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Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 3, v. 7, jan./jun.

2009

ASPECTOS PROCESSUAIS DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA


NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

ANDRÉ MENESCAL GUEDES*

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar, à luz de orientações da doutrina e de recentes


manifestações da jurisprudência brasileira, a questão concernente ao ônus probatório nas
causas que envolvam o Direito do Consumidor. Em muitos casos, o benefício da inversão do
ônus da prova, concedido à parte frágil da relação processual, tem, em verdade, ameaçado a
atuação judicial do réu, tendo em vista o risco existente nas hipóteses em que essa facilitação
ao consumidor provoca injusto agravamento dos deveres do outro pólo processual,
impedindo-lhe a realização de uma defesa eficiente. Embora esteja superada a antiga doutrina
de que o negativo jamais se pode provar, é necessário que o julgador, sempre que diante de
hipótese em que seja legítima a impossibilidade de provar o negativo, ou mesmo quando a
utilização da medida provoque excessiva dificuldade na produção da prova, reconheça não ser
isonômico aplicar a inversão do ônus probatório, preservando, assim, a igualdade material.
Além disso, sempre que aplicada a medida, é imprescindível que se utilize o momento
processual adequado para tanto, possibilitando prévia manifestação à parte a que se atribui,
concretamente, o ônus de provar.

Palavras-chave: Direito do Consumidor. Inversão do ônus da prova. Prova impossível.

Riassunto: L’obietivo di quest’articolo è fare un’analisi, sotto le orientazioni della dottrina e


di recenti manifestazioni della giurisprudenza brasilianna, della questione relativa all’onere
della prova nelle cause che trattino del Diritto del Consumatore. In molti casi, il beneficio
dell’inversione dell’onere della prova, concesso alla parte fragile della relazione processuale,
minaccia i diritti giudiziali del reo, dato il grande rischio esistente nelle ipotesi in cui questa
facilitazione al consumatore provoca un ingiusto aggravamento dei doveri dell’altra parte
processuale, a cui si impedisce la realizzazione di una difesa efficiente. Sebbene sia superata
l’antica dottrina circa l’assoluta impossibilità di provare il negativo, è necessario che il
giudice, sempre che si trovi davanti ad un’ipotesi in cui sia leggitima l’impossibilità di
provare il negativo, oppure anche quando l’utilizzazione della misura provochi eccessiva
difficultà nella produzione della prova, riconosca non esssere giusto applicare l’inversione
dell’onere probatorio, preservando, in questo modo, l’eguaglianza di diritti. Inoltre, sempre
che aplicata la misura, è indispensabile che si utilizze il momento processuale adeguato,
facendo possibile una precedente manifestazione a la parte a cui si attribuisce, concretamente,
l’onere di provare.

Parole-chiave: Diritto del Consumatore. Inversione dell’onere della prova. Prova impossibile.

1 INTRODUÇÃO

Tema de considerável importância para a atuação judicial em demandas que envolvam


o Direito do Consumidor é a matéria respeitante ao ônus probatório.

*
Aluno da Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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Ao prever a possibilidade de inversão do ônus da prova em face da verificação de


determinados requisitos a serem preenchidos pelo consumidor litigante, o Código de Defesa
do Consumidor tem ensejado acalorados debates, que nesta condição permanecem mesmo
decorridos quase 20 (vinte) anos de sua publicação.
O presente trabalho objetiva, à luz das consequências produzidas no direito brasileiro
pela proteção conferida ao consumidor, analisar, por modesta abordagem, os principais
aspectos norteadores de uma distribuição razoável do ônus probatório nos casos concretos.
Investigar a pertinência da expressividade legal, bem como seus reais efeitos, implica
necessariamente questionar a primordial essência do ônus probatório, buscando-se constatar
em que medida a inovação da lei consumerista se coaduna inteiramente com os princípios que
regem o processo civil.
Conceder aos magistrados a prerrogativa de inverter, a seu talante, o ônus probatório
parece ter rendido ensejo a descabidas interpretações do instituto, redundando na frequente
impossibilidade absoluta ou dificuldade excessiva de os réus fazerem prova de sua inocência.
Mencionada inviabilidade se tem feito presente, com destacada incidência, na
realidade de casos em que os fornecedores, onerados que estão com a tarefa de provar a
improcedência do direito autoral, deparam com a necessidade de comprovar o negativo,
atribuição que extrapola os limites da razoabilidade.
Ponto outro a atrair intenso embate jurisprudencial é o concernente ao momento da
inversão do ônus da prova. Tem se tornado acirrada a batalha que busca definir se o poder
previsto no art. 6º, VIII, do CDC é regra de procedimento ou de julgamento, delineação que
tenciona, em verdade, demarcar se o tempo processual adequado à decretação da medida é
ainda o do início da fase instrutória ou apenas o da decisão final de mérito.
Nessa trilha, à luz das discussões geradas pelo tema nos campos doutrinário e
jurisprudencial, o presente estudo objetiva fazer despretensiosa ponderação sobre o sistema da
inversão do ônus da prova nas causas envolvendo relações de consumo, tudo por meio de
breve percurso acerca dos principais aspectos que circundam a matéria.

