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Não sabem o que fazem

JOÃO CÉSAR DAS NEVES

DN 2010-01-04

http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1461236&seccao=Jo%E3o%20C%E9sar%20d

as%20Neves&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

Como previsto, a lei de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo


segue o seu caminho. Nenhuma consideração de bom senso ou legitimidade
democrática a parece deter. Em breve, dizem, Portugal terá a honra de figurar na
reduzida lista dos países livres, modernos e progressivos.

Alguns aspectos do processo são bastante curiosos. Um dos mais hilariantes é o


facto de o Governo não se dar conta do ridículo da situação. Empossado para
resolver os problemas do País não mostra a menor capacidade de o fazer. O
desemprego explode, a justiça embrulha-se, a educação discute, a saúde engorda,
a economia afunda-se em dívidas sem que as autoridades manifestem sequer
compreender o que há a fazer. Não convencem ninguém e só conservam o poder
porque ainda se confia menos nas alternativas. Neste panorama desolador mantêm
uma pose infantil de dignidade graças a iniciativas abstrusas como esta. Algumas
são caras, negativas, prejudiciais. A mais tola é o casamento dos homossexuais. O
mesmo Executivo que foi homicida na liberalização do aborto e irresponsável na
facilitação do divórcio é agora apenas patético insistindo na lei perante a desgraça
dos desempregados, descalabro financeiro, apatia geral.

Se a tolice dos políticos não admira, o elemento surpreendente é essa indiferença


da população. Qualquer que seja a posição que se tome neste assunto, é
consensual que se trata de uma mudança fundamental, decisiva. Mesmo se esta
geração já viu os citados ataques muito piores contra a família é estranho o
desinteresse global.

Aqui actuam décadas de doutrinação serena e insistente. Não se consegue


anestesiar um povo para tolices destas sem um esforço longo e atento. Mas com
trabalho intenso e paciente é possível levar multidões até a aceitar as maiores
selvajarias, como mostraram jacobinos, nazis, estalinistas e tantos outros. Uma lei
tonta nem custa nada.

Para mais, hoje o mal tem uma máquina de propaganda que nunca teve. Todos
nós, todas as noites, sentados no sofá, assistimos a atrocidades incríveis, chacinas
psicopatas, planos maquiavélicos. Chamamos a isso divertimento. É verdade que
em geral o bem ainda ganha no fim dos filmes e séries. Mas começam a
multiplicar-se os casos em que justiça não tem a última palavra. Chama-se a isso
realismo. Claro que depois dessas doses maciças de violência, sexo e adrenalina
nos sentimos normais. Mas vamos cedendo e perdendo a capacidade de nos
indignar, distinguir diferenças, analisar problemas. O jornalismo vive de clichés,
boatos, intrigas, julgamentos apressados. Tudo nos embota a sensibilidade,
amortece o raciocínio, tolda o juízo.

É verdade que a mesma máquina de controlo mental também nos instila


indignação, discernimento e análise, mas em coisas secundárias. Hoje se um
homem abandonar a família para fugir com a mulher de outro é mera expressão de
sensibilidade, manifestação legítima do direito ao amor. Mas se forem a fumar
serão severamente censurados.

Assim, perante a mudança do conceito de casamento, alteração muito mais radical


que a revisão constitucional, a maior parte das pessoas nada mais diz senão que
cada um faz da sua vida o que quer e todos merecem respeito. Duas afirmações
verdadeiras e irrelevantes ao tema. Se o Governo pretendesse mudar a definição
de pensionista, sindicato, eleitor ou contribuinte a discussão seria enorme, sem
ninguém invocar a liberdade e respeito. Mudar o casamento faz-se numa simples
manhã, entre dois decretos polémicos.

O futuro terá dificuldade em compreender esta apatia. Nós que nos dizemos tão
sensíveis aos direitos humanos, tão sofisticados na estrutura legislativa, tão
delicados no detalhe regulador, mostramos a maior boçalidade em assuntos
cruciais.

Todos estes graves disparates sociais acabarão por desaparecer. Há 50 anos os


intelectuais queriam eliminar os mercados, há 100 anos destruir a religião, há 200
enforcar a nobreza. Hoje, tudo isso não passa de horrores antigos que temos
dificuldade em entender. O futuro terá dificuldade em entender os nossos.

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