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IARC RATER ea 4 Comunicagac, cul Oo a oe Pees} =e O empenhe de se pensar ¢ probl smunicagde e da cultura Latina termina incluinde, macs cede cu mat tarde, e neme de Yess Martin-ark espanhel tadicade na Golsmbia, compre metide intelectual ¢ emecienalmente com as Fes CSTE ete [eo ere cite cree eee eer eet concepedes gue disseluam a dinde nee epeées gue disseluam a dindmica commun acienal na gencralidade da reyredugde se: cacienal na generalidade da repredugde se is Pa ” cu gue separem de munde da vida as ge ne eae a Escola de Frankfurt quante o varie da metedelogia semistion. AV primecra, wa steva a assimilagde da a Z stecesse industrial as Peas ” oer eran ad done, tey légica de acumulagde de capital, ¢ gue levaria & apele- , rae eee tenet rere ha de fuga para gia da nde-predugde ce Ne oe Ove aes i teprocdugie ideclégica. Va segunda, apenta eeeraree dee tree roe Aver inn eee, pap Saen eee ed lek Pian ae: te sentide des discurses A timanéncia de rene are Le cetera CATT LAT CONT Nerney od és re la de pesigde lold s ° Pasi n ta nas, mas tambéar as nevas dindavicas cullatacs detectadas pelas cééncias seciais ne dorbite des fenémenes da glebalizagde ¢ de mevimentes Y ele wer eeD y populares. AL transdiscéplinaridade emerge lisciplinas re l if pe des DOS MEIOS AS MEDIACOES COMUNICAGAO, CULTURA E HEGEMONIA Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor Aloisio Teixeira Vice Retora Sylvia Vargas Coordenadora do Farum de Ciéncia e Cultura Beatriz Resende Editora UFRJ Diretor Carlos Nelson Cot Coordenadora de Edigto de Texto Lisa Stuart Coordenadora de Produgio Janise Duarte Conselhe Editorial Carlos Nelson Coutinho (presidente) Charles Pessanha Diana Maul de Carvalho José Luts Fiori José Paulo Netto Leandro Konder Virginia Fontes DOS MEIOS AS MEDIACOES COMUNICACAO, CULTURA E HEGEMONIA JesdGs Martin-Barbero PREFACIO Néstor Garcia Canclini TRADUGAO Ronald Polito Sérgio Alcides 5+ EDICAO RIO DE JANEIRO EDITORA UFR) 2008 Copyright © by Editorial Gustavo Gil, S. A., Rosellin 87-89, Barcelona, 1987. ‘Tilo original De dor medio = las mediaciones: Comuniceciin, cultura y hegemonla Ficha Catlogrifica elaborada pela Divisio de Procestamento Técnico - SIBLU/UFR) M 379m Martin-Barbero, Jess Dos meios as mediagées: comunicasio, cultura e hegemonia / Jesis Martin-Barbero; Preficio de Néstor Garcia Canclini; Tradugio de Ronald Polito € Sérgio Alcides. 5. ed. Rio de Janciro: Edicora UFRJ, 2008. 360 ps 15 X 20,5 em 1. Comunicagio de massa. 2, Sociedade de massa. I. Tieulo. DD 302.23 ISBN 978-85-7108-208-3 1 edigao: 1997 2 edigéo: 2001 3 edigio: 2003 4 edigdo: 2006 Copa ita Nigel Eiigdo de Texto ‘Ana Paula Mathias de Paiva Revisao Ceclia Morcira Joverte Babo Maria Guimaraes Simone Brames (4* edigio) Prajto Graco ¢ Elltorepto Elsrinica Editora. UFRJ Universidade Federal do Rio de Janciro Forum de Ciencia e Cultura Editora UFRJ Ay, Pasteur, 250 / sala 107 Praia Vermelha 2290-902 - Rio de Janeiro - RJ ‘Tel/Eax: (21) 2542-7646 © 2295-0346 1) 2295-1595 1. 124 a 127 hrep:ffwww.editora.ulr.br pie NP sccm Para meus pais e minha filha Olga SUMARIO Preficio & 5* edigao espanhola Preficio Introducao PRIMEIRA PARTE POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Capitulo 1 Afirmacao e negacao do povo como sujeito O povo-mito: romanticos versus ilustrados Povo e classe: do anarquismo 20 marxismo Emergéncia do popular nos movimentos anarquistas Dissolugao do popular no marsismo Capitulo 2 Nem povo nem classes: a so) A descoberta politica da multidéo A psicologia das multidées Metafisica do bomem-massa Antiteoria: a mediagdo-massa como cultura Capitulo 3 IndGstria Cultural: capitalismo e leg! Benjamin versus Adorno ou o debate de fundo Do logos mercantil arte como estranhamento dade de massas magao ll 23 27 32> ao 41 42 46 52 53 56 61 65 71 72 73 A experiéncia e a técnica como mediagées das massas com a cultura Da critica 4 crise Capitulo 4 Redescobrindo 0 povo: a cultura como espago de hegemonia O povo na outra histéria Cultura, hegemonia ¢ cotidianidade SEGUNDA PARTE MATRIZES HISTORICAS DA MEDIAGAO DE MASSA Capitulo 1 © longo processo de enculturacao Estado-Nacéo ¢ os dispositivos de hegemonia Centralizasio politica e wnificagio cultural Rupturas no sentido de tempo Transformasées nos modos do saber Cultura politica da resisténcia popular A dimensio politica da economia A dimensio simbélica das lutas Capitulo 2 Do folclore ao popular Uma literatura entre o oral ¢ 0 escrito O que dispée 0 mercado O que dispée 0 povo Uma iconografia para usos plebeus 79 88 98 99 111 133 133 134 136 138 141 141 144 148 148 149 154 158 Melodrama: 0 grande espetéculo popular Entre 0 circo e o palco Estrutura dramdtica e operagao simbélica Capitulo 3 Das massas a m: Inversio de sentido e sentidos da inversio Meméria narrativa e indistria cultural O aparecimento do meio Dispositivos de enunciagdo As condigies de produgao-edigéo Dialética escrituralleitura Dimensoes do enunciado O testemunho A compensagao Formato e simbolo Continuidade e rupturas na era dos meios TERCEIRA PARTE MODERNIDADE E MEDIAGAO DE MASSA NA AMERICA LATINA Capitulo 1 Os processos: dos nacionalismos as transnacionais Uma diferenga que nao se restringe ao atraso O descompasso entre Estado ¢ Nacio Massificacio, movimentos sociais ¢ populismo Os meios massivos na formagao das culturas nacionais 163 165 167 173 173 ip 177 179 180 182 191 191 192 194 196 217 217 219 224 232 Um cinema a imagem de um povo 235 Do circo criollo ao radioteatro 238 A legitimagéo urbana da miisica negra 242 O nascimento de uma imprensa popular de massas 246 Desenvolvimentismo e transnacionalizacao 250 O novo sentido da massificagio oon. A néio-contemporaneidade entre tecnologias e usos 255 Capitulo 2 Os métodos: dos meios as mediacoes 261 Critica da raz40 dualista, ou as mestigagens que nos constituem 261 A imposivel pureza do indigena 263 A mistura de povo e massa no urbano 268 A comunicagio a partir da cultura 280 O que nem 0 ideologismo nem o informacionismo permitem pensar 280 Cultura e politica: as mediagies constitutivas 285 Mapa noturno para explorar 0 novo campo 290 Sobre a cotidianidade, 0 consumo ¢ a leitura 290 A televisio a partir das mediagies 293 A cotidianidade familiar 295 A temporalidade social 297 A competéncia cultural 299 Logica da produgio e dos usos 301 Alguns sinais de identidade reconhectveis no melodrama 305 © popular que nos incerpela a partir do massivo 310 Referéncias bibliograficas 335 PREFACIO A 5° EDICAO ESPANHOLA PISTAS PARA ENTRE-VER MEIOS E MEDIACOES” Surgindo em 1987, este livro chega, dez anos depois, & sua quinta edigao espanhola (inaugurando a colegio “Pensamento latino- americano”, promovida pelo Convénio Andrés Bello). Sinto que isto me obriga, mais do que a atualizar seu contetido — 0 que tratei de fazer es- pecialmente nos trabalhos publicados desde meados dos anos 1990 -, a pensar o sentido de sua atualidade, Nao so poucas as vozes que, nos tiltimos anos, convidaram-me a escrever um livro que respondesse & inversio do titulo, isto é, Das mediagdes aos meios, pois este pareceria ser 0 novo rumo de que a inyestigacio sobre as relagdes entre comuni- cago e cultura na América Latina esti necessitando. Porém, por tris dessa proposta, se misturam vis6es do devir social e de projetos muito diferentes. Chego a vislumbrar pelo menos dois. Um que, partindo da envergadura econdmico-cultural que adquiriram as tecnologias audio- visuais ¢ informéticas nos acelerados processos de globalizacao, busca levar em conta os meios na hora de construir politicas culturais que fa- cam frente aos efeitos dessocializadores do neoliberalismo e insiram ex- plicitamente as indiistrias culcurais na construgao econémica e politica da regido. O outro projeto resulta da combinagio do otimismo tecno- légico com o mais radical pessimismo politico, € 0 que busca ¢ legiti- mar, através do poder dos meios, a oni-presenga mediadora do mercado. Pervertendo o sentido das demandas politicas e culturais, que encon- tram de algum modo expressio nos meios, deslegitima qualquer * Tradugio de Maria Immacolat: Vassallo de Lopes. iblioteca Poblica Municipal} Teixorede Frees -BA | DOS MEIOS As MEDIACOES questionamento da ordem social & qual somente 0 mercado ¢ as tecno- logias permitiriam dar forma, Este dltimo € 0 projeto hegeménico que nos faz submergir numa crescente onda de fatalismo tecnoldgico, frente ao qual resulta, mais necessétio do que nunca, manter a estraté- gica tensio, epistemolégica e politica, entre as mediagées histéricas que do- tam os meios de sentido e alcance social e o papel de mediadores que eles possam estar desempenhando hoje. Sem esse minimo de distancia- mento — ou negatividade, diriam os frankfurtianos —, nos é impossivel 0 pensamento critico. Como assumir, ento, a complexidade social e per- ceptiva que hoje reveste as tecnologias comunicacionais, seus modos transversais de presenga na cotidianidade, desde o trabalho até o jogo, suas intricadas formas de mediacio tanto do conhecimento como da po- litica, sem ceder ao realismo do inevitével produzido pela fascinacéo tecnolégica, ¢ sem deixar-se apanhar na cumplicidade discursiva da mo- dernizacito neoliberal racionalizadora do mercado como tinico princi- pio organizador da sociedade em seu conjunto~com o saber tecnolbgico, segundo © qual, esgotado o motor da luta de classes, a histéria teria encontrado seu substituto nos avatares da informaciza e comunicagiio? A centralidade incontestavel que hoje ocupam os meios de comunicagio resulta desproporcionada ¢ paradoxal em paises como os nossos, com necessidades bésicas insatisfeitas no ambito da educagao ou da satide, € onde o crescimento da desigualdade atomiza nossas sociedades, dete- riorando os dispositivos de comunicagdo, isto é, de coesio politica e cul- tural. E, pelo que, “desgastadas as representagbes simbélicas, ndo con- seguimos fazer-nos uma imagem do pais que queremos, a politica nfo logra fixar o rumo das mudangas em marcha”.' Daf que nossas popula- ‘ges possam, com certa facilidade, assimilar as imagens da moderniza- Gao € no poucas mudangas tecnoldgicas, porém somente muito lenta e dolorosamente possam recompor seus sistemas de valores, de normas éticas e virtudes civicas. Tudo isso nos exige continuar o esforco por de- sentranhar a cada dia mais complexa trama de mediagées que a relagio comunicagao/cultura/politica articula, 12 PREFACIO A 5* EDICAO ESPANHOLA Do lado da comunicacdo, 0 que hoje necessitamos pensar & um processo no qual o que estd em jogo jé nao é a dessublimagao da arte, simulando, na figura da indistria cultural, sua reconciliagao com a vida, como pensavam os frankfurtianos, e sim a emergéncia de uma razdo comunicacional, cujos dispositivos — a fragmentagio que desloca e descentra, o fluxo que globaliza e comptime, a conexao que desmate- rializa ¢ hibridiza - agenciam as mudangas do mercado da sociedade. Frente ao consenso dialogal em que Habermas vé emergira razdo comu- nicatiea, liberada da opacidade discursiva e da ambigilidade politica que as mediag6es tecnolégica e mercantil introduzem, 0 que estamos tentando pensar é a hegemonia comunicacional do mercado na socieda- comunicagéo convertida no mais eficaz motor de desengate e de das culcuras ~ étnicas, nacionais ou locais — no espago/tempo do mezcado e nas tecnologias globais. No mesmo sentido, estamos ne- cessitando pensar o lugar estratégico que passou a ocupar a comunica- ¢do na configura¢ao dos novos modelos de sociedade, ¢ sua paradoxal vinculagdo tanto com o relancamento da modernizagio — via satélites, informatica, videoprocessadores — quanto com a desconcertada e ta- teante experiéncia da tardomodernidade. Do lado da cultura, até hé relativamente poucos anos, o mapa parecia claro e sem rugas: a antropologia tinha a seu encargo as culturas primitivas e a sociologia se encarregava das modernas. O que implicava duas idéias opostas de cultura: para os antropdlogos, cultura é tudo, pois, no magma primordial em que habitam os primitivos, cultura ¢ tan- too machado quanto o mito, a oca e as relagdes de parentesco, o reper- trio das plantas medicinais ou das dangas rituais; para os socidlogos, cultura é somente um tipo especializado de atividades ¢ de objetos, de praticas e produtos pertencentes ao cinone das artes ¢ das letras. Na tardomodernidade em que hoje vivemos, a separagao que instaurava aquela dupla idéia de cultura é, de um lado, obscurecida pelo movi- mento crescente de especializagao comunicativa do cultural, agora or- ganizado em um sistema de maquinas produtoras de bens simbélicos ajustadosa seus “ptiblicos consumidores”. £ 0 que hoje faza escola com 13 DOS MEIOS As MEDIAGOES. seus alunos, a televisio com suas audiéncias, a igreja com seus figis ou aimpresa com seus leltores. E, de outro lado, ¢ toda a vida social que, an- tropologizada, torna-se cultura. Como se a méquina da racionalizagio modernizadora — que separa ¢ especializa -, impossivel de set detida, estivesse girando, patinando, em circulos, a cultura escapa a toda com- partimentalizacao, irrigando a vida social por inteiro. Hoje sio sujeito/ objeto de cultura tanto a arte quanto a satide, o trabalho ou a violéncia, ¢ hd também cultura politica, do narcotréfico, cultura organizacional, urbana, juvenil, de género, cultura cientifica, audiovisual, tecnolégica ete. No que concerne a politica, 0 que estamos vivendo nao é, co- mo créem os mais pessimistas dos profetas-fim-de-milénio, a sua disso- lucao, mas a reconfiguracao das mediagées em que se constituem os no- vos modos de interpelacio dos sujeitos e de representaco dos vinculos que dao coesio & sociedade, Mais que substitui-la, a mediagao televisiva ou radiofénica passou a constituir, a fazer parte da trama dos discursos ¢ da prdpria agio politica. Pois essa mediacao € socialmente produtiva, € 0 que ela produz é a densificagao das dimensées rituais ¢ teatrais da politica, Producao que permanece impensada, e em boa medida impen- sdvel, para a concep¢io instrumental de comunicagao que permeia boa parte da critica. Pois o meio nao se limita mais a veicular ou a traduzir as representagées existentes, nem tampouco a substitui-las, mas comegou a constituir uma cena fundamental da vida piiblica. Eo faz reintrodu- zindo, no ambito da racionalidade formal, as mediagoes da sensibilida- deque 0 racionalismo do “contrato social” acteditou poder (hegeliana- mente) superar. Se a televiséo exige da politica negociar as formas de sua mediagao porque, como nenhum outro, esse meio Ihe da acesso a0 eixo do olhar,-a partir do qual a politica pode nio s6 invadir o espago doméstico como também reintroduzir em seu discurso a corporeidade, a gestualidade, isto é, a materialidade significante de que se constitui a interagao social cotidiana. Se falar de cultura politica significa levar em conta as formas de intervensao das linguagens e culturas na cons- 14 PREFACIO A 5* EDIGAO ESPANHOLA tituigao dos atores e do sistema politico,? pensar a politica a partir da comunicagio significa pér em primeiro plano os ingredientes simbdli cos ¢ imagindrios presentes nos processos de formagao do poder. O que leva a democratizagao da sociedade em diregéo a um trabalho na pré- pria trama cultural e comunicativa da politica. Pois nem a produtivi- dade social da politica é separivel das batalhas que se travam no terreno simbélico, nem o cardter participative da democracia é hoje real fora da cena piblica que constréi a comunicagao massiva. Entao, mais do que objetos de politicas, a comunicagao e a cultura constituem hoje um campo primordial de batalha politica: 0 estratégico cendrio que exige que a politica recupere sua dimensio sim- bélica — sua capacidade de representar o vinculo entre os cidadaos, 0 sentimento de pertencer a uma comunidade — para enfrentar a erosio da ordem coletiva. Que ¢ que o mercado nao pode fazer’ por mais eficaz que seja seu simulacro. O mercado nao pode sedimentar tradicées, pois tudo 0 que produz “desmancha no at” devido a sua tendéncia estru- tural a uma obsolescéncia acelerada e generalizada nao somente das coisas, mas também das formas e das instituigdes. O mercado nao pode criar vinculos societdrios, isto é, entre sujeitos, pois estes se constituem nos processos de comunicagio de sentido, eo mercado opera anonimamen- te mediante légicas de valor que implicam trocas puramente formais, associacdes e promessas evanescentes que somente engendram satisfa- g6es ou frustragdes, nunca, porém, sentido. O mercado nao pode en- gendrar inovagao social, pois esta pressupée diferencas ¢ solidariedades nao funcionais, resisténcias e dissidéncias, quando aquele trabalha uni- camente com rentabilidade. Buscando tragar um novo mapa das mediagées, das novas com- plexidades nas relagdes constitutivas entre comunicagao, cultura e poli- tica, venho nos tiltimos anos trabalhando a seguinte proposta: 15 DOS MEIOS As MEDIACOES, LOGICAS DE PRODUGAO institucionalidade | tecnicidade MATRIZES eo a FORMATOS CULTURAIS aaa INDUSTRIAIS socialidade | rituafidade COMPETENCIAS DE RECEPGAO (CONSUMO) O esquema move-se sobre dois eixos: 0 diacrdnico, ou hist6- rico de longa durago~ entre Matrizes Culturais (MC) ¢ Formatos In- dustriais (FI) —e o sincrénico—entre Légicas de Produgao (LP) e Com- peténcias de Recepsio ou Consumo (CR). Por sua vez, as relagdes entre MC e LP encontram-se mediadas por diferentes regimes de institucio- nalidade, enquanto as relacdes entre MC e CR estao mediadas por versas formas de socialidade. Entre as LP e os FI medeiam as tecnicida- des e entre os FI ¢ as CR, as ritualidades. 1. A relagio entre Matrizes Culturais e Formatos Industriaii remete & histéria das mudangas na articulagdo entre movimentos sociais e discursos piiblicos, e destes com os modos de produgao do piiblico que agenciam as formas hegeménicas de comunicagao coletiva. Um exem- plo: ligado inicialmente aos movimentos sociais dos setores populares nos comegos da Revolugao Industrial ¢ ao surgimento da cultura popu- lar de massa, que ao mesmo tempo nega ¢ afirma o popular, transfor- mando seu estatuto cultural, o género melodrama seré primeiro teatro ¢ tomard depois 0 formato de folhetim ou novela em capiculos — na qual a meméria popular (as relades de parentesco como eixo da trama) 16 PREFACIO A 5* EDICAO ESPANHOLA. ird se entrecruzar, hibridizar, com o imagindtio burgués (das relagdes sentimentais do casal) -, e dai passaré ao cinema, especialmente norte- americano, na América Latina ao radioteatro € a telenovela. Essa his- t6ria nos permite destocar 0 maniquefsmo estrutural que nos incapaci- tou durante muito tempo para pensar a trama das cumplicidades entre discursos hegeménicos e subalternos, assim como a constituicéo — a0 longo dos processos histéricos — de gramiticas discursivas originadas de formatos de sedimeniagdo de saberes narrativos, hibitos ¢ técnicas ex- pressivas. Gramiticas gerativas, que dio lugar a uma topografia de dis- cursos movediga, cuja mobilidade provém tanto das mudangas do capi tal e das transformagées tecnolégicas como do movimento permanente das insertextualidades ¢ intermedialidades que alimentam os diferentes géneros ¢ os diferentes meios. E que hoje sio lugar de complexos entre- meados de residuos (R. Williams) ¢ inovagGes, de anocronismos e mo- dernidades, de assimetrias comunicativas que envolvem, da parte dos produtores, sofisticadas “estratégias de antecipacao” (M. Wolf) ¢, da parte dos espectadores, a ativagao de novas e velhas competéncias de lei tura, Essa histéria encaminha-se justamente para a perspectiva dos cha- mados “estudos culturais”. 2. A dupla relagdo das MC com as Competéncias de Recep- Gio € as Légicas de Produgao é mediada pelos movimentos de so- cialidade, ou sociabilidade, e pelas mudangas na institucionalidade. A socialidade, gerada na trama das relagSes cotidianas que tecem os ho- mens ao juntarem-se, é por sua vez lugar de ancoragem da prévis comu- nicativa e resulta dos modos ¢ usos coletivos de comunicacio, isto é de interpelagao/constituigo dos atores sociais e de suas relagdes (he- gemonia/contra-hegemonia) com 0 poder. Nesse processo as MC ati vam e moldam os Aabitus que conformam as diversas Competéncias Recepgio. A institucionalidade tem sido, desde sempre, uma mediagao densa de interesses e poderes contrapostos, que tem afetado, ¢ continua afetando, especialmente a regulagao dos discursos que, da parte do Es- tado, buscam dar estabilidade & ordem constitufda e, da parte dos ci- dadaos — maiorias e minorias -, buscam defender seus direitos e fazer- az. DOS MEIOS AS MEDIAGOES se reconhecer, isto é, re-constituir permanentemente o social. Vista a partir da socialidade, a comunicacio se revela uma questao de fins— da constituigéo do sentido e da construcio ¢ desconstrugio da sociedade. Vistaa partir da institucionalidade, a comunicacio se converte em ques tao de meias isco é, de produgao de discursos puiblicos cuja hegemonia se encontra hoje paradoxalmente do lado dos interesses privados. Astransformagées na socialidaderemetem a movimentos, nao necessariamente fundamentalistas ou nacionalistas, de reencontro com © comunitério, como aquele que esté ocorrendo entre os jovens em tor- no da miisica, e que se acham mais relacionados a mudangas profundas na sensibilidade e na subjetividade. A reconfiguragao da institucionali- dade nao poderia ser mais forte, apesar dos paradoxos que apresenta: enquanto 0s partidos tradicionais (e varios dos novos também) se en- trincheiram em seus feudos, as instituig6es estatais corrompem-se até © impensivel eas instituigSes parlamentares se burocratizam até a per versio, assistimos a uma multiplicagao de movimentos em busca de ou- tras institucionalidades, capazes de dar forma as pulsoes ¢ aos desloca- mentos da cidadania para o ambito cultural ¢ do plano da represen- tacio para o do reconhecimento instituinte. 3. A compreensio do funcionamento das Légicas de Produ- ao mobiliza uma triplice indagacio: sobre a estrutura empresarial—em suas dimensdes econémicas, ideologias profissionais e rotinas produti- vas; sobre sua competéncia comunicativa ~ capacidade de interpelar/ construir piblicos, audiéncias, consumidores; ¢ muito especialmente sobre sua competitividade tecnoldgica: usos da Tecnicidade dos quais depende hoje em grande medida a capacidade de inovar nos FI. Por- que a tecnicidade é menos assunto de aparatos do que de operadores per- ceptivose destrezas discursivas. Confundir a comunicagio com as técni- cas, os meios, resulta to deformador como supor que eles sejam exte- riores ¢ acessérios a (verdade da) comunicagio. Do mesmo modo, con- fundir o processo industrial com a rentabilidade do capital — outra coi- sa é visibilizar suas cumplicidades foi o que levou a converter a critica em evasio, pois, se racionalidade toral da produgao se esgota na racio- 18 PREFACIO A 5* EDICAO ESPANHOLA nalidade do sistema, nao ha outra forma de escapar & reprodugao a nio ser tornar-se improdutivo! A estratégica mediagao da tecnicidade se delincia atualmente em um novo cendrio, o da globalizaczo, e em sua conversio em conector universal no global (Milton Santos). Isso se dé no s6 no espago das redes informéticas como também na conexio dos meios —televisao telefone — com o computador, restabelecendo acele- radamente a relagao dos discursos puiblicos ¢ relatos (géneros) midiiti- cos com os formatos industriais ¢ os textos virtuais. As perguntas gera- das pela secnicidade indicam entao 0 novo estatuto social da técnica, 0 restabelecimento do sentido do discursn ¢ da praxis politica, o novo es- atuto da cultura e os avatares da estética. 