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AULA 1

PLATÃO – A REPÚBLICA (LIVRO I)


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A REPÚBLICA LIVRO I
Platão
Organização: Igor César F. A. Gomes Publicação: Faculdade Liberal On-line
Platão – A República (Livro I) 3
BIOGRAFIA
Giovanni Reale e Danti Antiseri
Platão nasceu em Atenas, em 428/427 a.C. Seu verdadeiro nome era
Aristócles. Platão é um apelido que derivou, como referem alguns, de seu vigor físico ou
, como contam outros, da amplitude de seu estilo ou ainda da extensão de sua testa
(em grego, plates significa precisamente "amplitude", "largueza", "extensão"). Se
u pai contava orgulhosamente com o rei Codros entre seus antepassados, ao passo
que sua mãe se orgulhava do parentesco com Sólon. Assim é natural que, desde a juventu
de, Platão jã visse na vida política o seu próprio ideal: nascimento, inteligência, aptidões
pessoais, tudo o levava para essa direção. Esse é um dado biográfico absolutamente esse
ncial, que incidiria profundamente na substância mesma de seu pensamento. Aristótele
s nos relata que Platão foi inicialmente discípulo de Crátilo, seguidor de Heráclito. Po
steriormente, foi discípulo de Sócrates. O encontro de Platão com Sócrates se deu provav
elmente quando Platão tinha aproximadamente vinte anos. E certo, porém, que Platão fre
qüentou o circulo de Sócrates com o mesmo objetivo da maior parte dos outros jovens,
ou seja, não para fazer da filosofia a finalidade de sua própria vida, mas para mel
hor se preparar, pela filosofia, para a vida politica. Entretanto, os acontecime
ntos orientariam a vida de Platão em outra direção. Platão travou seu primeiro contato d
ireto com a vida política em 404/403 a.C., quando a aristocracia assumiu o poder e
dois parentes seus, Cármides e Critias, tiveram importante participação no governo ol
igárquico. Foi certamente uma experiência amarga e frustrante para ele, em conseqüência
doa métodos facciosos e violentos que constatou serem aplicados exatamente por aqu
eles nos quais depositava confiança. Entretanto, seu desgosto com os métodos da políti
ca praticada em Atenas deve ter alcançado o máximo de sua expressão com a condenação de Sócr
ates à morte. Os responsáveis por essa condenação foram os democratas (que haviam retoma
do o poder). Assim, Platão convenceu-se de que para ele, naquele momento, era bom
manter-se afastado da política militante. Após o ano de 399 a.C., Platão esteve em Mégar
a com alguns outros discípulos de •Sócrates, hospedando-se em casa de Euclides (provav
elmente para evitar possíveis perseguições, que poderiam lhe advir pelo fato de ter pa
rticipado do círculo socrático). Entretanto, não se deteve longamente em Mégara. Em 388
a.C., aos quarenta anos, Platão viajou para a Itália. Se esteve também no Egito e em C
irene como se conta, tais viagens devem ter acontecido antes de 388 a.C. No enta
nto, a autobiografia da Carta VII nada fala sobre elas. O desejo de, conhecer as
comunidades dos pitagóricos (e, de fato, conheceu Árquita, como sabemos através da Ca
rta VII) foi que o levou a empreender a viagem até a Itália. Durante essa viagem, Pl
atão foi convidado pelo tirano Dionísio I a ir até Siracusa, na Sicilia. Certamente, P
latão esperava poder inculcar no tirano o ideal do rei-filósofo, ideal esse já substan
cialmente proposto no Górgias, obra que precede a viagem. Em Siracusa, Platão logo s
e indispôs com o tirano e sua corte (precisamente por sustentar os princípios expres
sos no Górgias). Todavia, estabeleceu forte vínculo de amizade com Díon, parente do ti
rano, no qual Platão acreditou encontrar um discípulo capaz de se tornar rei-filósofo.
Dionísio irritou-se de tal forma com Platão que determinou fosse ele vendido como e
scravo a um embaixador espartano na cidade de Egina (narrando os fatos de forma
mais simples, forçado a desembarcar em Egina, que se encontrava em guerra com Aten
as, talvez Platão tenha sido mantido como escravo). Felizmente, porém, foi resgatado
por Anicérides de Cirene, que se encontrava naquela cidade.
| Faculdade Liberal OnLine Retornando a Atenas, Platão fundou a Academia em um ginás
io situado no parque dedicado ao herói Academos, de onde derivou o nome. O Menon f
oi provavelmente o primeiro diálogo de Platão a divulgar a nova escola. Logo a Acade
mia adquiriu grande prestígio, a ela acorrendo numerosos jovens e até mesmo homens i
lustres. Em 367 a.C., Platão voltou Dionísio I falecera, tendo-lhe sucedido o filho
Dionísio II, que, segundo afiançava Díon, poderia colaborar bem mais que o pai para a
realização dos desígnios de Platão. Dionísio II, entretanto, revelou as mesmas tendências do
pai: exilou Díon, acusando-o de tramar contra o trono, e manteve Platão quase como
um prisioneiro. Dionísio só permitiu que Platão retornasse a Atenas porque estava empe
nhado numa guerra. Em 361 a.C., Platão voltou pela terceira vez à Sicilia. Em seu re
gresso a Atenas, lá encontrou Díon, que se havia refugiado nessa cidade. Díon o conven
ceu a aceitar novo e insistente convite de Dionísio, na esperança de que, dessa form
a, também ele seria recebido em Siracusa. Dionísio desejava novamente a presença de Pl
atão na corte com a única finalidade de completar sua própria preparação filosófica. Foi, po
rém, um grave erro acreditar na mudança de sentimentos de Dionísio. Platão teria até mesmo
arriscado perder a própria vida, não fosse a proteção de Árquita e dos amigos da cidade d
e Taranto. Em 367 a.C., Díon conseguiria tomar o poder em Siracusa, mas por pouco
tempo apenas, vindo a ser assassinado em 353 a.C. Em 360 a.C., Platão retornou a A
tenas, onde permaneceu na direção da Academia até sua morte, ocorrida em 347 a.C. Os e
scritos de Platão chegaram até nós em sua totalidade. A disposição que lhes foi conferida,
da qual nos dá conta o gramático Trasilo, baseia-se no conteúdo dos próprios escritos.
Os trinta e seis trabalhos foram subdivididos nas nove tetralogias seguintes: I.
II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX. Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton, Fédon; Crátilo
, Teeteto, O Sofista, A Política; Parmênides, Filebo, O Banquete, Fedro; Alcebíades I,
Alcebiades II, Hiparco, Os Amantes; Teages, Cármides, Laqués, Lísis; Eutidemo, Protágor
as, Górgias, Menon; Hípias menor, Hípias maior, Ion, Menexeno; Clitofonte, A República,
Timeu, Crítias; IX: Minos, As Leis, Epinome, Cartas.
A interpretação correta e a avaliação desses escritos propõem uma série de problemas extrema
mente complexos que, em seu conjunto, constituem a "questão platônica".
Platão – A República (Livro I) 5
A ESTRUTURA DA REPÚBLICA
Pllatão faz Sócrates pronunciar no diálogo Górgias as seguintes palavras: "Creio ser eu
dos poucos atão ntes
atenienses, para não dizer o único, que tenta realizar a verdadeira arte política e o ún
ico, entre os contemporâneos, que a pratica." A "verdadeira arte política" é a arte qu
e "cura a alma" e a torna o mais possível "virtuosa", sendo, por isso, a arte do f
ilósofo. Assim, a tese que Platão amadureceu a partir do Górgias e expressou tematicam
ente em A República é precisamente a da coincidência da verdadeira filosofia com a ver
dadeira política. Apenas na condição de o político se tornar filósofo (ou vice político vice
-versa) é que se torna possível construir a Cidade autêntica, ou seja, o Estado verdad
eiramente fundado sobre o valor supremo da justiça e do bem. E óbvio, porém, que estas
teses se mostram plenamente inteligíveis apenas m mediante a recuperação de seu senti
do histórico e, de modo particular, através da recuperação de algumas concepções tipicamente
gregas: a) o sentido antigo da filosofia como "conhecimento do todo" (das razões
supremas de todas as coisas); b) o significado da redução da essência do a homem à sua "
alma" (psyche); c) a coincidência entre indivíduo e cidadão; d) a Cidade-Estado como h
orizonte de todos os Estado valores morais e como única forma possível de sociedade.
Somente levando na devida consideração estas concepções é que se s pode entender a estrut
ura de A República, obra-prima de Platão e como que a summa de seu pensamento filosófi
co, pelo menos no tocante ao que ele escreveu. Construir a Cidade significa conh
ecer o homem e seu lugar no universo. De fato, afirma Platão, o Estado não é senão o eng
randecimento de nossa alma, uma Platão, espécie de gigantografia que reproduz, em va
stas dimensões, tudo aquilo que existe em nossa psyche. O problema central da natu
reza da "justiça", que constitui o eixo em torno do qual giram todo os outros tema
s, todos recebe solução adequada através da observação de como nasce (ou se corrompe) uma
Cidade perfeita. Um Estado nasce porque cada um de nós não é "autárquico", ou seja, não se
basta a si mesmo e tem necessidade dos serviços de muitos outros homens. 1) Em pr
imeiro lugar, são imprescindíveis os serviços de todos aqueles que provêm às necessidades
materiais, desde o alimento até às vestes e à habitação. 2) Em segundo lugar, são necessários
os serviços de alguns homens responsáveis pela guarda e defesa da Cidade. 3) Em terc
eiro lugar, é necessário a dedicação de alguns poucos homens que saibam gove governar ad
equadamente. A Cidade, portanto, necessita de três classes sociais: 1) a dos lavra
dores, artesãos e comerciantes; 2) a dos guardas; 3) a dos governantes. 1) A prime
ira classe é constituída de homens nos quais prevalece o aspecto "concupiscível" da al
ma, que é o aspecto mais elementar. Essa classe social é boa quando nela predomina a
virtude da "temperança", que consiste numa espécie de ordem, domín e disciplina dos d
omínio prazeres e desejos, supondo também a capacidade de se submeter às classes super
iores de modo conveniente. As riquezas e os bens administrados exclusivamente pe
los membros dessa niente. classe não deverão ser nem muitos nem poucos demais. 2) A
segunda classe é constituída de homens nos quais prevalece a força "irascível" (volitiva
) da unda alma, isto é, deve ser composta de homens que se assemelham aos cães de raça
, ou seja,
| Faculdade Liberal OnLine dotados ao mesmo tempo de mansidão e ferocidade. A virt
ude dessa classe social deve ser a "fortaleza" ou a "coragem". Os guardas deverão
permanecer vigilantes quer em relação aos perigos que possam advir do exterior como
em relação a perigos que se originam no interior da Cidade. Por exemplo, deverão evita
r que a primeira classe produza exageradamente riqueza (que gera ócio, luxo, amor
indiscriminado de novidade) ou demasiada pobreza (que gera vícios opostos). Além dis
so, deverão cuidar para que o estado não se torne demasiadamente grande ou exagerada
mente pequeno. Deverão também providenciar para que as tarefas confiadas aos cidadãos
correspondam à índole de cada um e para que se proporcione a todos a educação convenient
e. 3) Finalmente, os governantes deverão ser aqueles que tenham amado a Cidade mai
s do que os outros, tenham cumprido com zelo sua própria missão e, especialmente, te
nham aprendido a conhecer e contemplar o Bem. Nos governantes, portanto, predomi
na a alma racional e sua virtude específica é a "sabedoria". Conseqüentemente, a Cidad
e perfeita é aquela em que predomina a temperança na primeira classe social, a forta
leza ou coragem na segunda e a sabedoria na terceira. A "justiça" nada mais é do que
a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes. Quando cada cidadão e cada
classe social desempenham as funções que lhes são próprias da melhor forma e fazem aquil
o que por natureza e por lei são convocados a fazer, então realiza-se a justiça perfei
ta. Falávamos acima do Estado como reprodução aumentada da alma humana. Na verdade, em
cada homem estão presentes as três faculdades da alma que se encontram nas três class
es sociais do Estado. De fato, diante dos mesmos objetos, existe em nós: a) uma te
ndência que nos arrasta para eles, que consiste no desejo; b) outra tendência que no
s afasta deles e domina o desejo, que consiste na razão; c) mas existe também uma te
rceira tendência, pela qual ficamos irados e nos deixamos inflamar, tendência esta q
ue não se identifica nem com a razão nem com o desejo: não é razão porque é passional, não é
ejo porque freqüentemente se opõe a ele, como, por exemplo, quando ficamos irados po
r termos cedidos ao desejo. Assim, como são três as classes do Estado, são também três as
partes da alma: a apetitiva (epithymetikón), a irascível (thymoeidés) e a racional (lo
ghistikón). A "irascível" (no sentido explicado), por sua natureza, se encontra pred
ominantemente do lado da razão, mas pode ligar-se também à parte mais baixa da alma, c
aso seja corrompida por má educação. Existe, portanto, uma correspondência perfeita entr
e as virtudes da Cidade e as virtudes do indivíduo. O indivíduo é "temperante" quando
as partes inferiores da alma se harmonizam com a superior e a ela obdecem; é "fort
e" ou "corajoso" quando a parte "irascível" da alma sabe manter com firmeza os dit
ames da razão em meio a todas as adversidades; é "sábio" quando a parte "racional" da
alma possui a verdadeira ciência daquilo que é útil a todas as partes (ciência do bem).
