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a traducao vivida JOSE OLYMPIO ED RA IT 0 NOTA DO AUTOR O PRESENTE VOLUME nasceu de uma série de conferéncias sobre traducio, proferidas nas Aliangas Francesas do Rio de Janeiro, Sio Paulo e Porto Alegre em 1975 a convite do professor Jean Rose, delegado-geral da Alianga Francesa no Brasil, a quem agrade¢o cordialmente pelo precioso estimulo. Paulo Rénai SUMARIO O brasileiro Paulo Rénai (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira) 13 DEFINICOES DA TRADUGAO E DO TRADUTOR 19 Tradugao interlingual, intralingual, sociolinguistica e intersemidtica. Indecisdo do sentido das palavras, importancia do contexto, Traducio literal ou livre. ‘Tentativas de definir 0 que é tradugio. Quem e como se torna tradutor. Requisitos do tradutor ideal: conhe- cimento da lingua-alvo e da lingua-fonte, bom-senso, cultura geral, capacidade de documenta¢io. Frustragdes € compensagées do tradutor. Palpites para o aprendizado do oficio. Bibliografia minima. AS ARMADILHAS DA TRADUGAO AL A fé na existéncia auténoma das palavras. Husdes do Anstinto etimolégico. Perigos da polissemia. Emboscadas dos “falsos amigos”, Armadilhas do poliglotismo. Ci- ladas dos homénimos. Intraduzibilidade dos trocadilhos? A desatengio, outro perigo. O que sio os parénimos? A ‘Ainonimia, questao de estilo. Holdfrases e caracteristicas jonais. Incongruéncia das nogdes designadas pela mes- Wi palavra. Dessemelhanga das conotagdes. O problema Os Nomes prdprios: antropénimos, nomes simbélicos, |pocoristicos, adjetivos patrios e topdnimos. Metaforas vas e congeladas; sua tradugdo, adaptagao e condensagio. 3. OS LIMITES DA TRADUCAO 10 Os meios complementares da linguagem: recursos outros que nao a palavra. Utilizagio diferente dos sinais de pontuagao. Os pontos de exclamagio e de interrogagao. Papéis desempenhados pelo travessio. Expressividade das aspas. Citagdes disfargadas, Maidsculas e mintis- culas ideolégicas. Pontuagao individual. Reticéncias. Significado dos tipos de letras. Escolha de um alfabeto de preferéncia a outro. Valor conceptual da ordem das palavras. Quando se traduz 0 nao dito e se omite 0 dito. Mensagem em palavras nao nocionais: artigos, pronomes, numerais, conectivos. Questdes de tratamen- to: axiénimos, verbos de cortesia. Palavras estrangeiras. USOS E ABUSOS DA TRADUCAO Apogeu e decadéncia da tradugao entre nés. Influéncia prejudicial do best-seller. Remuneragao inadequada e pressa. Escolha do original. Recurso a um texto interme- diario, ou tradugdo de tradugio. Tradugdo a quatro mios. Tradugées através do portugués de Portugal. Tradug3o e adaptagdo. Alteragdes e corregdes do original. Vantagens e desvantagens do copidesque. A tradugao dos titulos, ou como verter textos sem contexto. AS FALACIAS DA TRADUCAO Utilidade relativa dos tratados. Duas tentativas de siste- matizagio. As perguntas que o tradutor deve formular. A tradugao preconizada por Jodo Guimaraes Rosa. O Hamlet, de Tristao da Cunha. Por que cada século volta a traduzir as obras classicas? A tradugio como reflexo da sensibilidade e das ideias de uma época. Onze tradugdes de trés versos de Virgilio comparadas com 0 original. Em que consiste afinal a fidelidade da tradugio? O que diria Thomas Diafoirus a Bélines se fosse brasileiro. 71 107 133 6. O DESAFIO DA TRADUGAO POETICA Deve-se traduzir poesia em verso ou em prosa? Diversas abordagens do problema. O que se perde na tradugio, exemplificado num rubai de Fitzgerald, em “Repouso” de Henriqueta Lisboa, em “Roma” de Cecilia Meireles, em “Poema de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade, e numas quadras de Fernando Pessoa. Dois extremos: 0 Puchkin de Nabokov e o Horacio de Ezra Pound. O problema das rimas estudado nas cento e tantas tradugdes do soneto de Arvers. O laboratério de Ladislas Gara e seus produtos. 7. SALDOS DE BALANCO. Minhas reminiscéncias de tradutor. Come¢o traduzindo odes de Horacio numa atmosfera saturada de influéncia latina. Mecanismo intimo da tradugao poética. Torno- me tradutor de letras htingaras em francés. Diferencas intrinsecas entre tradugdo e versio. Curiosidades da lingua hingara. Experiéncias de tradutor comercial e técnico. Como descobri a poesia brasileira. Dificuldade de aprender portugués na Hungria da década de 1930. No Rio de Janeiro, encontro providencial com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. O que foi a versio de Mar de histérias. Tradug3o a quatro maos e mais. A versio para © francés das Membérias de um sargento de milicias. O que fiz para difundir a literatura hiingara no Brasil. Outras tradugdes minhas. Estudos sobre teoria e técnica da tra- dugao e trabalhos conexos. i . A OPERACAO BALZAC Uma experiéncia de editoragio: A comédia humana, de Balzac. Concepgao e extensio dessa obra. A interdepen- déncia das partes e a volta das personagens. Um afresco da Franga do século XIX e uma suma da civilizag3o 155 189 213 u ocidental. Como nasceu a ideia de traduzi-la em portu- gués. Minha parte no empreendimento. Problemas de editoragao: escolha do original, unificacao das tradugoes, restabelecimento da divisio em capitulos. Para que estudos introdutérios e notas de pé de pagina? Harmo- nizagao dos ensaios criticos com 0 texto. Dificuldades especificas da tradugao: provérbios e anexins deformados, trocadilhos, anagramas, linguagens especiais. Lapsos € falhas. Fortuna da edigao. indice de assuntos, nomes ¢ titulos citados 12 239 O BRASILEIRO PAULO RONAI esse periodo, lembro-me de correr a vista pela extraordind- t ja “Pequena palavra”, de Joo Guimaraes Rosa, prefacial 4 fologia do conto hingaro, e logo na segunda linha encontro: uu autor — o brasileiro Paulo Rénai — é hiingaro, de lascimento e de primeira nacio.” Mantenho © titulo, contudo, a despeito da falta de ori- lidade. Sejamos verdadeiros — até pleonasticamente dadeiros — antes que mediocremente originais. Na | do Como aprendi o portugués, e outras aventuras, vemos que estou citando muito. Contravirei: € pouco, a § em conta a abundancia do que se tem escrito do AS meu apresentado; e cederei ao desejo de ainda transcrever © que daquela obra escreveu Carlos Drummond: O portugués, como o aprendi, Paulo R6nai conta, fagueiro. Outra faganha dele eu vi: aprendeu a ser brasileiro. E aprendeu bem depressa. Chegado ao Brasil em 1941, nio tardou muito que passasse a lecionar — 0 latim e o fran- cés, sobretudo — em colégios particulares, contatando com alunos e professores, e com 0 povo em geral. O contato com 0 povo comegava bem cedo, nos bondes, sobretudo os que levavam ao Méier, muito matinalmente. Bondes superlotados, por vezes; e nio raro devia R6nai viajar em pé, no estribo. Por sinal que, certo dia, vinha no estribo do veiculo, junto ao mestre, um passageiro alagoano, de verbo solto. Pés-se 0 meu conterraneo a conversar com o homem que viera da Europa — e nao tardou que o senso de humor, tao hungaramente vivo, de Paulo Rénai, se regalasse com esta preciosa informagao: Esti vendo aquele homem com quem eu falei? Pois é ala- goano, como eu. Eu sou alagoano, meu amigo. E tenho muitos conhecidos alagoanos. A bem-dizer, todo o mundo aqui é de Alagoas. Mas eu iria longe se fosse falar da biografia de Paulo Ronai, brasileiro que j4 o era bem antes de se naturalizar, 14 em 1945. Mais longe iria eu se pretendesse esmiugar-lhe a bibliografia: muitas dezenas de titulos e maior nimero de volumes. Sim, dezenas e dezenas, entre livros propriamente seus e livros que traduziu ou cotraduziu, e livros — é 0 caso, por exemplo, dos 17 volumes de A comédia humana, de Balzac — que prefaciou e enriqueceu com anotagdes.* Livros dos mais desvairados géneros. Porque a nin- guém melhor que Paulo Rénai — “reto, discreto, sdbio”, como lhe chamei, dedicando-lhe 0 Territério lirico — cabe a designagio de “homem de sete instrumentos”: professor, tradutor (sabe umas dez linguas, sem contar as universais), editor literario, antologista, autor didatico (boa por¢gdo de obras de francés e latim), critico, ensaista, conferencista (que jd tem andado pelo Brasil e pelo estrangeiro) e— ja o sabiam? — romancista (Le mystéve du carnet gris) e teatrologo (A princesinha dengosa, pega infantil). Homem dos sete instrumentos... Cumpre, alids, no seu caso mais do que noutros, nio tomar ao pé da letra a locugio — nem quanto ao nimero, nem quanto aos instrumentos. Pois 0 nimero nio se contém no limite dos sete da frase feita nem 4 palavra instrumentos se pode associar nenhuma ideia de misica. Nao deixemos 0 campo da metdfora; porque o homem, senhores, é antimelémano. Misica, 14 isso é com uma das filhas, Laura, flautista, tendo a outra, Cora, cam- biado 0 violino, em que ndo chegou a sentir-se plenamente realizada, pelo jornalismo, sobretudo literdrio, em que vem. pintando bem. Nem esquegamos Nora, a mulher de R6énai, *Mais de 12 mil. 15 cuja vocagdo musical o destino veio a torcer, fazendo-a arquiteta e professora. Talento, nessa gente, é mal de familia. Nas salas de aula ou de conferéncia, pelos jornais ou re~ vistas, no trato intimo, exerce Paulo Rénai um magistério sereno, sem énfase. Tem a arte de ser profundo parecendo apenas deslizar sobre os assuntos. E sutil sem afetag’io; eu o diria distraidamente arguto. Um clarificador, por exceléncia; um iluminador. Eo que se notara nas paginas de A traducao vivida. Nos ito capitulos deste volume — que nasceram conferéncias — nio é apenas do poliglota que o leitor tera ocasiao de aproximar-se ou reaproximar-se. £ também do humanista de largas fronteiras; do homem de perfeita formagio uni- versitdria europeia; do conhecedor seguro e certo de litera- tura; e da inteligéncia viva, vigilante, sempre a observar, a descobrir e apontar caminhos, a estabelecer ou sugerir solugées, a descer, nao raro, ao leitor, primeiramente, para depois, aos poucos, leva-lo até si. Principia definindo a tradugio e o tradutor. Fala das tradugées interlingual, sociolinguistica e