4, A mediacio das ritualidades remete-nos ao nexo simbélico que sustenta toda comunicagio: a sua ancoragem na meméria, aos seus ritmos ¢ formas, seus cenérios de interacdo ¢ repeticao. Em sua relacao com os FI (discursos, géneros, programas e grades ou palimpsestos), as ritualidades constituem gramdticas da agéo — do olhar, do escutar, do ler — que regulam a interagao entre os espagos ¢ tempos da vida coti- diana e os espacos e tempos que conformam os meios. O que implica, da parte dos meios, uma certa capacidade de impor regras aos jogos en- tre significacao e situagao. Porém, uma coisa é a significacdo da men- sagem e outta, aquilo a que alude a pragmatica quando faz a pergunta pelo sentido que tem parao receptor a acio de ouvir radio ou de ver te- levisao. Vistas a partir dasCR, as ritualidades remetem, de um lado, aos diferentes sos sociais dos meios, por exemplo, ao barroquismo expres- sivo dos modos populares de assistir ao filme frente a sobriedade e se- riedade do intelectual, para quem qualquer raido é capaz de distrai-lo de sua contemplagio cinematogréfica. Qu 20 consumo produtivo que alguns jovens fazem do computador diante do uso marcadamente liidi- co-evasivo da maioria. De outro lado, as ritualidades remetem as mil- tiplas ajetérias de leituraligadas &s condigGes sociais do gosto, marca- das por niveis ¢ qualidade de educagio, por posses e saberes constitui- dos na meméria étnica, de classe ou de género, e por habitos familiares de convivéncia com a cultura letrada, oral ou audiovisual, que carregam a experiéncia do ver sobre a do ler ou vice-versa. 19 DOS MEIOS AS MEDIAGOES ‘Também as ritwalidadessio arrancadas do tempo arcaico, por alguns antropdlogos ¢ socidlogos, para iluminar as especificidades da contemporaneidade urbana: modos de existéncia do simbélico, traje- t6rias de iniciagio ¢ ritos “de passagem”, serialidade ficcional e repeti- do ritual, permitindo assim entrever o jogo entre cotidianidade e ex- periéncias da diferenga, da ressacralizacio, do reencantamento do mun- do a partir de certos usos ou modos de relacao com os meios, entre inér- cias e atividade, entre habits e iniciativas do olhar e do ler. O que busco com esse mapa é reconhecer que os meios de co- municagao constituem hoje espagos-chave de condensago e intersecga0. de miiltiplas redes de poder e de producio cultural, mas também aler- tar, ao mesmo tempo, contra o pensamento tinico que legitima a idéia de que a tecnologia é hoje 0 “grande mediador” entre as pessoas eo mun- do, quando o que a tecnologia medeia hoje, de modo mais intenso e ace- lerado, é a transformagio da sociedade em mercado, e deste em princi- pal agenciador da mundializagao (em seus muitos ¢ contrapostos senti- dos). A luta contra o pensamento tinico acha assim um lugar estratégi- co nao sé no politeismo némade e descentralizador que mobiliza a re- flexdo ¢ a investigacao sobre as mediacées histéricas do comunicar, mas também nas tranformagées que atravessam os mediadores socioculturais, tanto em suas figuras institucionais e tradicionais — a escola, a familia, a igreja, o bairro—, como nos novos atores e movimentos sociais emer- gentes que, como as organizacées ecoldgicas ou de direitos humanos, 0s movimentos énicos ou de género, introduzem novos sentidos do so- cial e novos usos sociais dos meios. Sentidos ¢ usos que, em seus tateios ¢ tenses, remetem por um lado a dificuldade de superar a concep¢ao ¢ as prticas purameuite instruseiitais pata assumir u desafio politico, téc- nico e expressive, que sup3e o reconhecimento na prética da complexi- dade cultural que hoje contém os processos ¢ os meios de comunicacao. Porém, por outro lado, remetem também a lenta formacao de novas esfe- ras do piiblico eas novas formas de imaginagio e de criatividade social. Essas lutas se entrecruzam com as principais ligdes aprendi- das nestes dez anos ¢ tragam os caminhos da minha esperanga. Pois, 20 PREFACIOA 5* EDICAO ESPANHOLA. como escreveu Borges, “o futuro nunca se anima aser de todo presente sem antes ensaiar, ¢ esse ensiio éa esperanga”. Refiro-me especialmen- tea lenta e profunda revolugéo das mulheres — quem sabe a tinica que deixa marcas deste decepcionante século na hist6ria— sobre o mundo da cultura e da politica, articuhndo o reconhecimento da diferenca com © discurso que denuncia a deigualdade,e afitmando a subjetividadeim- plicada em toda agao coletivs. Refiro-me também is rupturas que, mo- bilizadas pelos jovens, ultrapassam o ambito da geracio: tudo o que a juventude condensa, em suasinquietagbes e fiirias como em suas empa- tias cognitivas e expressivas com a lingua das tecnologias, de transfor- mages no sensorium de “nossa” épocae de mutagées politico-culturais que anunciam o novo sécule. E refiro-me, finalmente, a essas “novas maneiras de estar juntos” pelas quais se recria a cidadania e se reconsti- tui a sociedade, a partir das associages de bairro para a resolugao pact- fica de conflitos, e das emissoras de radio e televiséo comunitérias para recuperar memérias € tecer novos lagos de pertengi ao territério, até as comunidades que, com 0 rocke o rap, rompem ¢ reimaginam o sentido da convivéncia desfazendo erefezendo os rostos eas figuras da identi- dade. E-a partir dessas ligdese esperancas que a leitura deste livro con- tém jé a sua inteira reescritura. Bogoté, outubro de 1998. NOTAS 'N. Lechner. América Latina: lavisiin delos ciemtistas sociales. Nuena Sociedad, Caracas, n. 139, p. 124, 1995. 2E, Verén, Eldiscurso politico, Buenos Aires: Hachette, 1987. °O, Landi. Reconstrucciones:las nuevas formas dela cultura politica, Buenos Aires: Ponto Sur, 1998. ‘J.). Brunner. Cambio social y democracia. Estudios Piiblicor, Santiago, n.39, 1990. 24 PREFACIO Se achamos que os livros mais necessétios sio os nao compla- centes, este € um dos indispensiveis nos anos 1990. Ao se propor en- tender essas inchistrias das respostas e da consolagao que sio os meios de massa, Martin-Barbero nao s6 as assedia com perguntas e mais per- guntas; dedica-se também a trocar as interrogagbes que haviam organi- zado os estudos sobre a comunicagio nos anos precedentes. Os primeiros investigadores dos meios buscavam saber como eles fazem para manipular suas audiéncias. A sibita expansio do rédio, do cinema e da televisio levoua crer que substitufam as tradig6es, as crengas e solidariedades histéricas por novas formas de controle social. Este livro, no entanto, se afasta de tais supostos. Com uma visio menos ingénua de como se alteram as sociedades ¢ do que fazem com seu pas- sado quando irrompem tecnologias inovadorss, o autor indaga como se foi desenvolvendo a massificagio antes que surgissem os meios elett6- nicos: através da escola e da igreja, da literatura de cordel e do melodra- ma, da organizacao massiva da producio industrial e do espago urbano. Ao estabelecer que as sociedades modernas foram tendo os tragos atribuidos aos meios muito antes que esces atuassem, desmoro- naram varios lugares-comuns do aristocratismo e do populismo. A cul- tura contemporanea nao pode desenvolyer-sesem os publicos massivos, nem a nogao de povo — que nasce como parte da massificagao social - pode ser imaginada como um lugar auténomo. Nema cultura de elite, nem a popular, ha tempos incorporadas ao mercado ¢ & comunicagao industrializada, sao redutos incontaminados a partir dos quais se pudes- se construir outta modernidadealheia ao cariter mercantil e aos confi tos atuais pela hegemonia. Ao «studar a reformulagio da aura artistica na grande cidade ¢ o processo de formagio do popular nas novelas de DOS MEIOS As MEDIACOES folhetim, na imprensa e na televisio — com explicagées inaugurais so- bre as transformagGes européias ¢ latino-americanas-, este livro oferece uma das refutagdes teéricas mais consistentes as ilusées romanticas, a0 reducionismo de tantos marxistas ¢ ao aristocratismo frankfurtiano. Para cumprir estes objetivos, a obra de Martin-Barbero per- corre varias disciplinas. Dado que desloca a andlise dos meios de massa para as mediag6es sociais, nao é sé um texto de comunicagao. Bem in- formado sobre a renovacio atual dos estudos sociolégicos, antropolégi- case politicos, parece um livro escrito para confundir os bibliotecarios. Nao esta situado exclusivamente em nenhuma dessas disciplinas, po- rém serve a todas; disso é exemplo seu original exame das nogGes de po- vo e classe, de como se complexificam estas categorias na sociedade de massa ¢ as alteragGes que isto gera nos estados modernos. Sua explica- a0 de como 0 rédio co cinema contribufram para unificar as sociedades latino-americanas e conformaram a idéia moderna de Nagao mostra quanto necessitamos dos estudos culturais para entender a politica ¢ ainda a economia. Jé Tocqueville, relembra Martin-Barbero, se perguntava se é possivel separar 0 movimento pela igualdade social ¢ politica do pro- cesso de homogeneizagio e uniformizagio cultural. A democratizaga0 das sociedades contemporaneas sé ¢ possivel a partir da maior circula- a0 de bens e mensagens. Esta facilidade de acesso no garante que as massas compreendam o que se passa, nem que vivam e pensem melhor. A modernidade, ¢ contraditério lugar que nela ocupam os povos, sio aspectos mais complicados do que o que supdem as concepgées pedagé: gicas e yoluntaristas do humanismo politico. Nao sao freqiientes, hoje, livros tao eruditos e desconstrutores que ao mesmo tempo continuem acreditando na possivel emancipacao dos homens. Onde encontrar atualmente os argumentos para esse oti- mismo? Martin-Barbero se afasta do nativismo e do populismo, e con- sidera que as esperangas novas se enratzam bem mais nos setores popu- lares urbanos. Nas “solidariedades duradouras ¢ personalizadas” da 24 PREFACIO cultura de bairro ¢ dos grupos artisticos, nos grafites ¢ na miisica jo- vem, nos movimentos de mulheres e de populagées pobres, vé as fontes de uma “institucionalidade nova, fortalecendo a sociedade civil”, E possivel fazer a esses grupos criticas semelhantes aquelas destinadas aos movimentos populares tradicionais, porque também reproduzem este- redtipos ¢ hierarquias injustas da cultura hegeménica. Todavia, 0 co- nhecimento de seus habitos de consumo ¢ apropriagao das inciistrias culturais, assim como das formas préprias de organizacao da cultura cotidiana, sio alguns dos caminhos para passarmos das respostas que fracassaram &s perguntas que renovam as ciéncias sociais e as politicas libertadoras. Néstor Garcia Canclini 25 INTRODUCAO O que se encontra aqui traz as pegadas de um longo percurso. Vinha eu da filosofia e, pelos caminhos da linguagem, me deparei com aaventura da comunicacao. E da heideggeriana morada do ser fui parar com meus ossos na chosa-favela dos homens, feita de pau-a-pique, mas com transmissores de radio ¢ antenas de televisio. Desde entio traba- Iho aqui, no campo da mediacéo de massa, de seus dispositivos de pro- duso e seus rituais de consumo, seus aparatos tecnolégicos ¢ suas en- cenagGes espetaculares, seus cédigos de montagem, de percep¢ao ¢ re- conhecimento. Durante um certo tempo o trabalho consistiu em indagar como nos manipula esse discurso que, através dos meios massivos, nos faz suportar a impostura, como a ideologia penetra as mensagens, im- pondo-se a partir daf a Iégica da dominagio & comunicagao. Percorti sociolingiifsticas e semidticas, levei a cabo leituras ideolégicas de textos e de praticas, e dei conta de tudo isso num livro que intitulei, sem ocul- tar as diividas, Comunicasito massiva: discurso e poder. Mas j4 entio — estou falando de dez anos atrés ~ alguns pesquisadores comegaram a suspeitar daquela imagem do proceso na qual nao cabiam mais figuras além das estratégias do dominador, na qual tudo transcortia entre emis- sores-dominantes e receptores-dominados sem 0 menor indicio de se- dugdo nem resisténcia, ¢ na qual, pela estrutura da mensagem, no atravessavam os conflitos nem as contradigées e muito menos as lutas. Logo por esses anos algo nos estremecet a realidade — por estas laticu- des os terremotos nao sio infreqitentes — tao fortemente que trouxe & tona € tornou visivel o profundo desencontro entre método ¢ situacio: tudo aquilo que, do modo como as pessoas produzem o sentido de sua la € como se comunicam € usam 0s meios, nao cabia no esquema. DOS MEIOS As MEDIAGOES Dito em outras palavras: os processos politicos e sociais desses anos — regimes autoritarios em quase toda América do Sul; diversas lutas de li- bertagio na América Central, amplas migragées de homens da politica, da arte € da investigacao social -, destruindo velhas certezas e abrindo novas brechas, nos confrontaram com a verdade cultural destes paises: a mestigagem, que nao é sé aquele fato racial do qual viemos, mas a tra- ma hoje de modernidade e descontinuidades culturais, deformagoes sociais ¢ estruturas do sentimento, de memérias e imaginarios que mis- turam 0 indigena com o rural, 0 rural com o urbano, o folclore com 0 popular e 0 popular com 0 massivo. Assim a comunicagao se tornou para nés questio de mediagées mais que de meios, questio de cultura e, portanto, nao sé de conheci- mentos mas de reconhecimento. Um reconhecimento que foi, de ini- cio, operagao de deslocamento metodoldgico para rever 0 processo intei- ro da comunicacao a partir de seu outro lado, o da recepsao, o das resis- réncias que af tém seu lugar, o da apropriacio a partir de seus usos. Po- rém, num segundo momento, tal reconhecimento esté se transforman- do, justamente para que aquele destocamento nao fique em mera reacio ou passageira mudanga teérica, em reconhecimento da histéria: reapro- priagao histérica do tempo da modernidade latino-americana e seu des- compasso encontrando uma brecha no embuste Igico com que a ho- mogeneizacao capitalista parece esgotar a realidade do atual. Pois na ‘América Latina a diferenga cultural nao significa, como talvez na Euro- pa e nos Estados Unidos, a dissidéncia contracultural ou o museu, mas a vigéncia, a densidade e a pluralidade das culturas populares, o espago de um conflito profundo e uma dinamica cultural incontorndvel. E es- tamos descobrindo nestes tltimos anos que o popular nao fala unica- mente a partir das culturas indigenas ou camponesas, mas também a par- tir da trama espessa das mesticagens ¢ das deformagées do urbano, do massivo. Que, a0 menos na América Latina, e contrariamente as profe- cias da implosdo do social, as massas ainda contém, no duplo sentido de controlar mas também de trazer dentro, 0 povo. Nao podemos en- to pensar hoje o popular atuante 4 margem do processo histérico de 28 INTRODUCAO, constituigao do massivo: 0 acesso das massasi sua visibilidade e presen- a social, e da massificagao em que historicamente esse processo se ma- terializa. Nao podemos continuar construindo uma erftica que separa a massificagao da cultura do fato politico que gera a emergéncia histé- rica das massas e do contraditério movimento que ali produz a nio- exterioridade do massivo ao popular, seu constituir-se em um de seus modos de existéncia, Atengio, porque o perigo est tanto em confundir © rosto com a mascara —a memdria popular com o imagindtio de massa — como em cret que possa existir uma meméria sem um imaginério, a partir do qual se possa ancorar no presente e alimentar o futuro. Preci samos de tanta lucidez para nio confundi-los como para pensar as rela- gGes que hoje, aqui, fazem sua mesticagem Esta €a aposta e 0 objetivo deste livro: mudar o lugar das per- guntas para tornar investigveis os processos de constituigao do massivo para além da chantagem culturalista que os converte inevitavelmente em processos de degradagao cultural. E para isso, investigé-los a partir das mediag&es ¢ dos sujeitos, isto é, a partir das articulacées entre pré- ticas de comunicagZo e movimentos sociais. Daf suas trés partes — a situagao, os processos, o debate —e sua colocacéo invertida: pois, sendo o lugar de partida, @ situagdo latino-americana terminara na exposigio convertendo-se em lugar de chegadz. Embora espere que os marcos deixados ao longo do percurso ativem a cumplicidade do leitor e per- mitam durante a travessia reconhecé-la. Falei no comego das pegadas que deixou o longo percurso que se faz livro aqui, e preciso assinalar algumas. Tais como as dificulda- des, na primeira parte, para articular um discurso que, sendo reflexio filosdfica e histérica, no se distancie demasiado nem soe exterior a pro- blemitica ¢ a experiéncia que procura iluminar. E, em certos momen- tos, a sensagao duplamente insatisfatéria de ter ficado a meio caminho entre aquela e esta. Além do inegavel sabor de ajuste de contas que con- servam certas paginas. A aparente semelhanga da segunda parte com 0 tragado de uma arqueologia, que busca no pasado, em seus estratos, a feicdo auténtica de algumas formas e algumas praticas de comunica- 29 DOS MEIOS AS MEDIAGOES Gao hoje desaparecidas ¢ degradadas. Quando, na verdade, o que busca- mos éalgo radicalmente diferente: no 0 que sobrevive de outro tempo, mas 0 que no hoje faz. com que certas matrizes culturais continuem ten- do vigéncia, o que faz com que uma narrativa anacrénica se conecte com a vida das pessoas. E, na terceira parte, a enganosa impressio de que, ao investigar as formas de presenca do povo na massa, estivéssemos abandonando a critica aquilo que no massivo é mascaramento ¢ desati- vaso da desigualdade social e portanto dispositivo de integracio ideo- l6gica. Mas talvez este seja 0 prego que devemos pagar por nos atrever- mos a romper com uma razao dualista e afirmar o entrecruzamento no massivo de légicas distintas, a presenca ai nao sé dos requisitos do mer- cado, mas também de uma matriz cultural ede um sensorium que enoja as elites enquanto constitui um “lugar” de interpelagao e reconheci- mento das classes populares. Sao muitas as pessoas ¢ instituigdes que prestaram seu apoio & pesquisa em que se baseia este livro. Dentre elas devo agradecer espe- cialmente a Universidad del Valle, em Cali, que me concedeu uma bol- sa de estudos para montar o projeto e recolher a documentagao necess- ria, ¢ que me facultou tempo durante varios anos para levar adiante a investigagao. Aos professores € pesquisadores em comunicagio da Universidad de Lima e da Auténoma Metropolitana de Xochimilco, no México, que reconheceram o valor da proposta desde quando era sé um esbogo e me convidaram varias vezes a discutir e confrontar seu desen- volvimento. Ao Ipal, que tornou possivel um percurso por varios cen- tros de investigacao para a discussio € reuniao atualizada da informa- 40. Meu agradecimento sincero aquelas pessoas que nao sé me ajuda- ram com seu debate intelectual, mas que também me apoiaram com seu afeto: Patricia Anzola, Luis Ramiro Beltrin, Héctor Schmucler, Ana Maria Fadul, Rosa Marfa Alfaro, Néstor Garcia Canclini, Luis Peirano. E para Elvira Maldonado que agiientou ¢ acompanhou dia a dia 0 tra- balho. 30 PRIMEIRA PARTE POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Osconceitos isicos,dos quaispartimos, dexam repentinamente deser conceitos paraseconverterem em problemas;néo problemasanaliticos,mas movimentos histéricos, que contude nao foram resolvidos. Raymond Williams Fazer histéria dos processos implica fazer historia das catego- rias com que os analisamos ¢ das palavras com que os nomeamos. Lenta mas irreversivelmente viemosaprendendo que o discurso nao é um me- ro instrumento passivo na construcao do sentido que tomam os proces- sos sociais, as estruturas econdmicas ou os conflitos politicos. E que ha conceitos tao carregados de opacidade e ambigitidade que sé a sua histo- ricizacito pode permitir-nos saber de que estamos falando mais além do que supomos estar dizendo. O que buscaremos nesta primeira parte se- 14, pois, descobrir, no sentido mais genérico deste verbo, 0 movimento de gestacio de alguns “conceitos basicos”: isto é, 0 duplo tecido de signi: ‘ficados e referencias de que sao feitos. Historicizar os termos em que se formulam os debates ¢ ja uma forma de acesso 20s combates, aos con- flitos ¢ lutas que atravessam os discursos ¢ as coisas. Daf que nossa lei- tura serd transversal: mais que perseguir a coeréncia de cada concepeao, questionaré 0 movimento que a constitui em posigéo. CAPiTULON AFIRMAGAO E— NEGACAO DO POVO COMO SUJEITO Em sua “origem’, 0 debate se acha configurado por dois gran- des movimentos: o que contraditoriamente pée em marcha o mito do povo na politica (ilustrados) e na cultura (rominticos); ¢ 0 que, fun- dindo politica e cultura, afirma a vivéncia moderna do popular (anar- quistas) ou a nega por sua “superagio” no proletariado (marxistas). © Povo-miTO: ROMANTICOS VERSUS ILUSTRADOS Historicamente 0 Romantismo € reagio, mas nao necessaria- mente reaciondria. Reagao de desconcerto e fuge frente as contradigoes brutais da nascente sociedade capitalista: é também reacio de lucidez ¢ critica frente ao racionalismo ilustrado e sua legitimagao dos “novos horrores”. Em todo caso, nao se pode compreender o sentido do po- pular na culeura que se gera no movimento romantico senao por relaio ao sentido que adquire 0 pove na politica tal e como é elaborado pela Ilustragao. Desde o inicio da Reforma, ede maneira explicita nos Discorsi de Maquiavel, vemos organizar-se em torno da figura do povo a busca de um novo sistema de legitimagao do poder politico que, nos tratados de Erasmo, Victoria e Las Casa, se ligard inclusive a defesa pioneira de certos direitos ¢ valores populares que, passando 0 tempo, se chama- tiam anticolonialistas. Mas uma ambivaléncia fundamental atravessa esse discurso. Maquiavel chega j4 a pensar que “boas leis surgem dos tumultos” que “embora ignorante o povo sabe distinguir a verdade”;! mas, 20 mesmo tempo, vé no povo a ameaca mais insidiosa e perma- nente contra as instituigées politicas. E é precisamente essa ameaga DOS MEIOS AS MEDIACOES constante de desordem civil que vem da multidao, ¢ a tentagio tota- litaria que essa desordem provoca, o que Hobbes converte no centro de sua reflexio sobre o Estado moderno, Reflexio que é, sem diivida, 0 pensamento-matriz a partir do qual os ilustrados constroem sua filoso- fia politica. A nogao politica do povo como instincia legitimante do go- verno civil, como gerador da nova soberania, corresponde no ambito da cultura uma idéia radicalmente negativa do popular, que sintetiza para 0s ilustrados tudo 0 que estes quiseram ver superado, tudo 0 que vem varter a razdo: superstigao, ignorancia ¢ desordem. Contradic’o que tem a sua fonte na ambigiiidade que a figura mesma do povo tem em sua acepcio politica. Mais que sujeito de um movimento histérico, mais que ator social, “o povo” designa no discurso ilustrado aquela generalidade que é a condi¢ao de possibilidade de uma verdadeira sociedade. Pois pelo pacto “que o povo ¢ um povo [...] verdadeiro fundamento de uma sociedade”? De modo que 0 povo é fundador da democracia nao como populacio, mas apenas como “categoria que permite dar parte, enquanto garantia, do nascimento do Estado mo- derno”. Uma sociedade moderna nio é pensdvel, segundo Rousseau, se nao ¢ constituida a partir da “vontade geral”, e essa vontade é por sua vez a que constitui o povo como tal. A racionalidade que inaugura © pensamento ilustrado se condensa inteira nesse citcuito ¢ na contra- di¢do que encobre: esta contra a tirania em nome da vontade popular, mas est4 contra 0 povo em nome da razio. Férmula que resume o fancionamento da hegemonia. Dado que, fora da “generalidade”, 0 po- vo éa necessidade imediata — 0 contrario da raz4o que pensa a media- ao -, nao se responder4 com leis 4 descoberta do povo como produtor de riqueza, mas com filantropia: como fazer para sermos justos com suas “necessidades humanas” sem estimular no povo as paixdes obscu- ras que o dominam, e sobretudo “essa inveja rancorosa que se disfarga de igualicarismo”. Assim, na passagem do politico ao econémico se fara evidente o dispositivo central: de inclusao abstrata ¢ exclusao concreta, quer dizer, a legitimasao das diferengas sociais. 34 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE A invocacao do povo legitima o poder daburguesia na medi- da exata em que essa invocagio articula sta exclusio da cultura. E é nnesse movimento que se geram as categorias“do cuito” e “do popular”. Isto é, do popular como inculto, do popular designando, no momento de sua constituigao em conceito, um modo espectiico de rela¢ao com a totalidade do social: a da negagao, a de uma itentidade reflexa, a daquele que se constitui nao pelo que é, mas pele que lhe falta. De- finigao do povo por exclusio, tanto da riqueza como do “oficio” polf- tico e da educagao. Quanto a primeira nao faltam argumentos. Quan- toa segunda, Habermas se pergunta: “por que nao chama simplesmen- te Rousseau opinido a opinido popular soberana; por que a identifica com a opiniao piblica?”. Porque a recondusao rowseauniana da sobe- rania real & soberania popular nao foi capaz de superar o dilema: a transformacao da voluntas em ratio acaba traduzindo o interesse geral em argumentos privados, esses que delimitam e constituem o “verda- deiro” espaco do politico que é 0 espago puiblico burgués.