. O juiz, nesse pensar, sabe o que o Outro diz (por ser ele mesmo) e quer dizer com as normas juridicas, num delirio juridico que obtém aprovagao e legitimidade universal. Dito de outra forma, super-ego se fa(e)z carne pelo Verbo: o Real é possivel para ele. Esse qua- dro mental parandico ad-hoc (ela, a parandéia como uma das modalidades de psi- cose) pode apresentar, segundo Lacan,34 como caracterfstica essencial a foraclu- sao do Nome-do-Pai no lugar do Outro, experimentando-se delfrios de interpre- tagao, numa regressdo ao narcisismo e concentragao no gozo do Outro. Préximo 4 neurose e diferente da esquizofrenia, 0 parandico é a aderéncia ao significante 32 PINHO, Ana Cliudia Bastos de. Prisio Proviséria: cautelaridade ou banalidade. In: Revista de Estudos riminais, Porto Alegre, n. 03, pp. 84-90, 2001; AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan, A Reforma Proceso Penal no Brasil e na América Latina, Sio Paulo: Método, 2001, pp. 153-188. 33 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razfo.... p. 446: "A pergunta que devemos tornar a levantar ¢ entio sea cus tédia preventiva ¢ realmente uma ‘injustica necesséria’, como pensava Carrara, ou se, 20 invés, é apenas 0 produto de uma concepgao inquisitéria de proceso que deseja ver 0 acusado em condigio de inferioridade em relagio & acusacio, imediatamente sujeito a pena exemplar e, acima de tudo, nio obstante as virhuoss proclamages em contrario, presumido culpado. (...) Quais sio enti, se elas existem, as ‘necessidades'~€ nio as meras conveniéncias ~ satisfeitas pela prisio sem juizo? Jé falei sobre a manifesta incompatibilidae, reconhecida pela doutrina mais atenta, entre o principio da presungio de inocéncia (ou ainda s6 0 de nio culpabilidade) e a finalidade de prevencio e de defesa social, que inclusive depois da entrada em vigor da constituigio uma vasta fileira de processualistas continuou associando a custédia do acusado enquanto pre- sumido perigoso. Restam as outras duas finalidades: a do perigo de deterioragao das provas ea do perigo de fuga do acusado, jé indicadas por Beccaria e reconhecidas como iinicas justificagSes da doutrina e da juris prudéncia mais avancadas, Certamente ambos esses argumentos atribuem ao instituto finalidades estita mente cautelares e processuais. Mas ¢ isso bastante para consideré-los justificados? Sao as duas fnalidaes processuais, em outras palavras, realmente legitimas e, ainda, nio desproporcionais ao sacificioimposto pelo meio de as atingir? Ou, ao contrario, nao existem meios do mesmo modo pertinentes mas menos grr vosos tornando ‘desnecessério’ 0 recurso & prisio sem processo 34 LACAN, Jacques. O seminério: as psicoses. Trad. Aluisio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 (Livro 3). O Fim da Farsa da Presungao de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitério? STF, HC 91.232/PE, Min. Eros Grau Um35 ($1), 0 significante mestre do qual se encontra preso. Lacan aponta que o mecanismo esta retido na foraclus4o do Nome-do-Pai. Freud j4 havia afirmado que a parandia decorre da recriminacao a experiéncia de gozo que ao ser recorda- da traz consigo um desprazer. O significante do gozo, no “neurédtico obsessivo”, é seguido por uma auto-recriminacao que é recalcada, apresentando o sintoma pri- mério da escrupolosidade, formando o casal gozo-culpa. E eternamente culpado pelo encontro com 0 gozo, substituido por outros na cadeia de significantes, mas mantendo, contudo, a estrutura. Aparece em conseqiiéncia da representacdo no Simbélico da interdi¢gao primaria, do trilhamento edipiano.36 J4 na parandia nao existe a recriminacao, ou seja, nao esta inscrita a crenca no Nome-do-Pai, retor- nando como uma alucinagao sobre o sujeito, dado que preso sob o significante mestre é retido, nado deslizando na cadeia de significantes e, entao, o foracluido retorna ao Real. O desejo da mae nao é barrado, encontrando-se o sujeito aliena- do ao significante. Nesse lugar de Um, todos os demais significantes se referem a ele, tornando-se como diz Quinet: “O centro do mundo, aquele a quem todos se dirigem e com o qual todos sao hostis.