2 O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO

Em simplificados termos, consiste a prova, no âmbito processual, em instrumento apto


a tornar viável o reconhecimento dos fatos alegados pelas partes. Consectariamente, sua
produção, via de regra, não deve ter por objeto a demonstração de direito material (excetuada

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a condicional hipótese do art. 337 do Código de Ritos), mas a existência de elementos fáticos
que justifiquem a incidência do direito.
Este o escólio de Pontes de Miranda sobre a relação:

A prova refere-se a fatos; portanto: a elementos do suporte fáctico, ao suporte fáctico


e aos fatos jurídicos que de suportes fácticos resultam. Direitos, pretensões, ações e
exceções são efeitos de fatos jurídicos: é preciso que se provem os fatos jurídicos
para que se tenham por existentes, no tempo e no espaço, esses efeitos.1

A valoração jurídica dos fatos, assim, repousa sobre a produção de prova2. De tal sorte,
o ato jurídico de produzir prova tem por escopo a materialização judicial de determinado fato,
porquanto sua ocorrência, em regra, não goze de qualquer presunção.
Nesse sentido, superficialmente considerada, a célebre máxima romana é de nítida
adequação: actore non probante, reus est absolvendus. Exatamente porque, sendo do autor o
ônus de demonstrar a veracidade dos fatos, o réu deve sempre ser liberado do encargo de uma
condenação ainda que, abstendo-se de produzir prova, se limite a negar os fatos afirmados
pela parte autora. Fato sobre o qual repouse controvérsia ao que afirma compete provar3, seja
autor ou réu (probatio incumbit ei qui dicit).
Como acentua Marinoni, “não há racionalidade em se exigir que alguém que afirma
um direito deva ser obrigado a se referir a fatos que impedem o seu reconhecimento. Isso
deve ser feito por aquele que pretende que o direito não seja declarado, isto é, pelo réu”4.
Assim, a responsabilidade pela produção de provas se confere ao próprio titular do
direito alegado, portanto o protagonista, direto ou indireto, dos fatos que àquele deram
suporte.5 Ao enunciar o ônus autoral de provar os fatos alegados e o ônus do réu de
demonstrar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor, o Código de
Processo Civil nada mais fez que tornar clara a diferença entre o ônus e o dever processual,
distinção que se pauta nos caracteres de interesse e necessidade 6.

1
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. t. IV. Rio de Janeiro:
Forense, 1974, p. 209.
2
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Vol. I. Trad. Adrián Sotero De Witt Batista. São
Paulo: Classic Book, 2000, p. 307.
3
CIRIGLIANO, Raphael. Prova Civil: Legislação – Doutrina – Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense,
1966, p. 27.
4
MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades
do caso concreto. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1168, 12 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8845>. Acesso em: 28 mar. 2009.
5
CPC: “Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.”
6
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. São Paulo: Limonad, [s.d.], p. 98-99.

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A sistemática acima tratada, contudo, comporta considerável temperamento no âmbito


consumerista. Excepcionando a norma geral encartada na legislação processual, a Lei nº
8.078/90 previu:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


[...]
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a
alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiências;

O benefício trazido aos consumidores pelo Código de Defesa do Consumidor teve por
foco principal, visivelmente, auxiliar as partes frágeis da relação de consumo na consecução
de suas pretensões, para que tais sujeitos não deparassem com a sacrificada missão de
comprovar até mesmo alegações cuja demonstração fuja à sua capacidade técnica/financeira.
A iniciativa do legislador é louvável. Nada há de iníquo em se dotar a parte frágil de
uma relação processual de ferramentas que lhe facilitem a defesa do direito. Em verdade, não
raro se veem os consumidores frustrados diante de um direito violado que não pode ser
demonstrado, dada a inexistência de meios para tanto.
As boas intenções do diploma, no entanto, não correspondem à final redação que lhe
foi impressa, tampouco à interpretação que lhe tem sido conferida por alguns tribunais
brasileiros. Conquanto o objetivo primordial tenha sido dotado de elogiável razoabilidade, o
formato que se resolveu imprimir ao inicial intento do legislador definitivamente não foi feliz.
Sabe-se que, sob os termos exatos da lei, tratou-se da inversão como estando sujeita,
exclusivamente, à ponderação do julgador, uma vez verificado, por este, um ou outro dos
requisitos legais - hipossuficiência ou verossimilhança da alegação autoral.
Cuida-se da chamada inversão judicial7 do ônus da prova, medida que se submete ao
crivo do julgador, observado o seu cabimento no caso concreto, com base no preenchimento
dos requisitos legais8.
A primeira consequência temerária da previsão do CDC foi a de deixar a cargo do
magistrado a distribuição de uma função processual cuja delimitação, em regra, só compete à
lei disciplinar, uma vez que à discricionariedade da prerrogativa judicial, desacertadamente,