E a "justiça" coincide com uma disposição da alma segundo a qual cada uma de suas part
es realiza aquilo que deve e do modo como deve realizar. Eis, portanto, o concei
to de justiça "segundo a natureza": "cada um faça aquilo que lhe compete fazer", os
cidadãos e as classes de cidadãos na Cidade e as partes da alma na alma. A justiça só ex
iste exteriormente, nas suas manifestações,enquanto existir interiormente, na sua ra
iz, ou seja, na alma. Daí Platão deduziu "o quadro das virtudes", ou seja, o quadro
daquelas virtudes que posteriormente serão denominadas "cardeais". Freqüentemente, p
orém, nos esquecemos de que esse quadro está intimamente ligado à psicologia platônica,
particularmente à distinção entre alma concupiscível, irascível e racional. A Cidade perfe
ita, entretanto, deve contar com uma educação perfeita. A primeira classe social, po
rém, não necessita de educação especial, porque as artes e os ofícios são facilmente aprendi
dos com a prática. Para as classes dos guardas, Platão propôe a educação clássica, ginástico-
usical, com o objetivo de robustecer convenientemente a parte de nossa alma da q
ual derivam a coragem e a fortaleza. Para essa classe, porém, Platão propõe a "comunhão"
de todos os bens: comunhão de homens e mulheres e, portanto, de filhos, bem como,
a abolição de qualquer propriedade sobre bens materiais. Deveria, por conseguinte,
ser tarefa da classe inferior, detentora da riqueza, prover às necessidades materi
ais dos componentes dessa
Platão – A República (Livro I) 7 classe. Os homens e mulheres da classe dos guardas de
veriam receber a mesma educação e desempenhar idênticas tarefas. Os filhos, imediatame
nte retirados do convívio com os pais, seriam alimentados e educados em lugares ap
ropriados, sem conhecer os próprios progenitores. Platão propôs essa concepção extremament
e ousada com a finalidade de criar uma espécie de grande família, na qual todos se a
massem como pais, mães, filhos, irmãos, irmãs, parentes. Acreditava ele poder eliminar
dessa forma as razões que alimentam o egoísmo e suprimir as barreiras introduzidas
pelo "é meu" e o "é teu". Todos deveriam dizer apenas "é nosso". O bem particular deve
ria ser o bem comum. A educação prevista por Platão para os governantes coincidia com
os exercícios necessários para o aprendizadado da filosofia, suposta a coincidência en
tre o verdadeiro filósofo e o verdadeiro político. Devia durar até os cinqüenta anos e P
latão a denominava a "longa estrada". Entre os trinta e os trinta e cinco anos, de
viam ser superados os exercícios mais difíceis, que consistiam no teste da dialética.
Dos trinta e cinco anos aos cinqüenta anos, estava prescrita a retomada dos contat
os com a experiência, pelo desempenho de diversas tarefas. A finalidade da educação do
político- filósofo consistia em levá-lo ao conhecimento e à contemplação do Bem, conduzindo
-o ao "conhecimento máximo" para que ele pudesse plasmar a si mesmo conforme o Bem
, visando inserir o Bem na realidade histórica. Dessa forma, o "Bem" emerge como p
rincípio primeiro, do qual depende o mundo ideal. O Demiurgo aparece como gerador
do cosmos fisico em razão da sua "bondade" e o "Bem" constitui o fundamento da Cid
ade e do agir humano. Assim, é fácil compreender as afirmações de Platão, no final do livr
o IX de A República, segundo as quais "pouco importa se exista ou possa existir" t
al Cidade; basta apenas que cada um viva segundo as leis dessa Cidade, isto é, seg
undo as leis do bem e da justiça. Desse modo, antes mesmo de realizar-se na realid
ade exterior, isto é na história, a Cidade platônica realiza-se no interior do homem.
Aí se encontra, definitivamente, a sua verdadeira sede.
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A REPÚBLICA
Livro I
S ócrates - Desci ontem ao Pireu com Glauco, filho de Ariston, para rezar à deusa e
ver, ao mesmo
tempo, como seria celebrada a festa que se realizava pela primeira vez. A pompa
dos habitantes do lugar me pareceu bela, ainda que não menos excelente fôsse a que o
s trácios conduziam. Após termos feito nossas preces e visto a cerimônia, retornávamos à c
idade quando, havendo-nos percebido de longe, no caminho de volta, Polemarco, fi
lho de Céfalo, mandou o seu pequeno escravo correr ao nosso encalço e nos pedir para
esperá-lo. O rapaz, segurando o meu manto por trás, disse: "Polemarco vos pede que
o espereis". Volvi-me e perguntei-lhe onde estava o amo: "Vem vindo atrás de mim,
contestou, esperai por ele. — Mas nós o esperaremos, disse Glauco". E pouco depois c
hegou Polemarco acompanhado de Adi- manto, irmão de Glauco, de Nicerato, filho de
Nícias e de alguns outros, que regressavam do préstito. Então Polemarco disse: — Tendes
o ar, Sócrates, de quem vai embora e se dirige à cidade. — Não conjeturas mal, com efeit
o — respondi. — Pois bem! — replicou — vês quantos somos? — Como não haveria de vê-lo? — Entã
eguiu — ou sereis mais fortes do que nós todos ou permanecereis aqui. — Não haverá — disse e
u — outra possibilidade: persuadir-vos de que deveis nos deixar partir? — Podereis — r
espondeu Polemarco — persuadir pessoas que não escutam? — De modo algum — disse Glauco. —
Pois bem, convencei-vos que não vos escutaremos. Então Adimanto falou: — Não sabeis que
se realizará esta noite a corrida eqüestre de tochas, em honra à deusa? — Eqüestre! — exclam
ei — isso é novidade. Os corredores, levando fachos, os passam uns aos outros e disp
utam o prêmio a cavalo? É isso o que pretendes dizer? — Sim — respondeu Polemarco — e além d
isso, celebrar-se-á uma festa noturna que vale a pena ser vista; sairemos após o jan
tar para assistir a ela. Encontraremos nela muita gente moça e conversaremos. Fica
i, pois, e não procedei de outra maneira. E Glauco: -- Parece — diz êle — que deveis fic
ar. — Se assim parece — respondi — assim devemos fazer. Fomos, portanto, à casa de Polem
arco e aí encontramos Lisias e Eutidemo, seus irmãos, Trasímaco da Calcedônia, Carmântides
de Paenéia e Clitofon, filho de Aristonimo. Dentro, achava-se também o pai de Polem
arco, Céfalo. E êle me pareceu muito velho, pois há longo tempo que não o via. Estava se
ntado em uma cadeira de coxim e trazia uma coroa sobre a cabeça, pois acabava de p
roceder a um sacrifício no pátio. Sentamo-nos todos a seu lado, em assentos que se e
ncontravam ali, dispostos em círculo.