‘ Sobre a rela 40 do povo com a educacao — que éo modb ilustado de pensar a cul- tura -, trata-se da relago mais “exterior” das trés, pois s6 a partir de fora pode a razio penettar a imediater instintiva damentalidade popu- lar. A qual nada ajuda, nesse aspecto, a bondade o1 essas virtualidades naturais que sobrevivem 4 corrupgao dos costumes.A relagao nao pode- +4 ser sendo vertical: desde os que possuem ativammteo conhecimento até os que, ignorantes, isto , vazios, s6 podem deimr-se satisfazer pasi- vamente. E. de um conhecimento ao qual em iiltima instancia sempre permaneceram estranhos... exceto em seus aspectos prdticos. Voltaire 0 dird sem evasivas: so outros os prazeres — diferente: daqueles do saber — e “mais adequados a seu cardter” os que governo deve buscar para 0 povo. ‘Acusa-se 0 Romantismo de haver-nos deformado a Idade Média, mas poucos periods por sua vez foram tio preconceituosa- mente vistos a partir da modernidade quanto este Romantismo, redu- zido a “escola” literéria ou musical, e em definitivo a um adjetivo que se confunde com o melodramético e sentimentd. Hoje surge outra 35 DOS MEIOS As MEDIAGOES leitura histérica que permite valorizar a ruptura que 0 movimento romAntico introduz no espaco da politica ¢ da cultura. Mas, além de as modas ~ ¢ sabemos que a indiistria cultural pode hoje vender-nos até isso, pondo em moda uma época hist6rica -, 0 interesse atual pelo movimento romantico esta ligado a crise de uma concepgao da politica como espaco separado, separado da vida ¢ da cultura, convertida em atividade desapaixonada, um espaco sem sujeitos. Os romanticos chegam por trés vias, nem sempre convergen- tes, 4 “descoberta” do povo. A da cxaltacio revolucionatia, ou ao menos de seus ecos, dotando a chusma, o populacho, de uma imagem em po- sitivo que integra duas idéias: a de uma coletividade que unida ganha forca, um tipo peculiar de forca, ea do herdi, que se levanta e faz frente ao mal. Uma segunda via: 0 surgimento, ¢ exaltagao também, do nacio- nalismo reclamando um substrato cultural ¢ uma “alma” que dé vida anova unidade politica, substrato e alma que estariam no povo enquan- to matriz e origem teltirica. E, por tiltimo, uma terceira via: a reacao contra a Ilustracao a partir de duas frentes: a politica e a estética. Rea~ a0 politica contra a fé racionalista ¢ 0 utilitarismo burgués, que em no- me do progresso converteram 0 presente em um caos, em uma socie~ dade desorganizada. Logo: idealizagio do passado ¢ revalorizagio do nal. Mas nao se deve esquecer que nessa volta ao presente 0 movimento romantico tem no poucos lagos com o socia- lismo utépico ¢ seu protesto contra a auséncia de uma verdadeira so- ciedade. “Os romAnticos quiseram viver a imagem do possivel que pro- jetava sobre o futuro o socialismo utépico. Opuseram sua sociedade ideal & sociedade real e pratica. Justapuseram & sociedade burguesa real a do desprezo da separacio, a da comunidade e da comunhio”’ E reacio, ou melhor, rebelido estética, contra a arte real eo classicista prin- cipio de autoridade, revalorizando o sentimento e a experiéncia do espontineo como espaco de emergéncia da subjetividade. Com esses trés ingredientes o Romantismo constréi um novo imaginario no qual pela primeira vez adquire status de cultura 0 que vem do povo. Mas isto foi por sua vez possivel na medida em que a 36 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE nogao mesma de cultura mudou de sentido. Da relagao entre a mudan- a na idéia de cultura e 0 cesso do popular ao espaco que a nova nogio recobre, é bom exemplo o fato de que Herder - que em 1778 publica os Volkslieder, nos quais apresenta como auténtica poesia a que emerge do povo, “comunidade orginica” ~ s6 uns anos depois, em 1784, es- creve Idéias para uma filesofia da historia da humanidade, onde estabe- ece a impossibilidade decompreender a complexidade da evolugéo da humanidade a partir de um s6 principio, ¢ to abstrato como a “azo”, € a necessidade entéo de aceitar a existéncia de uma pluralidade de culturas, isto é, de diferentes modos de configuracao da vida social. A mudanga na idéia de cultura vai nesse movimento em duas diregdes. Una que a separa da idéia de civilizagao num movimento de interio- rizaga0® que desloca o acento do resultado exterior parao modo espe- cifico de configuracao seja de um “sistema de vida” ou de uma “reali- dade artistica”. E outra, que, ao re-conhecer a pluralidade do cultural, propée a exigéncia de um novo modo de conhecer: o comparativo. Foi a partir dessa nova idéia e do método que ai se otigina que Herder chega a colocar em pé de igualdade, isto ¢, em posigao de relacionéveis, a poesia literdria e a poesia dos cantos populares. Dai que aimportincia histérica da posi¢ao romantica neste debate — seja nos trabalhos de Herder sobre as cangGes, seja nos dos irmaos Grimm sobre os contos € nos de Arnim sobre a religiosidade popular — resida na affrmagito do popular como espaco de criatividade, de atividade e producdo tanto ou mais que na atribuigao a essa poesia ou a esses relatos de uma autenti- cidade ou uma verdade que jd nao se acharia em outra parte. Frente a tanta critica facil e recorrente da concep¢io romantica do popular, na qual se faz tao dificil separar o que vem de uma percepgao histérica dos processos daquilo que é proposto por um obstinado preconceito racio- nalista, é necessdrio afirmar com Cirese que “a posigio romantica faz progredir definitivamente a idéia de que existe, para além da cultura oficial e hegemdnica, outra cultura. A nogao romantica do “povo”, cuja utilizagao conceitual ¢ hoje refutada, foi entéo um instrumento posi- tivo para o alargamento do horizonte hist6rico e da concep¢io huma- 37 DOS MEIOS AS ME ACOES, na”? Segue essa linha a releitura efetuada por Hobsbawm ao ¢s- tudar as relag6es entre rominticos ¢ revolucionérios,* releitura que comegaa abrir caminho também na América Latina. Assim, Morande propée que, em sua relacio com 0 povo, a renovagao do conceito de cultura passa por um reesudo do conceito de Nagao com 0 qual os rominticos péem em jogo — frente ao racionalismo iluminista - “a valorizagao dos elementos simbélicos presentes na vida humana” a partir dos quais “a pergunta pela cultura se converte na pergunta pela sociedade como sujeito” ? Dimensao que adquire hoje um relevo especial na horade pensar a crise politica ¢ 0 sentido dos novos processos de de- mocratizagao na América Latina e a necessidade entio de “uma apren- dizagem na dimensio da estruturagéo simbélica do mundo, assegu- rando a intersubjetividade das diversas experiéncias possiveis”."” Uma pista de acesso ao conteiido da idéia do popular traba- Ihada pelos romanticos acha-se na topologia tendencial que assinala 0 uso dos nomes € os campos semnticos que a partir dai se constituem. ‘Trés nomes — folk, Vollee povo — que, parecendo falar do mesmo, no movimento “traigoeiro” das tradugées, impedem de ver o jogo das dife- rengas €as contradigGes entre os diversos imagindrios que mobilizam." De um lado folke Volk serio 0 ponto de partida do vocébulo com que se designard a nova ciéncia — folkloree Volkskunde—, enquanto peuple, em ver de se ligar a um sufixo nobre para engendrar 0 nome de um saber, ligar-se-4 a uma modalizagao carregada de sentido politico ¢ pe- jorativo: populismo. Eenquanto folk tenderd a recortar-se sobre um to- pos cronoldgico, Volk o fard sobre um geoldgico e peuple, sobre um sociopolitico. Folklore capta antes de tudo um movimento de separagio © coexisténcia entre dois ‘mundos” culturais: o rural, configurado pela oralidade, as crengas ea atte ingénua, ¢ 0 urbano, configurado pela es- critura,a secularizagio e aarte refinada: quer dizer, nomeia a dimensio do tempo na cultura, a relagio na ordem das praticas entre tradigao € modernidade, sua oposigéo ¢ as vezes sua mistura. Volkskunde capta a relacio — superposigao — entre dois extratos ou niveis na configurasio * geolégica” da sociedade: um exterior, superficial, visivel, formado pela 38 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE diversidade, a dispersdo ¢ a inautenticidade, tudo isto resultado das mudangas histéricas; e outro interior, situado debaixo, na profundida- de e formado pela estabilidade ¢ pela unidade orginica da etnia, da raga. Nos usos romanticos, enquanto folklore tenderia a significar antes de tudo a presenga perseguida e ambigua da tradiggo na modernida- de, Volksignificaria basicamente a matriz teltirica da unidade nacional “perdida” e por recuperar. Entre 0 povo-tradicao ¢ 0 povo-raca nao dei- xard de haver, no transcurso hist6rico, lagos ¢ tramas que 0s aproximam e-confundem, mas de todo modo estes dois imagindrios nos permitem diferenciar 0 idealismo histérico, o historicismo que situa no passado a verdade do presente, de um racismo-nacionalismo teltirico em sua negacao da historia. E frente a estes dois imaginarios, 0 uso romantico de peuple - de Hugo a Michelet — fala antes de tudo da outra face da sociedade constituida. Campesinato e massas operarias formam o uni- verso do povo enquanto universo de sofrimento e de miséria—“a cana- Iha é 0 comego doloroso do povo”,diré Hugo —, esse reverso da socieda- de que a burguesia oculta e teme porque é a permanente ameaga que, ao assinalar o intolerivel do presente, indica o sentido do futuro. ‘A travessia dos imagindrios permite compreender melhor 0 que a concepgao romantica do popular nos impede de pensar, eo que tem feito até hoje quase sempre aliada ¢ componente ideolégico das politicas conservadoras. Em primeiro lugar a mistificagao na relacao povo-Nacio. Pensado como “alma” ou matriz, 0 povo se converte em entidade nao analisdvel socialmente, nao trespass4vel pelas divis6es e pelos conflitos, uma entidade abaixo ou acima do movimento do social. O povo-Nacio dos rominticos conforma uma “comunidade organica”, isto é, constituida por lagos biolégicos, teliricos, por lagos naturais, quer dizer, sem histéria, como seriam a raga ¢ a geografia. Analisando a persisténcia dessa concep¢o na cultura politica dos populismos, Garcfa Canclini assim resume a operagio de mistificacao: “os conflitos em meio dos quais se formaram as tradigdes nacionais sio esquecidos ou narrados lendariamente como simples trimites arcaicos para confi- gurar instituig6es e relagdes sociais que garantam de uma vez por todas 39 DOS MEIOS As MEDIACOES aesséncia da Nagao”."? Em segundo lugar, a ambigiiidade da sua idéia de “cultura popular”. Se oF romanticos resgatam-a-atividade do povo na cultura, no mesmo movimento em que esse fazer cultural é reconhe- cido, se produz seu seqiiesto: a originalidade da cultura popular resi- diria essencialmente em sua autonomia, na auséncia de contaminagio ede comércio coma cultun oficial, hegeménica. E, a0 negar a circula- 40 cultural, o realmente ngado é 0 processo histérico de formagao do po- pular eo sentido social das dferencas culturais. a exclusao, a cumplicida- de, a dominago ea impugnagio. E, ao ficar sem sentido histérico, 0 que se resgata acaba sendouma cultura que nao pode olhar sendo pa- ra 0 passado, cultura-patriménio, folclore de arquivo ou de museu nos quais conservar a pureza original de um povo-menino, primitivo. Os to- minticos acabam assim encontrando-se com seus adversirios, os ilus- trados: culturalmente falando, 0 povo € 0 passado! Nao no mesmo sen- tido, mas sim em boa part. Para ambos o futuro é configurado pelas generalidades, essas abstragies nas quais a burguesia se encarna, “reali- zando-as”: um Eitado que trabsorve a partir do centro todas as diferen- gas culturais, visto que resuitam em obsticulos ao exercicio unificado do poder, ¢ uma Nagao nacanalisével em categorias sociais, nao divisi- vel em classes, uma vez que se acha constitufda por lagos naturais, de terra sangue. Assim comega a “speracio antropolégica”"! que une o traba- Iho dos folcloristas 20 projero dos antropélogos que se inicia em Taylor ea transformagao conceitual das superstigdes em “sobrevivéncias” — survival — culturais'‘ Em um duplo plano. £ mediante o contato com as sociedades primitivas néo-européias que a idéia da diversidade das culturas adquire estatuto cientifico, De forma que a ruptura do exclu- sivismo cultural s6 se far operante agora ¢ nfo unicamente por fora — civilizados/barbaros —, mastambém por dentro — entre cultura hege- ménica e culturas subalterras: “S6 através do conceito de ‘cultura pri- mitiva’ é que se chegou a rconhecer que aqueles individuos outrora definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos povos ci- vilizados’ possuiam culturi’.!> Mas, por sua vez, “o primitivo”, de- 40 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE signando o selvagem na Africa ouo popular na Europa, ontinuard obsti- nadamente significando, a partir de uma concep¢ao evolucionista da diferenga cultural dominante até hoje, aquilo que olha para trés, um estigio talvez admixdvel porém atrasado do deseavolvinento da huma- nidade e, por esta razio, expropridvel por aqueles que é conquistaram © estégio avancado. Assim como o interesse pelo popuar no principio do século XIX racionaliza uma censura politica" — ifealiza-se 0 po- pular, suas cang6es, seus relatos, sua religiosidade, juso no momento em que o desenvolvimento do capitalismo na forma do8stado nacional exige sua desaparigio -, a antropologia na segunda metade do XIX introduz-se como disciplina, racionalizando ¢ legitimando a expoliagio colonialista. POVO E CLASSE: DO ANARQUISMO AO MARXISMO. A idéia de povo que gers o movimento romantico vai sofrer a0 longo do século XIX uma dissolucio completa: pela esuerda, no con- ceito de classe social, e pela direita, no de massa. Abordiremos esse du- plo deslocamento analisando separadamente os modosem que se efe- tua a operagao de dissolucao. A transformagio do conceito de povo no de dasse a partir da segunda metade do século XIX tem um lugar de acesso privilegiado no debate entre anarquistas e marxisas. Debate em que, enquanto o anar- quismo inscreve certos tragos da concep¢io romanticanum projeto e em algumas préticasrevoluciondtias, omarxismo pelo cintrério efetua- r4 uma ruptura completa com 0 romintico, recuperando ndo poucos tragos da racionalidade ilustrads. Mas 0 que tanto anirquistas como marxistas efetuardo de infcio seria ruptura como cultwalismo dos ro- mianticos ao politizarem a idéia de povo. Politizagao que significa a ex- plicitacao da relagéo entre o modo de ser do povo e a dvisdo da socie- dade em classes, ¢ a historicizacio dessa relagéo enquanto processo de optesséo das classes populares pela aristocracia ¢ pela burguesia. Em sintese, marxistas ¢ anarquistas compartilham de umaconcep¢ao do aq DOS MEIOS As MEDIACOES popular que tem como base a afirmagao da origem social, estrutural da opressio como dinimica de conformagio da vida do povo. Frente aos ilustrados, isso significa que a ignorancia ea supersti¢ao nao sio meros residuos, senio efeitos da “misétia social” das classes populares, miséria que por sua vez constitui a contraparte vergonhosa ¢ ocultével da “nova sociedade”. E frente aos rominticos, isso implica descobrir na poesia € na arte populares nao uma “alma” atemporal, mas as pegadas corporais da histéria, os gestos da opressio ¢ da luta, a dinamica histérica atra- vessando e fendendo o enganosamente trangiiilo gerar-se da tradigio. A partir dal, a concepgio do popular nas esquerdas vai se divi- dir profundamente: os anarquistas conservario 0 conceito de povo por que algo se enuncia nele que nio cabe ou nao se esgota no de classe oprimida, ¢ os marxistas rechacam seu uso tedrico por ambiguo e mis- tificador substituindo-o pelo de proletariado. Emergéncia do popular nos movimentos anarquistas Aconcepgio anarquista do popular poderia situar-se topogra- ficamente “a meio caminho” entre a afirmagio romantica ¢ a negaga0 marxista. Porque, de um lado, para o movimento libertério 0 povo se define por seu enfrentamento estrutural e sua luta contra a burguesia, mas, de outro, os anarquistas se negam a identificé-lo com o proletaria- do no sentido restrito que o termo tem no marxismo. E isso porque a relacdo constitutiva do sujeito social do enfrentamento e da luta é para 0s libertérios nao wma decerminada relagio com os meios de produc, ‘mas a relacao com a opressao em todas as suas formas. Ai esté o nticleo da proposta bakuniniana: entender o proletariado nao como um setor ou uma parte da sociedade vitimada pelo Estado, mas como “a massa dos deserdados”."” E nesse sentido Pitt Rivers péde afirmar que 0 con- ceito de povo se converteu na pedra angular da politica anarquista.'* E nesse caso 0 sujeito da agio politica se impregnard de alguns tragos romanticos, s6 que agora a partir de uma significacio diferente: a ver- dade ¢ a beleza naturais que os roménticos descobriram no povo se a2 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE transformam agora nas “virtudes naturais” que sdo seu “instinto de justiga”, sua fé na Revolugio como tinico modo de conquistar “sua dignidade”. A conexio do movimento libertério com os romanticos se produz sobre varios registros. H4 um componente romintico indu- bitavel na realizagao das virtudes usticeiras do povo. Ele é parte si da sociedade, a que em meio & miséria tem sabido conservar intacta a exi- géncia de justica ¢ a capacidade de luta. Mas igualmente clara serd a ruptura: 0 que tem sabido conservar 0 povo no ¢ algo voltado para o passado, mas pelo contrario sua capacidade de transformar o presente € construir o futuro, Tocamos af um ponto nevrilgico nas diferengas entre anarquistas e marxistas: o referented meméria do povo e em patti- cular 4 meméria de suas lutas.'? Os libertdrios pensam seus modos de luta em continuidade direta com o longo processo de gestacio do povo. Os marxistas em troca poem em primeito plano as rupturas nos modos de luta que vém exigidas pelas rupturas introduzidas pelo novo modo de produgao. A continuidade é para os anarquistas nao uma mera tatica, mas a fonte de sua estratégia: aquela que pensa a aio po- Iftica como uma atividade de articulagio das diferentes frentes e mo- dos de luta que 0 povo mesmo se dé. Além de implicar na luta todos 0s que esto sujeitos A opressdo enquanto capazes de resisténcia ¢ im- pugnagao, desde as criangase os velhos até as mulheres ¢ os delingiien- tes. Ea relacao de opressio e a resisténcia @ cotidianidade o que os li- bertérios estavam pionciramente relevando ao valorizar do ponto de vista da transformagio social “a luta implicita e informal”, a luta coti- diana, para a qual o marxismo, segundo Castoriadis, tem conservado uma especial cegueira.” E através da meméria das lutas os anarquistas se ligam a eul- tura popular. Nao resta diivida de que a visto dessa cultura esta im- pregnada de uma concepgio instrumental — que em nenhum momen- to tratario de ocultar -, mas também é certa a valorizagio que af se produz. Poderfamos dizer que num-primeiro momento a instrumen- talizagao foi a tinica forma de valorizacio possivel, uma ver que em sua 43 DOS MEHOS AS MEDIACOES ambigitidade o que os libertérios percebiam obscura mas certamente € que, se aluta politica ndo assumia as expresses ¢.0s modos do popular, 0 proprio povo é que acabaria sendo usado. O interesse dos anarquistas pela cultura popular, embora te- nha sido explicito desde 0 inicio, demorou muito tempo a atrair 0 in- teresse dos historiadores ou dos socidlogos da cultura. $6 nos iltimos anos tem-se comegado a estudar 0 modo como os anarquistas assumi ram as coplase os romances de folhetim, os evangelhos, a caricatura ou a leitura coletiva dos periddicos, quer dizer, a nova idéia que comegam a forjar da relagio entre povo e cultura.” E um primeiro trago-chave dessa imagem é a lticida percepgao da cultura como espago nao sé de manipulacéo, mas também de conflito, e a possibilidade entio de transformar em meios de liberagio as diferentes expressdes ou priticas culturais. Isso se materializa em uma politica cultural que apenas pro- move instituig6es de educagdo operdria que canalizem a “fome de sa- bet”, mas em uma sensibilidade especial para a transformagio dos também modelos pedagégicos.” E ainda em uma percepgio da conti- nuidade entre leitura coletiva do folhetim e a tradigao das vigilias como espaco de expressao ¢ participacio popular. Ou na diferenga que esta- belecem entre a luta contra a religiao oficial — um anticlericalismo radical —¢ o respeito pelas formas ¢ figuras populares do religioso, tan to no nfvel das crengas quanto no da moral, em que percebem profun- das relagSes entre certas virtudes populares ¢ algunas exigénciascristas, que ligam a libertagéo de que fala o Evangelho com a libertaszo social. Uma segunda linha de trabalho a resgatar ¢ a preocupagao por elaborar uma estética anarquista, e na qual 0 trago primordial ser4, por sua vez, e por paradoxal que possa soar, popular e nietzschiano: a continuidadeda arte com a vida, encarnada no projeto de lutar contra tudo o que separe a arte da vida, visto que mais do que nas obras, a arte reside é na experiéncia. E nao na experiéncia de alguns homens es- peciais, os artistas-génios, mas mesmo na do homem mais humilde que sabe narrar ou cantar ou entalhar a madeira. Os anarquistas sio contra a obra-prima ¢ os museus, mas no por serem “terroristas”, ou por um a4 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE insano amor pela destrui¢i0”, como pensam sus criticos, mas por militarem em favor de uma arte em situagao, concepyao decorrente da transposigao para o espago estético do seu concito politico de “aso direta”. De Proudhon e Kropotkin, mas também de Tolstéi, a estética anarquista retira seu projeto de reconciliar a arte coma sociedade, com o melhor da sociedade que & a sede de justiga que lateja no povo. Ro- mintica, essa estéticaproclama uma arte antiautocitétia, baseada naes- pontancidade e na imaginacio, Mas anti-romantica, essa mesma esté- tica nao cré numa arte que se limite a expressara subjetividade indi- vidual: o que faz autéatica uma arte é sua capacidide de expressar a vor coletiva. E nesse sentido é “realista”, ao colocar acotidianidade em re- lagao com 0 conflito, que a leva a escolher a face visvel da experién- cia, a realidade fica da miséria. O que do ponto de vita plistico e gré- fico se traduz em um “impressionismo dcrata’,” proximo ao de Seurat ¢ Pisarto, e no campo literdrio a um expressionismo’ Sué ou Gorki Ea partir da estética, mas apontando pira muito mais “lon- ge”, encontra-se a percep¢io anarquista da nova problemitica cultural estabelecida pelas relagdes entre arte ¢ tecnologia, que constituira anos depois um aspecto fundamental da reflexio de Beajamin, Em um primeiro momento trata-se da tecnologia como sma.da afirmagio do tecnolégico no espaco das artes mediante a introdugio recorrente das novas fetramentas ¢ aparatos técnicos: as Fibricas, as estacées de trem, a iluminagao elétrica, 0s postes com os fios do téégnfo. Mas em um segundo momento “ji nao se trata apenas da inclusio de elementos mecanicos figurativosna esfera da arte, mas do fato de esses temas tes- temunharem a mudanga de estrutura social e sugeriem novos cami- nhos ao mesmo tempo sociais ¢ plésticos. O mundo da indiistria in- clufa a participacao artistica do homem nao sé como espectador, mas também como ator, pois 0 conceito de beleza naobn de arte é subs- tituido pelo desejo de significar”.