intersemidtica, e dos requisitos do tradutor ideal. Com que finura trata dos “falsos amigos”! Ventila o problema da tradugio do tro- cadilho, e lembra, citando-se, que “esse jogo do espirito, tantas vezes julgado inferior, desempenha na literatura papel muito mais importante do que se pensa e aparece tanto em Platio como nos tragicos gregos, nas Escrituras como nos clssicos latinos, nos moralistas e filésofos mais severos”. Nao esquece a “linguagem silenciosa”, 0 emprego dos sinais diacriticos e da pontuacio, o uso de iniciais maitsculas ou 16 mintsculas, que “nao raras vezes obedece a intengdes que 0 tradutor deve saber despistar”, e a frequéncia das maitisculas na pena dos simbolistas. Quanta coisa inteligente e culta sobre a quadra de Goethe maltraduzida — maltraduzida porque dois dos tradutores dela “verteram escrupulosamente as palavras constantes do t no é a simples soma dos vocdbulos que o compoem”! xto”, sem Thes ocorrer que “o sentido de um enunciado Anda-se livro em fora, e aprendem-se as “vantagens desvantagens do copidesque”, e novidades acerca da idugao dos titulos, ou de “como verter textos sem con- Necessidade, ou a inconveniéncia, de notas do tradutor jplicativas de certos passos do original; nem a oportuni- de da tradugio infiel do titulo duma obra, como no de Vers V'armée de métier, do general De Gaulle, que portugués veio a dar... e a Franca teria vencido. lio acerca das tradugdes — em inglés, francés, italiano, hol, alemao, portugués — duns versos do livro IV da . Que feliz se mostra ele ao tratar da versio de uma do O doente imagindrio, de Moliére, interrompida por o§ de reticéncia, Rénai, adivinhando o que esta impli- 9 Nos pontinhos, propde uma tradugdo muito plausivel ilo que Moliére deixou no tinteiro. a que prosseguir na exposi¢do da exceléncia da obra? » quanto R6nai pensa e diz é — além de substancial- 17 mente importante — de uma textura tio sélida, tio bem- concatenada, em sua pura simplicidade, que nao é facil compendia-lo. Cumpre lé-lo na integra. Agrada-me particularmente encontrar, no sexto capitulo, “O desafio da traducio poética”, um completo, segurissimo exegeta de poesia. Toca-me, de modo muito especial, a andlise de original e tradugio do “Repouso”, de Henriqueta Lisboa, belissimo poema cujos segredos e sutilezas Ronai viu de todos os Angulos, visitou sem perder 0 minimo tra¢o, aprofundou e iluminou com espantosa mestria. Mestria larga e variada. Mestria em literatura, em lin- guas, em tudo que ficou dito — e na arte da amizade. O mestre perfeito, “reto, discreto, sabio”, é também, de quebra, amigo perfeitissimo. Custa-me escrever a seu respeito. Qua se 35 anos de amizade — plenos, inteiros, sem lacunas ou fissuras. Nao sei, dele tratando — do homem ou do escritor —, senio louva-lo. Mas firmemente creio que com isto nio lhe fago favor. Grande brasileiro, o brasileiro Paulo Rénai. Rio de Janeiro, novembro de 1975 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira 18 1. DEFINIGOES DA TRADUGAO EDO TRADUTOR Tradugo interlingual, intralingual, sociolinguistica e intersemidtica. Indecisio do sentido das palavras, impor- tancia do contexto. Tradugao literal ou livre. Tentativas de definir 0 que é tradugdo. Quem e como se torna tradutor. Requisitos do tradutor ideal: conhecimento da lingua-alvo e da lingua-fonte, bom-senso, cultura geral, capacidade de documentagao. Frustragdes e compensa- ¢6es do tradutor. Palpites para o aprendizado do oficio. Bibliografia minima. TRADUGAO DE que este livro trata é a interlingual, isto é, -reformulacio de uma mensagem num idioma diferente laquele em que foi concebida. Quer dizer que dele esta cluida qualquer outra operacdo intelectual a que o termo iducao se possa aplicar em sentido figurado. Ao vazarmos em palavras um contetido que em nosso nsamento existia apenas em estado de nebulosa, fendme- constante em todos os momentos conscientes da vida, mos também traduzindo, mas praticamos a tradugao 19 intralingual, operac3o esta que tem as suas proprias dificul- dades e cujo resultado muitas vezes nos deixa insatisfeitos. Além disto, estamos traduzindo também quando, através das formulas usadas por nosso interlocutor em obediéncia a convenges sociais, tentamos descobrir 0 seu pensamento verdadeiro. Valendo-nos de nossa experiéncia de todos os dias, praticamos a tradugio sociolinguistica ao interpretar por “nao” a frase tao brasileira “Esta dificil”, quando a recebemos numa repartigio qualquer em resposta a uma pretensao nossa. Pode-se falar, enfim, de tradugio intersemidtica, aquela a que nos entregamos ao procurarmos interpretar 0 signifi- cado de uma expresso fisionédmica, um gesto, um ato sim- bélico, mesmo desacompanhados de palavras. Eem virtude dessa tradug’o que uma pessoa se ofende quando outra nio The aperta a mio estendida ou se sente a vontade quando lhe indicam uma cadeira ou lhe oferecem um cafezinho. Excluidas estas trés Gltimas formas de tradugio, volta- mos 4 propriamente dita, a que chamamos de interlingual. E ainda um campo vasto demais para ser examinado em sua totalidade; assim estas consideragdes visam sobretudo 4 tradugio literdria, acenando apenas acessoriamente as variantes cientifica, técnica, comercial, cinematografica etc. A maioria das pessoas, quando pensa em tradugio, faz ideia de uma atividade puramente mecanica em que um individuo conhecedor de duas linguas vai substituindo, uma por uma, as palavras de uma frase na lingua A por seus equivalentes na lingua B. 20 Na realidade as coisas se passam de maneira diferente. As palavras nao possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto, e por estarem dentro desse contexto. B frequente ver citados em obras de linguistica casos de ambiguidade curiosos como estas trés oragdes: a) She jade Harry a good wife; b) She made Harry a good husband; ¢) She made Harry a good cake [“Ela a) foi uma boa mulher ara H.; b) fez de H. um bom marido; c) fez um bom jolo para H.”]. Na verdade, quase todos os vocdbulos ito sujeitos a ambiguidades semelhantes. Ao ouvirmos jpenas a cadeia sonora formada pelos sons que compdem nossa palavra “ponto” — de que mestre Aurélio consigna, seu Novo diciondrio, nada menos de 44 acep¢Ses principais , nio sabemos se se trata do pedago de linha que fica entre furos de agulha ao coser; ou da interse¢do de duas linhas; de parte da matéria ensinada; ou de sinal de pontua¢do; ou parada de Snibus; ou de livro de presenga; ou de empre- lo de teatro que sopra aos atores etc.! Bla s6 adquire sentido gragas as demais palavras que lhe associadas em enunciados como “costurar um rasgdo ; “tragar uma linha entre dois pontos”; , “esperar o énibus no ponto”; “assinar alguns pontos' dar um ponto’ 1 ito”; “precisar de ponto para recitar um papel”. S6 pela periéncia do portugués, em particular dos contextos ¢ a palavra ponto pode figurar, o tradutor conseguird qualquer desses enunciados, para depois, em virtude licidade de sentidos do vocabulo é, alis, explorada de maneira divertida indo Verfssimo em sua crénica “Pontos”, incluida no volume O popular. 21 do seu conhecimento de outra lingua, formular enunciados equivalentes nesta altima. O que acabamos de dizer a respeito das palavras vale também em relagio a frases inteiras. Em alemao Er hat es zum Minister gebracht quer dizer “Ele chegou a ministro” ou “Ele levou o assunto ao ministro”? A diivida sé se esclarece dentro de um contexto maior. Entendido assim, o papel do tradutor torna-se singular- mente mais importante; perde o que tinha de mecinico e se transforma numa atividade seletiva e reflexiva. Candidatos a tradutor costumam perguntar a quem os contrata se devem fazer traducio literal, mot a mot, ou tra- dugio livre. Na verdade nao existe tradugio literal. Uma frase latina tio simples como Puer ridet deve ser traduzida em trés palavras por “O menino ri” ou “Um menino ri”, embora nenhum diciondrio do mundo dé como equivalente de puer “o menino” ou “um menino”. A Je vous en prie cor- responde em portugués “por favor”; a so long e a arrivederci, “até logo”; a Ministére des Affaires Etrangéres, “Ministério das Relagdes Exteriores”. Ora, ninguém pode qualificar essas tradugdes de livres, j4 que representam as tnicas versdes possiveis, exatas e fi¢is das formulas originais. Dai resulta que a nogio de fidelidade implica talvez menos aderéncia as palavras da lingua-fonte do que obediéncia aos usos e as estruturas da lingua-alvo. Esses exemplos singelos mostram, em sua diversidade, por que é dificil elaborar um cédigo ou um manual da traducao. As aplicagdes possiveis de qualquer palavra sio 22 intimeras e imprevisiveis; o fluir continuo da lingua passa ondas sempre novas. De mais a mais, o profissional que Juz um texto em portugués para o inglés nio tem de ncés. O ensino da tradugio sé pode partir de exem- concretos e deve ter em vista, sobretudo, flexibilizar lente do tradutor e manté-la em estado de alerta para -saiba lembrar precedentes ou, se for 0 caso, inventar Essa problematica se complica ainda mais quando o texto aduzir é de carter literdrio. Ai o tradutor deve utilizar 8 Seus conhecimentos de técnico para conseguir efeitos de tividade ser considerada arte? Quais as qualidades especiais if j@ requer? Qual é a consideragdo que merece? Ao definirem “tradugdo”, os diciondrios escamoteiam. dentemente esse aspecto e limitam-se a dizer que “tra- isinho sarcastico as cincadas e os contrassensos em livros aduzidos; os préprios tradutores, sobretudo, desespera- los com os impasses de seu oficio, tém recorrido a similes 23 muitas vezes pitorescas e surpreendentes, as quais reuni uma pequena cole¢io no decorrer dos anos. A comparagio mais ébvia é fornecida pela etimologia: em latim, traducere é levar alguém pela mio para 0 outro lado, para outro lugar. O sujeito deste verbo é 0 tradutor, o objeto direto, o autor do original a quem o tradutor intro- duz num ambiente novo; como diz Jules Legras, “traduzir consiste em conduzir determinado texto para o dominio de outra lingua que nio aquela em que esta escrito”. Mas a imagem pode ser entendida também de outra maneira, considerando-se que é ao leitor que o tradutor pega pela mio para lev-lo para outro meio linguistico que no o seu. Conforme adotemos uma ou outra dessas maneiras de ver, a tradu¢io devera corresponder a exigéncias diversas. Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente lin- guistico significa querer adaptd-la ao maximo aos costumes do novo meio, retirar-lhe as caracteristicas exdticas, fazer esquecer que reflete uma realidade longinqua, essencial- mente diversa. Conduzir o leitor para o pais da obra que 1é significa, ao contrério, manter cuidadosamente 0 que essa tem de estranho, de genuino, e acentuar a cada instante a sua origem alienigena. Assim as duas interpretagdes da palavra tradugdo abrangem até as duas variantes extremas a que ela pode ser aplicada: a tradugio naturalizadora, de que seria exemplo a versio portuguesa de Don Quijote por Aquilino Ribeiro, e a tradugio identificadora, exemplificada pelas tradugées de Virgilio por Odorico Mendes ou, mais recentemente, pela versio francesa da Eneida por Pierre Klossowski. 24 indo vender o seu peixe, os tradutores de todos 1 encarecido a utilidade de sua agile, quebra a casca para podermos comer a améndoa; que a cortina de lado para podermos olhar para dentro lugar mais sagrado; que remove a tampa do pogo para rmos chegar a Agua. m, j4 no mesmo século, Dryden, tradutor ilustre da de Virgilio, queixou-se da maneira desdenhosa por seus colegas eram tratados. ;omos escravos e trabalhamos na lavoura de outrem; ivramos a vinha, mas o vinho pertence ao proprietario; ‘AS vezes o solo é maninho, podemos estar certos de ser- ‘astigados; se é fértil e o nosso trabalho da resultado, © nos agradecem, pois 0 leitor arrogante dira: O pobre caracterizar as dificuldades da profissio dizia que era como dangar na corda bamba de pés acor- Gide, tradutor ele mesmo, comparou a profissio picador que pretendesse levar 0 proprio cavalo a movimentos que ndo lhe fossem naturais. 25 Irreverente, Goethe assimilou os tradutores a “alco- viteiros que nos elogiam uma beldade meio velada como altamente digna de amor e que excitam em nés uma curio- sidade irresistivel para conhecermos 0 original”, pilhéria que s6 nao deve ofender os tradutores por ter sido 0 proprio Goethe um deles, e porque, embora nao lhes reconhecesse outro mérito, lhes fazia justica ao admitir que despertam o desejo de se ler a obra original. Frequentemente o original foi comparado a alma ea sua versio ao corpo; a nio ser que ele fosse identificado com o corpo e a versio com 0 traje. Para Cervantes, a tradugio seria 0 avesso de uma tape- caria. Ao nosso contemporaneo Helmut Braem, por sua vez, ela aparece como uma nova tapegaria tecida de acordo com um modelo dado. Mais de uma vez 0 tradutor tem sido comparado a artistas: ao cantor que canta uma cangio escrita por outro, ao musico que num instrumento toca uma misica escrita para outro instrumento (mme. de Staél), ou que decifra e “reescreve” toda a partitura; ao maestro que rege composi¢des alheias; ao escultor que tem de executar noutro material qualquer a copia de uma estdtua de marmore (Werner Winter); ao pintor que copia em dleo um pastel; ao ilustrador de um livro; ao ator que encarna os mais diversos papéis (Juliusz Zulawski); ao fotdgrafo que de um quadro de museu tira uma foto colorida (Ernesto Sabato), ou bate uma chapa de uma estitua (Michael Reck) e, fazendo entrever a dificuldade de sua tarefa, a um artista plastico que tivesse de transmudar uma misica em quadro ou em estitua (Maurice Baring). 26 ine, galhofeiro, achou que traduzir poesia era empa- raios do Sol. (E fazer poesia nao é a mesma coisa? nta Renato Poggioli, que pesou e comentou muitas jegados a um impasse depois de outro, quantos pro- lonais ndo se compararam a Sisifo ou a Tantalo, duas . E André Mirabel considerava 0 papel em que se ja a tradugdo como um leito de Procusto. (Inde- temente dele, o nosso Guimaraes Rosa chamava \eustos” na correspondéncia com seu tradutor alemio, eyer-Clason, os trechos particularmente dificeis de para outra lingua.) o tradutor moderno, Yehuda Amichai, achou que a em tradugdo era beijar uma mulher através de John Lehmann que falar em tradugio era como ar sobre o vidro de um quadro, quando o que devia 0 polizar a nossa atengdo era evidentemente a pintura. uve também quem assemelhasse 0 ato de traduzir A, rower, Nova York, Oxtord University Press, 1966. 27 — tt Denham, em 1656, com séculos de antecipacio, respondera que a poesia era um liquido tio fino que, transvasado de um idioma para outro, se evaporava todinho. Kenneth Rexroth considera 0 tradutor um bom advo- gado ao servico do autor, antes que o bastante procurador deste; Meyer-Clason chama-lhe um advogado de dois clien- tes, um corretor de cambio na bolsa de dois idiomas — bem mais generosos do que mme. de La Fayette, que encarava 0 mau tradutor (ainda bem que s6 0 mau!) como um criado bronco que repetia 4s avessas uma mensagem importante que lhe fora confiada, ou Lope de Vega, que assemelhava 0 tradutor fout court a um contrabandista de cavalos. Em oposi¢gd0 aos que o consideram a mera sombra do autor ou um escravo obediente a seu servi¢o, ha quem veja nele um autor frustrado. Foi dito, ainda, que o tradutor é um plagidrio que pra- tica a Gnica forma legitima do plagio, ou um artista timido que s6 consegue vencer as suas inibic¢des em féte-d-téte com outro artista. O j4 citado Renato Poggioli define-o, por seu turno, como personagem em busca de um autor com que possa identificar-se. Ou, mais poeticamente, como uma vasilha viva saturada de um fluido que derrama no reci- piente mais apropriado, embora nio feito por ela nem de sua propriedade. Visto 0 que seu empreendimento tem de quimérico, © tradutor foi ainda assimilado ao alquimista, aquele que sonha com a transmuda¢io dos metais em ouro e acaba reduzindo o ouro a barro; mas nao, objetam outros, aquele que transforma um pedago de ouro noutro pedago de ouro. 28 Corre assim, através dos séculos, um didlogo incessante ntre os que atacam o tradutor e os que Ihe tomam a defesa. he no rosto: “Como, cavalheiro? Entio hé vinte anos que ) senhor nao pensa?” E acrescenta: “Se viver traduzindo a da infidelidade aos cultores do oficio. Poderia con- lar-nos o fato de ser impossivel traduzir esse anexim em walquer outra lingua; mas, infelizmente, tem tanta graga jue todo o mundo o aprende, ainda que nio saiba italiano. ¢ é confirmado pelo chiste, de atribuigdo incerta, de que adugdes sio como as mulheres: quando fiéis, nao sio nitas; e quando bonitas, nao sao figis. De todas as compa- Bes siio essas duas as que mais pegaram, e é lembrando-se que o tradutor, esse modesto artista, “o tnico que porta como se fosse artesio”, procura justificar-se, efacios, esclarecimentos, adverténcias, notas, réplicas icios, tentando a apologia, encarecendo a utilidade Oprio servigo, pedindo a compreensio e a paciéncia do it} € ds vezes, consciente de sua culpa, implorando o {iio do autor que vertera, como Nabokov o de Puchkin, de Ihe ter traduzido para o inglés 0 romance em Tevgueni Onieguin: ir 29 O que é uma tradugio? Numa travessa A cabega do poeta, pilida, de olhar fixo. Comparaison n'est pas raison, dizem os franceses, e real- mente é dificil reduzir tantas imagens a um denominador comum. Mas todas essas analogias deixam entrever a com- plexidade intrinseca da atividade tradutora, de que tenta- remos apresentar alguns problemas. Examinemos primeiro a personagem que se atreve a em- preender semelhante tarefa. Em principio, seria de supor que as editoras escolhessem individuos particularmente capazes de executd-la apds haverem-lhe verificado a idoneidade por meio de testes; e que s6 se dedicassem a tradugdes literdrias pessoas especialmente interessadas em literatura, dotadas de sensibilidade artistica, e com profundo conhecimento de ambas as linguas. O que, porém, acontece na realidade é algo diferente. As editoras — salvo excegdes respeitaveis — estio interessadas em contratar tarefeiros que executem determinada tradugio dentro do menor prazo possivel e pelo menor preco possivel. Quanto aos candidatos a tradutor, em geral procuram essa espécie de ocupa¢do nao por uma simpatia especial, mas por se tratar de bico que pode ser executado em casa, nas horas de folga, e assegura uma ren- dazinha suplementar ainda que magra. Dai o desprestigio que envolve a profissio. Sabemos que, em caso de reedigao, © editor paga outra vez ao autor, mas o tradutor é deixado de lado. E por pedirem-lhe um trabalho rapido, pago a um 30 por linha, comumente o tradutor pouco se preocupa jualidade, tanto menos quanto o seu trabalho rara- é examinado e quase nunca criticado. Entre nés, ha ite anos, um intelectual mineiro de sélida cultura e conhecimento de linguas manteve, durante algum 9, no Didrio de Noticias, uma seco consagrada ao exame dugdes:? a segdo morreu dada a falta de interesse dos es, que preferiam ndo mandar a Agenor Soares de as suas novidades traduzidas. maioria das vezes a tradugio é feita por escritores, que os editores tém mais 4 mio, quando nio pelas pobres, os tios invalidos ou as cunhadas desocupa- ada. Mas ainda que seja ele mesmo 0 autor do tra- nem sempre a sua qualidade de escritor constitui uma tia. O que normalmente acontece é um ficcionista, yoeta Ou um jornalista aceitarem traduzir um livro , inglés ou castelhano, pelo fato de estarem habitua- ler obras escritas nesses idiomas. Os mais inteligentes ‘ienciosos nao tardam a reconhecer a sua falta de © e tentam supri-la por meio de estudos, pesquisas, Ailtas a pessoas e livros; os mais limitados nem percebema ‘a de dificuldades e vio galhardamente matando cen- le paginas, seguros da impunidade. Se acaso acontece de fo com prazer que © PEN Clube brasileiro, ha alguns anos, instituiu 0 le Tradugo Agenor Soares de Moura para a melhor tradugao do ano em ma esse grande trabalhador intelectual. 