Platão – A República (Livro I) 9 Tão logo me avistou, Céfalo me saudou e disse: -- Quase não
desces mais ao Pireu, Sócrates, para visitarnos. Deverias fazê-lo, no entanto; pois
, se ainda me restasse força para ir fàcilmente à cidade, não terias necessidade de vir
aqui: iríamos à tua casa. Mas agora te compete vir aqui com mais freqüência. Pois saiba
que, para mim, quanto mais os prazeres do corpo emurchecem, tanto mais crescem o
desejo e o prazer da conversação. Assim, não ajas de outro modo: não te reúnas apenas com
estes moços e vem aqui, como à casa de amigos muito íntimos. — Eu também — respondi — ó Céfa
osto de conversar com os velhos; pois creio que precisamos saber dêles, como de pe
ssoas que nos antecederam num caminho que talvez tenhamos também de palmilhar, o q
ue é êste caminho: será áspero e difícil, ou cômodo e fácil. E eu teria certamente prazer em
onhecer o que pensas disto, pois já chegaste ao ponto da idade que os poetas chama
m "o limiar da velhice 5". É êste um momento difícil da vida, ou que outra coisa nos d
izes a respeito? — Por Zeus — replicou — dir-te-ei, Sócrates, o que penso disso. Muitas
vezes, com efeito, reunimonos entre gente da mesma idade, justificando assim o v
elho provérbio; ora, a maioria de nós, nestes encontros, lastima-se, saudosa dos pra
zeres da juventude e, lembrando-se das delícias do amor, do vinho, da boa mesa e o
utras semelhantes, aflige-se como pessoas privadas de grandes haveres, que então v
iviam bem e agora não vivem sequer. Alguns se queixam dos ultrajes a que a idade o
s expõem, por parte de seus próximos e, a êste propósito, acusam com veemência a velhice d
e lhes ser a causa de tantos males. Mas, na minha opinião, Sócrates, não alegam a verd
adeira causa, pois, se fôsse a velhice, também eu sentiria os seus efeitos, e todos
os que chegaram a esta idade 7. Ora, encontrei outros velhos que não se sentiam as
sim; um dia mesmo, achava-me eu perto do poeta Sófocles quando alguém o interrogava:
"Como, Sófocles, diziam-lhe, te comportas em face do amor? És ainda capaz de possui
r uma mulher?" E ele respondeu: "Caluda!, bom amigo, escapei-lhe com a maior sat
isfação, como se escapasse a um senhor irascível e selvagem". Estas palavras agradaram
-me então e não menos agora. Com efeito, de tôdas as maneiras, em relação aos sentidos, a
velhice traz muita paz e liberdade. Pois, quando os desejos se acalmam e distend
em, a frase de Sófocles se realiza plenamente: ficamos livres de inúmeros e furiosos
senhores. Quanto às lamentações, aos aborrecimentos domésticos, só contam uma causa, Sócrat
es, não a velhice, porém o caráter dos homens. Quando são bem comportados de humor fácil,
a velhice lhes é moderadamente penosa. Senão, tanto a velhice como a juventude, ó Sócrat
es, lhes são difíceis. E eu, encantado com suas palavras e desejoso de ouvi-lo mais,
provoquei-o e lhe disse: - Imagino, Céfalo, que a maioria de teus ouvintes, quand
o falas dêste modo, não te aprova e pensa que suportas facilmente a velhice, não graças
a teu caráter, mas a tuas abundantes riquezas; os ricos, dizem, sempre têm numerosas
consolações. — Falas com acerto — respondeu — eles não me aprovam. E assiste-lhes um pouco
de razão, mas não tanta quanto julgam. E boa a resposta de Temístocles, que, ao serifi
ano que o injuriava e o acusava de não dever a reputação a si próprio mas à pátria, replicou
: "Se eu fosse serifiano, não me tornaria célebre, mas tampouco tu se fôsses ateniense
. A mesma observação aplica-se aos que não são ricos e suportam penosamente a idade prov
ecta, pois nem o sábio agüenta com perfeita satisfação a velhice acompanhada da pobreza,
nem o insensato, sendo rico, fica em paz consigo mesmo. — Mas Céfalo — redargüi — o que p
ossuis, recebeste em herança ou adquiriste sozinho a maior parte? — O que adquiri, Sóc
rates? Em matéria de riquezas, mantive o meio-termo entre o meu avô e o meu pai. O m
eu avô, cujo nome eu uso, tendo herdado uma fortuna quase igual à que me pertence at
ualmente, multiplicou-a, mas Lisânias, meu pai, reduziu-a algo abaixo de seu nível a
tual. Quanto a mim, contento-me em deixar a estes jovens não menos, porém pouco mais
do que recebi. — Eu te fiz a pergunta — disse — porque me pareceste não amar excessivam
ente a riqueza: é assim que procedem, na maioria, os que não a ganharam por si mesmo
s. Os que a ganharam sòzinhos prezam-na duas vezes mais do que os outros. Pois, ta
l como os poetas prezam seus poemas e os pais seus filhos, os homens de negócios s
e apegam à fortuna, por ser obra própria e devido à utilidade dela, como os outros hom
ens. Por isso são de trato difícil, não consentindo em elogiar nada exceto o dinheiro.
— É verdade —confessou.
| Faculdade Liberal OnLine — Perfeitamente — repliquei. — Mas dize-me ainda uma coisa:
de que bem supremo, julgas, que a posse de uma grande fortuna te permitiu gozar
? — Disso, talvez — respondeu — eu não persuadiria a muita gente se eu to dissesse. Sabe
. com efeito. Sócrates, que, quando um homem está prestes a pensar na morte, o mêdo e
a preocupação o assaltam a propósito de coisas que, dantes, não o perturbavam. O que se
conta sôbre o Hades e os castigos que aí há de receber quem tenha cometido injustiça nes
te mundo, estas fábulas, de que riu até então, passam a atormentar-lhe a alma: teme qu
e sejam verdadeiras. E — ou por causa da fraqueza da idade, ou porque, estando mai
s perto das coisas do além, as enxerga melhor — seu espírito enche-se de desconfiança e
terror; reflete, examina se se tornou culpado de injustiça para com outrem. E quem
descobre em sua vida muitas iniqüidades, desperta freqüentemente em meio das noites
, como as crianças, tem mêdo e vive em triste expectativa. Mas junto, àquele que se sa
be inocente vela sempre uma agradável esperança, benfazeja nutriz da velhice, para f
alar como Píndaro. Pois foi com felicidade, Sócrates, que este poeta disse que, quan
do um homem levou a vida justa e piedosa: doce a seu coração e nutriz de sua velhice
, acompanha-o a esperança, que governa a alma volúvel dos imortais 10. E isto é maravi
lhosamente bem dito. Neste sentido, considero a posse de riquezas como muito pre
ciosa, não para todo homem, mas para o sábio e o sensato. Pois, a fim de evitar que,
forçados, nos enganemos ou mintamos e que, devendo sacrifícios a um deus ou dinheir
o a um homem, passemos ao outro mundo com medo, para evitar isso a posse de riqu
ezas contribui com grande parcela. Ela oferece também muitas outras vantagens. Mas
, se as contrapormos uma a uma, sustento, Só- crates, que, para o homem sensato, é aí
que reside a maior utilidade do dinheiro. — As tuas palavras são cheias de beleza, Céf
alo — redargüi. — Mas acerca desta virtude mesma, a justiça, afirmaremos simplesmente qu
e consiste em dizer a verdade e em devolver o que se recebeu de alguém, ou que agi
r deste modo é às vêzes justo e outras vêzes injusto? Por exemplo: todo mundo concorda q
ue, se recebemos armas de um amigo são de espírito que, enlouquecido, as reclama de
volta, não devemos restituir-lhas, e quem as devolvesse não seria justo, assim como
quem quisesse declarar a verdade tôda a um homem em tal estado. — É exato — disse ele. — P
ortanto, esta definição não é a da justiça: dizer a verdade e devolver o que se recebeu. — M
as sim, Sócrates — interveio Polemarco — pelo menos a crer em Simônides. — Bem, bem! — disse
Céfalo — abandono-vos a discussão, pois j á é tempo de ocupar-me do sacrifício. — Não sou eu
u herdeiro? — perguntou-lhe Polemarco. — Sem dúvida — respondeu, rindo; e saiu imediatam
ente para o sacrifício. — Dize-nos pois — prossegui — ó herdeiro do discurso, que é que Simôn
des afirma, e tu aprovas, a respeito da justiça. — Que é justo — afirma ele — devolver a c
ada um o que se lhe deve; e nisso, acho que tem razão. — Por certo — redargüi — não é fácil r
sar crédito a Simônides, homem de fato sábio e divino; entretanto, o que ele quer dize
r com isso tu, Polemarco, talvez o saibas, mas eu ignoro; pois é evidente que não af
irma o que dizíamos há pouco: que se deva restituir um depósito a alguém que o exige, te
ndo embora perdido o juízo. No entanto, o que foi confiado é devido, não é? — Sim. — E não se
deve, de maneira alguma, restituí-lo quando quem o pede de volta não está são de espírito?
— É verdade — confessou.
Platão – A República (Livro I) 11 — Então, segundo parece, Simônides pretende dizer outra co
isa, ao afirmar que é justo devolver o que se deve. — Outra coisa, seguramente, por
Zeus — respondeu ele — pois julga que se deve fazer o bem aos amigos, mas não mal. — Com
preendo — disse — que não é devolver a alguém o devido restituir-lhe o ouro que nos confio
u, se a restituição e a reposição se efetuam em seu prejuízo, e se aquele que recupera e a
quele que restitui são amigos. Não é assim que, na tua opinião, Simônides pensa? — Perfeitam
ente. — Mas como? Aos inimigos, deve-se devolver o que julgamos dever-lhes? — Segura
mente — disse êle — o que lhes é devido; e lhes é devido, penso, o que convém de inimigo par
a inimigo, a saber, o mal. — É por enigmas, portanto — continuei — à maneira dos poetas, q
ue Simônides parece ter definido a justiça. Pois considerava justo, creio, devolver
a cada um o que lhe convém, mas a isso chamava o que lhe é devido. — Pois bem! Mas o q
ue pensas disso? — retrucou. — Por Zeus! — respondi — se alguém lhe perguntasse: "Simônides,
a quem e o que dá, de conveniente e devido, a arte denominada medicina?", o que a
chas que "ele teria respondido? — Evidentemente, que dá ao corpo os remédios, os alime
ntos e as beberagens. — E a quem e o que dá, de conveniente e devido, a arte da cozi
nha? — As comidas, os temperos. — Seja. Ora, a quem e o que dá a arte que chamaremos j
ustiça? — Se é necessário, Sócrates — respondeu — estar de acôrdo com as nossas palavras prec
ntes, ela distribui aos amigos e aos inimigos benefícios e danos. — Portanto, fazer
o bem aos amigos e o mal aos inimigos, é o que Simônides entende por justiça? — E o que
me parece. — Ora, quem é mais capaz de fazer o bem aos amigos sofredores e o mal aos
inimigos, no tocante à doença e à saúde? — O médico. — E aos navegadores, no que concerne ao
perigo do mar? — O pilôto. — Mas que diremos do justo? Em que ocasião e para que obra se
rá êle sobretudo capaz de servir os amigos e prejudicar os inimigos? — Na guerra, para
combater a uns e aliar-se aos outros, parece-me. — Está bem. Mas para os que não sofr
em, meu caro Polemarco, o médico é inútil. — É verdade. — E para os que não navegam, o pilôto
mbém. — Também. — Será que, do mesmo modo, o justo é inútil para os que não fazem a guerra? —
odo nenhum, a meu ver. — Então, a justiça é útil mesmo em tempo de paz? — É útil. — E a agric
a também, não é?
| Faculdade Liberal OnLine — Sim. — Para obter os frutos da terra? — Sim. — E também a art
e do sapateiro? — Sim. — Para obter sapatos, dirás tu, penso. — Sem dúvida. — Mas, então, par
que uso ou para a posse de que objeto dirás que a justiça é útil em tempo de paz? — Para
os contratos comerciais, Sócrates. — Por contratos comerciais, entendes associações ou o
utra coisa? — Associações, certamente. — Será, pois, o justo um associado bom e útil para di
spor os peões no triquetraque, ou aquele que conhece o jogo ? — Aquele que conhece o
jogo. — Para assentar tijolos e pedras, o justo e mais útil e melhor associado do q
ue o pedreiro? — De modo algum. — Mas em qual associacão é o justo melhor associado do q
ue o pedreiro e o citarista, como o citarista o é, em relação ao justo, na arte dos so
ns? — Nas questões de dinheiro, parece-me. — Salvo talvez, Polemarco, para fazer uso d
o dinheiro; quando é preciso, por exemplo, com fundos comuns, comprar ou vender um
cavalo, creio que então o melhor associado é o negociante de cavalos, não é? — É evidente. —
E quando se trata de um barco, é o construtor ou o pilôto. — Ao que tudo indica. — Em qu
al dêstes casos, portanto, em que cumpre usar dinheiro ou ouro em comum, é o justo u
m associado mais útil que os outros? — No caso de um depósito que desejamos guardar co
m segurança, Sócrates. — Não quer isso dizer, quando o dinheiro não é utilizado e fica impro
dutivo? — Sem dúvida. — Quando, pois, o dinheiro permanece inútil, é então que, em relação a
a justiça útil? — Creio que sim. — E quando é preciso guardar urna podoa, a justiça é útil ta
do ponto de vista coletivo como do particular; mas quando é preciso servir-se del
a, é a arte de cultivar a vinha? — Assim me parece. — Afirmarás, pois, que, se se trata
de guardar um escudo e uma lira, e não de servir-se dêles, a justiça é útil, mas, se se tr
ata de usá-los, é a arte do hoplita e do músico. — Necessàriamente. — E, no referente a tôdas
as outras coisas, será a justiça inútil a cada uma quando ela serve e útil quando não serv
e? — Assim creio.