* E desse desejo patticipam, sim, as classes populares em luta contra aquele conceito de arte que acaba excluindo o popular da cultura. Em um comentétio 20 cinema de Chaplin, intitulado “O pobre e o proletariado”, Barthes analisa o sen- 45 DOS MEIOS AS MEDIACOES tido dessa transformagao da beleza em desejo de significar e da pecu- liaridade que isso introduz na estética anarquista, “Chaplin viu sempre © proletério sob os tragos do pobre, disso surge a forca humana de suas representagées mas também sua ambigiiidade politica.” Em um cine- ma, cuja maxima expressio sera Tempos modernos, é apresentado um proletario “pré-politico”, homem com fome, torpe, golpeado continua- mente pela politica, mesmo assim dotado de uma capacidade de signi- ficar, de uma forga representativa imensa, tanta que “sua anarquia, dis- ‘cutivel politicamente, talvez represente em arte a forma mais eficaz da Revolucao”” Dissolugso do popular no marxismo Dessa original e ambigua adogao que 0s anarquistas fazem da idéia de povo, o marxismo “ortodoxo”™* negara a validade tanto tedrica como politica. Ha na reflexio marxista que dé conta da experiéncia do movimento operério de finais do sécule XIX e comegos do século XX um ponto que a distancia especialmente do pensamento libertério: a consciéncia da novidade radical que 0 capitalismo produz, convertida em expressio do salto qualitativo no modo de luta do movimento ope- ririo. O proletariado se define como classe exclusivamente pela contra dicdo antagénica que a constitui no plano das relagdes de produgao: 0 trabalho frente ao capital. Dai que no se poderé falar de classe tra- balhadora senio no capitalismo, nem de movimento operirio antes da aparigdo da grande indhistria. A explicagio da opressio ea estratégia da luta se situam assim em um sé e tinico plano: o econémico, o da pro- dugao. Todos os demais planos ou niveis ou dimensées do social se or- ganizam e adquirem seu sentido a partir das relagdes de produgao. E toda concepgao de luta social que nao se centre ai, que nao parta deste centro nem a ele se dirija, é mistificadora e enganosa, desvia e obsta- culiza. A certeza teérica e a claridade politica se reforgario mutuamen- te, jd que 0 que o marxismo aspira a transbordar os limites do pensa- mento € se apresenta como o movimento mesmo da histéria, feito consciéncia na classe capaz de realizar seu sentido.” Frente a multipli- 46 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE cidade de niveis e planos de luta, frente 4 “ambigitidade” politica em que se moviam os anarquistas, o marxismo possufa unidade de critério € um acréscimo de claridade que vinha em ultima anilise a sujeitar a ex- periéncia do movimento — que era o primordial entre os anarquistas ~ 4 anilise-confrontagao da situagdo com a doutrina, O componente ra- cionalista rompia definitivamente com os residuos de romanticismo que arrastavam os libertérios, eque lhes impossibilitavam pensar a espe- cificidade do politico como um terreno demarcével e separado, aquele justamente em que era pensivel e efetuavel a resposta a dominagio eco- ndmica. Nesse contexto tedrico a idéia de povo nio poderia resultar se- nao retérica € petigosa, e em termos hegelianos superada. Noentanto, quais foram os custos dessa superagao? No plano mais visivel ¢ exterior, o fato de que durante muitos anos 0 apelo ao conceito de povo ficard reservado a direita politica e adjacéncias. Ja hé alguns anos, contudo, a questio voltou a ser proposta a partir da es- querda, Na Europa, por meio da reescrita da histéria do movimento operario que, como no caso de E. P. Thompson,™ propde explicita- mente a impossibilidade histérica de separar taxativamentea luta ope- raria das “lutas plebéias”, de modo que fazer a histéria da classe ope- réria implica necessariamente fazer a histéria da cultura popular. Ou em A experiéncia do movimento operdrio, de Castoriadis, em que, sem apelar explicitamente para o conceito de popular, se efetua contudo uma reelaboragio do conceito de proletariado que faz entrarna reflexio nao pouco do que aquele significava no pensamento anarquista de fi- nais de século. Na América Latina a questao do povo é retomada com forga nos tiltimos anos, ligada tanto a uma releitura dos movimentos populistas quanto & revalorizagio da cultura no interior dos projetos de transformacao democritica.:! Em linhas gerais 0 que comeca a set proposto como impen- sdvel, a partir da negacao eferuada pelo marxismo ortodoxo dos concei- tos de povo, é em primeiro lugar essa outra “determinacao objetiva”, esse outro pélo da contradicao dominante que, segundo E. Laclau, se situa nao no plano das relagdes de producao, mas no das formagées 47 DOS MEIOS AS MEDIACOES sociais, e que se constitui “no antagonismo que opée o povo 10 bloco no poder” Esse antagonismo da lugar a um tipo especifico de luta, a luta “popular-democritica”. Comentando o texto de Laclau, E. de Ipola particulariza o terreno e as caracteristicas dessa luta. Seu lugar de exercicio se situa predominantemente no ideolégico ¢ no politico: na interpretac4o-constituicao dos sujeitos politicos. Seus contetidos hist6- ticos sio a0 mesmo tempo mais concretos ~ j4 que variam segundo as épocas ¢ as situagbes — e mais gerais que os contetidos da luta de classes, pois possuem uma continuidade histérica que se expressa “na persis- téncia das tradigGes populares frente A descontinuidade que caracteri- za as estruturas de classe” 8 Ainda que “superada”, a questo do popu- lar nao tem deixado sem dtivida de ter uma representagao no marxis- mo. Uma anilise particularmente lticida dessa representagao tem sido realizada por O. Sunkel, Duas seriam suas linhas de forga: uma idéia do politizdvel na qual nao cabem mais atores populares que a classe tra- balhadora, nem mais conflitos que os que provém do choque entre capital ¢ trabalho, nem mais espagos que os da fabrica ¢ do sindicato; e uma visio herdica da politica, mas nao no sentido dos rominticos, € sim deixando de fora o mundo da cotidianidade e da subjetividade. A partir daf se produz uma dupla operagio de negagao, ou melhor, esta se configura em dois modos de operago: a nao-represen- taco e a repressio. O popular néo-representado “se constitui como 0 conjunto de atores, espacos e conflitos que sio aceitos socialmente, mas que nao sio interpelados pelos partidos politicos de esquerda’.™ Sur- gem assim atores como a mulher, o jovem, os aposentados, os invélidos enquanto portadores de reivindicagées especificas; espagos como a ca- sa, as relaces familiares, o seguro social, o hospital etc. E um segundo tipo de popular nao representado, constituido pelas tradigdes cultu- rais: prdticas simbélicas da religiosidade popular, formas de conheci- mento oriundas de sua experiéncia, como a medicina, a cosmovisio mégica ou a sabedoria poética, odo o campo das praticas festivas, as romarias, as lendas e, por tiltimo, o mundo das culturas indigenas. 48 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE O popular reprimido “se constitui como 0 conjunto de atores, espagos conflitos que tém sido condenados a subsistir as margens do social, sujeitos a uma condenacio ética ¢ politica’.®* Atores como as prostitutas, os homossexuais, os alcélatras, os drogados, os delingiien- tes etc.; espagos como os reformatérios, os prostibulos, os cérceres, os lugares de espeticulos noturnos etc. Mas a negacao do popular nao é sé temtica, nio se limita a desconhecer ou condenar um determinado tipo de temas ou proble- mas, mas revela a dificuldade profunda do marxismo para pensar a questao da pluralidade de matrizes culturais, a alteridade cultural. Reduzida jé em Marx ao problema dos modos pré-capitalistas de pro- dugao, cujo paradigma seria o “modo de produgao asiético” — redugao que R. Bahro nao hesita em colocar como um problema de etno- centrismo* -, a questo perde seu sentido ¢ a perspectiva tedrica, quando se introduz, fica ancorada no evolucionismo primério de Morgan. Certo que ha em Lenin uma referéncia explicita questo quando analisa a formagao social soviética, na qual distingue uma cultura dominante burguesa, algumas culturas dominadas — as do campesinato tradicional —, ¢ “elementos de uma cultura democrdtica socialista” no proletariado.>” Mas o afi de referir e explicar a diferenca cultural pela diferenga de classe impedird de se pensar a especificidade dos conflitos que articula a cultura e dos modos de luta que a partir dai se produzem; “o papel das identidades socioculturais como forgas ma- teriais no desenvolvimento da histéria”.** E portanto sua capacidade de conyerterem-se em matrizes constitutivas de sujeitos sociais e politicos, tanto no intercimbio ou no enfrentamento entre formagées sociais diferentes como no interior de uma formagio social. Em tiltima instan- cia, trata-se da impossibilidade de remeter todos os conflitos a uma s6 contradigio ¢ de analis4-los a partir de uma s6 légica: a légica interna a luta de classes. O que nio significa que a luta de classes nao atravesse, ¢ em determinados casos articule, as outras. O problema é pensé-la como expresso de uma pretendida “unidade da histéria”. Para Marx isso nao oferece diivida, e o livro de 0 Capital afirma, precisamente 49 DOS MEIOS AS MEDIACOES: para justificar a destruigao da sociedade atrasada. “O capitalismo in- dustrial funda a histéria mundial ao fazer cada nagio-e cada individuo ¢ dependentes, para a satisfagio de suas necessidades, do mundo inteiro”. Mas a unificagio imposta pelo capital nao pode todavia esca- par 4 ruptura da unidade de sentido. O capitalismo pode destruir cul- turas, mas nao pode esgotar a verdade histérica que existe nelas. E 0 marxismo nao escapa a essa ldgica quando pretende pensar as socieda- des “primitivas” do passado ou as outras culturas do presente a partir de uma particular configuragao da vida social erigida em modelo. Para um etndlogo como P. Clastres, essa “pretensio” a ditar a verdade de to- das as formagées sociais que balizam a histria levou 0 marxismo a “redunir-se a si mesmo reduzindo a espessura do social a um s6 para- metro”, pois com essa medida o que se produz é “a supressio pura € simples da sociedade primitiva como sociedade especifica”.” Estudan- do o tratamento que a estética marxista dé is artes plisticas das culturas dominadas, Mirko Lauer explicita as duas operagées em que se traduz o desconhecimento da alteridade cultural: “indiferenca generalizada” frente A especificidade das culturas marginais, e “incapacidade para apreender essas culturas em seu duplo caréter de dominadas e de pos- suidoras de uma existéncia positiva a ser desenvolvida”.“° Uma questio mais geral, mas que esté profundamente ligada a “negagio” do popular no marxismo: a equiparagéo entre o conceit de cultura e 0 de ideologia. Refiro-me mais uma vez a0 marxismo orto- doxo, a esse que tem desconhecido ou deformado 0 conceito gramscia- no de hegemonia “recuperando-o” no interior de uma concep¢ao que continua sendo dominante. Foi no debate dos anos 1930‘ que come- caram a se fazer patentes 0 significado ¢ os efeitos dessa equiparacao. A impossibilidade de assumir e dar conta da complexidade e da rique- za cultural desse momento se materializaré na tendéncia a idealizar a “cultura proletéria”” e a encarar como decadente a produgio cultural das vanguardas. A critica dessa equiparagio tem hoje jé bem delimita- dos os impasses, tanto o que se situa na predominincia do sentido ne- gativo— falsificagio da realidade — sobre os outros sentidos ¢ efeitos da 50 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE ideologia - concepcao de mundo, interpelagio dos sujeitos® — como © que resulta de pensar as relagées de produgio como um espago ex- terior aos processos de constituigao do sentido." Por isso me parece fundamental retomar a questio a partir das relag6es entre cultura e mo- demidade. Como demonstrou Rezsler, a tese da decadéncia da arte moderna nio fala sé da estreiteza de um marxismo valgar, mas também de um impasse de fundo na reoria marxista ortodoxe. Claro que a argu- mentagao de Idanov néo é a de Lukics, mas o significado da tese e os efeitos politicos foram os mesmos. Em ambos 0 que se condena como a-social por ser individualist, ou anti-social por ser burgués, é 0 experi- mentalismo: a capacidade de experimentar ea partir dai questionar as “pretenses de realidade” que encobria 0 realismo. Realismo que € assumide como o gosto profundo ¢ 0 modo de expressio das classes populares. O paradoxo toca fundo: a invocagio do povo € sé para opor o conservadorismo de seu gosto, “seu bom-senso”, arevolugio que est transformando a arte. E a continuidade que se reclama com 0 passado é a continuidade com os valores culturais da época burguesa solapados pelos movimentos modernistas”. Apela-se a0 povo no sentido mais populisca e mais negativamente romantico: para exaltar como critérios basicos da “verdadeira” obra de arte a simplicidade ¢ compreensi dade por parte das massas. Em outro nivel certamente, mas em uma diregao bem préxima, acha-sea condenagio que faz Lukécs da moder- nidade por dissolver a forma e misturar, confundir os géneros. Os que estéo préximos da apocaliptica ¢ conservadora teoria da decadéncia cultural na sociedade de massis, que vamos estudar adiante, configu- ram uma estranha coincidéncia. CAPITULO 2 NEM POVO NEM CLASSES: A SOCIEDADE DE MASSAS Aidéia de uma “sociedade de massas” é bem mais velha do que costumam contar os manuais para estudiosos da comunicacio. Obstinados em fazer da tecnologia a causa necesséria e suficiente da nova sociedade ~ ¢ decerto da nova cultura —, a maioria desses manuais situa o surgimento da teoria da sociedade de massas entre os anos 1930- 1940, desconhecendo as matrizes histéricas, sociais e politicas de um conceito que em 1930 tinha jé quase um século de vida, e pretendendo compreender a relago massas/cultura sem nenhuma perspectiva hist6- rica sobre surgimento social das massas. Para comecar a contar essa histéria, que é a tinica maneira de fazer frente & fascinagio produzida pelo discurso dos tecnélogos da mediagéo de massa, talvez seja boa uma imagem: 0 acionamento durante o século XIX da teoria da socie- dade-massa é 0 de um movimento que vai do medo a decepsao e dai 20 pessimismo, mas conservando o asco. Em seu ponto de partida — a desencantada reflexao de liberais franceses e ingleses no convulsivo pe- riodo pés-napolednico que vai da Restauracao a Revolucio de 1848 -, fica bem dificil separar 0 que ha de decepgao pelo caos social que trouxe © “progresso” do medo das perigosas massas que conformam as classes trabalhadoras. Por volta de 1835 comega a ser gerada uma nova concepcio do papel e do lugar das multidées na sociedade, concep¢io que esconde sem diivida, em suas entrelinhas, rastros evidentes do “medo das tur- bas” e do desprezo que as minorias atistocraticas sentem pelo “sérdido povo”. Os efeitos da industrializacio capitalista sobre o quadro de vida das classes populares sao visiveis. E vdo mais longe do que as burguesias talvez esperassem. E toda a trama social que se vé afetada, transbordada POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE de seu leito por movimentos de massas que poem em perigo “os pilares da civilizagio”. As mudangas se produziam de forma que, “i medida que as técnicas cram mais racionais ¢ as riquezas materiais mais abun- dantes, as relagdes sociais eram mais irracionais ¢ a cultura do povo, mais pobre (...]. Em meados do século XIX a utopia progressista jé se havia convertido em uma ideologia. Era uma interpretagao do mundo em evidente contradic’o com o estado real da sociedade”.7 E entao, junto aos novos modos de controle dos movimentos populares, se por em marcha um movimento intelectual que, a partir da direita politica, trata de compreender, de dotar de sentido 0 que esti acontecendo. A teoria sobre as novas relacdes das massas com a sociedade constituiré um dos pivés fundamentais da racionalizacio com que se recompée a hegemonia e se readéqua o papel de uma burguesia que, de revolucio- natia, passa nesse momento a controlar e frear qualquer revolugio. O que nao implica de nenhum modo a invocagSo do velho fantasma da teoria conspirativa, pois “a teoria da sociedade-massa tem fontes dife- rentes ¢ uma paternidade mista composta de liberais descontentes e con- servadores nostélgicos, além de alguns socialistas desiludidos e uns tantos reaciondrios abertos”.*® A DESCOBERTA POLITICA DA MULTIDAO A nova visio sobre a relagao sociedade/massas encontra no pensamento de Tocqueville” seu primeiro esboco de conjunto. Se an- tes se situavam fora, como turbas que ameagavam com sua barbérie a “sociedade”, as massas se encontram agora dentro: dissolvendo o tecido das relagdes de poder, erodindo a cultura, desintegrando a yelha or- dem, Estao se transformando de horda gregiriae informe em multidio urbana, transformagao que, embora seja percebida em ligagdo com os processos de industrializacao, é atribufda ances de tudo ao igualitaris- mo social, no qual se vé o germe do despotismo das maiorias. Trocando em mitidos: Tocqueville olha a emergéncia das massas sem nostalgia, inclusive consegue perceber com nitidez que nela 53 DOS MEIOS AS MEDIACOES. reside uma chave do inicio da democracia moderna. Masa democracia de massas traz em si mesma o princfpio de sua propria destruicao. Se democratica é uma sociedade na qual desaparecem as antigas distingoes de castas, categorias ¢ classes, ¢ 1a qual qualquer oficio ou dignidade &acessivel a todos, uma sociedade assim nao pode nao relegara liberda- de dos cidadaos ¢ a independéncia individual a um plano secundario: © primeiro sera sempre ocupado pela vontade das maiorias. E desse mo- do 0 que vema ter verdadeira importincia nao ¢ aquele em que hd razao evirtude, mas aquele que € querido pela maioria, isto é: 0 que se impoe unicamente pela quantidade de pessoas. Dessa maneira 0 que constitui © principio moderno do poder legitimo acabard legitimando a maior das tiranias. A quem poderd pear, pergunta-se Tocqueville, um ho- mem ou um grupo que sofre injustisa?, e responde: “a opiniao puiblica? Nao, pois esta configura a yontade da maioria. Ao corpo legislativo? Nao, este representa a maioria ea obedece cegamente. Ao Peder Exe- cutivo? Nao, 0 Executivo é nomeado pela maioria e a serve como ins- trumento passivo”.*° O que faz mais opressivo esse poder adquirido pela maioria é que sobre ela Tocqueville projera a imagem de uma massa ignorante, sem moderagio, que sactifica permanentemente a liberdade em altares da igualdade e subordina qualquer coisa ao bem-estar. Estamos diante de uma sociedade composta por “uma enorme massa de pessoas seme- Ihantes ¢ iguais, que incansavelmente giram sobre si mesmas com 0 objetivo de poder dar-se os pequenos prazeres vulgares com que satis- fazem suas almas”.5' E a sociedade democratica que vé gerar-se rapi- damente e de forma mais clara nos Estados Unidos: essa nacio na qual jd ndo hd profissdo em que nao se trabalhe por dinheiro, na qual “até o presidente trabalha por um salirio [...] que dé a todos um ar de fami- lia”. Ena qual a administragao tende a invadir tudo, todas as atividades da vida, uniformizando as manciras de viver ¢ concentrando a gestio no vértice. A justificagao do pessimismo social faz desse discurso uma mistura quase inextricdvel de uma certa andlise das novas contradigoes 54 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE com a expresso do desencanto do aristocrata. Na linha aberta por La Boetie em Da servido voluntdria, na qual ja no século XVI o pessimis- mo cultural em termos de fracasso moral tragava uma radiografia deso- ladora da cumplicidade do pov com a tirania, Tocqueville propoe que a convergéncia da mecanizagio introduzida pela indistria com a “en- fermidade democritica” conduzem inevitavelmente & autodegradaci da sociedade. Um estudioso atual do tema pens que 0 que esse esque- cido autor do século XIX esava fazendo era propor profeticamente “a deterioragio da qualidade da agio e da experiéncia nas sociedades igua- litérias”, com 0 que Tocquerille acabaria sendo um “critico utépico do que hoje se chama o problema p6s-revoluciondrio”.* Sem ir tao longe, © que de fato € necessério reconhecer na reflexao de Tocqueville é que ele propés uma pergunta fundamental sobre o sentido da modernida- de: pode-se separar 0 movimento pela igualdade social e politica do proceso de homogeneizaczo e uniformizagio cultural? Mas, tal e como & proposta em seu momento por Tocqueville, essa contradi¢ao acaba por revelar antes de tudo o melo produzido pelas mudangas. Analisan- do em boa parte os mesmos fatos, mas olhando-os sem esse medo, Engels, em As condigées da dase trabalhadora na Inglaterra, vé na massificagio das condigées de vida o processo de homogeneizacao da exploracio a partir da qual se fiz possivel uma consciéncia coletiva da justiga e da capacidade das massas trabalhadoras para gerar uma sociedade diferente. Dai que, por mais hicido que se queira, 0 conceito de massa que inicia sua trajetéria no pensamento de Tocqueville racio- naliza todavia o primeiro grande desencanto de uma burguesia que vé em perigo uma ordem social por ela e para ela organizada. O qual nio implica desconhecer que com o nome de massa se designa af pela pri- meira vez um movimento que afeta a estrutura profunda da sociedade, a0 mesmo tempo em que &0 nome com que se mistifica a existéncia conflitiva da classe que ameaga aquela ordem. Menos beligerantemente politico, e de empenho mais filos6- fico, o pensamento de Stuart Mill, jé situado na segunda metade do século XIX, continua e complementa 0 de Tocqueville, elaborando 55 DOS MEIOs As MEDIACOES uma concepgao do processo social, na qual a idéia de massa se afasta de uma imagem regatva do povo para passar a designar a tendéncia da sociedade a converter-se numa vasta e dispersa agregacao de individuos isolados, De um lado a igualdade civil pareceria possibilitar uma socie- dade mais orginica,mas, a0 romper-se 0 tecido das relagGes hierarqui- zadas, 0 que se proluz é uma desagregapio sé compensada pela wnifor- mizagio. Massaé entéo “a mediocridade coletiva” que domina cultural ¢ politicamente, “pois os governos se convertem em érgao das tendén- cias ¢ dos instintosdas massas”.°? A PSICOLOGIA DAS MULTIDOES Depois diComuna de Paris, o estudo acerca da relagao mas- sa/sociedade toma um rumo descaradamente conservador. Mas no tl- timo quartel do séailo XIX as massas “se confundem” com um pro- letariado cuja preserga obscena deslustra e entrava o mundo burgues. E entao 0 pensamerto conservador, mais que compreender, 0 que bus- card a seguir sext controlar, Em 1895, 0 mesmo ano em que os irmaos Lumigre poem em funcionamento a méquina que daré origem a pri- meira arte de massas, 0 cinema, Gustave Le Bon publica La psychologic des foules;o primeio intento “cientifico” para pensar a irracionalidade das massas. Podemos medir a importancia desse livro pela ressonancia que encontrarémemo em Freud, que, em Psicologia das massas ¢ a Lise do eu, 0 situa como o ponto de partida inevitavel para sua propria reflexao. La Bon pate de uma constatagio: a civilizacao industrial nao € possivel sem a formagao de multidées, e o modo de existéncia destas é a turbuléncia: um modo de comportamento no qual aflora 4 super ficie fazendo-se visivel a “alma coletiva” da massa. Mas que é uma massa? E um fendmeno psicoldgico pelo qual 08 individuos, por mais diferente que seja seu modo de vida, suas ocu- pagdes ou seu curdte, “estio dotados de uma alma coletiva que lhes faz comportar-se de mincira completamente diferente de como se com- 56 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE portaria cada individuo isoladamente. Almacuja formacio €é possivel s6 no descenso, na regressdo até um estado primitivo, no qual as inibigoes morais desaparecem ¢ a afetividade e 0 instinto passim a dominar, pondo a “massa psicolégica” 4 mercé da sugestao ¢ do contégio. Pri- mitivas, infantis, impulsivas, crédulas, irritéveis..., as massis se agitam, violam leis, desconhecem a autoridade ¢ semeiam a desordem onde quer que aparegam. Sao uma energia mas sem controle: ¢ nao é esse precisamente 0 oficio da ciéncia? O psicdlogo se propéeentao 0 estudo do modo como se produz a sugestionabilidade da massa para assim poder operar sobre ela. A chave se encontnria na constituigao das cren- ¢as que, em sua configuragao “religiosa”, permitem detectar os dois dis- positivos de seu funcionamento: 0 mito queas une eo lider que celebra os mitos, Le Bon nao é um nostilgico, jé so guarda nenhuma nostal- gia por outros tempos melhores. Ao contririo, o que o assusta nas mas- sas é a espécie de retorno ao passado obscurantista que elas represen- tam: 0 retorno das superstig6es. E essa tendéncia ¢ idemtificada por Le Bon pura ¢ simplesmente com 0 retroceso politico. A operacéo tem sua légica, Reduzidos a “movimentos de mmassas”, os movimentos poli- ticos das classes populares so identificados com comportamentos irra- cionais ¢ caracterizados como recaidas em estdgios “primitivos”. E a essa Iégica se devem afirmagées “cientificas’ do calibre desta: 0 movi- mento socialista é essencialmente inimigo da civilizaséo, que se pode ler no livro seguinte de Le Bon, intitulads A psicologis do socialismo. Dizfamos que Freud apéia seu estudo das massas sobre a obra de Le Bon, mas ele mesmo se encartega de marcar claramente suas dife- rengas. O que lhe interessou profundamente no estudo de Le Bon foi a importincia que af adquire 0 inconsciente. Mas, “para Le Bon, o in- consciente contém antes de tudo os mais profundos caracteres da alma e da raca, 0 que nao € propriamente objeto da psicanilise. Reconhece- mos desde ja que 0 nédulo do eu, ao qual pertence ‘a heranga arcaica’ daalma humana, é inconsciente, mas postulamos além disso a existén- cia do ‘reprimido inconscientemente’ surgdo de uma parte de tal he- 57 DOS MEIOS AS MEDIACOES ranga. Este conceito ‘do reprimido’ falta na teoria de Le Bon”. As duas diferencas assinaladas sio- fundamentais. Rechago 4 confusio. do inconsciente estudado pela psicandlise com essa meméria bioldgica da raga que, a partir de Le Bon, nos conduz diretamente & racionalizagao psicolégica do nazismo ou ao substancialismo dos arquétipos junguia- nos. O inconsciente est conformado basicamente pelo reprimido, que é 0 que, ao faltar na teoria de Le Bon, induz ao segundo desacordo im- portante: que acontece na massa talvez nao seja tao radicalmente dife- rente do que se passa com 0 individuo. Pois 0 que explode na massa esta no individuo, porém reprimido, O que equivale a dizer que a massa nao est substancialmente feita de outra matéria, pior que a dos individuos. Mas com essa concep¢io Freud estava arrebentando nada mais nada menos do que o substrato do pensamento que racionaliza o individua- lismo burgués. E 0 que a partir dai ficard nitido ¢ que a teoria conserva- dora sobre a sociedade-massa nao é mais que a outra face de uma s6 € mesma teoria, a que faz do individuo o sujeito ¢ motor da histéria. O terceiro desacordo esti relacionado com a obsessio de Le Bon pela falta de Ifderes nas sociedades modernas, frente ao qual Freud propée nao sé a estreiteza e superficialidade da concepgao que Le Bon tem da figura e da funcao do lider, como também a redugio do social que toda essa teoria sustenta, “Le Bon reduz todas as singularidades dos fenémenos sociais a dois fatores: a sugestio recfproca dos indivi duos ¢ 0 prestigio do caudilho”.