31 alguém descobrir gafes numa de suas tradugées, eles opSem. as criticas o argumento de haverem traduzido dezenas de volumes sem nunca terem enfrentado uma reclama¢io. Desviemos o olhar dessa realidade e consideremos o tradutor como ele devia ser. O primeiro requisito que deve possuir é o conhecimento profundo da sua lingua materna, para a qual ele traduz. Quando, ao reler a pagina que acaba de verter, ele topa com uma frase que no soa bem, tera nisso critério quase infalivel do erro cometido. Uma pessoa que no tivesse facilidade natural na sua propria lingua nunca se deveria abalancar a fazer uma tradugdo. Mesmo um punhado de erros de interpretagdo nio inutiliza de todo uma tradu¢ao (j4 que é humano errar, encontramo- los as vezes em trabalhos dos melhores profissionais); em geral os leitores passam por eles sem percebé-los e vio prosseguindo a leitura. Mas um vernaculo desajeitado, emperrado ou pedante, pesadao ou incorreto dificulta a leitura e pode chegar a interrompé-la de vez. (Esse conhecimento sdlido da prépria lingua, critério certo de toda educacgio humanistica, consegue-se — ja se vé — mediante a leitura atenta e continua dos bons autores, pela frequentacao de livros inteligentes sobre o préprio idioma, pelo estudo incessante dos meios de expressio.) Claro, o conhecimento da lingua de partida € parte indis- pensavel da bagagem do tradutor. Ai, porém, ha concessdes. Muitas vezes nasceram traducées relativamente boas feitas de linguas que os tradutores nio falavam. Muitas vezes esses 32 ua de partida apenas um estudo livresco, sem em © pais onde ela é falada. Em diversos paises mas versdes de Shakespeare devidas a poetas que mM uma palavra sequer de inglés e executaram a om sangue, suor e lagrimas, e consulta constante aos nirios e aos léxicos, alcancando resultados notaveis; em compensa¢io, outras, feitas por professores de que, apesar de bons, nao sabem a lingua materna, pilaram apenas trabalhos escolares, insulsos, ilegi- E no caso de obras gregas e latinas, 0 conhecimento Jingua-fonte, por mais sdlido que seja, é quase sempre nas passivo. Semelhante conhecimento se adquire por de leitura e pela pratica da propria traducdo, se ao sional nao lhe faltam as virtudes cardeais da humil- e da curiosidade. Desconfio do tradutor que se gaba ) transportar qualquer texto de uma lingua para outra 4 imeira vista, com facilidade igual, sem jamais recorrer s diciondrios. O maximo a que ele deve aspirar nio é ber de cor uma lingua estrangeira (pois nunca se chega eonhecer a fundo nem sequer a materna) e sim a adquirir sexto sentido, uma espécie de faro, que o advirta de estar 6 assim o conhecimento direto do outro idioma podera iprido pelo instinto linguistico e pelo folhear inteligente diciondrios e demais obras de consulta. 33 sumo, 0 tradutor deve conhecer a lingua estrangei- rao bastante para desconfiar de cada vez que a compreensio insuficiente de uma palavra ou de um trecho obscurece o sentido do conjunto. Ao ler, por exemplo, na descrigio de um jogo de prendas, Je donne ma langue au chat, o tradutor, se nio conhece a expressio, sentird que é impossivel entendé-la ao pé da letra e tentar localiz4-la no diciondrio, até en- contrar no verbete correspondente a um de seus elementos, provavelmente chat, a explicagio: “Desisto de adivinhar.” Outro componente mais indispensdvel de sua aparelha- gem talvez seja o bom-senso. Ele deverd partir da suposigio de que o texto que lhe cabe verter tem um sentido no origi- nal; se, relendo a pagina que acaba de traduzir, encontrar um. trecho que ele mesmo no entende ou que The soa absurdo, © jeito sera recomegar. Perceber que 0 auxilio dos dicio- narios nao resolve uma diivida, que a solugio encontrada nio corresponde ao espirito da lingua-alvo ou que poderd dar lugar a ambiguidade; que o proprio autor cometen um erro; que 0 leitor nio podera entender a interpretagio sem a ajuda de uma explicacdo suplementar ou uma nota; que certos trechos precisam de tradugdo mais livre que outros... tudo isso é fungdo do bom-senso. Ao encontrar, num didlogo em francés moderno, a locugio par exemple, acompanhada de ponto de exclamagio, nio seguido de exemplos, 0 profissional capaz de raciocinar chegara natu- ralmente a conclusao de que ela ndo equivale a por exemplo, mas a alguma exclamagio do tipo de “ora essa!” E, porém, dificil dizer como se consegue esse ingrediente. Ai é que os 34 cursos de tradugdo poderiam vir em auxilio de seus 9s pelo comentario e andlise de tradugées jé publicadas, lo os casos onde a sua falta redundou em prejuizo, a © conhecimento étimo do préprio idioma, a posse 1enos razoavel do idioma-fonte e uma boa dose de }© sdio apenas as trés primeiras condi¢des. Deve ‘adutor literério possuir uma cultura geral que bilite identificar os lugares-comuns da civilizacio, 8 que estes se transformam em outras tantas arma- ma curiosidade inteligente, uma desconfianga alerta sio condigGes indispensaveis: sendo, 0 nosso lato verterd Mémoires de Saint-Simon por “Memérias 9 Simao”, pensara que les trois glorieuses eram trés em se lembrar de que se deu esse nome aos trés dias ido, alias Gri-Bretanha, coisa bem diferente da tout court). Deverd ele ainda saber que os france- Vienne nao somente a capital da Austria, mas do Sena, mas também a sede do Ministério is Relagdes Exteriores; que a city de Londres e a siio duas coisas totalmente diversas. Lembrar4 para os franceses Genes é Génova, ao passo que 35 gindsio no Brasil, o aluno, aprovado na terceira série, passa x a . compensagées outras que ndo as financeiras. Se 0 para a segunda e nao para a quarta.* . . Iho ndo trouxesse em si mesmo o seu prémio, Goethe Jé compreendemos que o tradutor que aspira a ser um i * Y . Se J , ee . ia vertido Diderot para 0 alemio, Mérimée nio se bom profissional tentar4 familiarizar-se, igualmente, na . . a z Vane tia empenhado em introduzir os classicos russos na medida do possivel, com os costumes, a historia, a geogra- . Le ; a a, Baudelaire nio se houvera debrugado meses a fio fia, o folclore, as instituigdes do pais de cuja lingua traduz, . . . — , . as novelas de Edgar Allan Poe, Rilke nao transporia além de se munir da indispens4vel cultura geral. De mais oe ' . _. . . em sua propria lingua. Na realidade a tradugio é 0 a mais devera saber adquirir uma especializagio ad hoc no i a = , e, talvez, o tinico exercicio realmente eficaz para caso de cada obra algo dificil que Ihe confiam. Se tiver a sorte de traduzir Salambé, de Flaubert, dé-se o trabalho de ler previamente uma histéria antiga e de se informar sobre Cartago; se tiver de verter Jean Barois, de Roger Martin du penetrar na intimidade dum grande espirito. Ela iga a esquadrinhar atentamente o sentido de cada a investigar por mitido a fungio de cada palavra, em : reconstituir a pai: Gard, enfronhe-se no caso Dreyfus; e caso 0 convidem a . paisagem mental do nosso autor e a traduzir Jean Christophe, de Romain Rolland, tire logo o corpo fora, se ndo possuir boas nogdes de miisica. Mas nao é exigéncia demais em se tratando de oficio comumente malpago.e pouco prestipiado? Em O barbeiro © direto aplicado ao ensino das linguas modernas, o de Sevilha, Figaro perguntava ao seu amo: “Aux vertus qu’on da tradugao esteve ausente de nossas escolas. Antes exige d’un domestique, votre Excellence connatt-elle beaucoup de ensinava-se com muito empenho, em especial na maitres qui fissent dignes d’étre valets?” Parodiando esta frase, na Inglaterra e na Alemanha, a tradu¢io dos clés- podemos perguntar: “A considerar as virtudes que se pede a um tradutor, haver4 muitos escritores que fossem dignos de ser tradutores?” Contudo, nio obstante a remunerac¢io insuficiente ou nula, muitos grandes escritores de todos os tempos empreenderam trabalhos de tradugdo muitas vezes com prejuizo da propria obra. Evidentemente 0 oficio deve bretudo dos da Antiguidade grega e latina. Apesar 0 intelectual, quando bem-conduzido, desenvolvia ira o senso linguistico. A andlise sintdtica, tan- ridicularizada, aplicada a um complexo periodo ) podia levar a capacidade de interpretagio ao mais |. Haver enigma de maior sedugio do que uma latina de que se identificaram todas as palavras e rela~ *No sistema educacional francés, o colléye corresponde aos quatro iiltimos anos de easing furidaniental beadieino, (Ni da B) titicas, mas que, apesar disso, s6 entrega o proprio lo @ quem se mostra capaz de extraordindrio esforco 3€ 37 jas tradugdes da mesma obra; quarta, a comparagao de nio foi substituido por nenhum outro. fersio portuguesa com uma versio numa terceira | de concentragio mental? Abolido esse tipo de exercicio, | Para suprir essa capacidade perdida, estio surgindo que se conhece, e assim por diante. cursos especializados de carater pratico, a comegar pelos mada sistematica de notas, a organizacdo de uma de tradutor e intérpretes no ensino médio, mas tampouco equivaléncias, de um rol de termos especificos do uma relagio de frases feitas ou locugées figuradas uuem o complemento racional desse método. eles podem fornecer uma formagio completa, assim como uma faculdade de Engenharia ou Arquitetura nio langa profissionais experimentados. Por outro lado, ndo hi mui- Necessdrio acrescentar a exigéncia dbvia de o tra- tos manuais acessiveis em portugués, destinados a ensinar ilo parar de estudar a lingua de sua especializagio, | como se traduz.