(...) E nas relagdes com as pessoas que ele interpreta, delira. Em um ambiente hostil, querem persegui-lo. Muitas vezes sofre quieto, sem se queixar, s6 ruminando, até que, um dia, desenvolve um delf- rio.”37 No imbricamento entre o foraciuido e 0 Outro, surgem signos que sao sinais do Outro, no qual o sujeito projeta o ideal, na crenga de comprovar a cer- teza que lhe é pressuposta.38 2. Qualquer semelhanga com o Processo Penal e o Sistema Inquisitério, pois, nao € mera coincidéncia. O lugar do Juiz Inquisidor guarda carateristicas parandicas por exceléncia; Vossa Exceléncia diz a verdade projetada desde antes e retida no sig- nificante mestre, por esse sujeito que se acredita unico, tal qual Schreber. Com efei- to, diz Quinet, “o parandico que se acredita esse Um tnico pode querer encarnar 0 Outro para todos os outros — posigao que o aproxima do canalha. Presun¢oso, sabe o que é bom para os outros, como conduzi-los e como fazé-los gozar, seja do saber, seja da vida eterna ou do paraiso”.39 Mas nao adianta buscar salva-lo da armadilha do fenémenos. Rio de Janeiro: Rio Ambiciosos, 2002, pp. 11-25. 36 QUINET, Antonio, O numero um, o tnico... p. 15: “E 0 que aparece com clareza quando colocamos a mae no lugar do encontro com 0 sexo e o pai como representante da lei. Temos, por um lado, a estrutura edipia- na do sintoma neurético e, por outro, a articulagao de dois significantes (a representagao da experiéncia de gozo e a recriminagao) que bastam logicamente para constituir a cadeia significante do inconsciente.” 37 QUINET, Antonio. O numero um, 0 unico... p. 17. 38 QUINET, Antonio. O numero um, o unico... p. 17; “A interpretacao delirante estabelece a significagao (querem me matar’) ainda suspensa no fenémeno inicial da auto-referéncia mérbida, no qual o sujeito é tomado de perplexidade diante do enigma desses sinais que vém do Outro. A interpretacao delirante (S2) restabelece a cadeia significante, partida como efeito da foraclusio do Nome-do-Pai, articulando-se ao $1 ao qual esta fixado o sujeito ~ $1 que pode ter sido soprado por uma voz ou inventado por ele mesmo -, arrancando-o da perplexidade e jogando-o na certeza delirante.” 39 QUINET, Antonio. O numero um, o tinico... p. 18. Alexandre Morais da Rosa aprisionamento do desejo, porque a “Instituigao” se apoderou de seu discurso e ele, como responsavel por extirpar o mal da terra, encontra-se alienado.40 Afirma Legendre: “O inquisitor realiza mecanicamente sua fungao, trazendo pela instituigao uma Salvagao; néo é sensato zombar dele, pois ele ndo pode ouvir nem entender a critica."*1 Nao é mais ele, mas 0 cumpridor de uma tarefa social importantissima, tal qual Eichmann, cooptado pelo discurso (nazista) do amor-ao-poder. A adubacao Imagindaria é perfeita e sutil, manipuladora da posigao e da verdade dai resultante. Logo, a pretensao de construir uma ciéncia formal, materializada pela dogmatica juridica e sua pretensao de uma hermenéutica unitaria, desta feita, é arrostada pela interseccao pela psicandlise, desnudando a co-produgao do insconsciente nese ins- crever. Quem pensou a estrutura soube muito bem em que local colocar o Juiz, lugar reiterado pelas reformas parciais, empurrando-o para este local parandico. Debrucando-se sobre o lugar do Juiz no Processo Penal, Cordero jé havia constata- do este quadro: “EF! inquisidor labora mientras quiere, trabajando en secreto sobre los animales que confiesan; concebida una hipotesis, sobre ella edifica cdbalas inducti- vas; la falta del debate contradictorio abre un portillo Iégico al pensamiento para- noide; tramas alambicadas eclipsan los