Platão – A República (Livro I) 13 — Mas então, meu amigo, a justiça não é algo muito importan
se seu uso se estende apenas a coisas inúteis. Mas examinemos ainda o seguinte: o
homem mais destro em desferir golpes, num combate, num pugilato ou em qualquer
outra luta, não é também o mais destro em apará-los? — Sem dúvida. — E quem é hábil em se pre
r de unia doença, não é também o mais hábil em transmiti-la em segrêdo? — Parece-me. — Mas nã
guardião de um exército quem rouba aos inimigos os segredos, os planos e tudo o que
lhes concerne? — Sem dúvida. — Logo, o hábil guardião de uma coisa é também o seu hábil lará
Aparentemente. — Se portanto o justo é hábil em guardar dinheiro, será também hábil em roubá-
o. — Pelo menos é êste — disse êle — o sentido do raciocínio. — Assim, o justo acaba de nos a
ecer como uma espécie de larápio, e tu estás com um ar de quem aprendeu isso em Homero
. Este poeta, com efeito, prezava o avô materno de Ulisses, Autólico, e sustentava,
que êle superava todos os homens no hábito do roubo e do perjúrio 14. Por conseguinte,
parece que a justiça, no teu modo de pensar, no de Homero e no de Simônides, é uma ar
te de roubar, em favor, todavia, dos amigos e em detrimento dos inimigos. Não é assi
m que a entendias? — Não, por Zeus — respondeu. — Não sei o que pretendia dizer; entretant
o, acho ainda que a justiça consiste em beneficiar os amigos e prejudicar os inimi
gos. — Mas a quem tratas de amigo: aos que se nos parecem honestos ou àqueles que o
são, embora não o pareçam, e assim quanto aos inimigos? — É natural — disse — amar os que sup
mos honestos e odiar os que supomos malvados. — Mas não se enganam os homens a êste re
speito, de modo que muitas pessoas lhes parecem honestas, não o sendo, e inversame
nte? — Sim, enganam-se. — Para estes, portanto, os bons são inimigos e os maus, amigos
? — Sem dúvida. — E, no entanto, consideram eles justo servir aos maus e prejudicar os
bons? — Parece. — Entretanto, os bons são justos e incapazes de cometer injustiça? — É verd
ade. — Segundo o teu raciocínio é, pois, justo fazer mal aos que não cometem injustiça. — De
nenhum modo, Sócrates contestou — pois o raciocínio parece mau. — É justo, então — prossegui
prejudicar os perversos — beneficiar os bons? — Esta conclusão se me afigura mais bela
do que a precedente. — Para muita gente, portanto, Polemarco, que se enganou sôbre
os homens, a justiça consistirá em prejudicar os amigos, pois tem por amigos os perv
ersos, e em servir os inimigos, que são bons de fato. E assim afirmaremos o contrári
o do que fazíamos Simônides dizer. — Seguramente — confirmou ele — é assim que a questão se a
resenta. Mas corrijamos a nossa posição; pois, corremos risco de não haver definido ex
atamente o amigo e o inimigo.
| Faculdade Liberal OnLine — Como os definimos, Polemarco? — Aquele que parece hones
to, aquele é amigo. — E agora — continuei — como corrigiremos nossa definição? — Aquele que p
rece — respondeu — e que é honesto é amigo; aquele que parece mas não é honesto, parece mas
não é amigo; quanto ao inimigo, a definição é a mesma. — Amigo pois, como se afigura por est
e raciocínio, será o homem bom e inimigo, o mau? — Sim. — Portanto, mandas juntar algo a
o que dizíamos antes sôbre a justiça, a saber, que é justo fazer bem ao amigo e mal ao i
nimigo; agora, além disso, devemos dizer que é justo fazer bem ao amigo bom e mal ao
inimigo mau? — Perfeitamente — disse — assim isto me parece bem expresso. — É próprio, pois
, do justo -- repliquei — fazer quem quer que seja? — Sem dúvida — respondeu — é preciso faz
er maus que são nossos inimigos. — Mas os cavalos a quem se faz mal, tornam-se melho
res ou piores? — Piores. — Relativamente à virtude dos cães ou à dos cavalos? — À dos cavalos
— E os cães a quem se faz mal, não se tornam piores, relativamente à virtude dos cães e não
à dos cavalos? — Necessàriamente. — Mas, quanto aos homens, meu amigo, a quem se faz ma
l, diremos do mesmo modo que se tornam piores, em relação à virtude humana? — Absolutame
nte. — Ora, a justiça não é virtude humana? — Isso também é necessário. — Logo, meu amigo, aq
entre os homens a quem se faz mal tornam-se necessariamente piores. — Parece. — Mas
, por sua arte, pode o músico tornar alguém ignorante em música? — Impossível. — E pela arte
eqüestre, o equitador tornar alguém inapto a montar a cavalo? — Não é possível. — Pela justi
portanto, pode o justo tornar alguém injusto; ou, numa palavra, pela virtude pode
m os bons tornar os outros maus? — Isso não se pode. — Pois, não é próprio do calor, penso,
arrefecer, mas do seu contrário. — Sim. — Nem da secura molhar, mas do seu contrário. — Se
m dúvida. — Nem do homem bom prejudicar, mas do seu contrário. — Parece — Mas o justo é bom?
Platão – A República (Livro I) 15 — Sem dúvida. — Por conseguinte, Polemarco, não é próprio d
to prejudicar a um amigo ou a pessoa alguma, mas do seu contrário, do injusto. — Cre
io que dizes perfeitamente a verdade, Sócrates — confessou. — Se, pois, alguém afirma qu
e a justiça consiste em devolver a cada um o que se lhe deve, e se entende por iss
o que o homem justo deve prejuízo a seus inimigos e serviço aos amigos, não é sábio quem p
rofere tais palavras. Pois não diz a verdade: em nenhum caso, com efeito, e a ning
uém nos pareceu justo fazer o mal. — Concordo — disse êle. — Assim, tu e eu combateremos — p
rossegui — em co- mum, contra quem atribuir semelhante máxima a Simônides, a Bias, a P
itacos ou qualquer outro dos homens sábios e di- vinos. — Estou pronto — exclamou êle — a
associar-me ao combate. — Mas sabes - continuei- de quem me parece ser esta assert
iva de que é justo servir os amigos e prejudicar os inimigos? — De quem? — inquiriu. — P
enso que é de Periandro 16, de Perdicas 17, de Xerxes, de Ismênio 18, o tebano, ou d
e qualquer outro ricaço que se julga muito poderoso. — E verdade — disse êle. — Está bem! — r
pliquei — mas visto que nem a justiça nem o justo nos pareceram consistir nisso, de
que outra maneira poderíamos defini-los? Ora, Trasímaco, tentara, repetidas vêzes, enq
uanto falá-vamos, tomar parte na conversa, mas fôra impedido por seus vizinhos que n
os queriam ouvir até o fim. Mas, na pausa que fizemos, quando acabava de pronuncia
r estas palavras, não mais se conteve; retesando-se, qual uma fera, investiu 19 co
ntra nós, como para nos dilacerar. Polemarco e eu fomos tomados de pavor; mas Trasím
aco, elevando a voz no meio do auditório, gritou: "Para que todo esse palavrório, Sócr
ates, e por que vos fazeis de parvos, inclinando-vos alternadamente um perante o
outro? Se queres realmente saber o que é o justo, não te limites a interrogar, e não
empenhes o brio em refutar quem responde, mas, após reconheceres que é mais fácil inqu
irir do que responder, responde tu mesmo e dize como defines a justiça. E não venhas
me dizer que é o que se deve fazer, que é o útil, o proveitoso, o lucrativo ou o vant
ajoso; exprime-te com clareza e precisão, pois não admitiria semelhantes banalidades
". Ouvindo-o, fui prêso de estupor, e, volvendo os olhos para êle, senti-me tomado p
elo medo; creio até que, se não o tivesse olhado antes que êle me olhasse, eu teria fi
cado mudo 20. Mas, quando a discussão começava a irritá-lo, eu o fitara primeiro, de s
orte que fui capaz de replicar e dizer-lhe, tremendo um pouco: "Trasímaco, não te ab
orreças conosco; pois se cometemos um erro em nosso exame, eu e este môço aqui, bem sa
bes que o cometemos involuntàriamente. Com efeito, se procurássemos ouro, não estaríamos
dispostos a nos inclinar um diante do outro, e estragar as nossas probabilidade
s de descoberta; não imagines, pois, que, procurando a justiça, coisa mais preciosa
do que grandes quantidades de ouro, nos façamos parvamente mútuas concessões, em vez d
e nos apli¬carmos ao máximo em descobri-la. Não imagines isso de modo algum, meu caro.