7
No âmbito consumerista, a inversão judicial distingue-se da inversão legal, assim denominada, por exemplo, a
atribuição conferida ao fornecedor pelo art. 38 da Lei nº 8.078/90. Esta, diversamente da primeira, prescinde de
uma anterior ponderação fundamentada do julgador à luz do caso tratado, cuidando-se, assim, de um ônus
probatório nascido de imposição legal, na medida em que sempre será do réu o ônus da prova da veracidade e
correção da informação ou comunicação publicitária.
8
Nesse sentido: STJ – 4ª Turma - AgRg no Ag 955934 / DF, Rel. Min. João Otávio De Noronha, DJ 26.05.2008.

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não se atribuiu o devido contrapeso; assim, por autorização da inadequada redação do


dispositivo, diversos julgadores têm banalizado o instrumento, deixando de orientar-se sob o
enfoque dos casos concretos e com estrita observância aos princípios informadores do direito
processual.
Ademais, da leitura do dispositivo colacionado, constata-se a possibilidade de
autorização ex officio da medida, não havendo necessária dependência do juízo em relação às
alegações das partes sobre tal fundamento. Desta sorte, qualquer argumentação de um de
outro litigante com relação à previsão legal comportará a mera capacidade de aclarar a
compreensão do juiz, não havendo subordinação deste à alegação ou não da matéria em
juízo9.
A jurisprudência, com efeito, apenas reflete o alto grau de discricionariedade conferido
aos julgadores pela redação da lei consumerista. Não obstante a possibilidade de decretação
da medida de ofício seja matéria sobre a qual não deve pesar grande controvérsia, os efeitos
que a inversão podem causar no processo jamais devem escapar a uma minuciosa análise por
parte do magistrado.

3 DAS HIPÓTESES DE INAPLICABILIDADE DA INVERSÃO DO ÔNUS DA


PROVA

A distribuição judicial do ônus probatório está sujeita, em tudo, ao modelo processual


vigente em nosso ordenamento jurídico, de sorte que, por meio de interpretação sistemática
dos diplomas legais aplicáveis à matéria, somente uma compreensão mais plausível do
instituto consumerista deve prevalecer.
É imperioso que os julgadores, sempre que tendentes a lançar mão da transferência do
ônus probatório, analisem com cuidado se a providência adotada se prestará, na hipótese
tratada, a solucionar com justiça a controvérsia. Ausente tal ponderação, sofre-se o risco de
originar, em sentido oposto, nocivas e injustificadas consequências à parte processual a que se
atribui, concretamente, o ônus de provar.
Assim como o Código de Processo Civil, no que toca à matéria probatória, reputa nula
a convenção que dificulte exacerbadamente às partes o exercício de seu direito10, não cabe

9
Nesse sentido, conferir: TJSP - EDcl nº 7.159.178-3/01, 19ª Câmara de Direito Privado, , Rel. Paulo Hatanaka,
julg. 04/08/2008 e TJRS, Apelação Cível nº 70023453657, Segunda Câmara Cível, Rel. Adão Sérgio do
Nascimento Cassiano, julg. em 04/06/2008.
10
CPC: Art. 333. (Omissis)
[...]

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admitir que a aplicação da inversão do ônus pelo juiz suscite hipóteses de igual natureza. São
situações que exigem, concretamente, um juízo de equidade, capaz de efetivar a realização de
justiça no caso analisado11.
No dizer de Cândido Dinamarco:

O Código de Defesa do Consumidor não impõe expressamente qualquer limitação


aos efeitos da inversão judicial do ônus da prova, ou seja, nele não se vê qualquer
veto explícito às inversões que ponham o fornecedor diante da necessidade de uma
probatio diabolica. Mas, se é ineficaz a inversão exagerada mesmo quando
resultante de ato voluntário de pessoas maiores e capazes (CPC, art. 333, par. inc.
II), com mais fortes razões sua imposição por decisão do juiz não poderá ser eficaz
quando for além do razoável e chegar ao ponto de tornar excessivamente difícil ao
fornecedor o exercício de sua defesa. Eventuais exageros dessa ordem
transgrediriam a garantia constitucional da ampla defesa e conseqüentemente
comprometeriam a superior promessa de dar tutela jurisdicional a quem tiver razão
(acesso à justiça).12