* Com o que se faz mais nitida a légica da operagio que descreviamos anteriormente. A teoria da sociedade de massas, tal e como emerge das proposigdes de Le Bon, tem na base a negagao mesma do social como espaco de dominagéo e de conflitos, espago que nos abre ao tinico modo de recuperagao da histéria sem pessimis- mos metafisicos nem nostalgias. E que permite compreender 0 comporta- mento das massas nao sé em sua dimensio psicolégica, mas também — escandalo! — em seu fazer cultural. Pois segundo Freud nas massas ha nao sé instintos, mas produgao: “Também a alma coletiva é capaz de dar vida a criagées espirituais de uma ordem genial como provam, em primeiro lugar, o idioma, e depois os cantos populares, o foldlore etc. 58 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Seria necessério, além disso, precisar quanto devem 0 pensador ¢ 0 poe- ta aos estimulos da massa, e se sao realmente algo mais que os aperfei- goadores de um labor animico no qual os demais tm colaborado si- multaneamente”.” Wilhelm Reich continuard essa desmistificagao da teoria so- bre as massas. Em uma obra escrita nio a posteriori, mas em pleno 1934, 0 autor desmonta a operagdo de “intoxicagao psiquica das massas” que, iniciada em Le Bon e sua identificagio da “alma coletiva” com o inconsciente da raga, encontrard sta plenitude “na fidelidade a0 sangue € 8 terra” da ideologia nacional-socialista. Reich transforma as perguntas psicolégicas de Freud — que é uma massa? em que consiste a modificagao psiquica que impée ao individuo? — nas perguntas socio- lagicas que, segundo ele afirma, fez pessoalmente a Freud em 1937: “Como € possivel que um Hitler ou um Djungashsvili [Stalin] possam reinar como amos sobre oitocentos milhdes de individuos? Como é possivel isso?”.” Perguntas que nao sao respondidas nem a partir de uma psicologia do lider, do caudilho e seu carisma, nem a parti das maquinagSes dos capitalistas alemaes. Porque “ni existe nenhum processo socioeconémico de alguma importincia histérica que nao es- teja ancorado na estrutura psiquica das massas ¢ que nao se tenha ma- nifestado através de um comportamento dessas massas’. E entio o verdadeiso problema que uma psicologia das massas deve enfrentar é“o problema da submissio do homem a autoridade”, de sua degradacio, visto que “onde quer que grupos humanos e fragdes das classes oprimi- das lutem ‘pelo pao e pela liberdade’, 0 grupo das massas se mantém a margem e reza, ou simplesmente luta pela liberdade no bando de seus opressores”.®! Com a virada do século, aparece publicado um livro que, retomando as questdes de Le Bon, dard a elas uma inflexao diferente, inaugurando a “psicologia social” com que o funcionalismo norte-ame- ricano dos anos 1930-1940 iria temperar a primeira teoria da comu- nicagao. Trata-se de L ‘Opinion et la foule: no qual a questio das cren- cas é objeto de um deslocamento fundamental: em lugar de ter como 59 DOS MEIOS As MEDIACOES espazo de compreensio de seu estatuto social © religioso, as cren- gas se recolocam no espago da comunicacao, de sua circulagdo-na im- prensa. A massa éconvertida em piiblico eas crengas, em opinide. O no- vo objeto de estudo ser’, pois, o ptiblico como efeito psicolégico da difusio de opiniao, isto é aquela coletividade “cuja adesio é sé men- tal”. E a tinica possivel em uma sociedade reduzida a massa, a conglo- merido de individuos isolados ¢ dispersos. Mas como se produz essa adesio? A resposta de Tarde revela suas dividas com Le Bon: por suges~ to. 56 que agora essa sugestao é “A distancia”. No pensamento de Tar- de faz-se especialmente clara a inadequagio entre 0 novo do problema que ie busca pensar ¢ o “velho” das categorias em que é formulado. E isso apesar da renovacio do Iéxico. Sem dtivida, 0 relacionamento esta- belecido entre massa ¢ piblico nos interessa enormemente, uma vez que, mais além daquilo que esse autor tematiza, aponta até para a nova situayao da massa na cultura: a progressiva transformagio do ative — ruidoso e agitado — paiblico popular das feiras ¢ dos teatros no passive ptiblico de uma cultura convertida em espetéculo para “uma massa silenciosa e assustada”.® Formulada em termos das idealidades de Max Weber, é de- senvolvida por Ferdinand Ténnies uma reflexao que combina elemen- tos di sociologia de Tocqueville com outros da psicologia proposta por Le Bon. Para Ténnies a mudanga que significa a presenga moderna das massas deve ser pensada a partir da oposicao de dois “tipos” de co- letividade: a comunidade e a sociedade (associacio). A comunidade se define pela unidade do pensamento ¢ da emosio, pela predominancia dos ligos estreitos ¢ concretos ¢ das relagdes de solidariedade, lealdade ¢ identidade coletiva. A “sociedade”, pelo contratio, esté caracterizada pela separacio entre meios ¢ fins, com predominancia da razio manipu- ladora ¢ a auséncia de relagdes identificatérias do grupo, com a conse- guinte prevaléncia do individualismo ¢ a mera agregacao passageira. A falta de lacos que verdadeiramente a unem sera compensada pela com- peténcia e pelo controle. A proposta de Ténnies, embora formulada em termos que pretendem descrever sem valorar, nio pode escapar 3 carga 60 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE de pessimismo que suas “idealizagoes” arrastam, ea partir do qual seré lido pela maioria dos autores que se ocupam do tema. Metafisica do homem-massa Os acontecimentos que se “precipitam” no primeiro tergo do século XX vio conduzir 9 pensamento sobre a sociedade ao paroxismo. Primeira Guerra Mundial, Revolugao Russa, surgimento e avango do fascismo, tudo vem corroborar na direita liberal ou conservadora sua sensagao de desastre definitivo e exacerbar 0 pessimismo cultural. Dois livros recolhem e sintetizam essa exacerbacio, convertendo-se em “clis- sicos” poucos anos apés sua publicagio: A rebelido das massas, de José Ortega y Gasset, ¢ A decadéncia do Ocidente, de Oswald Spengler. Proposta uma sociologia (Tocqueville) ¢ uma psicologia (Le Bon, Tarde), faltava apenas o salto na metafisica. E 0 que leva a cabo Ortega, com sua teoria do homem-massa, na qual, como ele mesmo explica em uma linguagem tio pouco metafisica como a sua, trata-se de ir “da pele” desse homem a suas “entranhas”. O que significa ca- minhar do fato social das aglomerardes— “a multidio imediatamente se fez visivel. Antes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenério social; agora se adiantou as baterias, é ela 0 petsonagem prin- cipal” — até a dissecagio de sua alma: mediocridade e especializagao. exterior, ou seja, a histéria, estd formado pelo crescimento demo- grifico ¢ pela técnica, que tém seu lado bom “no crescimento da vida” —a vida média se move a uma altura supetior, pois tem-se ampliado © repertério de possibilidades da maioria— sea lado mau na aglome- ragio — “essa invasao pelas massas de todos os lugares, inclusive dos re- servados as minorias criativas” — e na especializagao que desaloja de ca- da homem de ciéncia a “cultura integral”. O interior nos é descrito através de uma longa ¢ sinuosa viagem ao coragio do homem-meio, do homem-massa, no qual sé hé vulgaridade ¢ conformismo. E como se os detritos do homem ocidental tivessem tomado seu coracio. No final da viagem Ortega nos espera com uma formula que o resume inteiro: 61 DOS MEIOS AS MEDIACOES “A rebelido das massas é a mesma coisa que Rathenau chamava @ inva- sédo vertical dos bérbaros” Qu seja,o retorno daquela definitiva Idade Média que nao é a histérica, pois nfo est4 no passado, mas no futuro- presente, ¢ seus barbaros invadindo-nos agora verticalmente, quer dizer, de baixo para cima. Creio que € 0 momento de recordar a imagem com que abria ¢ pretendia sintetizar 0 sentido do movimento que subjaz ao longo de todo o desenvolvimento desta teoria: do medo ao desencanto conser- yando 0 asco. E, por mais que Ortega nos repita que o homem-massa nao pertence a uma classe, mas habita todas, sua reféréncia sécio-his- t6rica se acha nos de baixo, dado que eles so, na atrasada Espanha do ‘comeco do século, os que conformam a maioria, a massa obscena, a multidio que nesses anos justamente realiza dia apés dia insurreig6es, levantamentos através dos quais se alga — verticalmente! — contra a ¢s- pessa capa do feudalismo politico eecondmico enrijecido, ¢ invade os sagrados ¢ aristocraticos espagos dacultura. Frente & insurreigio popu- lar, que nos anos 1930 alcanga, tanto no politico como no cultural, ‘© momento mais alto e fecundo de Espanha moderna, Ortega escreve um livro com prélogo para francess, epilogo para ingleses ¢ cheio de piscadelas de olhos para a filosofiaalema, mas do qual esté profunda- mente ausente a prépria referencia historica espanhola. H4 um ponto, sem diivida, no qual Ortega toca ahistéria, ¢ séo as referéncias & cum- plicidade das massas com o Estado fascista ¢ sua necessidade de segu- ranga. Mas ainda af a critica se resolve em uma andlise mais moral que politica: o Estado aparece sem rafz no econdmico € o conflito desliza para o cultural. Vejamo-lo mais de perto. A relagio massa/cultura ¢tematizada por Ortega de um mo- do especial em A desumanizagéo daarte, mas os dois tragos que para cle definem em profundidade a cultura formam parte substancial da ar- gumentagéo que se desdobra em A rebelido das massas. Um: a “cultura integral” definida por oposi¢do 2 ciéncia ¢ & técnica, reafirmando aquele humanismo que delimita a cultura por sua diferenga com a civi- lizagao. Propée-se uma teoria para compreender a modernidade, mas 62 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE © espago do que se pensa como cultura apresenta-se separado do tra- balho cientifico e técnico, ¢ aferrado a uma mistura do classico cultivo do espiritual com elementos da ética burgues: do esforco e do auto- controle. Dois: a cultura é antes de tudo ormas. Quanto mais precisa, quanto mais definida a norma, maior é cultura. E com esse conceito se “enfoca” a arte que se faz nesse tempo! Qual é entao para Ortega o tipo de telagdo que a massa tem com a cultura? Para dizé-lo sem rodeios: nao s6 a massa é incapaz de cultura — isso vem sendo dito do povo hé séculos — como o que o que salva a arte moderna, a monstruosa arte que fazem Debussy, Cézanne ou Mallarmé, é que ela serve para pdr a descoberto essa incapacidade radical das massas justo agora, quando elas pretendem e se eréem ca- pazes de tudo, até da cultura. O melhor dessa arte ¢ que desmascara culturalmente as massas: frente a ea nao podem fingir que gozam, tan- to thes aborrece ¢ irrita. Cultura criativa, a nova arte é a vinganga da minoria que, em meio do igualitarismo social e da massificacao cultu- ral, nos torna patente que ainda hd “classes”. Enessa distingao que se- para é onde reside para Ortega a possibilidade mesma da sobrevivéncia da cultura. ‘A arte moderna resulta assim essencialmente impopular por- que se ergue contra as pretensdes ~ os direitos— com que se créem as massas, produzindo sua incompreensio ou repugnancia, incompreen- so a que o artista responde exaceibando sua hostilidade e sua distan- cia. Com o que a relasio entre arte e sociedade se rompe. E desinte- grada a arte no pode nao des-humanizar-se: a figura desbota, os géne- ros se confundem, a harmonia se perde. Mas também 0 que se ganha é muito, pensa Ortega, porque nesa prova de fogo que atravessa a arte se purifica de todo 0 magma de sentimentalismo ¢ melodrama que ainda arrastava. Debussy desumaniza a miisica, mas “nos possibilita es- cutar miisica sem desfalecimento nem lagrimas”. No fundo, ao separar- se da vida, 0 que se passa com a arte é que se encontra consigo mesma: a poesia se faz pura met4fora ea pintura pura forma e cor. Anteaamea- ga que vem da barbarie vertical, ante a ameaga que atormenta por den- 63 DOS MEIOS AS MEDIACOES tro, a cultura redescobre suas esséncias. E 0 paradoxo tocard fundo en- to, Ao defender anova arte, Ortega chega a seu ponto de maximo en- frentamento como fascismo. “Hitler, Goebbels e os porta-vozes da cul- tura ‘nazificada’ atribuem ao ‘homem-nazi’ o reflexo defensivo tao cla- ramente diagnosticado por Ortega”. Porque para os nazis a arte mo- derna é degeneracio, & qual sé se pode fazer frente resgatando as essén- cias da verdadeira arte que permanece na tradicao popular. O moderno no seria arte porque renega sua origem étnica ¢ sua rela¢io com o na- cional. Seu cosmopolitismo ¢ para Goebbels 0 mais claro sinal de sua decomposicao. Mas o paradoxo deve ser lido. Tanto 0 atistocratismo de Ortega, para quem a verdade ultima da desumanizada arte moderna reside em humilhar as pretenses das massas e demonstrar-lhes sua in- superdvel vulgaridade, como 0 nauseabundo populismo nazi, com sua defesa de uma arte para 0 “auténtico” povo-raca, mascaram ¢ mistifi- cam 0s processos histéricos de transformagao da cultura e os conflitos € contradicSes que essa transformacio articula. O mérito indubitavel de Ortega est& em nos ter feito compreender o grau de opacidade e am- bigitidade politica com que se reveste em nosso século a questo cul- tural, ea inversio do sentido do popular que ali se produz. Na mesma época que o livro de Ortega, é publicado A deca- déncia do Ocidente, Nele, Spengler conduz a medita¢ao metafisica sobre a degradagao cultural das sociedades ocidentais até converté-la em filo- sofia da histéria. A filosofia segundo a qual a vida das culturas — que sdo “o interior da estrutura organica da hist6ria” — é uma vida vegeta- tiva: as culturas nascem, se desenvolvem € morrem. E assim, a demo- cracia de massas marcaria 0 ponto de inflexao fatal do ciclo no Ociden- te: 0 inicio de sua morte. Pois a cultura é alma da Hist6ria (com maitis- cula), essa “animidade” que a orienta por dentro a empurra em forma de destino, enquanto as civilizagGes sao seu “exterior artificial e suces- sivo”. E, quando a cultura se degrada, a civilizacéo toda se desagrega e perde seu sentido, ficando reduzida a mera “exploragio das formas inorginicas e mortas”.”? 64 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE As duas manifestacées mais evidentes da morte da cultura ocidental so, segundo Spengler, a democracia e atécnica. A democra- cia porque em sua forma moderna acaba com a verdadeira liberdade. Afestd 0 jornal, com a unifermizagdo que impée, acabando com a ri- queza e variedade de idéias que fazia possivel o livro. Como a retérica na Antigiiidade, 0 jornal faz com que “cada qual pense s6 o que lhe fa- zem pensar”. O jornal pode assim ser a0 mesmo tempo o maior ex- poente da civilizagio moderna ¢ a expressio mais acabada da morte da cultura. A outra manifestagao é a técnica, enquanto ela realiza a disso- luggo da ciéncia ¢ sua fragmentagao, atomizagao em ciéncias. Perdida a unidade do saber, 0 que nesse processo se liqitida é sua capacidade de orientar a histéria, € o que resta nao é mais que submissio 4 quan- tidade, ao dinheiro e a politica. E, dessa forma, uma concepgio da his- téria incapaz de dar conta das novas contradig6es mata-se gritando que € a historia que chega ao fim. E certo que o pensamento de Ortega nao.cai no organicismo de Spengler nem em seu pessimismo suicida, mas a0 pensamento de ambos, que, fazendo 0 jogo da pseudofatalidade, acaba por encobrir as transformagbes que vém do real-possivel, pode-se aplicar esta afirmacao de Adorno: “Para os pensadores da direita era muito mais facil penetrar com o olhar as ideologias, pela simples razio de que nao tinham ne- nhum interesse na verdade nelas contida de forma falsa”.” Antiteoria: a mediacso-m como cultura De Tocqueville a Ortega os grandes teéricos da sociedade de massa pertencem ao Velho Continente. Embora nio devamos esquecer que o texto inaugural foi A democracia na América eque foi nessa Amé- rica do Norte que se fizeram nitidos os tragos da nova sociedade. Com © pés-guerra, anos 1940, 0 eixo da economia se desloca ¢ com ele se desloca também, até inverter seu sentido, a reflexao. Mais que um des- locamento trata-se de uma revolucao copernicana, pois, enquanto para os pensadores da velha Europa a sociedade de massas representa a 6s DOS MEIOS AS MEDIAGOES: degradagzo, a lenta morte, a negagio de quanto para eles significa a Cultura, para os tedricos norte-americanos dos anos 1940-1950 a cul- tura de massas representa a afirmagao ¢ a aposta na sociedade da de- mocracia completa. A “sindrome da lideranga mundial” que os norte- americanos adquiriram por esses anos tem sua base, segundo Herbert Schiller, “na fusio da forca econdmica e do controle da informagao” ¢ a0 mesmo tempo “na identificagéo da presenga norte-americana com a liberdade: liberdade de comércio, liberdade de palavra, liberdade de empresa”. Quando teriam existido no mundo mais liberdades? A profecia de Tocqueville e de todos os apocalipticos desmoronava diante da fusio de igualdade ¢ liberdade apresentada pelo mundo norte- americano. Foi necesséria toda a forca econémica do novo império ¢ todo o otimismo do pais que havia derrotado o fascismo ¢ toda a fé na democracia desse povo para que fosse possivel o investimento—de capi- tal e de sentido — que permitia aos te6ricos norte-americanos assumit a cultura produzida pelos meios massivos, ou seja, a cultura de massa, como a cultura deste povo. O primeiro a esbocar as chaves do novo pensamento foi Daniel Bell, em um livro cujo mero titulo contém jé o sentido da in- versio: O fim da ideologia. Porque a nova sociedade s6 & pensivel a par- tir da compreensio da nova revolucio, a da sociedade de consumo, que liqiiida a velha revolugéo operada no ambito da producao. Dai que nem 0s nostilgicos da velha ordem, para os quais a democracia de massas & o fim de seus privilégios, nem os revolucionérios ainda fixados na ética da produgao e da luta de classes entendem verdadeiramente o que estd se pasando. Pois 9 que est’ mudando nio se situa no Ambito da poli- tica, mas no da exltura, ¢ no entendida aristocraticamente, mas como “os cédigos de conduta de um grupo ou um povo”. E todo o proceso de socializa¢ao 0 que est se transformando pela raiz ao trocar o lugar desde o qual se mudam 05 estilos de vida. “Hoje essa fungéo mediadora é realizada pelos meios de comunicagio de massa”.” Nem a familia, nem a escola — velhos redutos da ideologia — sio jé 0 espago-chave da socializagio, “os mentores da nova conduta sio os filmes, a televisio, 66 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE a publicidade”, que comecam transformando os modos de vestir e ter- minam provocando uma “metamorfose dos aspectos morais mais pro- fandos”.”' © que implica que a verdadeira critica social tem mudado também de “lugar”: j4 nao é a critica politica, mas a orftica cultural, Aquela que é capaz de propor uma andlise que va “mais além” das clas- ses sociais, pois os verdadeiros problemas se situam agora nos desniveis culturais como indicadores da organizacio e circulagao da nova riqueza, isto é, da variedade das experiéncias culturais. E os criticos da socieda- de de massa, tanto os de direita como os de esquerda, estao “fora do jogo” quando continuam opondo os niveis culturais a partir do velho esquema aristocrético ou populista que busca a autenticidade na cul- tura superior ou na cultura popular do passado. Ambas as posigdes tem sido superadas pela nova realidade cultural da massa que é de uma s6 vez “o uno eo miiltiplo”.” Edward Shils ira mais longe. Com o advento da sociedade de massa, nao temos unicamente “a incorporagao da maioriada populacao a sociedade”, © que de alguma maneira reconhecem até seus inimigos, mas também uma revitalizagdo do individuo: “A sociedade de massa suscitou e intensificou a individualidade, isto é, a disponibilidade para as experiéncias, o florescimento de sensag6es e emogoes, a abertura até os outros [...], liberou as capacidades morais e intelectuais do indivi- duo”. Desse modo masa deve deixar de significar adiante anonimato, passividade e conformismo. A cultura de massa é a primeira a possibi- litar a comunicagao entre os diferentes estratos da sociedade. E dado que € imposstvel uma sociedade que chegue a uma completa unidade cultural, entao o importante é que haja circulacao. E quando existiu maior circulacao cultural que na sociedade de massa? Enquanto o livro manteve e até reforcou durante muito tempo a segregacio cultural en- tre as classes, o jornal comecou a possibilitar o fluxo, ¢ 0 cinema e 0 rédio que intensificaram 0 encontro. Para os recalcitrantes, para aqueles que ainda se empenham em buscar relagées entre a sociedade de massaeo totalitarismo, D. M. White tem uma pergunta demolidora: “Acaso era aAlemanha de 1932 67 DOS MEIOS AS MEDIACOES tuma ‘sociodade de massa’ quando permitiu pelo voto que © partido de Hitler subisse ao poder? |...) Nio eta a Alemanha o pais que possuia © maior nimero de orquestras sinfénicas per capita, publicava a maior quantidade de livros e desenvolvia uma induistria cinematogrifica com produgées de primeira qualidade?”.”” Desbastado o terreno, se tornava posstvel passar & elaboragio de uma teoria sistemdtica. E 0 que leva a cabo David Riesman em uma obra cujo titulo tem o sabor de um classico, A multidao solitéria, ¢ cuja estrutura éa consagracio da psicologia social como a ciéncia das cién- cias, j4 queseria a nica capaz de integrar os dados da demografia com os da teoria do conhecimento; os da antropologia com os da adminis- tracio das empress ¢ os da economia com os da moral. Trata-se de uma caracterizaydo da nova sociedade, que emerge “da segunda revolucao, da passagem de uma era de producio para uma era de consumo”.”