Mas a tarefa, creio eu, está acima de nossas fôrças. Devotar-nos compaixão é, pois, muito
mais natural para vós, os hábeis, do que nos testemunhar irritação". A estas palavras,
Trasímaco prorrompeu em riso sardônico: "Ó Hércules! exclamou, ei-la, a habitual ironia
de Sócrates! Eu já sabia e predissera a esses jovens que não quererias responder, que
simularias ignorância, que tudo farias para não responder às perguntas que te fôssem apr
esentadas!" — Tu és um homem sutil, Trasímaco — respondi; — sabias muito bem que se pergun
tasses a alguém quais são os fatôres de doze e o prevenisses: "Cuida-te, amigo, de não m
e dizer que doze vale duas vêzes seis, ou três vêzes quatro, ou seis vêzes dois, ou quat
ro vêzes três, porque eu não admitiria tamanha bagatela", sabias muito bem, digo, que
ninguém responderia a uma questão assim formulada. Mas se êle te dissesse:
| Faculdade Liberal OnLine "Trasímaco, como entendes isso? o fato de eu não dar nenh
uma das respostas que enunciastes de antemão? Será que, homem extraordinário, se a ver
dadeira resposta é uma delas, não devo dá-la, mas declarar outra coisa que não a verdade
? Ou como entendes isso?" o que contestarias? — Muito bom! — disse ele; — se isto fôsse
semelhante aquilo! — Nada impede — repliquei e mesmo que não fôsse, mas se se afigurasse
assim à pessoa interrogada, pensas que ela responderia menos o que lhe parecesse
verdadeiro, quer lho proibíssemos ou não? — Será que — retrucou êle — também agirás desta ma-
? Darás algumas das respostas que te proibi? — Não ficaria espantado — respondi — se, após e
xame, tomasse este alvitre. — Mas veja — disse êle — se eu mostro que há, acerca da justiça,
uma resposta diferente de tôdas as outras e melhor do que elas, ao que tu te cond
enas? — Ao que mais — retruquei — se não ao que convém ao ignorante? Ora, convém-lhe ser ins
truído por aquêle que sabe; condeno-me, pois, a isso. — És, de fato, encantador — disse êle;
— mas, além do trabalho de aprender, despenderás 2' ainda dinheiro. — Certamente, quand
o o tiver — respondi. — Temo-lo nós — disse Glauco. — Se depender apenas de dinheiro, fala
, Trasímaco: todos nós pagaremos por Sócrates. — Percebo perfeitamente — exclamou; — para qu
e Sócrates se entregue à sua habitual ocupação, para que ele próprio não responda, mas depoi
s que outrem responder, se apodere do argumento e o refute! — Como — disse eu — excele
nte homem, responderia alguém primeiro, se não sabe e confessa não saber, e se, ademai
s, caso tenha opinião sôbre o assunto, vê-se proibido de expressar o que pensa por uma
personagem cuja autoridade não é de modo algum medíocre? Compete mais a ti falar, poi
s que pretendes saber e ter algo a dizer. Não procedas, portanto, de outra forma:
concede-me o prazer de responder e não faças parcimônia em instruir Glauco e os outros
. Tão logo proferi essas palavras, Glauco e os outros pediram-lhe que não agisse de
outro modo. Trasimaco, via-se muito bem, ansiava por falar a fim de se distingui
r, julgando dispor de uma belíssima resposta a dar; mas tomava o ar de insistir pa
ra que fôsse eu o respondente. Por fim, cedeu: — Eis — bradou — a sabedoria de Sócrates: r
ecusar-se a ensinar, instruir-se com os outros e nem sequer lhes agradecer por i
sso! — Afirmas com razão — repliquei — que me instruo com os outros, mas pretendes errad
amente que não lhes pago gra-tidão. Com efeito, pago na medida em que posso. Ora, po
sso apenas elogiar, pois não possuo riquezas. Mas com que gôsto o faço, quando alguém me
parece dizer bem, o saberás logo que me houveres respondido; pois penso que falarás
bem. — Escuta, pois — disse êle. — Declaro que o justo não é outra coisa senão o vantajoso a
mais forte. E então, o que esperas para me elogiar? Vais recusar-te a isso! — Permi
te que eu compreenda antes o que dizes; pois, por enquanto, ainda não compreendi.
Pretendes que o vantajoso ao mais forte é o justo. Mas como, Trasímaco, entendes iss
o? Com efeito, não há de ser da seguinte maneira: Se Polidamas 22, o pancraciasta, é m
ais forte do que nós, e se a carne de boi é mais vantajosa para o sustento de suas fôrça
s, não dizes que, para nós também, mais fracos do que ele, este alimento é vantajoso e,
conjuntamente, justo? — És impudente, Sócrates — retrucou; — tomas as minhas palavras por
onde podes infligir-lhes maior mal! — De nenhum modo, excelente homem — prossegui; — p
orém expressa-te mais claramente. — Pois bem! não sabes que, dentre as cidades, umas são
tirânicas, outras democráticas e outras ainda aristocráticas?
Platão – A República (Livro I) 17 — Como não o saberia? — Ora, o elemento mais forte, em cad
a cidade, não é o govêrno? — Sem dúvida. — E cada govêrno estabelece as leis para a sua própr
vantagem: a democracia leis democráticas, a tirania leis tirânicas e os outros proce
dem do mesmo modo; estabelecidas estas leis, declaram justa, para os governados,
esta vantagem própria e punem quem a transgride como violador da lei e culpado de
injustiça. Eis portanto, excelente criatura, o que afirmo: em tôdas as cidades o ju
sto é uma e mesma coisa: o vantajoso ao govêrno constituído; ora, "este é o mais forte,
donde segue, para todo homem que raciocina corretamente, que em tôda parte o justo
é uma e mesma coisa: o vantajoso ao mais forte. — Agora — redargüi — compreendi o que diz
es; é isso verdadeiro ou não? Tentarei estudá-lo. Portanto, também tu respondeste, Trasíma
co, que o vantajoso é o justo — após me teres proibido semelhante resposta — ajuntando,
todavia, o vantajoso "ao mais forte". — Pequena adição, talvez? — disse êle. — Ainda não é ev
nte que seja grande; mas é evidente que cumpre examinar se falas a verdade. Reconh
eço contigo que o justo é algo vantajoso; mas acrescentas à definição, e afirmas que é vanta
joso ao mais forte; quanto a mim, ignoro-o: é preciso examiná-lo. — Examina — disse êle. — É
que farei — prossegui. — E dize-me: não pretendes tu que é justo obedecer aos governant
es? — Sim. — Mas são os governantes infalíveis, em cada cidade, ou suscetíveis de se engan
ar? — Certamente — respondeu — suscetíveis de se enganar. — Portanto, quando empreendem es
tabelecer leis, elabo-ram boas e más leis? — Penso que sim. — Será que as boas são as que
instituem o que lhes é vantajoso e as más o que lhes é desvantajoso? Ou então como o for
mulas? — Assim. — Mas o que eles instituíram, os governados devem cum-prir, e nisso co
nsiste a justiça, não é? — Certo. — Logo, não só é justo, na tua opinião, fazer o que é vanta
mais forte, mas ainda o contrário, o que lhe é desvantaj oso. — O que estás dizendo? — gr
itou êle. — O que tu próprio dizes, parece-me; mas examinemo-lo melhor. Não reconhecemos
que, às vêzes, os governantes se enganavam quanto ao seu maior bem, prescrevendo ce
rtas coisas aos governados? E que, de outro lado, era justo que os governados fi
zessem o que lhes prescreviam os governantes? Não reconhecemos isso? — Assim creio — c
onfessou êle. — Crês pois, também — repliquei — que reconheceste ser justo fazer o que é desv
ntajoso aos governantes e aos mais fortes, quando os governantes ordenam involun
tàriamente coisas que lhes são prejudiciais; pois, pretendes ser justo que os govern
ados façam o que ordenam os governantes. Daí, mui sapiente Trasímaco, não se segue, nece
ssàriamente, ser justo fazer o contrário do que dizes? Ordena-se, com efeito, que o
mais fraco faça o que é desvantajoso ao mais forte. — Sim, por Zeus, Sócrates, isso é muit
o claro — disse Polemarco. — Se pelo menos lhe deres o teu testemunho — interveio Clit
ofon.
| Faculdade Liberal OnLine — E para que é preciso tal testemunho? — continuou. — Com efe
ito, o próprio Trasímaco reconhece que às vêzes os governantes dão ordens prejudiciais a s
i próprios e que é justo que os governados executemnas. — De fato, Polemarco, executar
as ordens dadas pelos governantes é o que Trasímaco colocou como justo. — Realmente,
Clitofon, êle colocou como justo o que é vanta¬joso ao mais forte. Tendo pôsto estes doi
s princípios, reconheceu, de outro lado, que às vêzes os mais fortes dão aos mais fracos
e aos governados ordens prejudiciais a si próprios. Destas declarações resulta ser o
justo tanto a vantagem do mais forte, como sua desvantagem. — Mas — replicou Clitofo
n — ele definiu como vantajoso ao mais forte aquilo que o mais forte crê ser de sua
vantagem; é isso que o mais fraco deve fazer e é isso que Trasímaco colocou como justo
. — Ele não se expressou dessa maneira! — bradou Polemarco. — Não importa, Polemarco — disse
eu — mas, se agora Trasímaco assim se expressa, admitamos que é assim que ele o enten
de. E dize-me, Trasímaco: entendias por justo o que parece vantajoso ao mais forte
, quer lhe dê vantagem ou não? Diremos nós que assim te exprimes? — De modo algum — respon
deu; — pensas que chamo mais forte aquele que se engana, no momento em que se enga
na? — Era o que eu pensava — disse — quando reconhecias que os governantes não são infalívei
s, mas podem enganar-se. — Tu és um sicofanta, Sócrates, na discussão — retrucou êle; — chama
médico aquele que se engana com respeito aos doentes, no próprio momento e enquanto
se engana? Ou cal-culador aquele que comete um erro de cálculo, no momento mesmo
em que o comete? Não. É por modo de falar, suponho, que dizemos: o médico se enganou,
o calculador ou o escriba se enganaram. Mas creio que nenhum deles, na medida em
que é o que o denominamos, jamais se engana. Quem se engana, o faz quando sua ciênc
ia o abandona, no momento em que já não é artesão; assim, artesão, sábio ou governante, ning
uém se engana no próprio exercício destas funções, conquanto todo mundo diga que o médico se
enganou, que o governante se enganou. Admite, portanto, que eu te tenha respond
ido há pouco neste sentido; mas, para dize-lo de forma mais precisa, o governante,
enquanto governante, não se engana, não comete erro ao erigir em lei o seu maior be
m, que o governado deve realizar. Destarte, como no início, afirmo que a justiça con
siste em fazer o que é vantajoso ao mais forte. — Seja, Trasímaco — disse eu. — E te pareço
eu um sicofanta? — Perfeitamente — respondeu. — Pensas que, por desígnio premeditado, pa
ra te preju-dicar na discussão, foi que te interroguei da maneira como fiz? — Tenho
certeza — disse ele. — Mas nada ganharás com isso, pois não poderás ocultar-te para me pre
judicar, nem, aber¬tamente, dominar-me pela violência na disputa. — Tampouco o tentari
a — repliquei — bem-aventurado homem! Mas, a fim de que nada disso se reproduza, ass
inala nitidamente se entendes no sentido vulgar ou no sentido preciso, de que ac
abas de falar, as palavras governante e mais forte, para cuja vantagem seria jus
to que o mais fraco agisse. — Entendo o governante no sentido preciso do termo — res
pondeu. — Assim, tenta prejudicar-me ou caluniar-me, se puderes, não peço quartel. Mas
não és capaz disso! — Imaginas que eu seja insensato a ponto de tentar tos-quiar um l
eão ou caluniar Trasímaco? — Acabas, no entanto, de tentá-lo, embora sejas, nulo aí também! —
Chega disso! — exclamei. — Mas dize-me: o médico no sentido exato do termo, de que fal
avas há pouco, tem por objeto ganhar dinheiro ou tratar dos doentes? E fala-me do
verdadeiro médico. — Ele tem por objeto — respondeu — tratar dos doentes. — E o pilôto? O ve
rdadeiro pilôto, é chefe dos marinheiros ou marinheiro?