Esse é o contexto em que se insere, v.g., o tema da prova negativa. Decidindo o juízo
inverter o ônus da prova de tal modo a implicar a necessidade de produção de prova negativa
pelo réu, ou seja, compelindo-o a comprovar a inocorrência de um determinado fato, será
legítimo insurgir-se contra a providência, por tornar não apenas difícil a defesa do
demandado, mas por vezes absolutamente inviável.
Incumbir a parte ré de tão austero encargo significaria distorcer por completo a real
finalidade da legislação consumerista, a qual certamente não tem por objetivo a imposição de
árduo sacrifício ao fornecedor sob o incondicional pretexto de favorecer, a qualquer título, os
consumidores litigantes13.
A impossibilidade de se produzir prova negativa, naturalmente, comporta atenuações.
Compreender que toda negativa é impossível de ser provada é conclusão por demais
precipitada, cuidando-se, como em inúmeros outros tópicos de natureza jurídica, de
entendimento que não está imune a críticas14.
Em verdade, a clássica doutrina já ensinava que a negativa de comprovação
impossível é tão-somente a de feição geral, globalizante:

Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:
[...]
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito;
11
SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. v. IV. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1994, p. 31.
12
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. III. 4 ed. São Paulo: Malheiros,
2004, p.80.
13
Nesse sentido: TJ-SC, 4ª Câm. Direito Civil, Ap. Cível nº 2007.051126-7, Rel. Des. Trindade Dos Santos, julg.
25/11/2008.
14
CIRIGLIANO, Raphael, Op. Cit., p. 39.

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Certamente, se a negativa é pura e simples, absoluta ou indefinida, a situação criada


pelo réu é quase impossível ser por ele mesmo provada. Assim, quando Tício,
contestando a ação de cobrança que Caio lhe intenta, apenas se limita a dizer coisas
mais ou menos parecidas com esta – ‘não devo’ – ou – ‘nunca lhe devi’ – a Tício
será muito difícil fazer a prova de sua alegação. Por outro lado, como ao autor
cumpre sempre, em regra, dar a prova da sua ação, sob pena de, arcando com os
riscos, decair dela, nada mais natural e lógico que lhe caiba ônus de provar a
afirmação negada pelo réu.15

O autor acrescenta:

Tem-se, à vista de tais observações, procurado sustentar que o preceito de que as


negativas são isentas de prova se refere apenas às negativas indefinidas. João
Mendes Júnior, por exemplo, ensina que só a negativa relativa, isto é, a negativa que
pode converter-se em afirmativa, é suscetível de prova; não, assim, a negativa
absoluta e indefinida.16

Excluir-se-iam, pois, da alegação de comprovação impossível as negativas parciais,


em que o réu, não obstante se oponha, fundamentadamente, ao direito autoral, tem por base de
sua defesa a admissão, como reais, de certos fatos alegados pelo autor, com o intuito de, por
via oblíqua, aplacar-lhes fato impeditivo, modificativo ou extintivo.
As negativas desse tipo, segundo Moacyr Amaral Santos, seriam apenas de forma, e
não de substância17. Assim, se o réu, em defesa, nega que os fatos tenham se dado conforme a
narrativa autoral – o que é absolutamente diferente de se alegar que os fatos jamais ocorreram
–, ele está a afirmar, por outro lado, que os fatos sucederam de outro modo. Nesse caso, é na
comprovação do “outro modo” que residirá o ônus da parte demandada.

As partes afirmam. A seguir-se a regra geral, cada qual devia dar prova das
alegações que houvesse feito. Mas o que não resta dúvida é que a forma da
contestação, conquanto afirmativa de fatos, implica na negação dos fatos afirmados
na ação e, daí, admitir-se a indispensabilidade da prova por parte do autor,
conquanto não se exima o réu de promover a sua: aquêle dará a prova, este a
contraprova ou prova contrária.18

Em recente julgamento do REsp nº 422778/SP, sob relatoria do Ministro Castro Filho,


o Superior Tribunal de Justiça manifestou compreensão bastante elucidativa a esse respeito
(transcreve-se trecho da ementa):

15
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. I. São Paulo: Limonad, [s.d.], p.
178.
16
Idem, p. 175.
17
Idem, p. 180.

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Tanto a doutrina como a jurisprudência superaram a complexa construção do direito


antigo acerca da prova dos fatos negativos, razão pela qual a afirmação dogmática
de que o fato negativo nunca se prova é inexata, pois há hipóteses em que uma
alegação negativa traz, inerente, uma afirmativa que pode ser provada. Desse modo,
sempre que for possível provar uma afirmativa ou um fato contrário àquele deduzido
pela outra parte, tem-se como superada a alegação de “prova negativa”, ou
“impossível.19

As negativas absolutas ou indefinidas, de outro norte, são de gerar efeitos diversos na


relação processual. Como o único modo de demonstrar alegações desta natureza seria
comprovar, integralmente, a infinidade de afirmações implícitas na negativa, a melhor
compreensão é de que sua prova é dispensável, em face da impossibilidade ou exacerbada
dificuldade de ser feita. Em casos tais, permanece intacta a norma processual que atribui ao
autor a prova dos fatos alegados, uma vez que o réu nada afirmou, direta ou indiretamente,
limitando-se a negar.