hechos. Duenio del tablero, dispone las piezas como le conviene: la inquisicién es un mundo verbal semejando al onirico; tiempos, Jugares, cosas, personas, acontecimientos flucttian y se mueven en cuadros manipu- lables. (...) Juego peligroso, pues el escribiente redacta com libertad, selectivamente atento a sordo a los datos, segtins que convaliden o no la hipotesis; y siendo las pala- bras una matéria plastica (los acusados las lanzan como torrentes), cualquier conclu- sién resulta posible; el estro poético desarrolla un sentimiento nascisista de omnipo- tencia, el el cual desaparece cualquier cautela de autocritica. "2 3. No campo juridico brasileiro, cuja estrutura propicia esse “estado ad-hoc’, os magistrados ~ de regra — incorporam a fungao da lei do Outro e tém a certeza dessa verdadeira missao, muitas vezes, de extirpar o “mal” da terra, informados pelo dis- curso positivista e neoliberal reproduzido pela “Midia" da “Lei e Ordem”.43 Sustenta Lacan: “Acreditam nisso para valer, ainda que através de uma consideragao superior de seu dever de encarnar uma fungao na ordem do mundo, pela qual elas assumem bastante bem a imagem da vitima eleita."# Projetam-se no ideal por mandato do 40 SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma historia secreta da modernidade. Trad. Vera Ribeiro Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 8: “O parandico ¢ 0 ditador sofrem de uma doenga do poder, que implica uma vontade patolégica de sobrevivéncia exclusiva e uma disposigdo ou mesmo um impulso concomitantes de sacrificar 0 resto do mundo em nome dessa sobrevivéncia.” 41 LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Trad. Aluisio Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 28. 42 CORDERO, Franco, Procedimento Penal..., v. 1... p. 23. 43 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: uma leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro Lumen Juris, 2001, p. 25: “O inquisidor, representante divino, ¢ érgio de acusaao e julgamemo, figura sab a qual ndo podem pairar dubiedades, ou seja, trata-se de ente ‘semidivino’ cuja atividade nao admite o dissenso, pois, em ultima anilise, colocar-se-ia em duivida a prépria figura onipresente ¢ perfeita do Todo Poderoso." 44 LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: jorge Zahar, 1998, p. 152 10 O Fim da Farsa da Presungdo de Inocéneia no Sistema (ainda) Inquisitério? STE, HC 91,232/PE, Min, Eros Grau Outro e tém a certeza de serem; 0 Imaginario é atravessado e aparece no Real, eles nao tém a diivida do sujeito neurdtico clivado, eles sio 0 Um, 0 ideal dos outros, impondo dai seu modelo, suas verdades, c 0, como se deu com a falacia desenvol vimentista da Modernidade denunciada por Dussel.45 Dentro de sua normalidade de fachada, projeta-se no outro, nao sendo raro condend-lo, diz Miranda Coutinho: “A anormalidade, todavia, pode aparecer, como de fato aparece, quando alguém quer resolver seu problema pessoal projetando a solugao na desgraga alheia, 0 que nao é incomum em nossos dias.”46 De sorte que a estrutura “parandica”, no Processo Penal, aparece sutilmente, eis que encoberta por recursos retéricos ordenados,’? tanto na assuncgao de uma postura inquisitéria na gestao da prova, quanto na interpretagao da conduta, Com efeito, nesse movimento de auto-referéncia, na instrugdo probatéria tudo se refere a ele (Juiz Inquisidor),48 seja um olhar do acusado, uma palavra ambi- gua da testemunha, um olhar perdido, ¢ tido como algo que nao aconteceu por acaso e refere-se a ele, e ai... ¢ ai... condena-se, manejando-se recursos retéricos, Afinal, o Juiz agindo por mandato do Outro possui o poder formal de dizer a verdade no caso em julgamento. Mesmo que seja um “neurotico”, “obsessivo”, “esquizofrénico” no mundo da vida extrajuridica (se é que é possivel), pelo menos nesses dois momen- tos pode assumir uma postura