* Passa- gem que ¢ fato pensavel mediante a construgao dos tipos de sociedade, ou melhor, dos tipos de relacdo entre cardter e sociedade que permitem dar conta do movimento de transformagées que culmina na sociedade de massas. Baseado na articulagio primordial entre demografia e psi- cologia, Riesman propée trés tipos de sociedade: a “caracterizada” por ser uma sociedade dependente da diregdo tradicional, a sociedade de- pendente da diregio interna ea sociedade dependente da diregio pelos ou- tros. A cada um desses tipos corresponde uma modalidade de familia, de escola, de grupos de pares, um modo de narrar, de trabalhar e organi- zar o coméicio, de viver o sexo e dirigir a politica. Desse modo Riesman busca pensar a constituigao da cultura de massa como principio de in- teligibilidade global do social. Principio que se desdobra em trés di- mensdes bisicas. Primeira: a classe-eixo da sociedade de diresao pelos outros é a dasse média. Segunda: cada dia mais as relagdes com o mun- do exterior e consigo mesmo se produzem no fluxo da comunicagao massiva. Terceira: a andlise do “cardter dirigido por outros € 20 mesmo tempo uma andlise do nore-americano e do homem contemporineo”.”” Riesman projeta assim sobre a dinamica da modernidade uma dupla fi- gura: a do homem médio dissolvendo as classes sociais em conflito e a 68 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE dos meios de comunicagao elevados a causalidade eficiente da histéria- cultura. Dupla figura que sintetiza o pensamento dos autores norte- americanos sobre a sociedade de massas como aquela, que nao é o fim mas 0 principio de uma nova cultura que os meios massivos tornam possivel. E isso nao sé no sentido da circulacéo, mas em outro mais profundo: “A sociedade a qual faltavam instituigdes nacionais bem de- finidas e uma classe dirigente consciente de sé-lo se amalgamou atra- vés dos meios de comunicagéo de massas”.® E um “critic” como B. Rosemberg, para quem a cultura de massa arrasta a tendéncia a con- fundir cultura com diversao ea misturar o genuino o bastardo até tor- né-los indistingutveis, proclama contudo a mesma crenga na todo-po- derosa eficicia da tecnologia, ¢ especialmente da midia: a explicagao do surgimento da nova cultura nao se acha nem no capitalismo, nem no nivelamento trazido pela democracia, mas numa peculiar configuracéo do cardter norte-americano: “se pudéssemos arriscar uma formulagao Positiva, dirfamos que a tecnologia moderna é a causa necessiria ¢ sufi- ciente da cultura de massa”.*! Daf até a formula mcluhaniana é um paso. Mas certamente poder-se-ia afirmar que McLuhan nfo fez mais que expressar numa lin- guagem explicitamente antitedrica a intuigio-obsessio que atravessa de ponta a ponta a reflexdo norte-americana dos anos 1940-1950 sobre a relagio cultura/sociedade. Existe uma profunda homologia entre os conceitos bisicos e na Iégica dos dois livros que condensam essa refle- xo: A multidéo solitéria e A compreensio dos meios. A diferenca esté mais no jargio ~ “os tipos de cariter-sociedade” de um e as “idades tecno- légicas” do outro ~ mas a diregdo é a mesma: uma longa época “da ex- plosio e da anguistia” termina e se inicia outra na qual “o efeito & mais importante que o significado [...], uma vez que o efeito abrange a situa- 40 total e no s6 0 nivel do movimento da informacio”. isso chegamos. Uma formidével capacidade de observacéo, uma fina sensibilidade para as mudancas e uma decisiva percepsao do peso e da forca da sociedade civil nao possibilitaram, contudo, que a afirmagio da positividade histsrica das massas na sociedade superasse 69 DOS MEIOS AS MEDIACOES a idealista dissolugio do conflito social. Exceto em W. Mills ¢ H. “Arendt a andlise cultural ¢ separada da anilise das relagdes de poder. Isso mediante uma concep¢ao da cultura que, embora supere sem dii- vida o idealismo aristocrético, permanece amartada ao idealismo liberal que desvincula a cultura do trabalho como espagos separados da ne- cessidade e do prazer, ¢ a conduz a um culturalismo que acaba redu- zindo a sociedade & cultura e a cultura ao consumo. E desse modo - outra vez 0 paradoxo da coincidéncia entre adversérios — a teoria ela- borada porsocidlogos e psicélogos norte-americanos contra o pessimis- mo arisocritico dos pensadores dos séculos XIX e XX coincide com es- te em um ponto crucial: a incorporacao das massas & sociedade signi- ficaria, para o bem ou para o mal, a dissolugio-superagao das classes sociais. Com o que continua fazendo-se impensavel o modo de “articu- lagao” especifico dos conflitos que rém sew lugar na cultura e na imbri- cacio ca demanda cultural na producéo de hegemonia. Resultado: um culturalismo que recobre o idealismo de seus pressupostos com o mate- rialismo tecnologicista dos efeitos ¢ da inflagao a-histérica de sua me- diasao. ‘Adenominagio do popular fica assim atribuida 4 cultura de massa, opetando como um dispositivo de mistificagio histérica, mas também propondo pela primeira ver a possibilidade de pensar em posi- tivo o que se passa culturalmente com as massas. E isto constitui um desafio lancado aos “criticos” em duas diregoes: a necessidade de in- cluir no estudo do popular nao s6 aquilo que culturalmente produzem as masas, mas também o que consomem, aquilo de que se alimentam; ea de pensar o popular na cultura ndo como algo limitado ao que se relaciona com seu passado — ¢ um passado rural -, mas também ¢ prin- cipalmente como algo ligado & modernidade, & mestigagem ¢ & com- plexidade do urbano. 70 _ CAPITULO 3 INDUSTRIA CULTURAL: CAPITALISMO E LEGITIMACAO A experiéncia radical que foi 0 nazismo es sem diivida na base da radicalidade com que pensa a Escola de Frankfurt. Com 0 na- zismo, 0 capitalismo deixa de ser unicamente economia e explicita sua textura politica e cultural: sua tendéncia a totalizagao. Dai que os frank- furtianos no possam fazer economia nem sociologia sem fazer 20 mes- mo tempo filosofia. E 0 que significa a eriticae o lugar estratégico atri- buido & cultura. Por isso podemos afirmar sem metiforas quea reflexto de Horkheimer, Adorno ¢ Benjamin esté estreitamente relacionada com o debate que viemos rastreando. Em parte porque os procedimentos de massificacao vao ser pela primeira vez pensados nao como substitutivos, mas como constitutivos da conflitividade estrutural do social. O que implica uma mudanga profunda de perspectiva: em lngar de ir da an4- lise empirica da massificacao a de seu sentido na cultura, Adorno e Horkheimer partem da racionalidade desenvolvids pelo sistema — tal como pode ser analisada no processo de industrializagio-mercantili- zacdo da existéncia social — para chegar ao estudo di massa como efeito dos processos de legitimagao e lugar de manifestagao da cultura em que a légica da mercadoria se realiza. E em parte a reflesdo dos frankfur- tianos retira a critica cultural dos jornais ¢ a situa no centro do debate fi- losdfico de seu tempo: no debate do marxismo como positivismo nor- te-americano e com o existencialismo europeu. A problemética cultural se convertia pela primeira vez para as esquerdas em spaco estratégico a partir do qual pensar as contradigées sociais. Em fins dos anos 1960 um pensamento queprolonga por he- ranga ou polémica a reflexo dos frankfurtianos vai tomar come eixo-a crise entendida como emergéncia do acontecimento, contracultura, im- DOS MEIOS As MEDIACOES plosio do social, morte do espaco piiblico ou impasse na legitimagio do capitalismo. E mais além das ideologias da crise — das quais nio se vera livre ninguém que o aborde — em torno desse conceito vai se de- senvolver um esforgo importante para pensar o sentido dos novos movi- mentos politicos, dos novos sujeitos-atores sociais ~ desde os jovens ¢ as mulheres aos ecologistas ~ e dos novos espagos nos quiais, do bairro 20 hospital psiquiitrico, irrompe a cotidianidade, a heterogencidade ¢ conflitividade do cultural. BENJAMIN VERSUS ADORNO OU © DEBATE DE FUNDO Com os frankfurtianos a reflexio critica latino-americana esté diretamente envolvida. Nao s6 no debate que propée esta escola, mas num debate com cla, As outras teorias sobre a cultura de massas nos chegaram como mera referéncia tedrica, associadas a ou confundidas com um funcionalismo 20 qual se respondia “sumariamente” a partir de um marxismo mais afetivo que efetivo. Os trabalhos da Escola de Frankfurt induziram a abertura de um debate politico interno: no ini- cio, porque suas idéias nao se deixavam usar politicamente coma facili dade instrumentalista & qual de fato se prestaram outros tipos de pen- samento de esquerda, ¢ mais tarde porque paradoxalmente foros des- cobrindo tudo 0 queo pensamento de Frankfurt nos impedia de pensar por nds préprios, tudo 0 que de nossa realidade social ¢ cultural nao cabia nem em sua sistematizagéo nem em sua dialética. Dai que 0 que segue tenha um inegével sabor de ajuste de contas, sobretudo com o pensamento de Adorno, que é 0 que tem tido entre nés maior pene- tragio ¢ continuidade. O encontro posterior com os trabalhos de Walter Benjamin veio nao s6 a enriquecer o debate, mas também a aju- dar-nos a compreender melhor as raz5es de nossa frustra¢ao do inte- rior da Escola, mas em plena dissidéncia com nao poucos de seus pos- tulados, Benjamin tinha esbogado algumas chaves para pensar 0 nao- pensado: 0 popular na cultura no como sua negacio, mas como expe- rigncia e produgio. 72 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Do Jogos mercantil a arte Zome ‘estranhumente conceito de indtistria cultural nasce em um texto de Horkheimer e Adorno publicado em 1947," e 0 que contextualiza a escritura desse texto tanto a América do Norte da democracia de mas- sas como a Alemanha nazi. Ali se busca pensar a dialética histérica que, partindo da razio ilustrada, desemboca na irracionalidade que articula totalitarismo politico e massificagéo cultural como as duas faces de uma mesma dindmica contetido do conceito nao se dé de uma vez — dat 0 perigo oferecido por essas definigées retiradas de alguma frase solta -, mas se desdobra ao longo de uma reflexio que envolve a cada passo mais im- bitos, 20 mesmo tempo que a argumentagio vai-se estreitando e se unin- do. Parte-se do sofisma que representa a idéia de “caos cultural” — essa perda do centro e conseguinte dispersio ¢ diversificacao dos niveis e ex- periéncias culturais descobertas e descritas pelos tedricos da sociedade de massas~e afirma-se a existéncia de wm sistema que regula, dado que a produz, a aparente dispersio. A “unidade de sistema” é enunciada a partir de uma anilise da légica da industria, na qual se distingue um duplo dispositive: a introdugao na cultura da produgio em série, “sactificando aquilo pelo qual a légica da obra se distinguia da do sis- tema social”, e a imbricagio entre produgao de coisas e produgio de ne- cessidades de modo tal que “a forga da industria cultural reside na uni- dade com a necessidade produzida”; 0 ponto de contato entre um e ou- tro acha-se na “racionalidade da técnica que é hoje a racionalidade do dominio mesmo”.* A afirmagio da unidade do sistema constitui uma das mais vilidas contribuigées da obra de Horkheimer e Adorno, mas também das mais polémicas. Por uma parte, a afirmagao dessa unidade desvela a alicia de qualquer culturalismo ao nos por na pista da “unidade em formagio da politica” ¢ descobrirmos que as diferengas podem. ser também produzidas. Mas essa afirmagio da “unidade” se toma teorica- mente abusiva ¢ politicamente perigosa quando dela se conclui a tota- 73 DOS MEIOS AS MEDIAGOES lizagao da qual se infere que do filme mais vulgar aos de Chaplin ou Welles“ todos os filmes dizem 0 mesmo”, pois aquilo de que falam “nao € mais que o triunfo do capitalismo invertido”.*” A materializagio da unidade se realiza no eguematio, assimilando toda a obra ao esque- ma, e na atrofia da atividadedo spectador. Assim, a propésito do jazz, afirma-se que “o arranjador de musica de jazz elimina toda a cadéncia que nao se adequar perftitamente a seu estilo”, sem deixar claro se toma © jazz como exemplo, ou melhor, como paradigma, da identificagio, que deve demonstrar cada sujeito com o poder pelo qual é submetido, afirmando que esta submissio “esta na base das sincopes do jazz que zomba dos entraves € ao mesmo tempo os converte em normas”."* Co- mo prova da atrofia da atividadedo espectador sera mencionado 0 cine- ma: pois, para seguir 0 argumento do filme, 0 espectador deve ir tio ripido que nao pode pensar, € como, além disso, cudo jé esta dado nas imagens, “o filme nao deixa a fantasia nem ao pensar dos espectadores dimensio alguma na qual possam mover-se por sua prépria conta, com o que adestra suas vitirras para identificd-lo imediatamente com a tea- lidade”.*° Uma dimensio fundamental da andlise vai terminar resul- tando assim bloqueada por um pessimismo cultural que levaré a debi- tara unidade do sistema na conta da “racionalidade técnica” com 0 que se acaba convertendo em qualidade dos meios o que nao é senao um modo de uso histérico. Talvez aquilo para o que aponta a afirmagao da unidade na industria cultural se faga mais daro na andlise da segunda dimensao: a degradacio da culturaem indistria de diversio. Nesse ponto Adorno e Horkheimer conseguem aproximar a andlise da experiéncia cotidiana € descobrir a relacio profunda que no capitalismo articula os disposi- tivos do écio aos do trabalho, e aimpostura que implica sua proclamada separacio. A unidade falaria entio do funcionamento social que se constitui na “outra face do trabalho mecanizado”. E isso tanto no mi- metismo que conecta oespeticulo organizado em séries - sucesso au- tomitica de operagdes reguladas — com a organizacao do trabalho em cadeia, como na operacio ideolégica de realimentagao: a diversio tor- 74 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE nando suportivel uma vida inumana, uma exploracZo intolerdvel, ino- culando, dia a dia e semana apés semana, “a capacidade de cada um se encaixar e se conforma:”, banalizando até o softimento numa lenta “morte do tragico”, isto é, dacapacidade de estremecimento e rebeliao. Linha de reflexio que continuaré Adorno alguns anos depois em sua va- lente critica da “ideologia da autenticidade” — nos existencialistas ale- mies ¢ especialmente em Heidegger —, desmascarando a pretengao de uma existéncia a salvo da chantagem ¢ da cumplicidade, de uma exis- téncia constitufda Por um encontro que, para escapar 4 comunicagao degradada, converte “a relagdo eu-tu no lugar da verdade”.” Por para- doxal que parega, nos diré Adorno, a terminologia da autenticidade, da interioridade ¢ do encontio acaba cumprindo a mesma fungao que a degradada cultura da diversio, é “do mesmo sangue” que a linguagem dos meios, pois inocula a evasio ¢ a impoténcia para “modificar qual- quer coisa das vigentes relagies de propriedade e de poder”? A terceira dimensio, a dessublimagio da arte, no é senio a outra face da degradacio da cultura, j4 que num mesmo movimento a inddstria cultural banaliza a vida cotidiana e positiviza a arte. Mas a dessublimacio da arte tem sua propria histéria, cujo ponto de partida se situa no momento em quea arte consegue desprender-se do Ambito do sagrado em virtude da autonomia que o mercado Ihe possibilita. A contradigio estava ji em sua raiz, a arte se liberta mas com uma li berdade que, “como negagao da funcionalidade social que & imposta através do mercado, acaba essencialmente ligada ao pressuposto da eco- nomia mercantil”,”® E, s6 assumindo essa contradigao, a arte tem podi- do resguardar a sua independéncia. De modo que, contra toda a esté- tica idealista, temos de actitar que a arte obtém sua autonomia num movimento que a separa dz ritualizagao, a torna mercadoria e a distan- cia da vida. Durante um certo periodo de tempo essa contradicao pode ser sustentada fecundamente para a sociedade e para a arte, mas a partir de um dado momento a economia da arte sofre uma mudanca decisiva, © carter de mercadoria daarte se dissolve “no ato de realizar-se de for- ma integral” e, perdendo @ atengio que resguardava a sua liberdade, a 75 DOS MEIOS As MEDIACOES arte se incorpora 20 mercado como um bem cultural, mas adequando- se inteiramente a necessidade. O que de arte estard af no serd mais do que sua casca: 0 estilo, quer dizer, a coeréncia puramente estética que se esgota na imitagio. E essa serd a “forma” da arte produzida pela i diistria cultural: identificagéo com a formula, repetigao da fSrmula. Re- duzida a cultura, aarte se fard “acessivel a0 povo como os parques”, ofe- recida a0 desfrute de todos, introduzida na vida como um objeto a mais, dessublimado. A teflexio de Horkheimer e Adorno vai até af. A outra pista desponta s6 de passagem, a de que 0 “aviltamento” atual da arte est ligado nao s6 a0 efeito do mercado, mas ao prego que pagaria a arte burguesa por aquela pureza que a manteve isolada, exclufda da classe inferior. Mas essa pista fica no ar, sem desenvolvimento. A que pros- seguird se desenvolvendo é do “declinio da arte na cultura”, Adorno dedicaré boa parce de sua obra 10 estudo desse declinio. Vou rastrear nos dois veios mestres desse desenvolvimento, o da critica cultural 0 da filosofia da arte, os elementos que dizem respeito a0 nosso debate. Comecemos por confessar de inicio nossa perplexidade. Len- do Adorno, nunca se sabe totalmente de que lado esta o critico. HA tex- tos em que a tarefa parece ser a desmistificagao, a dentincia da cumpli- cidade, 0 desmascaramento das armadilhas que a ideologia comporta. Mas hé outros em que se afirma que a cumplicidade da critica com a cultura “nio se deve meramente & ideologia do critico: mas também é fruto da relacio do critico com a coisa de que trata”.” O que nos poe decididamente sobre outta pista, que é a que parece interessar verda- deiramente a Adorno, E daf nossa perplexidade: que sentido tem tudo © que foi afirmado sobre a légica da mercadoria, que sentido tem cri- ticar a industria cultural se “o que parece decadéncia da cultura é seu puro chegar a si mesma”? E de um texto a outro, aumenta a frustra- 40, pois o significado da cultura é remetido indistintamente @ hist ria - a “neutralizagio obtida gracas & emancipagéo dos processos vi- tais com a ascensio da burguesia”®’ — ¢ fenomenologia hegeliana da “frustragao imposta pela civilizasio a suas vitimas”.”* De modo que a 76 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE deniincia da sujeigio da cultura ao poder ¢ a perda de seu impulso polémico se “resolvem” na impossfvel reconciliagao do espirito exilado consigo mesmo. Nao estaré falando disso Adorno quando trata da imposstvel reconciliagao da Arte com a Sociedade? De A dialética do iluminismo & Teoria estética, obra péstuma, a fidelidade aos pressupos- tos € completa, ainda que os temas mudem. Se no primeiro texto se opunha a arte “menor” ou ligeira & arte séria em nome da verdade, essa oposicao “decorre” e se aproxima de nossa problemética central através do problema do prazer. “E preciso demolit 0 conceito de prazer artis- tico”, proclama Adorno, pois, tal e como o entende a consciéncia co- mum — a cultura popular, dirfamos nés -, 0 prazer & s6 um extravio, uma fonte de confusio: quem tem prazer com aexperiéncia é 6 0 ho- mem trivial. E quando comecamos a suspeitar da semelhanga desse pensamento com idéias encontradas antes ideologicamente do outro lado, nos deparamos com afirmagées como esta que lembra 0 Ortega mais reaciondrio: “A espiritualizacao da obra de arte estimulou o rancor dos excluidos da cultura iniciou o género de arte para consumiscas”.” O embarago da situacao néo pode set mais completo: se na origem da indiistria cultural, mais que a légica da mercadoria, estivesse de fato a reagao frustrada das massas ante uma arte reservada as minorias? Carregada de um pessimismo e de um despeito refinado que todavia nio impedem a lucidez, a reflexdo de Adorno segue seu cami iho colocando frente a frente a imediatez em que se encharca 0 gozo — puro prazer sensivel — ¢ a distancia que, sob a forma de dissonancia, assume a arte que ainda pode chamar-se tal. A dissondncia é a expressio de seu desprendimento interior, de seu negar-se a0 compromisso. A dissonancia — “signo de todo moderno” ~ é a chave secreta que, em meio & estupidez reinante de uma sociologia que nela vé a marca da alie- nacio, continua tornando possivel, hoje, a arte, a nova figura de sua esséncia, agora que a arte se torna inessencial; agora que a indiistria cultural monta o seu negécio sobre os tracos dessa “arte inferior” que nunca obedeceu ao conceito de arte. Atengio para o argumento: essa arte desobediente ao conceito “foi sempre um testemunho do fracasso v7 DOS MEIOS As MEDIAGOES. da cultura ¢ converteu esse fracasso em vontade prépria, o mesmo que faz o humor”.”* E um argumento precioso pelo angulo a partir do qual se percebe o sentido da “arte inferior” e sua relacdo com a industria cul- tural: a reag3o ao fracasso, mas também seu converté-lo em vontade propria. E para que nao haja a menor confusao sobre aquilo a que se te- fere como a “arte inferior”, af est o exemplo: como o humor...! Sabemos que a critica ao prazer tem razées nao sé estéticas, Os populismos, fascistas ou nao, tém predicado sempre as exceléncias do realismo ¢ tém exigido dos artistas obras que transparecam 0s signi- ficados ¢ que se conectem diretamente com a sensibilidade popular. Masa critica de Adorno, falando disso, aponta, contudo, para outro la- do. Cheira demais a um aristocratismo cultural que se nega a aceitar a existéncia de uma pluralidade de experiéncias estéticas, uma plurali- dade dos modos de fazer e usar socialmente a arte. Estamos diante de uma teoria da cultura que nao sé faz da arte seu tinico verdadeiro para- digma, mas também que o identifica com seu conceito: um “conceit unitério”” que relega a simples ¢ alienante diversio qualquer tipo de pritica ou uso da arte que nao possa ser derivado daquele conceito, que acaba fazendo da arte o tinico lugar de acesso & verdade da socie- dade. Mas entao nao estarfamos muito perto, a partir da arte, daquela transcendéncia que os Heidegger, Jaspers ¢ outros creram encontrar na autenticidade do encontro do eu-tu? Adorno negaria qualquer convergéncia, dado que qualquer encontro pode guardar os tracos de uma reconciliacao, ¢, se algo distin- gue sua estética, éa negacéo a qualquer reconciliagao, a qualquer positi vidade. E 0 que nos diz ao colocar o estranhamento no centro mesmo do movimento pelo qual a arte se constitui como tal: “sé por meio de sua absoluta negatividade pode a arte expressar o inexpressavel: a uto- pia”.'®° Por isso se pode entio distinguir tao nitidamente hoje 0 que éarte do que ¢ pastiche: essa mistura de sentimento e vulgaridade, esse elemento plebeu que a verdadcira arte abomina. E que a catarsis aris- totélica vem justificando durante séculos ao justificar alguns mal cha- mados “efeitos da arte”. Em lugar de desafiar a massa como fiz a arte, 78 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE © pastiche se dedica a excita-la mediante a ativagio das vivéncias. Mas jamais haveri legitimagio social possivel para essa arte inferior cuja forma consiste na exploracao da emogio. A fungao da arte é justamente © contrdtio da emogio: a comogao. No outro extremo de qualquer sub- jetividade, a comogao é um instante em que a negacio do eu abre as portas a verdadeira experiéncia estética. Por isso nada entendem os cri- ticos que ainda insistem na conversa mole de que arte deve sair de sua torre de marfim. E 0 que nao entendem esses criticos é que o estranha- mento da arte € a condigao bésica de sua autonomia. Que todo com- promisso com o pastiche — com o kitsch, com a moda — nao é mais que uma traigio. Claro que a pressdo da massa ¢ tanta que até os melhores acabam cedendo, mas “louvar 0 jazz e 0 rack and roll em lugar de Beethoven no serve para desmontar a mentira da cultura, mas apenas fornece um pretexto A barbérie ¢ aos interesses da indiistria da cultu- ra”,"' Ante achantagem, a tarefa da verdadeira arte é distanciar-se. E © tinico caminho possfvel para uma arte que nao queira acabar identi- ficando o homem com sua propria humilhagio. Naera da comunicacio de massa, “a arte permanece integra precisamente quando nio partici- pa da comunicagio”." Lastimavel que uma concepgao radicalmente pura e elevada da arte deva, para formular-se, rebaixar todas as outras formas possiveis até 0 sarcasmo e fazer do sentimento um torpe ¢ sinis- tro aliado da vulgaridade. A partir desse alto lugar, de onde conduz 0 ctitico sua necessidade de escapar a degradacio da cultura, nao pare- cem pensiveis as contradiges cotidianas que fazem a existéncia das massas nem seus modos de produgio do sentido ¢ de articulagao no simbélico, A _experiéncia e a técnica como mediagées das massas com a cultura Costuma-se estudar Benjamin como integrante da Escola de Frankfurt. Embora haja convergéncia nas teméticas, que distantes es- to dessa Escola algumas de suas preocupagées mais profundas. O ta- lento radicalmente nao académico, a sensibilidade, 0 método e a for- 79 DOS MEIOS As MEDIACOES. ma da escritura sio outros. Sé agora comecamos a saber! que as rela- ‘ges de Benjamin com Adorno ¢ Horkheimer—estes em Nova York aju- dando-the nos tiltimos anos com 0 pagamento de artigos enquanto aquele vivia seu exilio errante na Europa — nao foram tao amistosas, quer dizer, igualitarias. Nao sé Benjamin foi recriminado com freqiién- cia por sua heterodoxia, como também seus amigos editores se petmi- tiram alterar expressoes e atrasar indefinidamente a publicagio de tex- tos. Além da anedotaimporta o que os fatos dizem da luta de Benjamin para abrir caminho a uma busca que nos revela nao pouco do que nés também procuramos pensar. ‘A ruptura est4 no ponto de partida. Benjamin nao investiga a partirde um lugar fixo, pois toma a realidade como algo descontinuo. O tinico travejamento esté na histéria, nas redes de pegadas que entre- Jagam umas revolugées com outras ou 0 mito com o conto ¢ os provér- bios que ainda dizem as avés. Essa dissolugao do centro como méto- do é 0 que explica seu interesse pelas margens, esses impulsos que tra- balham as margens seja em politica ou em arte: Fourier ¢ Baudelaire, as artes menores, os relatos, a fotografia. Daf 0 paradoxo. Adorno ¢ Habermas" o acusam de nao dar conta das mediag6es, de saltar da economia & literatura e desta 4 politica fragmentariamente. E acusam disto a Benjamin, que foi o pioneiro a vislumbrar a mediagio funda- mental que permite pensar historicamente a relacao da transformagao nas condiges de produgio comas mudancas no espaco da cultura, isto é,as transformages do sensorium dos modos de percepgao, da experién- cia social. Mas para arazio ilustrada a experiéncia é 0 obscuro, 0 consti- tutivamente opaco, o impensével. Para Benjamin, pelo contririo, pen- sar a experitncia € 0 modo de alcangar 0 que irrompe na histéria com as massas ea técnica. Nao se pode entender o que se passa culturalmen- te com as massas sen considerar a sua experiéncia. Pois, em contraste com o que ocorre na cultura culta, cuja chave esté na obra, para aquela outra achave se achana percepgio € no uso. Benjamin se atreveu a dizer isto escandalosamente: “O romance se distingue da narragio pelo fato de estar essencialmente referido ao livro [...]