Quando a negativa é indeterminada e, de conseguinte, se resolve em um número


indefinido e indeterminado de afirmações contrárias, a prova de cada uma das quais,
por certo, dificílima, mesmo impossível, a lógica, mesmo a equidade, aconselham
não se tente sequer sua prova.20

São sensivelmente diversos, assim, os efeitos processuais de uma defesa baseada na


negativa dos fatos e os de uma defesa por via de exceção, distinção que se prestará a orientar
concretamente a distribuição do ônus da prova.
No âmbito do Direito do Consumidor, em face da previsão legal expressa autorizando
os julgadores a inverter o ônus da prova (medida que altera substancialmente a dinâmica da
relação processual, em sua forma tradicional), reputam-se de especial importância as lições
doutrinárias supramencionadas.
É imperioso que a utilização da medida de que trata o art. 6º, VIII do CDC nas causas
envolvendo relações de consumo não se dê de modo desequilibrado, de modo a facilitar a
atuação da parte dita mais fraca em total detrimento daquela que se supõe mais forte.
Assim como a doutrina ensina que o ônus da prova, em regra, deve ser rechaçado
quando o fato a provar seja absolutamente negativo ou de dificílima demonstração, também o
ônus da prova atribuído ao réu por força da inversão deve ser prontamente repelido quando
importe em atribuição de um dever inviável ao componente do pólo demandado.

18
Idem, p. 135.
19
STJ – 3ª Turma - REsp 422778 / SP, Rel. Min. Castro Filho, julg. 19/06/2007, DJ 27.08.2007 p. 220.
20
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. I. São Paulo: Limonad, [s.d.], p.
134.

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Para exemplificação de uma situação em que a inversão se faz razoável, analise-se a


hipótese de um consumidor que, supostamente ofendido pelo funcionário de uma empresa no
Serviço de Atendimento ao Consumidor, ao telefone, vai a juízo pleitear reparação por danos
morais.
Tendo em vista a mínima probabilidade de que o demandante detenha capacidade de
provar o que afirma, pois não se há de exigir que indivíduos possuam em casa aparato técnico
para gravação de ligações telefônicas – daí a hipossuficiência –, e levando-se em conta que a
empresa ali acionada tem por hábito informar, antes de todos os contatos feitos por seus
consumidores, que a ligação é gravada – daí a verossimilhança –, somente a inversão do
ônus, no caso, se prestará ao esclarecimento21 da realidade fática.
Para que o réu comprove serem inverídicas as alegações autorais, bastará que,
trazendo a juízo a gravação da íntegra do diálogo, nela não haja quaisquer indícios de ilícito, o
que fará falecer, por conseguinte, o direito autoral.
Em suma: provando que seu representante sempre agiu com educação e urbanidade, o
réu terá provado, ao mesmo tempo, que não houve ali conduta capaz de gerar danos de
qualquer natureza, e, por meio de uma comprovação positiva, restará cumprido seu ônus de
“provar o negativo”.
Trate-se, agora, de situação diferente: outro consumidor, que jamais manteve qualquer
vínculo com determinado fornecedor, dá início a um litígio com o intuito de ser reparado por
danos supostamente sofridos pela atuação deste na execução de seu mister. O autor, na inicial,
narra os fictícios fatos, pugnando, em tópico apropriado, pela inversão do ônus da prova em
seu favor.
O réu, diante da hipótese, nega todos os fatos, não podendo produzir prova
simplesmente porque provar que não conhece o consumidor e que jamais travou com ele
qualquer relação seria típico exemplo de atribuição impossível.
O juízo, contudo, entendendo que as alegações autorais têm indícios de
verossimilhança, e que o consumidor, por ser hipossuficiente, não possuiria quaisquer meios
de provar o fato constitutivo de seu direito, anuncia a inversão do ônus da prova e julga a ação
procedente.
Nesse exemplo, o erro judicial é evidente. Se a inversão do ônus da prova é capaz de
causar, no caso concreto, a imposição de um fardo temerário ao fornecedor, nem mesmo a
verossimilhança e a hipossuficiência, conjugadas, autorizam o juiz a proceder de tal modo. A

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Destaca-se que o esclarecimento dos fatos, nesse caso, somente incumbirá ao réu porque já constatada

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única via a seguir, na hipótese, era a da improcedência por falta de provas.


Desse modo, defendemos, enfaticamente, que a inversão do ônus da prova não se pode
dar de forma massiva, imponderada e irrefletida. A regra geral permanece a mesma: ao autor
compete provar os fatos constitutivos; ao réu, os fatos impeditivos, modificativos ou
extintivos.
Se o réu, à luz das peculiaridades do caso concreto, não possui real capacidade de se
desincumbir do ônus que se lhe atribui, aplicar a inversão não implicaria conceder-lhe
oportunidade de defesa, mas cientificá-lo, antecipadamente, de uma futura perda.
A exceção, portanto, consistente em sensível alteração da dinâmica da instrução
processual, só se deve autorizar em casos pontuais, em que o uso da prerrogativa seja feito de
modo perfeitamente fundamentado, demonstrando por que razões o julgador entendeu
razoável inverter o ônus da prova. O momento para tal anúncio é o ponto de que se tratará
adiante.