Platão – A República (Livro I) 19 — Chefe dos marinheiros. — Não penso que, para denominá-lo
arinheiro, se deva levar em conta o fato de êle viajar em um barco; pois não é por nav
egar que o denominam pilôto, mas por causa de sua arte e do comando que exerce sôbre
os marinheiros. — É certo — confessou. — Portanto, para o doente e para o marinheiro, e
xiste algo vantajoso? — Sem dúvida. — E a arte — prossegui — não tem por fim procurar e prop
orcionar a cada um o que lhe é vantajoso? — É isso — disse ele. — Mas há, para cada arte, ou
tra vantagem exceto a de ser tão perfeita quanto possível? — Qual o sentido de tua per
gunta? — Este. Se me perguntasses se basta ao corpo ser corpo, ou se necessita de
outra coisa, responderteia: "Certamente necessita de outra coisa. Daí por que foi
inventada a arte médica: porque o corpo é defeituoso e não lhe basta ser o que é. Por is
so, a fim de lhe proporcionar o vantajoso, orga¬nizou-se a referida arte". Parece-
te — disse eu — haver ou não razão nestas palavras? — Tens razão — respondeu. — Mas então a p
medicina é defeituosa? E, em geral, uma arte exige certa virtude, como os olhos a
vista, ou as orelhas o ouvido, pelo fato de que tais órgãos carecem de uma arte que
examine e lhes proporcione o vantajoso para ver e para ouvir? E nesta arte mesma
há algum defeito? Cada arte precisa de outra arte que examine o que lhe é vantajoso
, esta por seu turno de outra semelhante e assim ao infinito? Ou examina ela própr
ia o que lhe é vantajoso? Ou ainda não necessita de si nem de outra para remediar a
sua imperfeição 24? Pois nenhuma arte tem sinal de falha ou de imperfeição, e não deve pro
curar outra vantagem, afora a do objeto: ao qual se aplica: ela própria, quando ve
rdadeira, estando isenta de mal e pura por todo o tempo em que parmanecer rigoro
sa e inteira¬mente conforme à sua natureza. Examina, pois, tomando as palavras no se
ntido preciso de que falavas: E assim ou de outro modo? — Parece-me que é assim — conf
irmou êle. — Portanto — redargüi — a medicina não tem em vista a sua própria vantagem, mas a
o corpo. — Sim — reconheceu. — Nem a arte hípica a sua própria vantagem, mas a dos cavalos
; nem, em geral, qualquer arte a sua própria vantagem, pois de nada carece, mas a
do objeto a que se aplica. — Assim se me afigura — disse êle. — Mas, Trasímaco, as artes g
overnam e dominam o objeto sabre o qual se exercem. Ele me concedeu isso, porém, a
muito custo. — Portanto, nenhuma ciência visa ou prescreve a vantagem do mais forte
, porém a do mais fraco, do objeto governado por ela. Por fim, concedeu-me também êste
ponto, mas depois de tentar contestá-lo; quando cedeu, eu disse: — Assim, o médico, n
a medida em que é médico, não visa nem ordena a sua própria vantagem, mas a do doente? C
om efeito, tínhamos reconhecido que o médico, no sentido preciso da palavra, governa
os corpos e não é homem de negócios . Não foi? Ele concordou. — E que o pilôto, no sentido
preciso, governa os mari- nheiros, mas não é marinheiro? — Reconhecemos, sim. — Por cons
eguinte, um tal pilôto, um tal chefe, não visará e não prescreverá de modo algum a sua própr
ia vantagem, porém a do marinheiro, do sujeito que êle governa?
| Faculdade Liberal OnLine Concordou com dificuldade. — Assim pois, Trasimaco — pros
segui — nenhum chefe, qualquer que seja a natureza de sua autoridade, na medida em
que é chefe, se propõe e ordena a sua própria vantagem, mas a do súdito ao qual gove rn
a e para o qual exerce a sua arte; com vista ao vantajoso e conveniente a êste súdit
o, é que êle diz tudo o que diz e faz tudo o que faz. Estávamos neste ponto da discussão
, e era claro a todos que a definição de justiça dera no contrário, quando Trasímaco, em v
ez de responder, bradou: — Dize-me, Sócrates, tens uma ama-de-leite? — O quê? — repliquei —
não seria preferível me res- ponderes a fazeres semelhantes perguntas? — É que — continuou
— ela te deixa ranhoso e não te assoa, embora ainda precises disso, já que não aprendes
te a distinguir entre carneiros e pastor. — Por que dizes isso? — indaguei. — Porque i
maginas que os pastôres e os vaqueiros se propõem o bem de seus carneiros e bois, qu
e os engordam e criam tendo em mira algo mais do que o bem de seus amos e dêles próp
rios. E, do mesmo modo, julgas que os chefes das cidades, os que são verdadeiramen
te chefes, encaram os seus súditos de outra forma e não como bois e ca rneiros, e se
propõem outro fim, dia e noite, que não o de tirar déles proveito pessoal. Foste tão lo
nge no conhecimento do justo e da justiça, do injusto e da injustiça, que ignoras qu
e o justo, na realidade, é um bem estranho 26 , a vantagem do mais forte e de quem
governa, e o prejuízo próprio de quem obedece e de quem serve; que a injustiça é o opos
to e que ela comanda os simples de espírito e os justos; que os súditos trabalham pa
ra a vantagem do mais forte e fazem a felicidade dêle servindo-o, mas de nenhuma m
aneira a dêles próprios. Eis, ó simplicíssimo Sócrates, como é preciso considerar a questão:
homem justo é em tôda parte inferior ao injusto. Primeiro, no comércio, quando eles s
e associam um com o outro, jamais verificarás, na dissolução da sociedade, que o justo
ganhou, mas que perdeu; depois, nos negócios públicos, quando é mister pagar contribu
ições, o justo desembolsa mais do que seus iguais, o injusto menos; quando, ao contrár
io, se trata de receber, a um nada toca, a outro muito. E quando um e outro ocup
am cargo, advém ao justo, ainda que não sofra outro dano, deixar por negligência que s
eus assuntos domésticos periclitem e não auferir da coisa pública qualquer lucro, por
causa de sua justiça. Além do mais, incorre no ódio de seus parentes e conhecidos, rec
usando-se a servi-los em detrimento da justiça; com o injusto, sucede exatamente o
contrário. Pois entendo como tal aquêle a que me referia há pouco, aquêle que é capaz de
predominar altamente sôbre os outros; examina-o, pois, se queres discernir o quant
o, no pa rticular, a injustiça é mais vantajosa do que a justiça. Compreendê-lo-ás, porém, m
ais fàcilmente se fores até a mais perfeita injustiça, a que leva ao cúmulo de felicidad
e o homem que a comete, e no cúmulo da desgraça os que a sofrem e não querem cometê-la.
Esta injustiça é a tirania que, por meio de fraude e violência, se apodera do bem alhe
io: sagrado, profano, particular, público, e não por partes, mas tudo de uma vez. Di
ante de cada um dêstes delitos, o homem que se deixa apanhar é punido e cobe rto dos
pio res estigmas; com efeito, costuma-se tratar estas criaturas que operam por
miúdo, de sacrílegas, traficantes de escravos, arrombadores de paredes, espoliadores
, ladrões, con- forme a injustiça cometida. Mas quando um homem, além da fortuna dos c
idadãos, se apodera de suas pessoas e os assujeita, em vez de receber nomes vergon
hosos, chamam-no feliz e afortunado, não só os cidadãos, mas ainda todos os que venham
a saber que êle praticou injustiça em tôda a extensão; pois os que a censuram não temem c
ometer injustiça: temem sofrê-la. Assim, Sócrates, a injustiça, levada a um grau sufi- c
iente, é mais forte, mais livre, mais digna de um senhor do que a justiça, e, como e
u afirmava no começo, o justo consiste na vantagem do mais forte e o injusto é, para
si mesmo, vantagem e proveito. Tendo assim falado, Trasimaco pretendia retirar-
se, depois de haver, como um banhista, inundado nossas orelhas com o seu impetuo
so e abundante discurso. Mas os assistentes não lho permi- tiram e forçaram-no a per
manecer, para prestar contas de suas palavras. Eu mesmo instei-o a fazê-lo e disse
-lhe: "Ó divino Trasímaco, depois de teres lançado semelhante discurso, queres ir embo
ra, antes de nos demonstrar suficientemente ou nos ensinar se a coisa é assim ou d
iferente? Julgas que é emprêsa de somenos definir a regra de vida que cada um de nós d
eve seguir para viver da maneira mais proveitosa? — Penso eu por acaso — disse Trasíma
co — que seja de outro modo?
Platão – A República (Livro I) 21 — Tens o ar — redargüi — ou então não te preocupas conosco
e incomodas que levemos vida pior ou melhor, na ignorância daquilo que pretendes s
aber. Mas, bondosa criatura, dá-te ao trabalho de nos instruir, também: não farás mau em
prêgo servindo-nos, numerosos como somos. Pois, para ser fr an co contigo, não estou
convicto, e não creio que a injustiça seja mais proveitosa do que a justiça, mesmo qu
e se tenha a liberdade de cometê-la e que nada impeça de fazer o que se quer. Ainda
que um homem, bondosa criatura, seja injusto e possua o poder de praticar a inju
stiça pela fraude ou à fôrça declarada: nem por isso fico convencido de que obtém dela mai
s lucro do que da justiça. Talvez seja êste o sentimento de alguém mais dentre nós, e não
só o meu; persuade-me, pois, divino homem, de maneira satisfatória, de que erramos a
o preferir a justiça à injustiça. — E como te persuadiria eu, se não ficaste persuadido co
m o que acabo de dizer? Que mais poderei fazer? Deverei pegar meus argumentos e
enfiá-los em tua cabeça? — Por Zeus! — exclamei. — Alto lá! Mas primeiro, mantém-te nas posiç
ssumidas, ou, se mudares, fá-lo clara- mente e não nos engane. Agora, vê, Trasímaco, par
a voltar ao que dissemos, depois de haveres dado a definição do verdadeiro médico, não j
ulgaste necessário guardar rigorosa- mente a do verdadeiro pastor. Pensas que, na
qualidade de pastor, êle engorda os seus carneiros, não com vistas ao maior bem dêstes
, mas, como um guloso que deseja oferecer um festim, com vistas à boa mesa, ou, co
mo um comerciante, com vistas à venda, e não como pastor. Mas a a rte do pastor propõe
-se apenas a prover ao maior bem do objeto ao qual se aplica, pois que ela própria
é suficientemente provida de qua- lidades que lhe asseguram a excelência, enquanto
permanece conforme à sua natureza de a rte pastoril. Pela mesma razão, eu supunha há p
ouco que éramos forçados a convir que todo govêrno, enquanto govêrno, se propõe unicamente
o maior bem do súdito que governa e que lhe incumbe, trate-se de uma cidade ou de
um particular. Mas tu, pensas que os chefes das cidades, os que verdadeiramente
governam, o façam de bom grado? — Se eu penso? Por Zeus, estou certo disso! — Mas com
o! Trasímaco — retruquei — não reparaste, quanto aos outros cargos, que ninguém consente e
m exercê-los por si mesmos, mas que, ao contrário, exige uma retribuição, porque não sois
vós que lucrais com o seu exercício, porém os governados? Depois, responde-me só a isso:
não se diz sempre que uma arte se distingue de outra pelo fato de possuir um pode
r diferente? E, bem-aventurado homem, não responde contra a tua opinião, a fim de qu
e avancemos um pouco. — Mas é nisso — disse êle — que uma se distingue da outra. — E cada um
a não nos proporciona certo benefício par- ticular e não comum a todos, como a medicin
a nos proporciona a saúde, e a pilotagem, a segurança na navegação e assim por diante? — S
em dúvida. — E a arte do mercenário, o salário? Pois êste é o seu poder próprio. Confundes em
conjunto a medicina e a pilo- tagem? Ou, para definir os termos com rigor, como
propuseste, se alguém adquire saúde governando um barco, por lhe ser vantajoso viaja
r sôbre o mar, chamarás por isso a sua a rte de medicina? — Certamente não — respondeu. — Ne
m, creio eu, de arte do mercenário, se alguém adquire saúde exercendo-a. — Certamente não.