. O narrador toma 0 que 80 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE narra da experiéncia, prépria ou relatada. E por sua vez 0 converte em experiéncia dos que escutam sua histéria. O romancista em troca se mantém a parte. O lugar de nascimento do romance é 0 inlividuo em sua solidao”.' Benjamin se prope entao a tarefa de pensaras mudan- as que configuram a modemnidade a partir do espago dapercepcio, misturando para isso © que se passa Nas Tuas com 0 que s passa nas fabricas e nas escuras salas de cinema ¢ na literatura, sobretudo na mar- ginal, na maldita. E isso é 0 que era intolerdvel para a dialética. Uma coisa é passar légica, dedutivamente, de um elemento a outn elucidan- do as conexées. E outra, descobrir parentescos, “obscurss relagdes” entre a refinada escritura de Baudelaire e as expressdes ch multidao urbana, ¢ destas com a figura da montagem cinematogrifia; ou ras- trear as formas do conflito de classe no tecido de registros que marcam a cidade e até na natrativa dos folhetins. Esse ¢ seu método, tio arrisca- do que dele afirmou Brecht: “Penso com terror quio pequeno é 0 nti- mero dos que estio dispostos pelo menos a nao mal-entender algo assim”. '°% Dois temas serao os condutores para ler Benjamina partir de nosso debate: as novas técnicas e a cidade moderna. Poucos textos foram tao citados nos tiltimos anos,e possivel- mente tao pouco e mal lidos, como “A obra de arte na époci de sua re- produtibilidade técnica”, Mal lido antes de tudo por sua desontextua- lizagao do resto da obra de Benjamin. Como compreender ocomplexo sentido da “atrofia da aura” ¢ seus contraditérios efeitos sem referi-la a reflexo sobre o olhar no trabalho sobre Paris ou ao texto scbre “expe- riéncia ¢ pobreza”? Reduzido a umas tantas afirmagées sobr: a relac3o entre arte ¢ tecnologia, tem sido convertido falsamente emum canto a0 progresso tecnolégico no ambito da comunicacio ou tem-se trans- formado sua concep¢ao da morte da aura na da morte da ate. Minha posta de leitura se acha no texto sobre E. Fuchs, no qual Benjamin propée a importncia capital de uma “historia da recep¢ao”. Tratar-se- iaentao, mais que de arte ou de técnica, do modo como se produzem as transformagGes na experiéncia ¢ nfo 6 na estética: “Dentro de 81 DOS MEIOS AS MEDIAGOES grandes espacos histéricos de tempo se modificam, junto com toda a experiéncia das coletividades, 0 modo ¢ maneira de sua percepgio sen- sorial”; busca-se entao “manifestar as transformacées sociais que acha- ram expresso nessas mudangas da sensibilidade”.!"” E que mudangas concretamente estudou Benjamin? As que vém produzidas pela dina- mica convergente das novas aspiragées da massa ¢ as novas tecnologias de reproduao, dinamica, na qual a mudanca que verdadeiramente im- porta esta em “cercar especial e humanamente as coisas”, porque “tirar co envoltério de cada objeto, triturar sua aura, é a assinatura de uma per- cepgio cujo sentido para o idéntico no mundo cem crescido tanto que, in- clusive, por meio da reprodugao, conquista o terreno do irrepetivel”.!°8 Af esta tudo: a nova sensibilidade das massas ¢ a da aproximagio; isso que para Adorno era o signo nefasto de sua necessidade de devoracio ¢ rancor resulta para Benjamin um signo, sim, mas nZo de uma cons- ciéncia acritica, senao de uma longa transformagao social, a da conquis- tado sentido para o idéntico no mundo. E ¢ esse sentido, esse novo sen- sorium, © que se expressa e se materializa nas técnicas que como a foto- grafia ou o cinema violam, profanam a sacralidade da aura ~ “a mani- festagaio irrepetivel de uma distancia” -, fazendo possivel outro tipo de existéncia das coisas e outro modo de acesso a elas. A morte da aura na obra de arte fala nao tanto da arte quanto dessa nova percepgao que, rompendo 0 envoltério, o halo, o brilho das coisas, poe os homens, qualquer homem, o homem de massa, em posigao de us4-las ¢ gozé-las. Antes, para a maioria dos homens, as coisas, e nao s6 as de arte, por préximas que estivessem, ficavam sempre longe, porque um modo de relacao social lhes fazia parecer distantes. Agora, as massas sentem proxi- mas, com a ajuda das técnicas, até as coisas mais longinquas e mais sa- gradas. E esse “sentir”, essa experiéncia, tem um contetido de exigén- cias igualitarias que séo a energia presente na massa. Nao serd uma ra- dical incompremsio desse sentir ¢ sua energia o que escapara a Adorno para entender a nova arte que nasce com 0 cinema e 0 jazz? Nao sur- preende, portanto, que o cinema constitua para Adorno o expoente maximo da degradacéo cultural, enquanto para Benjamin “o cinema 82 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE corresponda a modificagaes de longo alcance no aparelho perceptivo, modificagdes hoje vivenciadas na escala de existéncia privada por qual- quer transeunte no tréfego de uma grande urbe”.'° Adorno, como Duhamel — de quem afirmou Benjamin: “Odeia o cinema e nao enten- deu nada de sua importancia.” —, se empenha em prosseguir julgando as novas praticas ¢ as novas experiéncias culturais a partir de uma hi- péstase da arte que o impede de entender o enriquecimento perceptivo que o cinema nos traz ao permitir-nos ver no tanto coisas novas, mas outra mancira de ver velhas coisas ¢ até da mais sérdida cotidianidade. Aj esté o cinema de Chaplin ¢ 0 neo-realismo confirmando a hipétese de Benjamin: o cinema “com a dinamite de seus décimos de segundo” fazendo saltar o mundo aprisionante da cotidianidade de nossas casas, das fabricas, das oficinas. Mas atencio: nfo se trata de nenhum otimismo tecnoldgico. Nada mais distante de Benjamin do que a ilustrada crenga no progres- so. “A representacio de um progresso do género humano na histéria é inseparavel da representacio do prosseguimento desta a0 longo de um tempo homogéneo e yazio”.""° E se estamos tratando do progresso técnico, Benjamin vai tao longe que encontra 0 conceito moderno de trabalho ctimplice dessa ideologia: “Nada tem corrompido tanto os operirios alemaes quanto a opiniao de que esto nadando com a corrente. O desenvolvimento téc- nico é para eles a direcao de uma corrente a favor da qual pensaram que nadavam”.""' Sua andlise das tecnologias aponta ento para outra dite- a0: a abolicao das separagSes ¢ dos privilégios. Isso foi o que percebe- ram, por exemplo, as pessoas que conformavam o mundo da pintura antes do surgimento da fotografia, e frente 4 qual reagiram com uma “ceologia da arte”. Sem se advertirem de que o problema nio era se a fotografia podia ou nao ser considerada entre as artes, mas que a arte, seus modos de produgio, a concepgao mesma de seu alcance e sua fun- gao social estavam sendo transformados pela fotografia. Mas nao en- quanto mera “técnica”, e sua magia, mas enquanto expressio material da nova percepgio. 83 DOS MEIOS As MEDIACOES A operacio de aproximagao faz entrar em declinio o velho mo- do de recepgdo, que cortespondia.ao valor “cultural” da obra, e a passa gem para outro, que faz primar seu valor expositivo. Os paradigmas de ambos sio a pintura ¢ a cimara forogréfica, ou cinematogréfica, uma buscando a distancia e a outra apagendo-a ou diminuindo-a, uma total e outra miltipla. E que requerem portanto duas maneiras bem diferen- tes de recep¢do: 0 reconhecimentoe a dispersio. A chave do reconhecimento ficou jé indicada antes quando, a propésito das diferengas entre “narra- 40” ¢ romance, Benjamin fazdo “individuo em solidio” o lugar pré- prio do romance. E agora acrescenta: “Aquele que se recolhe ante uma obra de arte submerge nels”. £ 0 tinico modo que parece reconhecer Adorno: o do eu abrindo-se-submergindo na profundidade da obra. A nova forma da recepgio é pelocontririo coletiva e seu sujeito é a massa que submerge em si mesmaa obra artistica”. Benjamin tem consciéncia do chocante em sua proposicéo ¢ nos adverte de que esse modo de par- ticipagao artistica nao tem nenhum crédito, como acaba de demonstrar a reaco dos eruditos diante do cinema: “As massas buscam dissipagao mas a arte reclama recolhimento!”. Era preciso sem dtivida uma sensi- bilidade bem desprendida do etnocentrismo de classe para afirmar a massa como motriz de um novo modo “positive” de percepsao cujos dispositivos estariam na dispersio, na imagem miiltipla e na monta- gem. Com o que se estiva afirmando uma nova relagao da massa com a arte, com a cultura, na qual a distagdo € uma atividade e uma forca da massa diante do degenerado recolhimento da burguesia. Uma massa que “de retrégrada diante de um Picasso se transforma em progressista diante de Chaplin”.""? 0 espectador de cinema se torna um novo tipo de experto, no qual nao se opéem, mas se conjugam a atividade critica € o prazer artistico. Em franca oposicao a visio de Adorno, Benjamin vé na técnica e nas massas um modo de emancipagao da arte. Benjamin chega & relacdo da massa com a cidade - segunda via de acesso a nosso tema — pelo caminho mais longo e paradoxal, 0 da poesia de Baudelaire. O que leva a isso ¢ ter encontrado nessa lite- ratura “os dados inquietantes ¢ ameagadores da vida urbana”. Ai a mas- B4 POVO E MASSA NA CULTUR * OS MARCOS DO DEBATE sa aparece através de diferentes “figuras”. A primeira delas a daconspi- ragdo: espaco em que se nutre a rebeldia politica, sobre ele convergem enele se encontram os que vém do limite da miséria social comos que vem da boemia, essa gente da arte que j4 ndo tem mecenas, mas que entretanto nao entiou no mercado. Seu lugar de encontro é a tberna, € 0 que ali retine operitios sem trabalho, literatos e conspitadores profis- sionais, trapeiros e delingiientes é que “todos estavam em um protesto mais ou menos surdo contra a sociedade”.""’ Baudehire sente que pela taberna, por “sua emanagio”, passa uma experiéncia fundamental dos oprimidos, de suasilusses ¢ sua célera, E isso Benjamin descobre no poema transformado em protesto contra o puritanismo dos temas eda beleza estipida das palavras, na busca de outra linguagem, de outro idioma: o da massa entre a taberna ¢ a barricada. Uma segunda figura ¢ a das pistas, ou melhor, a da massa CO- mo “esfumagamento dhs pistas de cada um na multidao da grande ci- dade”. Com a industrializacao, a cidade cresce e se enche de urna massa que, de um lado, obscurece as pistas, os sinais de identidade de que tio necessitada vive a burguesia, e de outro encobre, apaga as pistas do cri- minoso. Diante desas duas operacSes da massa urbana, a buguesia traga sua estratégia num duplo movimento que a leva, de uma parte, a encerrar-se ¢ recuperar suas pistas, seus sinais, no desenho ¢ amacio do interior; ¢ por outra, a compensar, “por meio de um tecide miil- tiplo de registros”, 2 perda dos rastros na cidade. Em oposisio 20 rea- lismo que exibe a oficina, 0 interior se refugia na residéncia, um interior que mantém o burgués em suas ilusdes de poder conservar parasi, cO- mo parte desi, o pastado ea distancia, as duas formas do distanciamen- to. Daf que seja no interior que 0 burgués dard asilo a arte, e que seja nela onde busca corservar suas pegadas. outro movimento éo dos dispositivos de identificagao com que se busca controlar a massa. E-vi0 desde a numeracao das casas até as técnicas dos detetives. Como que a literatura policial se converte em filo para estudar ourbano e 3 ope- rages da massa na cidade. B5 DOS MEIOS AS MEDIACOES A terceira figura éa experiéncia da multidao, Dela fala Engels a propésito da multiplicacio da forga que supde a concentragio massiva de pessoas, uma forga reprimida ¢ a ponto de explodir. Mas ao mesmo tempo a massa urbana consterna Engels, ¢ nessa consternagio Benja- min véa presenga de um provincianismo ¢ de um moralismo que 0 im- pedem de adentrar a verdade da multidao. Frente experiéncia de Engels, a de Baudelaire é a plenamente moderna, a “do prazer de estar na multidao”, porque jé nao sente a multidéo externa, como alguma coisa exterior ¢ quantitativa, mas como algo intrfnseco, uma nova faculdade de sentir, “um sexsorium que extraia encanto do deteriorado edo podre”, mas cuja embriaguer no despojava, contudo, a massa “de sua terrivel realidade social’.'"* E como multidao que a massa exerce seu direito a cidade. Pois a massa tem duas faces. Uma pela qual nao € seno essa “aglomeragéo concreta mas socialmente abstrata™ cuja ver- dadeira existéncia € s6 estatistica. E outra, que € a face viva da massa tale como percebeu Vitor Hugo, a da multidzo popular. Benjamin nio se engana quando lé Baudelaire, sabe que hi um socialismo esteticista, que se limita a adular a massa proletéria sem assumir 0 rosto da opressio. Mas isso no o impede de reconhecer na literatura de Baudelaire um sentido/senorium novo da massa: a expressio de um novo modo de sentir. Que se tratava disso, prova-nos o interesse de Benjamin pelas “artes menores” que Fuchs coleciona, como a caricatura, a pornografia ou o quadro de costumes. Empurrado pelo que Aguirre denomina “uma nostalgia ladeira acima”, que Ihe permite ler a trama que entre- tece 0 arcaico a0 moderno, Benjamin resume em seu interesse pelo marginal, pelo menor, pelo popular, uma crenga que os Horkheimer ¢ Adomo julgam mistica: « possibilidade de “libertar 0 passado opri- mido”. Penso que justamente ai se situa 0 fundo de nosso debate: a possibilidade mesma de pensar as relagdes da massa com 0 popular. Convencidos de que a onipoténcia do capital nao teria limites, e cegos para as contradig6es que vinham das lutas operirias ¢ da resisténcia- criatividade das classes populares, os criticos e censores de Benjamin 86 POVO E MASSA NA CULTURA: 05 MARCOS DO DEBATE nao podem ver nas tecnologias dos meips decomunicago mais que 0 instrumento fatal de uma alienaséo wtalitiriz"® O que implicava desconhecer 0 funcionamento histérico da hegemonia ¢ achatar a so- ciedade contra o Estado, negando ¢ esquecerdo a existéncia contradi- téria da sociedade civil.!® Mas, especialmente em Adorno, 0 combate pareceria centrar-se unicamente entre 0 Estado e 0 individuo. A afir- magio nao é minha, estou apenas citando Habermas: a experiéncia que Adorno procura desesperadamente resguardar éa que vem “da leituta solitdria ¢ da escuta contemplative, que: dizer, a via régia de uma for- magio burguesa do individuo”.""” Por isso, ao descobrir a fratura his- térica dessa cultura, Adorno pensa que tudo esté perdido. $6 a arte mais elevada, a mais pura, a mais abstrita poderia escapar da manipu- lacio ¢ da queda no abismo da mercaloria e do magma totalitadrio, Benjamin, pelo contrério, nao aceita que o sentido tenha sido negado, absorvido pelo valor. J4 que para ele “o sentido nao € algo que cresca como o valor”, nao é produzido, e sim tansformado, pois depende do processo de producio." E entio a experiéncia social pode ter duas faces — um obscurecimento e um empsbrecimento profundo -, mas, ao mesmo tempo, sem perder sua capatidade de critica ¢ de ctiatividade. Porque experimenton isso, Benjamin supés deslocar-se a tempo de uma experiéncia burguesa que tinta deixado de ser a tinica configuradora da realidade. Que o momento em que a mercadoria pa- recia “realizar-se” por completo era 0 mesmo em que a realidade social se desagregava comegando a estremece do outro lado, o das massas ¢ seu novo sensorium e seu contraditério sentido. Um deslocamento que foi num s6 tempo politico e metodoligico permitiu a Benjamin ser pioneiro da concepcao que desde meados dos anos 1960 nos est pos- sibilitando desbloquear 2 andlise a intervengio sobre a indtistria cul- tural: a descoberta dessa expetiéncia outra que a partir do oprimido configura alguns modos de resistéacia ¢ percepgio do sentido mesmo de suas lutas, pois, como cle afirmou, ‘nao nos foi dada a esperanga, senio pelos desesperados”. DOS MEIOS AS MEDIACOES DA CRITICA A CRISE ‘A pespectiva de pensamento inaugurada por Adorno ¢ Horkheimer vai se desenvolver, nos anos 1960, na Franga, e de um modo particular nos trabalhos de Edgar Morin, cuja evolucao nos per- mite sondar os sintomas que conduzem ao esgotamento de um para- digma analitico a emergéncia de outro, Refiro-me a esse final dos 1960 em que, com o inicio de uma crise econdmica que ainda demo- rard alguns anos a mostrar seus verdadeiros efeitos, tem lugar uma cri- se do politico aujo campo privilegiado de desenvolvimento vai set 0 cultural. E embora ssa crise do politico na cultura, e de toda uma cul- tura politica, vi explodir de um lado ¢ outro do Atlintico, de Paris ¢ Milao a Berkeley e Cidade do México, a experiéncia ea reflexio da crise na Franca me parecem especialmente relevantes, j4 que levam ao ex- tremo ¢ A ruptura a proposta de Frankfurt. Nao obstante, a andlise da crise vai enconttar seus pontos de maior generalidade nos trabalhos do mais hicido herdeiro dos frankfurtianos: Jiirgen Habermas. Na primeira etapa de sua andlise da cultura de massa,” a concep¢ao trabalhada por Morin deve no pouco de sua inspiracao aos frankfurtianos, mas nao se limita a desenvolver seus temas: entre dia- lética e ecletismo, procura de certo modo combinar o pessimismo da- queles com o otimismo dos teéricos norte-americanos. A diferenga destes tiltimos, ado cré na onipoténcia desmistificadora dos meios ma- ssivos, mas, em contraposigao aos “apocalipticos”, sente uma certa se- dugao pela mutagao cultural que af se produz. A ironia que perpassa sua andlise dos mitos que configuram o campo semantico da nova cul- tura desvela em mais de uma ocasiao a fascinago que exercem sobre 0 ctitico. Indiistria cultural significa para Morin nao tanto a racionali- dade que informa essa cultura quanto o modelo peculiar em que se or- ganizam os novos processos de producio cultural. Apesar do titulo filo- s6fico, O esptrito do tempo, o empenho da anilise elaborada nesse livro, sobretudo em sua primeira parte, € 0 de um socidlogo. Outsa coisa é 88 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE que, quando foi publicada, 0 eco dessa obra soou tio longe dos socié- logos da direita como dos da esquerda. O texto de Pierre Bourdieu e J. C. Passeron'™ acerta ao mostrar os limites, que, do ponto de vista estritamente sociolégico, apresentaya esse tipo de anélise, mas, ao ge- neralizar suas crfticas e colocar 0 trabalho de Morin no mesmo escani- nho dos vulgarizadores da ideologia dos massmedia, estavam demons- trando sua incapacidade para diferenciar o que hivia ali de contribui- gio, para eles sem diivida nao recuperivel, da promessa tedrica ¢ me- todolégica de Morin. E segundo a qual “industria cultural” passava a significar 0 conjunto de mecanismos ¢ operagées através dos quais a criagao cultural se transforma em produgéo. Com uma ganincia que vinha nao s6 da descrigdo socioeconémica do processo tanto do lado dos produtores como dos consumidores, mas tam>ém da negagio a fa- talizar a mudanga, desmontando assim um dos mal-enterdidos mais tenazes do pensamento de Horkheimer ¢ Adorne: o de que algo nao poderia ser arte se era indtistria. Morin demonstri, a propésito do ci- nema especialmente, como a divisao do trabalho ¢ a mediagio tecno- légica nao sao incompativeis com a “criac4o” artistica; além disso, in- clusive como certa estandardizagio nio implica a total anulagdo da tensio criadora, Redefinido nesses termos, 0 conczito é desfatalizado e operacionalizado. Claro que para Adorno essa operacionalizagao talvez no fosse sendo a queda do conceito na racionalidade instrumental que buscava precisamente denunciar. Mas, como propord Morin em um texto posterior,'® aquele conceito impée-se na medida em que, arran- cando-se da mera negatividade, permite a passagem da anilise da d mensio politica da cultura ao desenho de uma politica ou de politicas culturais, na medida em que a nega¢io que o conceito tematiza faga possivel a abertura ao pensamento das alternativas. Redefinido seu sentido, Morin desenvolve a anilise da cultu- ra de massa em duas diregées: a estrucura semintici— campo de opera- Ges de significagao e significagoes arquetipicas — eos modos de inscri- s40 no cotidiano. O avango primordial no_primeio aspecto reside na descrigao da operagao de sentido que constitui o dispositive basico de 89 DOS MEIOS AS MEDIACOES fancionamento da industria cultural: a fusio dos dois espagos que a ideologia diz manter separados, isto é, 0 da informacio eo do imagi- nario ficcional. Isso implicard, por um lado, uma anilise histérica das matrizes culturais e das transformagGes sofridas pelo campo da impren- sa eda literatura, que possibilitaram a comunicagao entre esses dois es- pasos. E, por outro, uma andlise fenomenolégica dos mecanismos a que essa “comunicagao” dé lugar. Pela primeira vez a comprensao da cul- tura de massa se vé obrigada a rastrear historicamente sua relagio com a “culturafolclérica”, descobrindo no folhetim “o primeiro meio de os- mose”!? entre a corrente realista, que elabora o romance burgués, ea corrente fantastic, que vem da literatura popular. Além do que mate- rialmenteo folhetim ¢ jé a poate: romance escrito na imprensa, isto é, segundo as condigées de produgao da escritura jornalistica. De modo que ser na linguagem da informagio que o novo imagindrio encontrara sua matriz discursiva, mas serd na linguagem do melodrama de aventu- ras que serio geradas as chaves do novo discurso informativo. A indtis- tria cultural produz uma informagao onde primam os “sucessos”," is- to é, o lado extraordinario ¢ enigmatico da atualidade cotidiana, e uma ficgado na qual predominaré o realismo. Na segunda dire¢ao — modos de inscri¢io no cotidiano —, 0 trabalho de Morin /eva a sério 0 cultural na hora de pensar a industria cultural, ¢a define como o conjunto dos “dispositivos de intercambio cotidiano entre o real ¢ 0 imaginirio”,* dispositivos que proporcio- nam apoios imagindrios 3 vida prética ¢ pontos de apoio pritico a vida imaginéria. O que implicava submeter a critica um conceito de aliena- edo que confundia na mesma negatividade tudo 0 que significasse pas- sagem para o imaginirio, fossem ji “sonhos” ou diversto. Claro que a alienagao existe, dird Morin, ¢ é mecanismo fundamental do funciona- mento dosocial, mas dai a converter o processo industrial em si mesmo na operacio constitutiva da alienagao hé uma distancia. E é nessa dis- tancia que Morin “encontra” Freud e sua proposta sobre os mecanis- mos de identificagao e proje¢io, para pensar os modos come a industria cultural responde, na era da racionalidade instrumental, a demanda de 90 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE mitos ¢ de herdis. Pois, se uma mitologia “funciona”, é porque da res- posta a interrogagées e vazios nao preenchidos, a uma demanda cole- tiva latente, por meios e esperangas que nem o racionalismo na ordem dos saberes nem o progresso na dos haveres tém conseguido extirpar ou satisfazer. A impoténcia politica e o anonimato social em que se conso- me a maioria dos homens reclama, exige esse suplemento-complemen- to, quer dizer, uma raz0 maior de imaginério cotidiano para poder viver. Bis af, segundo Morin, a verdadeira mediagdo, a fungio de meio, que cumpre dia a die a cultura de massa: a comunicagio do real com 0 imaginario. Em uma série de textos que vio do ano de 1968 ao de 1973, € que foram reunidos sob o titulo de O esptrito do tempo II, Morin propéea necessidadede unir a mudanga de paradigma analitico 4 com- preensio da crise sociopolitica. A crise aponta para uma redescoberta do acontecimento,' quer dizer, da dimensao histérica e da agio dos su- jeitos, deixando para trés uma concepgio da cultura reduzida a cédigo e da histéria, a estrutura. Acontecimento significa a “irrupgio do sin- gular concreto no tecido da vida social”, e entio a crise parece ser esse momento em que emerge o sentido dos conifitos latentes que fazem ¢ desfazem permanentemente 0 social. A crise de finais dos 1960 revela- va “a irrupgao da enzima marginal” — os negros, as mulheres, os loucos, os homossexuais, o Terceiro Mundo -, trazendo & tona sua conflituosi- dade, pondo em crise uma concepgao de cultura incapaz de dar conta do movimento, das transformagées do sentido do social; tornando ca- duca uma arte separada da vida ou uma cultura separada da cotidiani- dade que vinha “conferir e recobrir de espiritualidade 0 materialismo burgués”. Nessa linha a experiéncia mais incisiva seria proposta pelos movimentos contraculturais da América do Norte ea reflexéo mais crua pelos situacionistas. Retomando o pensamento de Fourier, do jovem Marx e dos movimentos libertirios, 0s situacionistas levam a cabo uma “encena- 40” demolidora dosmodas de inscrigao do poder no tecido da cotidia- nidade. E de saida uma valorizacio politica do tempo considerado nor- 91 DOS MEIOS AS MEDIACOES malmente “morto”, marginal & vida politica. Ora, “nao ha tempo mor- to, nem trégua entre agressores € agredidos [...]