parandica, agravada se partidario de movimentos de recrudescimento da repressio, como “tolerancia zero”, “Lei e Ordem”.49 IV. A recusa possivel 1. Legendre, sobre o locus, assevera: “Nenhum jurista pode fazer nada quanto a isso e pouco importa que ele saiba; ele ocupa seu quadrado, seu jardim fechado, hor- tus conclusus, dizia de maneira excedente o texto medieval.”"50 Ainda que se esteja nesse local-processual, existe uma tarefa inafastavel de democratizagao do Processo Penal brasileiro que passa pela modificagao da postura “parandica”, cujo prego ¢é 45 JL, Enrique. Etica da Libertagio; na idade da globalizagio e da exclusio, Trad, Epharaim Ferreira s, Jaime A. Clasen e Liicia M. E, Orth. Petropolis: Vozes, 2002 46 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de, Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um problema as reformas processuais, In: JURISPOIESIS ~ Revista Juridica dos Cursos de Direito da Universidade Esticio de Sa. Rio de Janeiro, ano 4, 1. 5, pp. 31-36, 2002. 47 BRUM, Nilo Bairros de, Requisitos retéricos da sentenga penal, Sio Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. 48 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale..., p. 52: " nistico economia verbale tipica del formalismo ago~ accusatorio l'inquisizione oppone parole a diluvio: inevitabile qualche effetto ipnotico-vertiginoso- alucinatorio; fatti, tempi, nessi, svaniscono nel caleidoscopio parlato; nessun processo finirebbe mai se chi lo ordisce a un dato punto tagliasse il filo; ¢ lo fa quando voglia, preché ha mano libera.” 49 CORDERO, Franco. Procedimento Penal... v. 1.... pp. 22-23: “Provisto de instrumentos virtualmente irre sistibles, el inquisidor tortura a los pacientes como quiere; dentro de su marco cultural pesimista el animal humano nace culpable; estando corrompido cl mundo, basta excavar en un punto cualquiera para que atlo re el mal. Este axioma elimina todo escrtipulo en la investigacién.” 50 LEGENDRE, Pierre. O amor do censor... 35 Alexandre Morais da Rosa assumir um lugar humano, pagando 0 respectivo prego, a saber, de renunciar o lugar do canalha, do que sabe “a” verdade e o que é “melhor” para a sociedade.5! 2. Por isto a importancia de um precedente recente, do Supremo Tribunal Federal (STF), da relatoria do Ministro Eros Grau (HC 91232/PE - PERNAMBUCO, j. 06.11.2007, 2* Turma), no qual, até que enfim, deu-se sentido democratico ao pro- cesso penal e a presungao de inocéncia: 51 “HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXE- CUGAO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 52, LVII, DA CONSTITUIGAO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que “[o] recurso extraordinario nao tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do trasla- do, os originais baixarao a primeira instancia para a execucdo da sentenga”. A Lei de Execugio Penal condicionou a execugao da pena privativa de liberdade ao transito em julgado da sentenca condenatéria. A Constituicao do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5°, inciso LVII, que “ninguém ser considerado cul- pado até o transito em julgado de sentenga penal condenatéria”. 2. Dai a con- clusao de que os preceitos veiculados pela Lei n° 7.210/84, além de adequados a ordem constitucional vigente, sobrepdem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. Disso resulta que a prisao antes do transito em julgado da condenagao somente pode ser decretada a titulo cautelar. 4. A ampla defesa, nao se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases proces- suais, inclusive as recursais de natureza extraordindria. Por isso a execucio da sentenga apés o julgamento do recurso de apelagao significa, também, restricao do direito de defesa, caracterizando desequilfbrio entre a pretensio estatal de aplicar a pena e 0 direito, do acusado, de elidir essa pretensao. 