4 DO MOMENTO PROCESSUAL ADEQUADO À INVERSÃO DO ÔNUS DA


PROVA

Substancial discussão tem-se desenvolvido, na doutrina brasileira, acerca do momento


apropriado à decretação da inversão do ônus da prova. Isso porque a medida prevista na Lei nº
9.099/95 foge sensivelmente ao modelo processual civil brasileiro, que cuida de atribuir os
ônus processuais por meio de expressa previsão legal, e não por distribuição dinâmica, como
em outros ordenamentos jurídicos.
Os defensores da inversão em sentença22 entendem que a medida decretada em tal
momento seria mera declaratória, não configurando, assim, prejuízo ao direito de defesa do
réu. Sob tal compreensão, o fato de a lei conceder ao juiz a faculdade de inverter o ônus da
prova seria suficiente, prescindindo-se de uma decisão interlocutória para tal finalidade.
Para os juristas que assim entendem, a decretação da inversão antes da instrução
processual seria facultativa ao juiz, configurando-se mera antecipação, para as partes, dos
critérios que nortearão o julgador ao momento da sentença. O juiz não estaria impondo um
novo ônus, mas simplesmente reconhecendo o que já existia.
Adotando tal visão, alguns tribunais pátrios tem entendido plenamente aceitável a

previamente a presença dos requisitos necessários à inversão.


22
Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos
autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

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utilização do julgamento definitivo como ocasião adequada à aplicação da medida, sob a


justificativa de que não há cerceamento de defesa ao fornecedor, e de que o momento da
formação do convencimento é o único adequado à distribuição do ônus da prova23.
Os pregadores da inversão antes da instrução, de outro lado, asseveram que a
decretação da medida somente por ocasião do julgamento importa em grave cerceamento de
defesa, de vez que tão substancial exceção à regra geral da prova no processo civil não pode
ser tratada como um banal incidente processual, mas como providência que deve ser
informada às partes com antecedência.
Para Marinoni24, a disciplina da inversão do ônus da prova deve comportar nuances
várias. Desenvolvendo ponderações acerca da teoria da distribuição dinâmica do ônus
probatório, o doutrinador entende que a inversão pode ser utilizada tanto na audiência
preliminar quanto na sentença, a depender das peculiaridades do caso concreto.

Em princípio, a inversão do ônus da prova somente é admissível como regra dirigida


às partes, pois deve dar à parte que originariamente não possui o ônus da prova a
oportunidade de produzi-la. Nessa lógica, quando se inverte o ônus é preciso supor
que aquele que vai assumi- lo terá a possibilidade de cumpri- lo, pena de a inversão
do ônus da prova significar a imposição de uma perda, e não apenas a transferência
de um ônus. A inversão do ônus da prova, nessa linha, somente deve ocorrer quando
o réu tem a possibilidade de demonstrar a não existência do fato constitutivo. É
evidente que o fato de o réu ter condições de provar a não existência do fato
constitutivo não permite, por si só, a inversão do ônus da prova. Isso apenas pode
acontecer quando as especificidades da situação de direito material, objeto do
processo, demonstrarem que não é racional exigir a prova do fato constitutivo, mas
sim exigir a prova de que o fato constitutivo não existe. Ou seja, a inversão do ônus
da prova é imperativo de bom senso quando ao autor é impossível, ou muito difícil,
provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua
inexistência. Em outros casos, porém, a produção da prova é impossível às duas
partes, e assim não há razão para inversão do ônus da prova na audiência preliminar.
Contudo, diante da impossibilidade da produção de prova, o juiz não consegue
formar sequer uma convicção de verossimilhança, mas, ainda assim, a
inesclarecibilidade da situação de direito material não deve ser suportada pelo autor,
como ocorre nos “casos comuns”.

Adiante, o processualista destaca que “somente a dificuldade de produção de prova


caracterizada pela peculiar posição do consumidor – ou a hipossuficiência –, pode dar base à
inversão do ônus da prova na audiência preliminar”25.

23
Nesse sentido: TJ-CE, 3ª Câmara Cível, Ap. Cível nº 2005.0012.3853-3/0, Rel. Des. Celso De Albuquerque
Macedo, julg. 31/01/2007, TJ-PA, 3ª Câmara Cível, Proc. 200330019524, Rel. Desª. Luzia Nadja Guimaraes
Nascimento, DJ 04/04/2006, TJ-RS, Décima Câmara Cível, Apelação Cível Nº 70012902904, Rel. Des. Paulo
Roberto Lessa Franz, julgado em 01/12/2005.
24
MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades
do caso concreto. Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 1168, 12 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8845>. Acesso em: 28 mar. 2009.
25
Ibidem.