* tar todas as ocasides de lé-la, ouvi-la, fala-la e Eis por que a boa utilizagao das tradugées existentes ea ? De se manter em dia com a evolug¢io e as no- execugdo paciente de exercicios devem e podem comple- seu proprio idioma? De permanecer atualizado, tar o uso desses manuais. Assim, o candidato a tradutor nia com a sua época? empreende, a titulo de exercicio, a versio de alguma obra j4 traduzida em portugués; depois, compara a propria tradugio | com a traducio alheia, verifica os erros que cameteu, os i deslizes, as inexatidées, as faltas de elegincia. Depois disso, ej armado com as ligées desse confronto, poder proceder A tradugio de outro capitulo, ou de outra obra. Pratica no menos util é o simples confronto critico de | qualquer tradugio com 0 original; uma terceira, a comparagio Bis alguns titulos: Albert Audubert. Do portugués para o francés, 2 ed., Sdo Paulo, Difusio Europeia do Livro, 1970; Ch. Bouscaren ¢ A. Davoust. O inglés que voc | ppensa que sabe, Rio de Janeiro, Educom, 1975; Jean Maillot. A tradugdo cientifica e | técnica, S¥o Paulo, McGraw-Hill do Brasil, 1975; Georges Mounin. Os problemas tedricos da tradusao, Sio Paulo, Cultrix, 1975; Paulo Rénai, Guia pritico da traduydo francesa, 2! ed., Rio de Janeiro, Educom, 1975; Escola de tradutores, 4 ed., Rio | de Janeiro, Educom, 1976; Agenor Soares dos Santos. Guia pritico da traduyio inglesa, Rio de Janeiro, Educom, 1977; Brenno Silveira. A arte de traduzir, Sio Paulo, Edigdes Melhoramentos, s.d.; Erwin Theodor. Tiadusdo: Oficio ¢ arte, Sio Paulo, Cultrix, 1976. 38 2. AS ARMADILHAS DA TRADUCAO fé na existéncia auténoma das palavras. Iusées do instinto etimoldgico. Perigos da polissemia. Embos- cadas dos “falsos amigos”. Armadilhas do poliglotismo. iladas dos homénimos. Intraduzibilidade dos trocadi- Thos? A desaten¢ao, outro perigo. O que sio os parénimos. sinonimia, questao de estilo. Holdfrases e caracteristicas ionais. Incongruéncia das nogdes designadas pela mes- a palavra. Dessemelhanga das conotagdes. O problema nomes pr6prios: antropdénimos, nomes simbélicos, LHO DO tradutor passa por um caminho ladeado dilhas. Até os melhores profissionais guardam a M0 inconsciente de que a cada palavra de uma lingua ente corresponde outra noutra lingua qualquer. a essa ilusio o recurso constante aos dicionérios, 41 onde, por motivos de comodidade pritica, os vocdbulos se io de nio repousarem sobre nada, de puros e ab- acham em ordem alfabética, soltos de contexto e seguidos lomerados convencionais de silabas, palavras de definig’o. 4 Ortografia, com suas anomalias demasiadamente Como dissemos, a palavra existe apenas dentro da frase, e parecer-lhes um quebra-cabega infernal. Efeti- no espirito de quem sabe do parentesco entre pére na composi¢io desta. Ainda que dois vocdbulos de duas l, mere e maternel, main & manceuvre, estas palavras linguas sejam definidos de maneira igual, os enunciados eo seu sentido depende dos demais elementos que entram adas e, portanto, de um emprego mais facil. Essa de que eles podem fazer parte ndo so os mesmos, nem as onsciéncia etimolégica permite, nio raro, adivinhar conotagdes que evocam serao iguais. icagdo da palavra estrangeira vista pela primeira vez; Isto é verdade mesmo no caso de palavras da mesma N60 em duas linguas da mesma familia palavras da origem e de forma suficientemente proxima para revelar 0 gem tém quase sempre evolucio diferente, ela parentesco A primeira vista. Assim 0 nosso vocabulo “cé- submetida a permanente controle. Uma pessoa pia” existe em francés, italiano e inglés sob forma quase na de instrucdo razoavel facilmente descobrira o igual, no sentido de “imitagao”, “reprodugao”. Mas copie em francés designa, além disto, trabalho escrito de aluno, “seo dos verbos préter e “prestar”; mas sé o estudo e ‘icio do portugués lhe ensinardo que préter de l'argent assim como manuscrito entregue 4 tipografia de um jornal, star” e sim “emprestar dinheiro”. Poste e “posta” acepgdes que faltam a copia em italiano e a copy em inglés; ntemente o mesmo vocabulo; mas, no seu sentido em compensag¢io estas duas palavras possuem o sentido de m, poste € vertida em portugués por “correio”. exemplar, que falta em francés e portugués. c Uma das principais culpadas das cincadas de tradugio éa etimologia. CO instinto etimologizador, que existe em todos nés, se é ’ guarda em portugués 0 mesmo sentido primor- francés respect; mas a acep¢ao “ponto de vista” um auxiliar precioso, pode também produzir enganos. Sem “a esse respeito”) é-lhe peculiar. O portugués divida, tinha razio de sobra Valery Larbaud ao escrever ) italiano fatto sio facilmente relaciondveis; mas s6 4 que a etimologia era o sal das linguas literdrias, pois s6 ela sssas formas cabe o sentido de “terno completo” dava sabor e duragio ao material verbal, acrescentando que bem maior em Portugal que no Brasil. tinha pena das pessoas que, nio sabendo latim, ignoravam, ersificagio do sentido, a que se di o nome de as etimologias. Para elas todas as palavras devem dar a faz com que a uma palavra possam corresponder 42 43 diversos equivalentes segundo 0 contexto. Ora, palavras cognatas de duas linguas quase nunca apresentam polissemia no mesmo grau. O nosso vocdbulo “mio” na maioria dos casos se traduz em francés por main; mas quando se refere a direcio de transito, deve ser vertido por sens. Office em francés e o nosso “oficio” possuem ambos as acep¢des de “fungio”, “tarefa”, “cargo”. Mas o sentido de “escritério” € exclusivo do francés e 0 de “carta de repartigdo publica”, do portugués. Para “miseravel” o inglés tem duas palavras da mesma origem: miserable, sindnimo de “digno de com- paixdo” ou “desprezivel”, e miser, sinénimo de “sovina”, “unha de fome”. E claro que a polissemia nao constitui perigo apenas quando se trata de termos cognatos. Abro ao acaso 0 Diciond- rio inglés-portugués de Leonel ¢ Lino Vallandro, e no verbete slip encontro, entre muitas outras, as acep¢des “escorrega— dela”, “erro”, “tropeco”, “fuga”, “fronha de travesseiro”, trela de ‘calgdo de banho”, “andgua”, “bibe de crianga”, ‘plano inclinado”, a cio”, to”, “patins de trend”, “tira de papel”, “bilhete”, “banco corrediga”, ‘rampa de langamen- ” de igreja”, substantivo, pois ha também o verbo to slip e 0 adjetivo slip. ‘enxerto”. E isto apenas como equivalentes do Quantos alcapdes para um sé tradutor! Naturalmente, os bons diciondrios como esse registram em separado as diversas acep¢des de um vocabulo; mas para tirar deles o proveito possivel cumpre ter boa dose de des- confianga, que s6 se adquire no decorrer de longa pratica. HA, alias, diferengas sutis ndo consignadas nos dicionarios. O francés vagabond traduz-se em portugués por “vagabundo”; 44 jis este tem uma conotagdo pejorativa que falta 4 variante neesa, e, portanto, se verteria para o francés, em muitos , por uma palavra totalmente diversa. polissemia faz com que a uma palavra do idioma A spondam duas palavras no idioma B. A nossa palavra fio” podem corresponder duas palavras em francés, € rapport, nem sempre substituiveis. Por outro lado, idjetivo francés simple correspondem em portugués “sim- e“singelo”. O tradutor, inclinado a usar a forma que é if parecida, é ameacado de nunca usar a mais rara, que nta uma riqueza da propria lingua. Luis de Lima rou-me, com razdo, que o equivalente exato de Un iple, de Flaubert, que figura sob o titulo “Um coragio ", em Mar de histérias, estaria melhor se intitulado adutor verter a expressdo par hasard por “por azar” de por “por acaso” e éleveur, “criador de animais”, ador”. OS amigos muitas vezes sdo palavras de origem ‘ujo sentido se distanciou por efeito da evolugio diferente. Um par de falsos amigos é constituido Casa e © portugués “casa”. O primeiro na ver- inificava “cabana”, “choupana”. Para designar uma ) OS romanos usavam a palavra domus, Com a i ¢ a decadéncia causadas pelas invasdes barbaras, 45 as residéncias ficavam cada vez mais parecidas com chou- ser “casualidade”, mas no plural casualties é “baixas”, panas e a palavra domus (em portugués “domo”) passou a das”; dog days nao sao “dias de cachorro”, mas “canicu- ser reservada a construg6es importantes, como por exemplo '; idiom pode ser “idioma”, mas também “idiomatismo”; > 3 uma catedral. nao é “luxtria”, mas “luxo”; physician nao é “fisico”, Outras vezes a semelhanga é mera coincidéncia, resul- édico’ etc. etc. tado da evolugio convergente de duas palavras totalmente diversas na origem, como por exemplo 0 francés cor, “calo”, e 0 portugués “cor” (francés couleur). Nas relagSes de cada ‘ 0) 0 raro ilude o tradutor a respeito da possivel facilidade ; : : . ‘Onos, isto é, a excessiva proximidade das duas linguas, duas linguas existe certa quantidade de falsos amigos. Os do francés em relacdo ao portugués? no sdo os mesmos que ele tem em confronto com o inglés. Entre eles figuram, ie « ns : , woe e _ | por “cola” em vez de “cauda”; crianza por “crianga” por exemplo, abonné (que nao é “abonado”), affamé (que rm ae SA ae os an - . z de “educagio”; direccisn por “diregio” em vez de nio é “afamado”), apporter (que nao é “aportar”) e assim vo : 5 ndereco”; nudo por “nu” em vez de “nd”; oso por “osso” por diante. . . . vez de “urso”; polvo por “polvo” em vez de “pd”; rato Poder-se-ia organizar outra relagdo semelhante para polve Por Py Po; 5 ‘ homénimo “rato” em vez de “momento”, zurdi quem traduz do portugués para o francés. Note-se que os ento’, 2uiao'por . « » ‘ ae do” em vez de “canhoto”. falsos amigos ndo sio os mesmos quando o ponto de par- a tida é a outra lingua. Alguns exemplos desse grupo seriam “caixa” (no sentido de caissier), “chapéu” (no de parapluie), «39 : A d ‘ Oren asserin “Jegenda” (no de sous-titre), “precisar” (no de avoir besoin), zenas ou talvez centenas, assente, que ndo é “assen- « 9, 5 Ae » “« os, “processo” (no de dossier), e assim por diante. s “ausente”; bollore, que ndo é “bolor”, mas “fervor”; Fizeram-se varias colegdes dos falsos amigos do tradutor que no € “caldo”, mas “quente”; casamento, que ndo ae ; ; . Soto” « sop xb “fren” de inglés.° Dessas armadilhas citemos algumas das mais nto”, mas “casario”; frotta, que nao € “frota”, mas “atualmente”, mas “realmente”; Itid’io”; lebbra, que nao é “lebre”, mas “lepra”; paio, que conhecidas: actually nio é to apologize nao é “apologizar”, mas “desculpar-se”; casualty a¢do de falsos amigos franceses, espanhdis e italianos —— : Saeh ee §Relacionados em meu livro Guia pritico da traduydo francesa, relayao alfabética dos falsos se no livro de Brenno Silveira, A arte de traduzir. amigos, homénimos e demais armadilhas do vocabulério francés, 2‘ ed., Rio de Janeiro, Educom, 1975. “Ver nota 4. 