5. A antecipacao da execucao penal, ademais de incompativel com o texto da Constituigao, ape- nas poderia ser justificada em nome da conveniéncia dos magistrados — nio do processo penal. A prestigiar-se o princfpio constitucional, dizem, os tribu- nais [leia-se ST] e STF] serao inundados por recursos especiais e extraordini- rios, e subseqiientes agravos e embargos, além do que “ninguém mais seré preso”. Fis o que poderia ser apontado como incitacao a “jurisprudéncia defen- siva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias consti- tucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF nao pode ser lograda a esse prego. 6. Nas democracias mesmo os criminosos sio sujeitos de direitos. Nao perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. Sado pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afit- MELMAN, Charles. Como alguém se torna parandico? Trad. Telma Queiroz. Porto Alegre: CMC, 2008p 13: "A parandia é a certeza para um sujeito de ter o saber da verdade, da verdade absoluta. Ea prova éque esta verdade que o sujeito possui ela ¢ capaz de reparar tudo o que nio vai bem na sociedade, tudo 0 que no vai bem no casal; 0 que faz com que seja um saber que se apresenta também como salvador.” © Fim da Farsa da Presungao de Inocéncia no Sistema (ainda) Inquisitério? STF, HC 91.232/PE, Min. Eros Grau macgao constitucional da sua dignidade. E inadmissfvel a sua exclusdo social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstancias, as singularidades de cada infragdo penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transi- tada em julgado a condenagao de cada qual Ordem concedida.” 3. Pode-se discorrer sobre muita coisa deste voto, o qual fala por si mesmo. Contudo, no que interessa para este artigo, cabe relevar que 0 processo penal, como garantia, precisa ser levado a sério, sob pena de se continuar a tratar a “Inocéncia” como uma figura decorativo-retérica de uma democracia em constante construcao e que aplica, ainda, um processo penal do medievo, cujos efeitos nefastos se mostram todos os dias.52 Por isto a necessaria superacao da farsa do Sistema Inquisitério! 4. Conta Warat que se todos acreditassem, piamente, no Papai Noel, na noite de 24 de dezembro nao haveria presentes a se distribuir. Ha necessidade de que pelo menos um saiba do embuste, do mito, da farsa, para que ele possa fazer sentido. Todos menos um precisa saber que ha um furo na totalidade natalina. Para além do velho noel algo rateia. Na presuncao de inocéncia do Sistema Inquisitério também. Nao se pode ficar como os mocinhos dos filmes, um segundo antes do tiro fatal, sob pena de se manter, por exemplo, uma prisao cautelar do curioso Alipio, cuja versao em seu interrogatorio, por certo, seria considerada fantasiosa. A pergunta inocente é: fantasia de quem? 52 ANDRADE, Lédio Rosa de. Violéncia, psicandlise, direito e cultura. Campinas: Millenium Editora, 2007; MISSE, Michel. Crime e violéncia no Brasil contemporaneo: estudos de sociologia do crime e da violéncia urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; BIZZOTTO, Alexandre. Valores e principios constitucionais: exegese no sistema penal sob a égide do estado democritico de direito. Goiania: AB, 2003; BECKER, L.A.; SILVA SANTOS, E.L.. Elementos para uma teoria critica do processo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabri Editor, 2002; CARVALHO, Salo de. As presuncées no direito processual penal (estudo preliminar do “esta- do de flagrancia” na legislacao brasileira). in: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucio- nais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; GERBER, Daniel. Priséo em flagrante: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A tipicidade e 0 juizo de admissibilidade da acusacio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 13

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