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Não obstante a evidente pertinência das razões invocadas por Marinoni, entendemos
que a inversão do ônus da prova sempre deve ser decretada em momento que permita ao réu
produzir a prova que lhe incumbe.
O pólo demandado deve estar ciente, por expressa decisão judicial nesse sentido, de
que o ônus da prova lhe compete, pois não é razoável que se confira ao fornecedor a
obrigação de identificar se o julgador entenderá ou não, ao momento da sentença, pela
aplicação da regra de inversão do ônus da prova.
Filiamo-nos, assim, à posição de Fredie Didier:

Pensamos que a inversão é regra procedimental, que autoriza o desvio de rota; não
se trata de regra de julgamento, como a que distribui o ônus da prova. Assim, deve o
magistrado anunciar a inversão antes de sentenciar, não se justificando o
posicionamento que defende a possibilidade de a inversão se dar no momento do
julgamento26.

Se às partes processuais é possível conhecer o ônus que lhe incumbe por força das
disposições da legislação processual, uma inversão de tais atribuições processuais, que se
sujeita à ponderação do julgador, só se pode dar mediante deliberação do juízo em
pronunciamento com caráter de decisão interlocutória, não só para que o réu tenha a
oportunidade de produzir a prova, mas também a de impugnar, sempre que necessário, a
providência judicial.
A omissão do Código de Defesa do Consumidor na indicação da forma adequada à
aplicação da medida deve ser suprida de modo a preservar-se o leque de princípios que
norteiam o processo civil. Inverter o ônus da prova e só dizê-lo em sentença significa, quando
menos, extirpar do pólo demandado a prerrogativa de se manifestar oportunamente a respeito,
inclusive para apontar ao julgador eventual equívoco em que tenha incorrido ao analisar a
hipótese.
Casos haveria em que o magistrado, não necessariamente detentor de conhecimentos
específicos acerca da matéria levada a juízo, entenderia, v.g., pela presença da
hipossuficiência quando esta, notoriamente, não estivesse configurada. O anúncio da medida
em caráter mediato faria confundir, em sentença, o mérito da demanda com uma falha de
caráter puramente procedimental.
Não se está a defender que a distribuição do ônus da prova seja regra de procedimento,
de vez que a atribuição, a cada uma das partes, das parcelas de fato que lhe competem

26
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Jus Podivm, 2006, p. 57.

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demonstrar, configura, sem resquício de dúvida, critério de julgamento, relacionando-se não


ao rito processual propriamente dito, mas a uma considerável porção de subjetividade de que
se deverá valer o juiz.
O anúncio da medida, contudo, deverá ser feito invariavelmente antes da instrução.
Decretar a inversão do ônus, diversamente de distribuí-lo, é norma procedimental, sendo certo
que sua inobservância gera nulidade absoluta, somente podendo ser sanada pela realização de
novo julgamento. Nesse sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Norte:

“PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO. PRELIMINAR DE


NULIDADE ABSOLUTA DA SENTENÇA. TRANSFERÊNCIA PARA O MÉRITO.
INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA SENTENÇA. MOMENTO PROCESSUAL
INADEQUADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.”27

João Batista de Almeida28, por seu turno, assevera que “o deferimento da inversão
deverá ocorrer entre a propositura da ação e o despacho saneador, pena de prejuízo para a
defesa do réu”. Em outras palavras, a ciência do ônus probatório deve ser anterior à instrução,
tal como a regra geral do ônus da prova é conhecida pelas partes antes mesmo de ter início a
relação processual.
A decretação da inversão do ônus, nesta senda, reputa-se inadmissível quando já finita
a instrução29. O professor Hugo Nigro Mazzilli30 explana:

Será o momento da produção da prova, e não o da prolação de sentença. Se o juiz


entender cabível a inversão da prova, deverá alertar o fornecedor de produtos ou
serviços, para que este tenha oportunidade de desincumbir-se do ônus probatório que
lhe vem a ser cometido. Então essa decisão deve ser tomada antes ou no máximo
durante a instrução, e não quando o juiz vai sentenciar. O momento da prolação da
sentença não é o adequado para tomar essa decisão, pois, a essa altura, as provas já
estarão feitas e as partes seriam surpreendidas com a inversão.

Alguns Juizados Especiais Cíveis têm por hábito inserir, no mandado de citação
expedido à parte demandada, advertência no sentido de que poderá ser invertido o ônus da
prova em favor do consumidor, nos termos do art. 6°, VIII do diploma consumerista, sob a
compreensão de que tal medida se presta a suprir a omissão decorrente do texto legal.