— Mas como! chamarás a medicina de arte do mercenário, porque o médico, curando, ganha
salário? — Não — disse êle. — Não reconhecemos que cada arte proporciona um bene- fício parti
ar? — Seja — concedeu. — Se, po rtanto, todos os artesãos beneficiam em comum de certo l
ucro, não é evidente que acrescentam à respectiva arte um elemento comum de que tiram
lucro? — Parece — disse êle. — E dizemos que os artesãos ganham salário porque juntam à respe
tiva arte a do mercenário.
| Faculdade Liberal OnLine Trasímaco conveio a custo. — Não é, pois, da arte que exerce,
que cada um retira o lucro que consiste em receber um salário; mas, para exa- min
ar com rigor, a medicina cria a saúde, e a arte do mer- cenário produz o salário, a ar
quitetura edifica a casa, e a a rte do mercenário, que a acompanha, produz o salário
, e assim em tôdas as outras artes: cada uma trabalha na obra que lhe é própria e bene
ficia o objeto a que se aplica. Mas, se o salário não se acrescenta à a rte, aproveita
rá o artesão de sua arte? — Não parece — disse. — E cessa ela de ser útil quando êste trabalh
ratuita- mente? Não, a meu ver. Neste caso, Trasímaco, é evidente que arte alguma nem
comando algum provê a seu benefício próprio, mas, como dizíamos há um momento, assegura e
presc reve o do governado, visando a vantagem do mais fraco e não a do mais fo rte
. Eis por que, meu caro Trasímaco, eu afirmava há pouco que ninguém consente de bom gr
ado em governar e em curar os males de outrem, mas exige salário, porquanto quem q
uer exercer convenientemente sua arte não faz e não prescreve, na medida em que pres
creve segundo esta arte, senão o bem do governado; por tais razões, cumpre atribuir
um salário aos que consentem em governar, seja dinheiro, seja honra, seja castigo,
caso se recusem. — O que pretendes dizer com isso, Sócrates? — indagou Glauco. — Conheço,
efetivamente, os dois outros salários, mas ignoro o que entendes por castigo dado
à guisa de salário. — Não conheces, portanto, o salário dos melhores, aquêle pelo qual os m
ais virtuosos governam, quando se resignam a fazê-lo. Não sabes que o amor à honra e a
o dinheiro passa por coisa vergonhosa e o é de fato? — Bem sei — disse êle. — Por esta cau
sa — repliquei — as pessoas de bem não querem governar nem pelas riquezas nem pela hon
ra; pois não querem ser tratadas de mercenários exigindo abertamente o salário de suas
funções, nem de larápios auferindo destas funções proveitos secretos; tampouco agem pela
honra: pois de modo algum são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja coação e castigo
para que consintam em governar — por isso, tomar o poder de plena vontade, sem que
a necessidade obrigue, arrisca ser tachado de coisa vergonhosa — e o maior castig
o está em ser governado por alguém mais perverso do que a gente, quando a gente mesm
a não quer governar; é neste temor que me parecem agir, quando governam, os homens d
e bem, e então vão ao poder, não como a um bem, a fim de gozá-lo, mas como a uma tarefa
necessária, que não podem confiar a melhores do que eles, nem a iguais. Se uma cidad
e de homens bons viesse à existência 29 , lutar-se-ia nela, parece-me, para escapar
ao poder, assim como agora se luta para obtê-lo, e daí tornar-se-ia claro que o verd
adeiro governante não foi feito, na realidade, para buscar a sua vantagem própria, m
as a do governado; de sorte que todo homem sensato preferiria ser obrigado por o
utrem a se dar o incômodo de obrigar a outrem 3. Por conseguinte, não concordo absol
utamente com Trasímaco que a justiça seja o interesse do mais fo rte. Mas retornarem
os a êste ponto, outra vez; atribuo muita importância ao que diz agora Trasímaco, que
a vida do homem injusto é superior à do justo. Que partido tomas tu, Glauco? — pergunt
ei. — Qual destas asserções te parece a mais verdadeira? — A vida do justo — respondeu --
me parece mais proveitosa. — Ouviste a enumeração que Trasímaco acaba de fazer dos bens
ligados à vida do injusto? — Ouvi, mas não estou convencido. — Queres então que o convençamo
s, se conseguirmos en- contrar algum meio, de que não está com a verdade? — Como não hav
eria de querer? — replicou êle. — Se portanto — continuei — armando nossas fôrças contra êle
pondo discurso contra discurso, enumerarmos os bens que a justiça fornece, ainda q
ue êle replique, a seu turno, e nós novamente, será mister contar e medir as vantagens
de parte a parte, em cada discurso, e necessitaremos de juízes para decidir; se,
ao contrário, como ainda há pouco, debatermos a questão até um mútuo acôrdo, seremos nós próp
s em conjunto juizes e advogados.
Platão – A República (Livro I) 23 — É certo. — Qual dos dois métodos preferes? — O segundo. —
pois, Trasímaco, recomecemos pelo inicio e res-ponde-me. Pretendes que a perfeita
injustiça é mais vanta¬josa do que a perfeita justiça? — Certamente — redargüiu — e já aprese
as razões. — Muito bem, mas como entendes essas duas coisas; denominas uma virtude e
a outra, vício? — Sem dúvida. E é a justiça que denominas virtude e a injustiça, vício? — Se
so verossímil, encantadora criatura, quando digo que a injustiça é vantajosa e a justiça
não o é? — O que então? — O contrário — disse ele. — A justiça é um vício? — Não, mas uma no
ade de caráter. — Então, a injustiça é uma perversidade de caráter? — Não, é prudência. — Ser
que os injustos te parecem sábios e bons? — Sim — retrucou — os que são capazes de comete
r a injustiça com perfeição e submeter cidades e povos. Não julgas, porventura, que falo
de gatunos? Tais práticas são por certo proveitosas, enquanto não descobertas; mas não
merecem menção ao lado das que acabo de indicar. — Compreendo bem o teu pensamento; o
que me sur-preende, porém, é que classifiques a injustiça com a virtude e a sabedoria,
e a justiça com os contrários destas. — No entanto, é exatamente assim que as classific
o. — Isto está agravando-se, camarada — repliquei — e não é fácil saber o que se pode dizer.
om efeito, se estabelecesse, simplesmente, que a injustiça beneficia, embora convi
ndo, como alguns outros, que é vício e coisa vergonhosa, poderíamos responder-te invoc
ando as noções correntes sôbre o assunto; mas, evidentemente, dirás que ela é bela e forte
, e Lhe concederás todos os atributos que nós concedemos à justiça, pôsto que ousaste clas
sificá-la com a virtude e a sabedoria. — Adivinhas muito bem — disse êle. — Não devo, todavi
a, recusar-me a prosseguir neste exame, enquanto me fôr dado crer que falas seriam
ente. Pois me parece realmente, Trasímaco, que não fazes caçoada, e que exprimes a tua
verdadeira opinião. — Que te importa — replicou — que seja ou não minha opinião? Refuta-me
apenas. — Não importa, com efeito — confessei. — Mas procura responder ainda a isto: pen
sas que o homem justo quereria prevalecer em algo sôbre outro justo? — Nunca — disse êle
— pois não seria cortês e simples como é. — Que! Nem mesmo numa ação justa? — Nem mesmo niss
Mas pretenderia êle prevalecer sôbre o homem injusto, e pensaria ou não fazê-lo justamen
te? — Pensaria — redargüiu — e pretenderia, mas não deria fazê-lo. — Não é esta a minha indag
gunto se não teria o justo nem a pretensão nem a vontade de prevalecer sôbre o justo,
mas semente sobre o injusto. — Assim é — disse êle.
| Faculdade Liberal OnLine — E o injusto pretenderia prevalecer sôbre o justo e sôbre
a ação justa? — Como não haveria de querer, êle que pretende preva-lecer sôbre todos? — Assim
pois, prevalecerá sôbre o homem injusto e sôbre a ação injusta, e lutará para prevalecer sôb
e todos? — — Digamos, então, que o justo não prevalece sôbre o seu semelhante, mas sôbre o s
eu contrário; o injusto prevalece sôbre o seu semelhante e sabre o seu contrário. — Exce
lentemente expresso — exclamou. — Mas — continuei — o injusto é sábio e bom, enquanto o just
o não é uma nem outra coisa? — Excelente, também — disse êle. — Por conseguinte, o injusto as
emelha-se ao sábio e ao bom, e o justo não se lhes assemelha? — Como poderia ser de ou
tro modo? Sendo o que é, êle se parece a seus similares, e o outro não se lhes parece.
— Otimo. Cada um é, portanto, tal como aquêles aos quais se assemelha. — Quem pode duvi
dar disso? — perguntou êle. — Seja, Trasímaco; agora, não dizes de um homem que êle é músico
e outro que êle não é? — Sim. — Qual dos dois é sabedor, e qual não o é? — O músico é seguram
dor e o outro não o é. — E um não é bom nas coisas em que é sabedor, e o outro mau nas coisa
s em que não o é? — Sim. — Mas com respeito ao médico, não é assim? — É sim. — Agora, crês, e
homem, que um músico que afina sua lira quer, retesando ou distendendo as cordas,
prevalecer sôbre algum músico, ou pretende obter vantagem sôbre êle? — Não, não creio. — Mas
um homem ignorante da música, quererá êle prevalecer? — Sim, necessariamente. — E o médico?
Prescrevendo comida e bebida, quererá prevalecer sôbre outro médico, ou sôbre a prática méd
ica? — Certamente não. — E sôbre um homem ignorante em medicina? — Sim. — Mas veja, a respei
to da ciência e da ignorância em geral, se um sabedor, qualquer que seja, te parece
querer prevalecer, nos atos ou nas palavras, sôbre outro sabedor, e não agir como o
seu semelhante no mesmo caso. — É possivelmente necessário — confessou — que assim aconteça.
— Mas o ignorante não quererá prevalecer similarmente sôbre o sabedor e o ignorante? — Ta
lvez. — Ora, o sabedor é sábio? — Sim. — E o sábio é bom?