. Sob 0 angulo da obri- gagdo, a vida cotidiana esta regida por um sistemz econdmico no qual a produgao eo consumo da ofensa tendem a equilibrar-se”.""° E entao as novas pergunias: a quem pode beneficiar tanta fadiga, tanto isola- mento ¢ tanta humilhacao?, como € possfvel que o que vale para minha vida cotidiana yalha tio pouco para a histéria se a histéria sé adquire verdadeira importincia na medida em que organiza a cotidianidade? E a critica apontari a “sociedade do espetéculo”””, que, ao levar a relagéo mercantil atéa cotidianidade, até 0 sexo ea intimidade, acaba politizan- do-os, isto 6, convertendo-os em espagos de luta contra 0 poder. E af a teflexdo dos siuacionistas corvergiré com o abalo teérico-politico mais formidavel dos tiltimos anos: a nova concepgio do poder elabo- rada por Michel Foucault, Embora essa concep¢io extrapole os limites desse debate, é sumamente pertinente, contudo, 0 modo pelo qual Foucault leva a cabo a releitura das relagdes entre cultura e politica: a colocacao em crise da teoria do Estado e seus aparatos como origem e forma de realizacao do poder. “Atualmente sabemos vagamente quem explora, até onde vai o beneficio, por que mios passa, enquanto que 0 poder, quem exerce o poder? de onde o exerce? mediante que relevos ¢ instancias de hierarquia, de controle, de vigilancia, proibig6es, coa- Ges?” E emborao Estado permanega no centro, o poder flui, porque nao é uma propriedade, mas algo que se exerce, e de uma forma espe- ialissima a partir disso que o Ocidente tem chamado cultura. Nunca se tinha revelado tao problematica a concepgao da cultura enquanto superestrutura do que como luz dessa concepgio do poder como pro- ducio de verdade, de inteligibilidade, de legitimidade. O que nos re- mete ao coracao de nosso debate: 4 negagao de sentido e legitimidade de todas as priticas e modos de producao cultural que nao vém do cen- 170, nacional ou internacional, 4 negacdo do popular como sujeito nao s6 pela industria cultural, como também por uma concep¢ao dominan- te do politico que tem sido incapaz de assumir a especificidade do po- der exercido a partir da cultura, ¢ tem achatado a pluralidade e com- 92 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE plexidade dos conflitos sociais sobre 0 eixo unificante do conflito de classe. Préxima em seus propésitos iniciais di posicao de Morin e dos situacionistas ~ critica daquilo que nos impede de pensar a mobi- lidade dos conflicos que faz emergir a crise , 1 investigacio de Jean Baudrillard acabard sendo, contudo, uma boa expresso da restricéo politica que entranha a “dialética negativa” posta em marcha pelos frankfurtianos. J4 Benjamin nos tinha advertidocontra a tentacao dia- lética de colocar sobre o mesmo plano ontolégico o sentido e o valor, Pois bem, toda a obra de Baudrillard, especialmente a partir de Critica da economia politica do signo, consistira em tratarde demonstrar a abso- luta dissolugzo dos referentes e sua transformacao em agentes de uma si- mulagio generalizada. No fim da era da produgio e no comeco da era da informagao, a crise se resolve em uma reciclagem do sistema que te- tia sua dindmica econdmica na informagio come novo e tinico espaco de producio de poder e de sentido, e sua legitimsso politica na separa- $40 axiomdtica — Wiener, Shanon etc. ~ entre informasao e significa- cao. Para pensar essa transformacio, Baudrillard parte de um duplo axioma: “quanto mais informagio, menos sentido” e “quanto mais ins- tituigéo, menos social”.'” Como para os frankfurianos a racionalidade instrumental, que desencantou a natureza, acabou desencantando as relagées sociais até devorar o sujeito ¢ a propia razio, asim para Baudrillard “as instituigdes que tém balizado os progressos do social (urbanizacio, concentragao, producio, trabalho, medicina, escolariza- ao, seguranga social etc.) produzem e destroem o social no mesmo movimento”.'® Movimento cuja chave esté no processo de cbstragéo, isto é, de destruicao do intercimbio simbélico e ritual do qual tém vivido todas as sociedade até agora. Ea abstracao encontra sua “reali- zagi0” na informatizacio generalizada. E, convertida em modelo, a in- formagao devora o social. Por dois caminhos. Un, destruindo a comu- nicagao ao converté-la em pura encenagio de si mesma: em simulacto. Algo disso j4 tinha sido formulado por McLuhan a0 propor que “o meio devora a mensagem”. $6 que agora o procisio vai mais longe: a 93 DOS MEIOS AS MEDIAGOES mensagem acabou por devorar o real. E, abolindo a distincia entre a re- presentagio eo real, a simulagao nos meios— em especial na televisio — chega a produzir “um real mais verdadeiro que o real”. E dois, pondo em funcionamento, desatando 0 processo de entropia que subjaz na massa. Diante dos que pensavam que, injerando informagao na massa, liberariam sua energia, 0 que ocorreu foi o contririo: “A informagio produz. cada ver mais massa”, uma massa mais atomizada, mais distan- te da explosio, o verdadeiramente produzido € “a implosio do social nas massas”."*! Ante esse “fato”, segundo Baudrillard irreversivel, ja nao é possfvel refugiarmo-nos nas velhas teorias da manipulagao, porque ~ € aqui se faz vistvel o “salto no vazio” politico que separa profundamente © pensamento de Baudrillard do dos situacionistas ¢ do de Foucault — a inércia, a indiferenga, a passividade das massas nao é efeito de nenhu- ma acao do poder, mas 0 modo priprio de ser da massa. Essa idéia nao lembra aquela segundo a qual “o que parecia decadéncia da cultura é seu puro chegar a si mesma”, de Adorno? Baudrillard o corrobora: a in- diferenca politica ¢ a passividade, seu siléncio, € 0 modo de atividade das massas. E de que fala esse silencio? Fala do fim do politico, diz “que jd no € possivel falar em seu nome, j4 ndo é uma instincia & qual al- guém possa referir-se como em outio tempo a classe ou ao povo”."* Era previsivel. Entregues & dinamica propria da “dialética negativa”, a ra- cionalidade instrumental ou o simulacro nao para até devord-lo intei- ramente, Claro que, para que essa légica funcione, sera preciso eliminar as contradigées que vém de mais adém das técnicas e das instituigées. Assim, o queaimplosio da massa ou da cultura nos apresenta, em sua infinita capacidade de absorgao dos conflitos, ¢ um formidavel dilema: chegou-se 1 decadéncia da cultur: e & impossibilidade do politico a partir do processo histérico ou, antes, de uma situagao particular e de uma experiéncia de degradaco cultural ¢ impasse politico? Uma tentativa de nao hipostasiat a crise, ¢ sim interrogé-la, € ade Habermas, que, colocando a ctise do politico como eixo, chega en- tretanto a condusdes muito distintis. O que constitui o (a instincia do) 94 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE politico em eixo da crise que mina na atualidadeo capitalismo é a im- possibilidade de que o econdmico assegure por si mesmo a integracao social necessdria. Nunca o mercado cumpriu por si s6 essa fungio ¢ sempre necessitou do Estado na garantia das condigdes gerais de pro- dugio. Mas 0 que agora percebemos € outra coisa: “Hoje o Estado deve cumprir fungSes que nao podem ser explicadas invocando as premissas de persisténcia do modo de produco, nem ser deduzidas do movimen- to imanente do capital”. Este deslocamento, por sua vez, dé lugar, como o assinalaram os situacionistas, a novos problemas de legitimacao que se situam no terreno das “lutas travadas pela distribuigdo ¢ repro- dugao”. O longo ciclo das crises econémicas é substituido agora pela crise permanente que implicaa inflagaoe o déficit das finangas publi- cas, que € 0 custo, em termos econdmicos ¢ de racionalidade adminis- trativa, da busca por satisfazercom servicos de suide, educacao, segu- ranga, comunicagio etc. a “crescente necessidade de legitimagao” de que softe o sistema. Ea informatizagao generalizada da sociedade, re- duzindo os problemas politicos a problemas técnicos, isto é, de acumu- lagdo e organizagao da informacao, nao ter nadaa ver com esse “déficit de racionalidade” de que fala Habermas’ Mas entio nao se trataria da “morte” do politico, mas de sua suplantacao e substituigao: a informa- tica comportando o suplemento de raconalidade de que necessita a Administragio. Masa crise no é sé de racionalidade administrativa. Ea mes- ma dominagao de classe que fica a descoberto, e nio sé para intelectuais e militantes, mas também para as grandes massas que comegam a pet- ceber nas formas do intercimbio 0 exercicio de uma coagio social. Ai reside a crise de legitimagéo propriamente dita: em que, marginalizado de sua fungio de intrumentaidade do econémico, o sistema politico é obrigado a assumir explicitamente tarefas ideoligicas. Com 0 conse- guinte rechago que isso geraea mobilizagao que produz no ambito do cultural. A expansao do Estado, que era percebida como inelutdvel irrefredvel tanto-por Adorno na figura da-esmagadora administracio mercantil da cultura, quanto por Baudrillard na figura da administra- 95 DOS MEIOS As MEDIACOES ao crescente das instituigdes ¢ da simulagio informacional, é segundo Habermas percebida conflituosamente e resistida ativamente a partir do ambito da cultura. E isso porque é af que se pde a descoberto que “nao existe uma producio administrativa do sentido”. A cultura é af resgatada como espago estratégico da contradigéo, como lugar de onde 0 déficit de racionalidade econémica eo excessode legitimagao politica se transformam em crise de motivagao ou de sentido. A implosao do social nas massas, de que fala Baudrillard, como a explosio das expectati- vas de que fala 0 tiltimo Bell, ou 0 declinio do puiblico de que fala Sennett," apontam para a mesma direcio, mas, diferentemente dos trés, a crise cultural para Habermas nao se identifica com o fim do po- Iitico, e sim com sua transformacio qualitativa. A nova valorizagio da cotidianidade, o moderno hedonismo ou o novo sentido da intimidade nao sao unicamente operag6es do sistema, mas novos espagos de conflitos e expressées da nova subjetividade em gestacio: “O modo co- mo nos representamos a revolugao evolui também e inclui o processo de formacio de uma nova subjetividade”. Tem razio Bell quando percebe a emergéncia de um novo ti- po de contradicdes entre uma economia regida, contudo, pela raciona- lidade do rendimento e da disciplina, e uma cultura que coloca a es- pontancidade e a experimentacio pessoal como o valor supremo. E en- tio € certo que, sem 0 hedonismo que estimula a cultura de massa, a indtistria capitalista desmoronaria, mas é esse mesmo hedonismo que mina as bases da obediéncia e da disciplina cotidianas que eram as ba- ses da moral burguesa.! Tem razao Richard Sennett quando denun- cia o desgaste crescente daquela vida publica que constitufa a base da organizagio democratica e da participagio social. Mas, em sua extensa critica da fuga para a intimidade e a privatiza¢ao, em sua brilhante anélise do narcisismo moderno,'” Sennett esquece algo fundamental: que essa fuga para o eu ¢ as quest6es pessoais podem ter de des-afec- Gao e até de ruptura com os interesses gerais de um sistema que cami- nha cada dia mais sofisticada ¢ tenazmente em diego ao corte de di- reitos dos sujeitos individuais e coletivos. 96 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Quando a critica da crise “convoca” & crise da critica, é 0 momento de redefinir 0 campo mesmo do debate. 97 CAPITULO 4 REDESCOBRINDO O Povo: A CULTURA COMO ESPACO DE HEGEMONIA Nada expressa melhor o alcance ea incidéncia que actise tem no terreno tebrico que a redescoberta do popular efetuada nos tiltimos anos. Como se a velha e combatida categoria se recarregasse de sentido por nao sabemos muito bem que processos e nos desafiasse a descobrir a dimensio do real histérico ¢ do real social que af permanece insistin- do em se fazer pensar. Além das modas—que a sua maneira falam tam- bém do que mascaram, no que, em tiltima andlise, se apdiam secreta- mente —a vigéncia recuperada pelo popular nos estudos histéricos, nas investigacdes sobre a cultura e sobre a comunicagio alternativa, ou no campo da cultura politica ¢ das politicas culturais, marca uma forte inflexdo, uma baliza nova no debate e alguns deslocamentos importan- tes, Para delimité-los, comegaremos por estudar os novos contornos que na investigacao histérica adquite a figura do povo. Nao se trata de um acréscimo do saber em cifras edados, mas de um primeiro deslocamen- to que re-situa 0 “lugar” do popular ao assumi-lo como parte da me- méria constituinte do processo histérico, presenca de um sujeito-outro até hé pouco negado por uma histéria para a qual o povo sé podia ser pensado “sob o rétulo do mimero e do anonimato”.* Juntoa esta mu- danga da perspectiva histérica, dé-se uma transformaggo na sociologia — explicitada pelas sociologias da cultura e da vida cotidiana— na an- tropologia: da demologia & antropologia urbana. No conjunto, o que comega ase produzir ¢ um descentramento do conceito mesmo de cul- tura, tanto em seu eixo ¢ universo semintico como no pragmitico, ¢ um re-desenho global das relaces cultura/povo e povo/classes sociais. Nesse re-desenho vai desepenhar um papel importante o reencontro com o pensamento de Gramsci, que, acima das modas tedricas e dos POVO E MASSA NA CULTURA: 0S MARCOS DO DEBATE ciclos politicos, alcanga atuilmente urna vigéncia que tinha sido isolada ou ignorada durante longes anos. © POVO NA OUTRA HISTORIA O povo, palavraviga, pouco quzida doshistoriadores.E, contudo, hoje voltamos a descobiir a realidade eo peso hstrico de atores sociais de contornos mal dfisidos: osjovers,asmassas, aopiniao piblica, o povo. JacquesLeGoff Uma mudanga m perspectiva hist6rica sobre o popular im- plicava a releitura do pericdo em que, para o Ocidente, o popular se constitui em cultura: a Idade Média. Releitura que, procedendo & sua des-romantizagao, acertou contas também com a visio racionalista. E 0 objetivo explicito dos tabalhos de Le Goff, que se atreveu a colocé- lo como titulo da obra que tetine seus trabalhos mais recentes, Pour une autre Moyen Age. A primeira coisa que perde a base diante da aborda- gem de uma outra Idade Média ¢ 0 hiatoestabelecido pelo racionalismo entre medievo ¢ modernid:de, nao para retornar a uma continuidade evolucionista, mas para dar conta dos movimentos histéricos de longo alcance como sao precisamente os morimentos culturais, aqueles nos quais o que se transforma¢ o sentido mesmo do tempo, a relacio dos homens com o tempo enquanto duragéo na qual se inscreve 0 sentido do trabalho, da religido ¢ seus discursos. £ outro “comprimento de onda” o que permite captara voz — e nios6 o “ruido” — de alguns emis- sores nao audiveis na “freqiiéncia” des cortes hist6ricos estabelecidos pelos que escreveram a histéria a golpes, e custeada pelos vencedores. Nessa outra longa duragac, Idade Média deixa de ser o tempo da lenda negra tanto quanto o da lenda éurea, ¢ passa a ser 0 tempo “que criou a cidade, a Nagao, o Estado, a Universidade, o moinho e a maquina, a hora ¢ 0 relégio, o livro, o garfo, a roupa, a pessoa, a consciéncia ¢, fi- nalmente, a Revolugo”."” Um tempo que se iguala com nossa “mo- dernidade extraviada” em forma de scciedade pré-industrial, denomi nagio na qual o “pré”, maisque uma ruptura, assinala a matéria-prima 99 DOS MEIOS As MEDIAGOES 0 passado primordial. Fazer histéria disso significava fazer histéria cul- tural, e “na busca do fio condutor, da ferramenta de anilise ¢ de investi gacio encontrei a oposicéo entre cultura erudita e cultura popular”. Atengao para as implicagées dessa citagao: o popular para Le Goff nao €0 tema, mas o lugar metodolégicoa partir do qual se deve reler a hist6- ria nao enquanto Aistéria da cultura, mas enquanto histéria cultural. O procedimento analitico giraré sobre dois movimentos: enfrentamento e 0 intercimbio. A Idade Média profiunda é aquela em que o popular se constitui a um s6 tempo a partir do conflito e do dia- logo. Os dispositivos do conflito sio mais notdrios e vistveis, deixam- se analisar melhor, na alta [dade Média, na qual “o peso da massa cam- ponesa ¢ 0 monopilio clerical si as duas formas essenciais que atuam sobre as relagGes entre meios sociais ¢ niveis culturais”."" O clero, do- no da cultura erudita, se defronta com a emergéncia da massa campo- nesa como grupo de pressio cultural ~ gestor da “cultura folclérica”. Em que pese ao esforco de adaptacio que a propagacio do cristianismo exige e & cumplicidade que de fato as culturas camponesas encontravam. em certos tragos da mentalidade dos clétigos, a cultura clerical choca- se frontalmente com a cultura das massas camponesas. Choque que se situa basicamente no conflito entre o racionalismo da cultura eclesis- tica - separagio taxativa entre o bem ¢ o mal, o verdadeiro € 0 falso, os santos ¢ os deménios ea equivocidade, a ambigiiidade que permeia toda a cultura folclérica por sua crenga em forcas que so ora boas, ora mds, num estatuto movedigo e varivel, visto que mais pragmitico que ontolégico do verdadeiro e do falso. De forma que o dualismo mani- queista ¢ 0 esquematismo surgem paradoxalmente nio como modos originalmente populares, mas sim impostos a partir da tradigio erudi- ta. Repelida, ¢ no poucas vezes desafiada, a cultura oficial responde de trés maneiras: a destruigdo dos templos, dos objetos, das formas ico- nogrificas dos deuses etc.; a obliteracao ow aboligao de praticas, ritos, costumes, devocées; e a desnaturalizagdo ou deformacio das mitologias e das temiticas folcléricas que, res-semantizadas, so recuperadas pela cultura clerical. 100 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Mas nem 0 conflito nem 2 repressao paralisam o intercambio. Por vezes inclusive o estimulam, uma vez. que, 20 aproximar muito de Perto, “corpo a corpo”, as culturas enfrentadas, eles as expiem. Com 0 tempo a oposigao vai dando lugar a um didlogo feito “de presses ¢ re- pressdes, de empréstimos e resisténcias’ entre Cristo ¢ Merlin, santos e dragées, Joana D'Arc e Melusiana. Le Goff adverte que tanto 0 sabbar quanto a Inquisicio aparecem somente quando a simbiose se rompeu, enquanto que durante dez séculos teve lugar o grande didlogo entre 0 escrito e 0 oral que transformou os relatos populares nas /endascom que ‘os senhores feudais comecam a contar € escrever sua histéria, o mesmo dislogo que impregna de maravilhoso popular os relatos evangélicos que proclamam os clérigos convertendo santos em fadase deménios em fantasmas. A contribuigao de Le Goff reside em ter conseguido resgatar a dindmica prépria do processo cultural a cultura popular fazendo-se em uma dialética de permanénciae mudanca, de resisténcia ¢ intercim- bio. Sobre textos e contextos do século XVI, M. Bakhtin e C. Ginzburg investigam também a dinamica cultural, mas para estudar nfo 0 pro cesso de constitui¢ao do popular, ¢ sim a configurago a que chegaram essa cultura e seus modos de expressio. Ambos abordam o popular de dentro: Bakhtin pondo a énfase naquilo que a cultura popular tem de estranha, de paralela a oficial, de outra; Ginzburg indagando nas resis- téncias sua capacidade de assumir 0 conflito ativa, criativamente. O que Mikhail Bakhtin investiga ¢ aquilo que na cultura po- pular, ao opor-se & oficial, a une, aquilo que, ao constitui-la, a segrega. Por isso seu estudo centra-se na investigagio do espaco priprio, que éa praca publica — “o lugar no qual o povo assume a voz que canta” — e 0 tempo forteque & 0 Carnaval. A pragaé.o espago nio segmentado, aberto a cotidianidade e ao teatro, mas um teatro sem distingao de atores € espectadores. Caracteriza a praca sobretudo uma linguagem; ou me- Ihor: a praga é uma linguagem, “um tipo particular de comunica- 40”,' configurado a partir da auséncia das construsées que especiali- zam as linguagens oficiais, seja a da Igreja, a da Corte ou a dos tribu- | Biblioteca Péblio Municipal | Teixeira de Freitas - BA 101 DOS MEIOS AS MEDIACOES nais. Uma linguagem na qual predominam, no vocabulirio ¢ nos ges- tos, as expressOes-ambiguas, ambivalentes, que nao apenas acumulam ¢ dao vazo ao proibido, mas também, ao operar como parédia, como degradacao-regeneragio, “contribufam para a criagao de uma atmosfera de liberdade”. Grosserias, injtirias e blasfémias revelam-se condensado- ras das imagens da vida material, € corporal, que liberam o grotesco ¢ 0 cémico, os dois eixos expressivos da cultura popular. Depois de muito me indagar ¢ perguntar pelo sentido que tem aatribuicao do realismo ao popular, e de encontrar quase sempre nessa ztribuigao uma forte projeco do etnocentrismo de classe, encon- trei nacaracterizacio que faz Bakhtin do “realismo grotesco” uma pista fecunda. Trata-se de um realismo que se situa nos antipodas daquilo que um racionalismo dissimulado freqtientemente atribuiu ao popular: 0 modo grotesco funciona por exageracao ¢ degradacao € nao por cépia. Assim, aquilo que por meio dessas operages se resgata nao ¢ uma mera afirmacdo do real, mas uma topografia que afirma como realidade tilti- ma e essencial 0 corpo-mundo eo mundo do corpo, isto é, “a transfe- rénciaao plano material ¢ corporal do elevado, espiritual, ideal e abs- trato” Uma topografia que atua como valorizagio do baixo—a terra, © ventre—e nao do alto — 0 céu, 0 rosto —, que afirma o inferior porque “o inferior é sempre um comeco”. Diante do realismo que conhecemos, ou mdhor, reconhecemos como tal, que é um naturalismo racionaliza- do segando o qual cada coisa é uma coisa, pois se acha separada, acaba- dacisolada, 0 realismo grotesco afirma um mundo em que 0 corpo ain- da nao foi separado ¢ fechado, jé que 0 que faz com que 0 corpo seja corpo sao precisamente aquelas partes pelas quais se abre ¢ comunica- se com o mundo: a boca, 0 natiz, os genitais, os seios, o Anus, 0 falo. Por isio é tao valiosa a grosseria, porque é através dela que se expressa © grotesco: o realismo do corpo. Carnaval é aquele tempo em que a linguagem da praga al- cangao paroxismo, ouseja, sua plenitude, a afirmagio do corpo do po- vo, do corpo-povo e seu humor. Que elogiiente é a confusio em espa- nhol de humor como liquido visceral — os secretos humores do corpo 102

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