27
TJ-RN, 3ª Câmara Cível, Proc. 2006.005697-1, Rel. Des. OSVALDO CRUZ, julg. 23/11/2006.
28
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 110.
29
Nesse sentido está a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o que se verifica do
Enunciado n° 91 das Súmulas daquela Corte: “A inversão do ônus da prova, prevista na legislação consumerista,
não pode ser determinada na sentença”. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/.
30
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 159.

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Entendemos, data venia, que a providência distancia-se sobremaneira do


procedimento adequado. Reproduzir no mandado de citação a faculdade de que dispõe o juiz
por força da lei é conduta que em nada modifica a situação do réu, que permaneceria sem
condições de “antever” a aplicação ou não da inversão pelo magistrado. A única solução para
a controvérsia será a afirmação, categórica e por meio de pronunciamento judicial autônomo,
de que o ônus foi invertido.
Para arremate, cumpre observar que o Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma
oportunidade, decidiu por visualizar a inversão como sendo regra de julgamento, sujeita, nos
termos da lei, à ponderação do juiz. A Corte Superior aborda o tema com sabedoria, cuidando
de impedir que a previsão consumerista se torne verdadeira armadilha à participação do réu:

Direito Processual Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos morais e
materiais. Ocorrência de saques indevidos de numerário depositado em conta
poupança. Inversão do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade.
Hipossuficiência técnica reconhecida.
- O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa
do consumidor, estabelece que a inversão do ônus da prova será deferida quando a
alegação por ele apresentada seja verossímil, ou quando constatada a sua
hipossuficiência.
- Na hipótese, reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, em ação que
versa sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, mostra-se
imperiosa a inversão do ônus probatório.
- Diante da necessidade de permitir ao recorrido a produção de eventuais
provas capazes de ilidir a pretensão indenizatória do consumidor, deverão ser
remetidos os autos à instância inicial, a fim de que oportunamente seja
prolatada uma nova sentença.
Recurso especial provido para determinar a inversão do ônus da prova na espécie.”31

De todo louvável a providência do Superior Tribunal de Justiça. Invertido o ônus da


prova, ao fornecedor se deve conceder oportunidade para se desincumbir de tal atribuição. Em
havendo decisão posterior que entenda pela aplicação da medida, somente remetendo-se os
autos à primeira instância será possível sanar tamanha falha, necessitando-se, por fim, de uma
nova decisão de mérito.

5 CONCLUSÃO

Estudados os pontos centrais da matéria sob tutoria da mais abalizada doutrina, deve-
se atingir o resultado lógico de que a inversão, tal como está prevista no texto legal, merece
sérios reparos. Inseriu-se, no teor do Código de Defesa do Consumidor, norma de caráter

31
STJ, REsp 915.599/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2008,

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puramente processual, sem que se explicitasse, em dispositivo próprio, as limitações à


prerrogativa do art. 6° VIII do CDC.
Defende-se, em conseqüência, ser descabida e inteiramente impugnável a decisão
judicial que inverte o ônus da prova sem verificar, em caráter inequívoco, que o fornecedor
possuirá meios hábeis de cumprir o mister atribuído pelo juiz. Sendo impossível a prova ou
mesmo excessivamente difícil, de modo a ofender padrões de razoabilidade e
proporcionalidade, igualmente equivocado é o pronunciamento em favor da medida.
Deve-se afastar o argumento de que a proteção conferida ao consumidor deve
autorizar o juízo a julgar favoravelmente ao autor sempre que somente verossímeis sejam as
alegações autorais. A esfera de amparo ao consumidor deve encontrar seus limites na exata
ocasião em que, para protegê-lo perante o fornecedor, o juiz deva sacrificar injustificamente o
segundo, impondo-lhe ônus que, notoriamente, não poderá ser cumprido.
O anúncio da inversão é regra procedimental implícita que não admite
desconsideração. Identificando o juízo hipótese em que se possa autorizar o desvio de rota,
deverá este fazê-lo, anteriormente à instrução, com suporte em decisão autônoma,
satisfatoriamente fundamentada e passível de impugnação pelas vias cabíveis.

6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Vol. I. Trad. Adrián Sotero De
Witt Batista. São Paulo: Classic Book, 2000.
CIRIGLIANO, Raphael. Prova Civil: Legislação – Doutrina – Jurisprudência. Rio de
Janeiro: Forense, 1966.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v. 2. Salvador: Jus Podivm, 2007.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. III. 4 ed. São
Paulo: Malheiros, 2004.
GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo
as peculiaridades do caso concreto. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1168, 12 set. 2006.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8845>. Acesso em: 28 mar.
2009.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16 ed. São Paulo:

DJe 05/09/2008, grifou-se.

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Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 3, v. 7, jan./jun. 2009

Saraiva, 2003.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. t.
IV. Rio de Janeiro: Forense, 1974.
SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. v. IV. 6. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1994.
______. Prova Judiciária no Cível e Comercial. v. I. São Paulo: Limonad, [s.d.].

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