46 47 Muito menor a probabilidade de o tradutor de outras linguas, nao aparentadas com a nossa, encontrar desses falsos cognatos: poucos haver4 entre o alemao e o portugués, ou 0 portugués € o russo. Masa grande maioria dos textos que se traduzem pertence precisamente aos idiomas em qué a possibilidade da confusio é maior. Nesse campo, o poliglotismo pode constituir uma arma- dilha. Gift pode ser palavra tanto alema como inglesa (salvo que no primeiro caso principia sempre com maitiscula), mas significa “veneno” ou “dadiva”. Os hom6nimos existentes dentro de cada lingua também representam outras tantas ciladas. As estilisticas distinguem entre homénimos etimoldgicos, palavras de origem diferente, ds quais 0 acaso das mutagdes fonéticas acabou conferindo proniincia e, frequentemente, grafia idénticas ou semelhantes; assim em portugués escato- logia (= coprologia) e escatologia (= doutrina sobre a consu- magio do tempo e da historia), derivados respectivamente das palavras gregas skor, skatos, “excremento”, e eschatos, “Altimo”, ou, em alemio kosten, “custar”, e kosten, “provar” (que provém respectivamente do latim constare e gustare), € hom6nimos semdnticos como “impressio” (correspondente ao alemao Eindruck) e “impressio” (alemio Druck). Estes ultimos, na verdade, sio apenas casos de polissemia, mas em que o individuo falante j4 nao sente as duas acepgdes de uma sé palavra. A distingdo importa pouco ao tradutor para quem uns e outros significam perigo, enquanto para os 48 ivos a quem © contexto permite evitar confusdes todos fornecem um estoque inesgotavel de trocadilhos. que esse jogo do espirito tantas vezes julgado inferior mpenha na literatura papel muito mais importante do @ se pensa e aparece tanto em Platdo como nos tragicos gos, nas Escrituras como nos clissicos latinos, nos mo- listas e filésofos mais severos. Certas linguas tém para ele pendor que outras; as mais férteis em jogos de palavras as que tém maior namero de monossilabos, entre elas 0 incés e€ o inglés e, talvez, o chinés. Segundo Maupassant: O chiste, 0 trocadilho é um troco muito miido do es- pirito. E, no entanto, é ainda um lado, um cardter bem particular de nossa inteligéncia nacional. E um de seus _ encantos mais vivos. Forma a alegria cética da nossa vida - parisiense, a amavel displicéncia de nossos costumes. £ uma parte de nossa amenidade... Palavras, palavras, nada ais que palavras, irOnicas ou heroicas, divertidas ou brejeiras, sobrenadam na superficie da nossa histéria e ) indica frase, como vocdbulo? Na verdade, todo trecho e ilustragdo do trocadilho”, in Como aprendi 0 portugués, e outras aventuras, io de Janeiro, Artenova, 1975. 49 faceto em que a graga é produzida por um jogo de sentidos é intraduzivel por exceléncia. Lembremo-nos da deliciosa cena do Candido de Voltaire, em que o rei de Eldorado diverte seus héspedes com chistes. “Cacambo expliquait les bons mots du roi a Candide, et, quoique traduits, ils paraissaient toujours des bons mots. De tout ce qui étonnait Candide ce n’était pas ce qui V’étonna le moins.” Muitas vezes 0 tradutor literario se vé em presenga de um desses temiveis testes. E raro um trocadilho traduzido permanecer trocadilho na outra lingua, como a famosa frase de Ludwig Feuerbach, Der Mensch ist, was er isst, que eu verteria em latim por Horno est quod est; noutra lingua qual- quer, porém, perde a graga: “O homem é 0 que ele come.” Para realizar semelhantes proezas é preciso, naturalmen- te, que um espirito zombeteiro se encontre num momento feliz de inspiracgio, como aquele, citado por Pierre Dani- nos, que deu A frase francesa La Révolution que j'accepte est celle sans guillements et sans guillotines esta forma inglesa: The Revolution j’accept has a capital, but no capital punishment, ow aquele outro, lembrado por um especialista de semantica, que afrancesou Is life worth living? — It depends on the liver, por La vie vaut-elle la peine d’étre vécue? — Question de foie. Quanto a sobrevivéncia do calemburgo em mais de uma versio, as possibilidades sio minimas; um desses casos rarissimos é esta sentenga de Epicteto, Anékhu kai apékhu, traduzido por Aulo Gélio como Sustine et abstine, e que mais tarde um helenista alem4o soube transpor assim: Leide und meide. 50 geral, porém, o trocadilho é intraduzivel por defi- lo ou, noutras palavras, perde todo o chiste na tradugio. ) adigio esopiano Pathémata — mathémata vira este truis- “Os sofrimentos sio ensinamentos”; Last not least 6 & © em inglés; e o verso de Schiller Bin Schlachten war’s, { eine Schlacht zu nennen (“Era uma carnificina, nio se chamar batalha”) humilha o infeliz do tradutor, que, is de pé de pagina ou simplificd-lo sio recursos igual- pobres. Quando, porém, o vicio de fazer trocadi- é caracteristico de uma personagem, em vez de tentar luzir-lhe os chistes, o tradutor pode tentar compensi-los, indo jogos de palavras eventualmente noutros trechos, © espirito da sua prépria lingua 0 ajudar.’ E este um pasos em que ele pode aproveitar a imaginagio, de que © profissional tem de possuir uma boa dose. alguns exemplos de homénimos em francés: feu ” e “falecido”); foi (“£6”), foie (“figado”), fois (“vez”); (“modo” e “moda”); propre (“proprio” e “limpo”). 51 Em espanhol: fechar (“datar” e “fechar”); hilo “hilo” e “fio”); pero (“pera” e “porém’”); abrigo (“refigio” e “so- bretudo”); pez (“peixe” e “piche”); huelga (“folga” e “greve”). Em latim: amor (“amor” e “sou amado”), latus (“largo” e “lado”), os (“osso” e “boca”). Em alemio: Leiter (“escada” e “condutor”), Schloss (“fe- chadura” e “castelo”), Weise (“sdbio” e “maneira”), Verdienst (“ganho” e “merecimento”), Flur (“vestibulo” e “campo”); Mal (“mancha” e “ver”). Em italiano: bugia (“mentira” e “castigal” ou “vela”), pasticcio (“pastel” e “confusio”), piano (“piano” e “devagar”), solo (“s6” e “solo”), vita (“vida” e “cintura”). Em russo: kliutch (“fonte” e “chave”), mir (“mundo” e “paz”); zamok (“fechadura” e “castelo”). Acrescentemos, a titulo de curiosidade, estes exemplos hiingaros: dllds (“o estar em pé” e “emprego”), jards (“o andar” e “distrito”), nem (“nio” e “sexo ou género”), szél (“vento” e “bordo”), e iilés (“o estar sentado” e “sessio”). Consolemo-nos lembrando que em nosso idioma tam- pouco escapeiam homénimos, outras tantas armadilhas para quem verte textos de portugués para outras linguas: assim a¢do (boa ou ma) e agao (vendida na bolsa), bolsa (de 52 ) e bolsa (de valores), redagéo (de jornal) e redagao em aula), representacao (teatral) e representacaéo (do E em Londres) etc. desaten¢ao do profissional pode multiplicar os ho- mos: Erwin Theodor Rosenthal recorda um tra- (ja o de outro que trocava Rede (“discurso”) com Reede cada”). ) e schon (“belo”); eu mesmo me 0m pouco chegamos aos pardnimos, que, segundo Jean Hot, sio palavras do mesmo radical com prefixo ou de- reia diferente, como “janta” e “jantar”, ou, em francés, té e maturation ow prescrire € proscrire; outros dao esse também a palavras semelhantes de sentido totalmente ite como “descricdo” e “discrigdo”, “estatico” e “es- 0”, “infligir” e “infringir”, “lidico” e “Iicido usu- e “usuario”. Ambos os grupos representam perigos 0 tradutor; o segundo ainda mais que 0 primeiro, pois nfusdo j4 pode existir no texto original, sendo os cinco de exemplos verndculos que acabo de citar fonte de Neros erros tipograficos. | os sindnimos, palavras de sentido idéntico ou quase ‘0? Eles representam outro tipo de emboscadas. Por haver sindnimos perfeitos, eles nao sio permutaveis em 0s enunciados possiveis. Pai e papai sio sinénimos, 53 mas nao se diz Fulano de tal, papai de trés filhos. Quando a erie de palavras que indicam as focas de diferentes Segundo Ruth Kirk, autora de Snow, que viveu © tempo entre esquimés, estes tm mais de duas dizias ras em sua lingua para designar diversas espécies de itando Lévy-Bruhl, Fidelino de Figueiredo reproduz 10 de uma das linguas banto que significa “subir em coisa servindo-se das maos durante uma viagem ou lingua estrangeira apresenta diversos sindnimos la onde a sua propria lingua lhe oferece apenas uma palavra, 0 tradutor nio tem dificuldade; mas tera de ponderar a escolha de cada vez que para um termo estrangeiro existirem dois ou trés equivalentes no seu idioma. Quando traduzir chien por “cachorro” e quando por “cio”? Para verter liste, quando 1 «6 preferir “lista”, “relagio” ou “rol”? 