Platão – A República (Livro I) 25 — Sim. — Logo, o homem sábio e bom não quererá prevalecer s
o seu semelhante, mas sôbre quem não se lhe assemelha, sôbre o seu contrário. — Aparenteme
nte — disse êle. — Enquanto o homem malévolo e ignorante quererá preva- lecer sobre o seu
semelhante e sôbre o seu contrário. — É de crer. — Mas, Trasímaco — prossegui — nosso homem i
sto não prevalece sôbre o seu contrário e o seu semelhante? Não o disseste? — Sim — confirmo
u êle. — E não é certo que o justo não prevalecerá sôbre o seu semelhante, mas sôbre o seu co
io. — Sim. — O justo — disse eu — assemelha-se, portanto, ao homem sábio e bom, e o injust
o ao homem malévolo e ignorante. — Pode ser. — Mas tínhamos reconhecido que cada um dêles é
tal como aquêle a quem êle se assemelha. — Com efeito, tínhamos reconhecido. — O justo se
nos revela, pois, bom e sábio, e o injusto, ignorante e malévolo. Trasímaco concordou
com tudo isso, não tão fàcilmente como eu o relato, mas a contragosto e com pesar. Sua
va em bica, tanto mais que fazia muito calor; e foi então que vi Trasímaco corar pel
a primeira vez! Mas quando afinal con- viemos em que a justiça é virtude e sabedoria
e a injustiça, vício e ignorância, prosseguiu: — Seja! consideremos isso assentado: mas
dissemos que a injustiça também pa rt ilha da fôrça. Não te lembras, Trasímaco? — Lembro-me
isse êle — mas não me agrada o que acabas de afirmar, e tenho o que contestar. Entreta
nto, sei muito bem que se eu tomar da palavra dirás que faço uma arenga. Deixa-me, p
ois, falar à vontade, ou, se desejas inter- rogar-me, interroga-me; e eu, como se
faz com as velhas que contam histórias, te direi "seja!" e, com a cabeça, te aprovar
ei ou desaprovarei. — Pelo menos — pedi — não respondas contra a tua opinião. — Farei o que
te aprouver, já que não me deixas falar. Que queres mais? — Nada mais, por Zeus — retruq
uei — faze como bem entenderes; vou te interrogar. — Interroga. — Formular-te-ei, port
anto, a mesma pergunta de há pouco, a fim de retomar o fio da discussão: o que é a jus
tiça comparada à injustiça? Foi dito, com efeito, que a injustiça é mais forte e mais pode
rosa do que a justiça; mas agora, se a justiça é sabedoria e virtude, será fácil mostrar,
penso, que ela é mais forte do que a injustiça, porquanto a injustiça é ignorância. Ninguém
pode continuar ignorando-o. No entanto, não é de maneira tão simples, Trasímaco, que des
ejo encarar o assunto, mas do seguinte ponto de vista: existirá, dize-me, cidade i
njusta que tente assujeitar ou que assujeitou injusta mente outras cidades, mant
endo grande número delas em escravidão? — Seguramente — respondeu. — E é como há de pro- cede
a melhor cidade, a mais perfeitamente injusta. — Sei que esta era a tua tese. Mas
a este propósito considero o seguinte ponto: acaso uma cidade que se assenhoreia
de outra cidade poderá fazê-lo sem a justiça, ou será obrigada a recorrer a ela? — Se, com
o tu dizias há pouco, a justiça é sabedoria, terá de recorrer a ela; mas, se é como eu diz
ia, empregará a injustiça.
| Faculdade Liberal OnLine — Estou encantado, Trasímaco, por não te contentares em apr
ovar ou desaprovar com um aceno de cabeça, e por responderes tão bem. — É — disse êle — para
e dar prazer. — Muito gentil de tua parte. Mas concede-me a graça de responder ainda
a isto: crês que uma cidade, um exército, um bando de salteadores ou de ladrões, ou q
ualquer outra sociedade que persiga em comum um fim injusto, poderia conduzir a
bom termo qualquer emprêsa, se os seus membros violassem entre si as regras da jus
tiça? — Certamente não — confessou. — Mas se as observassem? Ela iria melhor? — Sem dúvida. —
m efeito, Trasímaco, a injustiça engendra entre os homens dissensões, ódios e lutas, enq
uanto a justiça mantém a concórdia e a amizade. Não é? — Seja! — disse êle — para não ter que
ir con- tigo. — Tu te comportas muito bem, excelente homem. Mas responde à seguinte
pergunta: se é próprio da injustiça gerar ódio em tôda parte onde ela se encontra, surgind
o entre homens livres ou escravos, não fará com que se detestem, briguem entre si e
se tornem impotentes de empreender qualquer coisa em comum? — Por certo. — Mas caso
surja em dois homens? Não ficarão eles divididos, rancorosos, inimigos um do outro e
dos justos? — Ficarão, sim — confirmou. — E se, maravilhoso amigo, a injustiça surge num
só homem, perderá ela o seu poder ou guardá-lo-á intato? — Seja que ela o guarde intato! — c
oncedeu êle. — Portanto, não parece ter o poder, onde quer que ela surja, cidade, trib
o, exército ou sociedade qualquer, cada um dêles de tornar primeiramente incapaz de
proceder de acôrdo consigo próprio, por causa das dissensões e diferenças que ela provoc
a, e, em seguida, de fazê-lo inimigo de si próprio, de seu contrário e do justo? — Sem dúv
ida. — E num só homem, imagino que produzirá os mesmos efeitos, que está na natureza del
a produzir; primeiro, torná-lo-á incapaz de agir, provocando em seu íntimo sedição e discórd
ia; em seguida, há de fazê-lo inimigo de si próprio e dos justos. Não é? — E, sim. — Mas, meu
caro, não são os deuses justos? — Seja! — disse êle. — Logo, também dos deuses o justo será i
igo, Trasí- maco, e o justo, amigo. — Regala-te à vontade com os teus discursos: não te
contradirei, a fim de não atrair sôbre mim o ressentimento dos que nos ouvem. — Pois b
em, adiante! — repliquei — sacia-me com o restante do festim, continuando a responde
r. Acabamos de ver que os homens justos são mais sábios, melhores e mais poderosos n
a ação do que os injustos e que estes são incapazes de agir de comum acôrdo, e quando di
zemos que conduziram alguma vez, vigorosamente, uma empresa em comum, isto não é de
maneira nenhuma a verdade, pois não se teriam poupado uns aos outros, se fôssem abso
lutamente injustos; assim é evidente que havia neles certa justiça que os impediu de
se prejudicarem màtuamente, enquanto prejudicavam as suas vítimas, e que lhes permi
tiu fazer tudo o que fizeram; lançando-se a seus injustos empreendimentos, estavam
apenas, em parte, per¬vertidos pela injustiça, porquanto os perversos consumados e
os perfeitos injustos são do mesmo modo
Platão – A República (Livro I) 27 perfeitamente in¬capazes de fazer algo, seja o que fôr. É
assim que compreendo o caso, e não como o formulaste no comêço. Falta examinar, agora,
se a vida do justo é melhor e mais feliz do que a do injusto: questão que havíamos po
stergado a um exame ulterior. Ora, isto me parece evidente, depois do que dissem
os. Entre¬tanto, devemos examinar melhor o problema, pois a discussão, aqui, não trata
de uma bagatela, mas da maneira pela qual precisamos regrar nossa vida. — Examina
pois — disse êle. — E o que vou fazer — respondi. — E dize-me: parece-te que o cavalo ten
ha uma função? — Sim. — Ora, colocarias como função do cavalo, ou de seja o que fôr, o que só
pode fazer por meio dêle, ou o que se pode com êle melhor fazer? — Não compreendo — disse
êle. — Expliquemo-nos: enxergas por algo mais a não ser pelos olhos? — Claro que não. — E o
uves por algo mais a não ser pelos ouvidos? — De forma alguma. — Por conseguinte, pode
mos dizer com justiça que estas são funções dos referidos órgãos. — Sem dúvida. — Mas então!
ias podar uma vide com uma faca, com um trinchête e com muitos outros instrumentos
? — Por que não? — Mas com nenhum, penso, tão bem quanto com uma podoa, que é feita para i
sso. — É verdade. — Não afirmaremos, pois, que esta é a sua função? — Afirmá-lo-emos, seguram
— Agora, quero crer, compreendes melhor o que eu dizia há pouco, ao te perguntar se
a função de uma coisa é o que só ela pode fazer, ou o que ela faz melhor do que as outr
as. — Compreendo — disse — e julgo que é realmente esta última a função de cada coisa. — Ótim
argüi. — Mas não há também uma virtude em cada coisa, a que uma função está consignada? Volte
a nossos exemplos anteriores: os olhos, dizemos, têm uma função? — Têm, sim. — Portanto, têm
também uma virtude?. — Uma virtude, também. — Mas, então, os ouvidos, dissemos, têm uma funçã
Sim. — E, portanto, uma virtude também? — Também. — Mas não acontece o mesmo, a propósito de
ualquer coisa? — Acontece, sim. — Pois bem! poderiam os olhos cumprir bem a sua função,
se não possuíssem igualmente a virtude que lhes é própria, ou se, em vez desta virtude,
possuíssem o vício con-trário? — Como haveriam de poder? Queres dizer provàvelmente a cegu
eira em lugar da vista? — Qual essa virtude, pouco importa; ainda não é o que te pergu
nto, mas apenas se cada coisa se desempenha bem de sua função pela virtude própria, e
mal, pelo vício contrário. — Isso é como dizes — confessou.
| Faculdade Liberal OnLine — Portanto, os ouvidos, privados da virtude que lhes é próp
ria, preencherão mal as suas funções? — Sem dúvida. — Aplica-se esse princípio a tôdas as out
coisas? — Parece-me. — Ora, assim sendo, examina agora o seguinte: não tem a alma uma
função que nada mais,, exceto ela, poderia preencher, como a de vigiar, comandar, d
eliberar e o resto 34? Podemos atribuir estas funções a outra coisa que não à alma e não t
emos o direito de dizer que elas lhe são próprias? — Não podemos atribuí-las a nenhuma out
ra coisa. — E a vida? Não diremos que é uma função da alma? — Seguramente — respondeu. — Logo
firmaremos que a alma também tem sua virtude própria 35? — Sim, afirmaremos. — Ora, Tras
imaco, poderá alguma vez a alma se desem-penhar bem destas funções se fôr privada de sua
virtude própria? Ou é isso impossível? — E impossível. — Por conseqüência, é necessário que
perversa comande e vigie mal, e que a alma boa faça tudo isso bem. — É necessário. — Ora,
não ficamos de acôrdo que a justiça é uma virtude e a injustiça, um vício da alma? — Ficamos,
com efeito. — Portanto, a alma justa e o homem justo hão de viver bem e o injusto ma
l? — Parece — disse êle — pelo teu raciocínio. — Mas quem vive bem é, por certo, feliz e afor
unado, e quem vive mal, o contrário. — Quem pode duvidar? — Assim, o justo é feliz e o i
njusto, infeliz. — Seja! — concedeu ele. — E não é proveitoso ser infeliz, mas ser feliz. —
Não resta dúvida. — Nunca, por conseguinte, divino Trasimaco, é a injustiça mais proveitos
a do que a justiça. — Seja este, Sócrates — disse ele — o teu festim das Bendidéias! — Devo e
te favor a ti, Trasimaco, visto que te apazi¬guaste, cessando de te mostrar rude p
ara comigo. Entretanto, não me regalei inteiramente: por minha culpa e não por tua.
Parece-me que procedi como os glutões, que se atiram Avidamente ao prato que se lh
es apresenta, antes de haver suficientemente degustado o anterior; do mesmo modo
, antes de ter achado o que procurávamos no início, a natureza da justiça, lancei-me a
uma digressão para examinar se ela é vício e ignorância ou sabedoria e virtude; como so
breviesse em se¬guida outra consideração, a saber, se a injustiça é mais vanta¬josa do que a
justiça, não pude impedir-me de passar de uma a outra, de modo que o resultado de n
ossa palestra é que nada sei; pois, não sabendo o que é a justiça, sei menos ainda, se é v
irtude ou não, e se aquele que a possui é feliz ou infeliz.

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