1a longe dos outros e sem ser visto por eles”. So casos Havendo abundancia de sinénimos para determinada pantos ou esquimos. nogio nas duas linguas, o bom tradutor procurara deter- entanto, a tendéncia holofrastica existe também nou- as, Muito mais importantes. Vejo, num manual de ago chinesa, que o chinés tem duas palavras para 0”, segundo se trata do pai da mulher ou do marido, § tantos para “sogra”. Na designacdo dos tios, esse além de usar termos diferentes para o do lado pa- e 0 do materno, faz questio de assinalar, por meio ‘as diferenciagées, se estes sio mais velhos ou mogos ) pai ou a mae de quem sio irmios. minar 0 matiz, o sabor, a aura social daquele que figura no original para transport4-lo em sua lingua. Como estes sindnimos, dos muitos que possui 0 nosso verbo “morrer”: “falecer”, “entregar a alma ao Criador” e “esticar a canela”, de maneira alguma sio permutiveis, os sinnimos fran- ceses de mourir — s’éteindre, casser sa pipe, claquer — nao seriam bem-traduzidos por qualquer equivalente apenas légico. A opgao ser4, fundamentalmente, uma questdo $sO, por sua vez, tem quatro palavras para designar do, pois teima em informar se se trata do irmao da ier ou do marido, do marido da irmi ou da cunhada. alemio existe um substantivo s6 usado no plural, de estilo. Outra série de problemas é constituida pelas palavras holofrasticas. Da-se 0 nome de holdfrases 4s palavras que 10 perce rei i oo : . . . a . twister,” que indica “um irmao e uma irma”, ou “ir- exprimem no¢io peculiar a um idioma: a elas se faz muita referéncia em se tratando de linguas primitivas. Em esqui- m6, por exemplo, além do termo geral que indica “foca”, titulo de um pequeno drama de Goethe no qual se trata de um amor que surge entre irmio ¢ irma (ou que pelo menos sto dados como tais). gués ou outra lingua qualquer precisa-se de trés palavras para traduzi-lo: unio”. existe outra palavra para indicar foca tomando sol; outra, foca sentada num bloco de gelo; e assim por diante, sem falar 54 55 O hiingaro tem termos especiais para “irmao mais ve- es € que constituiriam obstaculos insuperveis dutor. Eugene A. Nida, diretor da Sociedade da nta de algumas dessas dificuldades encontradas lho” e “irm3o mais mogo”, como para “irma mais velha” e “irm4 mais moga”. Nesse idioma hi um termo especial para designar o “parentesco” existente entre 0 pai € 0 pa~ das Escrituras.? Nas linguas de certas tribos drinho de uma crianga. (ha palavra para “peixe”. Hé ilhas em que os A traducio da holdfrase em todos esses casos 6 é possivel © tem uma no¢do equivalente a “pai”. Muitos rr meio de circunlocucdes extensas; quando o tradutor < . pol circunlocu¢ q m a neve; para eles “branco como a neve”, Z stao de re: ir no original se trata de nogdo (ae a anos eld 8 t “neve” nao tém significagao. expressa por meio de uma palavra s6, usard hifens. : . ie Be = PI P P hesmos motivos era dificil resolver a alusio a ser- Em sentido mais lato podemos chamar de holdfrases ie 1g ‘ ; ss . a lica na versio para esquimds. Com efeito, estes palavras que designam nogées peculiares a uma civilizagio, r : : a ies NOssos nunca viram uma cobra. Pensou-se em sem correspondente nos demais ambientes culturais. Disto Mn . . y a por foca; mas esse, para o esquimé, é um animal seriam exemplos em alemio, Weltanschauung, Gemiitlichkeit s ; é ; a te bom, camarada mesmo, e, portanto, seria e Kitsch; em francés, parvenu e savoir-faire, em inglés, unders- 4 : . L aA | imputar-lhe qualquer interferéncia maldosa. tatement, em norte-americano, know-how; em italiano, mafia . i. lois, que citou 0 caso, nio diz a solugio a e vendetta; em castelhano, piropo; em portugués, saudade; em og ee brasileiro, jeito e sertéo'' — palavras essas que, por mais que . la de passagem qu xisténci a - tentemos traduzi-las recorrendo a todos os circunléquios Passagem que a existéncia ou nao de cer possiveis, chegamos a conclusao de s6 haver exprimido parte em determinadas linguas jé foi tomada como do seu contetido complexo. Tais palavras em geral acabam acterologias nacionais. Partindo-se da ideia de impondo-se sob sua forma original aos idiomas cultos, ; aye : : ™ isd We ae que, na impossibilidade de forjarem seus equivalentes, as das visdes do mundo, chegou-se’* a inferir que incorporam ao proprio vocabulario. faltavam palavras para “interessante” e “interessar- Estudiosos da teoria da tradugio tém salientado muito as lcordo contém tudo que um homem precisava diferengas de ambiente responsdveis pela auséncia de deter- Nida. Bible Translating. An Analysis of Principles and Procedures, with gnce 10 Aboriginal Languages, Nova York, American Bible Society, 1947. "Os tradutores alemao, italiano e espanhol de Grande sertdo: veredas de Guimaries Iusk, The Curse of Tongues and Some Remedies, Londres, Pall Mall Press Rosa mantiveram a palavra “sertio” até no titulo. 56 57 saber; que nas linguas do Congo nao existe palavra para elo mesmo motivo, as palavras breakfast e petit-déjeuner, soar “chrigado” aNeuia nel ; eo: dizer “obrigado” em face da extrema mis¢ria reinante na figuram como equivalentes no diciondrio inglés-fran- regiio, onde, por isso, ninguém pode privar-se de coisa , teferem-se a duas refeicdes essencialmente diversas; alguma nem prestar qualquer servi¢o; e, até, que os fran- pain, Brot, bread designam produtos semelhantes, mas ceses nfo gostam de viver em casa por nao terem palavra equivalente ao inglés home.) ura indefinivel que se ingurgita em Nova York. Pobre Mas em vez de nos aventurarmos nos terrenos move- digos da Etnossociologia, voltemos aos da Linguistica. A meu ver, tém-se exagerado em excesso as dificuldades da traducio das palavras holofrasticas ou exclusivas de uma civilizagio. Afiguram-se-me bem mais frequentes € praticamente insoliveis as que resultam das reagoes dife- rentes que as palavras mais comuns suscitam em ambientes diversos. Assim, por exemplo, nio pode haver a menor ditvida sobre o sentido da palavra setembro, nono més do ano. Entretanto a famosa poesia “Fim de setembro”, de Sandor i. 7 m de muitas expresses figuradas: assim pour des prunes Petéfi, uma das mais belas da lingua htingara, deixa ideia abs um nada”, ‘a troco de banana”) s6 é motivada para confusa no espirito do leitor brasileiro, porque as imagens 4 sabe que a ameixa é na Franga fruta das mais corri- de natureza agonizante, folhas murchas e cumes cobertos de neve no se coadunam com o titulo. . _. anharam conotagio depreciativa em seus empregos ados. Na mesma ordem de ideias, as noges suscitadas pela palavra inverno na mente de um carioca em nada se asseme- Thardo as que provoca seu perfeito equivalente russo zimd renga entre a denotag%o de uma palavra e a sua conotagio é muito signifi- n tradugio. Nem sempre o problema é saber o que uma palavra designa (@ lugilo), € sim como as pessoas reagem a ela (a conotagio).” A observagdo é de A. Nida, que a ilustra citando as reagdes diferentes que o termo “comu- provoca em diversos paises. no espirito de um habitante de Leningrado. Tampouco a ideia de Natal expressa por outro equivalente tem qualquer coisa em comum no Brasil e na Suécia. 58 59 Numa palavra, devido 4 dessemelhanga das condigdes de vida é impossivel que qualquer traducgdo dé a mesma impressio do original. Pois é precisamente esse argumento irrespondivel que salienta uma das mais importantes razGes de ser da tradugao: permitir 4s pessoas formular ideia sobre amaneira de viver e de sentir das que vivem noutras partes do mundo. Entre as palavras evocadoras tém de se incluir uma cate- goria de vocdbulos sem sentido verdadeiro, apenas de utili- dade designativa. Estou-me referindo aos nomes préprios. Essas palavras destituidas de significagdo possuem, entre- tanto, valor conotativo dos mais fortes. Se um personagem. de fic¢So brasileira aparece com 0 nome de Jodo da Silva,"* torna-se evidente a inten¢4o do autor de fazer dele o simbolo do homem médio, do Jedermann, mas 0 nome, se mantido numa tradugao francesa ou alem, despertaria apenas asso- ciacdes de exotismo. Para o leitor francés, César e Marius, personagens de Marcel Pagnol, revelam 4 primeira vista a sua naturalidade marselhesa. Certos nomes, frequentes em determinado lugar e, por isso, de consonancia plebeia, s4o raros noutros e tém, portanto, conotagio aristocratica. Como fazer? E dificil adotar uma norma. Sei apenas que a tradugdo alema Papa Johannes torna irreconhecivel o velho negro Pai Jodo da poesia de Jorge de Lima. E desses casos em que é licito recorrer a uma nota de pé de pagina. ®Como em De Homero a Jodo da Silva, pega de Emanuel de Moraes, Editorial Tor- mes, s.d., onde ele aparece como um “homem qualquer, numa cidade qualquer”. 60 iio existe regra geral sobre a tradug4o dos antropénimos ins. Certas linguas sio mais propensas a naturaliz4-los no 0 italiano e o espanhol), mas na Franga e no Brasil nantidos em suas formas primitivas. caso a parte é formado pelos nomes simbdlicos, usa- jutrora, € mesmo modernamente por certos escritores deixarem adivinhar o cardter meira vista, assim os do ingénuo Cindido, do sdbio : loss e do displicente Pococurante em Voltaire, e do de uma personagem isto vilio Murdstone ou da “modelar” empregada yon em Dickens; da prostituta Carola Venitequa em ¢ do mafioso Rinaldo Cantabile e da cantora Silvia tutti em Saul Bellow. Nestes casos também pode-se cer o sentido numa nota de pé de pagina. ferivel nao traduzir os hipocoristicos ou nomes de , tais como Beppe (variante de Giuseppe), Jimmy mes), Sacha (de Alexandre) etc. Mas, aten¢io, para a impressio de nomes femininos nos casos de Vassia, Pétia etc., variantes carinhosas de Nikolai, sandr, Piotr etc. h compensa¢io devem ser vertidos os nomes préprios | metaforicamente como nomes comuns; Tizio, Caio Npronio em italiano, Hinz und Kunz em alemio cor- idem, em portugués de lei, a Fulano e Sicrano. geral, recomenda-se muita desconfianga, em ma- le antroponimos, sobretudo os da Antiguidade. O Tite-Live e o inglés Livy designam a mesma pessoa. tradugdo portuguesa de Portugal do livro de Alberto 61 Moravia, O homem como fim, leio esta frase: “uma tradigio Misael, funciondrio da Fazenda, com 63 anos de idade. que remonta a Giovenale e a outros satiricos e realistas ro- _ Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituida, com manos da tardia latinidade”, onde se percebe nitidamente filis, dermite nos dedos, uma alianga empenhada e os ntes em petigao de miséria. Be.) Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, que 0 tradutor nio identificou Giovenale com Juvenal, como nds costumamos citd-lo. Outra categoria aparentemente neutra e na verdade carregada de significados explosivos é a dos topdnimos. Rio i Os amantes moraram no Estacio, Rocha, Catete, rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, _ tua Marqués de Sapucai, Niteréi, Encantado, rua Clapp, _ outra vez no Estacio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Invilidos... o (.) de Janeiro significa uma coisa para 0 carioca que nele vive e trabalha, outra para o paulista que ai vem passar as suas férias, outra para 0 europeu que condensa nesse nome oO seu sonho exético. Mesmo os logradouros de uma cidade — Copacabana, Lapa, Wall Street, Avenue des Champs Ely- sées, Piccadily Circus, Quartier Latin, Kurfiirstendamm, Nevski Prospekt — acabaram condensando, no decorrer dos tem- ‘ilustre poetisa Elizabeth Bishop procurou insinuar pos, um complexo de conotagdes que reclamaria dezenas ‘itor norte-americano o sabor e a intengdo dessa enu- de paginas para ser analisado. E quando ha logradouros ‘io misturando nomes de bairros nova-iorquinos aos do mesmo nome em duas cidades a coisa piora, pois eles irros cariocas.'’ Dou a seguir a sua tentativa, que nio tém tio pouca coisa em comum como a Lapa do Rio ea a convencer-me. de Sio Paulo. Nisto reside um dos mais insoliveis problemas da Misael, civil servant in the Ministry of Labor, 63 years old. tradugdo, embora raramente haja sido mencionado. Dai Knew Maria Elvira of the Grotto: prostitute, syphilitic, with ulcerated fingers, a pawned wedding ring and teeth _ in the last stages of decay. (.) considerarmos um dos textos mais intraduziveis da nossa literatura um poemeto de Manuel Bandeira, “Tragédia brasileira”:'® { Anthology of Twentieth-Century Brazilian Poetry, organizagio ¢ introdugio de beth Bishop e Emanuel Brasil, Middletown, Connecticut, Wesleyan Uni- ity Press, 1972. ‘Bandeira, Manuel. “Tragédia brasileira”, in Estrela da manhd, Rio de Janeiro: Ministério da Educagio e Satide/ Edigao do autor, 1936 62 63 When Maria Elvira discovered she had a pretty mouth. sendo usados. Nao s6 rorte-americano suscita reag6es diferen- she immediately took a boy-friend. fes entre ingleses e mexicanos; os adjetivos carioca, gaticho, (.) The lovers lived in Junction City. Boulder, On General Pedra Street. The Sties. The Brickyards. Glendale. Pay Dirt. On Marqués de Sapucai Street in Vila Isabel. Niterdi. Euphoria. In Junction City again, on Clapp Street. All Saints. Carousel. Edgewood. The Mines. Soldiers Home. (-) minciro, capixaba, unicamente denotativos para um europeu, enchem-se de forte valor conotativo para qualquer brasileiro. Ainda que as palavras fossem usadas apenas em sentido proprio, a tradugio seria uma opera¢io temerdria, dada a falta de correspondéncia de uma lingua para outra. Mas o que a torna quimérica é 0 pendor do espirito humano para n a 4 metdfora, quer dizer, a utilizagio do vocdbulo com um tradutor, Manuel Cardoso, manteve em portugués : . Ore is d — P oes sentido outro que ele parece possuir normalmente. O uso de esses nomes, mas, depois de reproduzir tais quais , . _ . Hodes P P @ eXxpress6es figuradas d4-se em todos os idiomas conhecidos, 4cio, Rocha, Catete, rua General Pedra... incompreen- . oar, ==. : . eis : ae 18 z © mio apenas na pratica literaria. Muitas dessas expressdes sivelmente deixou escapar Constitution Street. . fonseguem adocio geral a ponto de serem empregadas sem Causa de muitos erros de tradutor é 0 fato de terem certos ip . . 5 ue a pessoa falante se lembre do sentido primitivo das pa- topénimos formas diferentes nas diversas linguas. Leghorn € mee a PI Pp _.. : i a s lavras que as compéem. “E uma mio na roda” — dizemos o nome inglés de Livorno; Kéln é o nome original alemio do a r As oe pensando num auxilio que vem no momento oportuno, francés Cologne e da nossa Colénia. O tradutor brasileiro que . ~ 7 fem vermos a imagem da carroga encalhada; “Le jeu n’en falasse em Leghorn (a nao ser em se tratando de uma raga de galinhas) ou em Cologne seria imperdodvel. E ha casos vaut pas la chandelle” se diz ainda em Franga apesar de quase - . ; foe lo mais haver lugares sem luz elétrica. Muitas vezes os tio esquisitos como Bratislava, cidade da Eslovaquia, mas ni 8 e a ea que durante centenas de anos fez parte da Hungria sob 0 elementos da imagem fundem-se numa sé palavra, como e de Pozsony e que no Ocidente é sobretudo conhecida em beija-flor, humming bird, oiseau-mouche, bas-bleu, “nariz de nom rz: sob seu nome alemio Pressburg! eera” ou ainda no substantivo hingaro testvér, composto Cabe aqui dizer duas palavras a respeito dos adjetivos dle test, “corpo”, e vér, “sangue”, mas que para os individuos patrios, cujo valor conotativo depende do lugar onde estado filantes da lingua magiar suscita apenas a ideia de “irmao e de “irm3”. Ao lado das metiforas consagradas pelo uso e incorporadas na lingua, surgem outras aos milhares sob a Poesia brasileira moderna. A bilingual anthology, organiza e notas de José Neistein, tradugo de Manuel Cardoso, Washington, D. C., Brazilian-American Jo, introdugi pena do escritor no momento em que escreve ou na boca do Cultural Institute, Inc., 1972. 65 64 falante no momento em que fala, destinadas a ser esquecidas on} a “matar dois coelhos de uma cajadada” corres- imediatamente ou a permanecer em uso. © francés tirer d’un sac deux moutures. Mais algumas Ai do tradutor que nao identifica a metdfora convencional pondéncias metaféricas divergentes entre o portugués ea verte dissecada em seus elementos. “Nao ter papas na ces: estar NO mato sem cachorro = ne pas savoir a quel lingua”, “vir com quatro pedras na mao” assim como avoir di g poil dans le nez ou faire des gorges chaudes se aplicam a situagdes | pide; chover no molhado = enfoncer des portes ouvertes; @ vouer, pagar na mesma moeda = rendre la monnaie dissociadas por inteiro, respectivamente, de “papa”, de “pe. ¢om 0 ovo no cu da galinha = vendre la peau de l’ours dra”, de “nariz” e de “calor”. Em alemio, o verbo verdienen, “merecer”, tem a acepcio metaforica de “ganhar (inheiro)”. Que diriamos de quem traduzisse Was verdient er? por “Qu é que ele merece?” em vez de “Quanto é que ele ganha?” : Citarei ainda 0 exemplo, colhido em aula, de Diseur de ‘Win caso em que metiforas de duas linguas parecem wilizer-se € étre dans de beaux draps, “estar em maus ; na verdade a oposicdo € apenas aparente, pois Wjetivo francés é usado ironicamente. Mas quando na ealvo nado encontramos expressio metaforica de igual bons mots, mauvais caractre, vertido como “Quem diz boas Yertemos a metafora francesa ou inglesa pela explicagao palavras tem mau carter”. Coitado de Blaise Pascal, de quem a professora fez um apologista do palavrao! E, por fim, lembremos a expressio adverbial hingara kériilbeliil que, vertida literalmente, daria “por-dentro-por-fora”, adotando o método da compensagio, empregare- tima locugao figurada na primeira oportunidade para empobrecer o texto. Exemplo feliz desse processo é 0 jlo pelo professor Mario Wandruszka" na tradugio wesa de Love Story, de Erich Segal: “What about Paris mas que équivale apenas ao nosso “mais ou menos”. E I've never seen in my whole goddam life?” (“Et Paris on E raro existirem express6es metaforicas de sentido igual em duas linguas, em geral por influéncia de uma lingua sobre a outra: assim a faire quelque chose par-dessus la jambe wore jamais foutu les pieds?”). . c. « . metifora pode envolver palavras € conceitos os mais corresponde “fazer uma coisa em cima da lingua” ea sa- ntes. Os termos que dela participam perdem o seu voir sur le bout du doigt “saber nas pontas dos dedos” (ou “na ficado proprio, ainda que sejam tio univocos como, ponta da lingua”). Xemplo, os termos de matemiatica. Por efeito do uso Bem mais comum é A locu¢3o metaférica de uma lingua corresponder outra igualmente figurada, embora composta de elementos de todo diferentes. Assim s’en aller en eau de boudin & “passar em branca nuvem”. Ao nosso “sem dizer Jinguisme du traducteur”, in Languages, Didier-Larousse, n° 28, dezembro Agua vai” corresponde em inglés before you could say Jack 6 0 chiacchiere (“Batemos um bom papo”), Gliene disse quatth oe \ ( v e ) : a Beta s6 usa um dos elementos do cliché (avaler) em senti- (“Disse-Ihe umas verdades na cara’), Facciamo quattro pass . ‘figurado, enquanto o outro (couleuvre) aparece em sentido reto. Assim, no trecho, a locugio tera de ser traduzida ‘aceitar a cobra”. (“Vamos dar alguns passos”). Como se ve, esse “quatro italiano é tio pouco determinado como o “sete” alema na expressio seine sieben Sachen zusammennehmen (“juntar 0 ‘ exp! ern (ju Tim todo caso, o problema das metéforas lembra-nos uma vez que nio estamos traduzindo palavras, mas ngas. Noutros termos: 0 bom tradutor, depois de se seus trecos”) ou o “sete” portugués em locugdes como “ sete folegos do gato”, o “homem de sete instrumentos” pintar © sete”, ou como os numerais franceses das frase rar do contetido de um enunciado, tenta esquecer as feitas faire les cent coups (“levar vida desregrada”) e faire ras em que ele esté expresso, para depois procurar, na trente-six mille volontés (“fazer 0 que The da na veneta”). Hingua, as palavras exatas em que semelhante ideia seria Em certos casos 0 tradutor tem de fazer caso omisso d Wuralmente vazada. tabuada. Como admitir que meio é igual a um? Pois, pat dizer que um homem tem uma s6 perna ou uma sé mio, hiingaro dir “homem de meia perna” ou “de meia mio sem diavida como reminiscéncia de uma visio particul; em que as partes do corpo em niimero de dois eram con! sideradas uma unidade; e designar4 naturalmente o caolhi como “o homem de meio olho”. Conhecer 0 sentido das metaforas que se tornaram locul Ges figuradas nem sempre é suficiente, pois podem surgi armadilhas, como num verso de Victor Hugo, “Le pods du Jardin des Plantes”, onde aparece a expressio idiomatic avaler des couleuvres, que, em portugués, equivale mais o menos a “comer da banda podre”. S6 que nos dois versos II blesse le bon sens, il choque la raison II nous raille: il nous fait avaler la couleuvre. 68 69 3. OS LIMITES DA TRADUGAO Os meios complementares da linguagem: recursos outros que nao a palavra. Utilizagio diferente dos sinais de pon- «i desempenhados pelo travessio. Expressividade das uagiio, Os pontos de exclamagao e de interrogagio. Papéis pas. Citagdes disfargadas. Maitisculas e mindsculas ideolégicas. Pontuagao individual. Reticéncias. Significado dos tipos de letras, Escolha de um alfabeto de preferéncia a outro. Valor conceptual da ordem das palavras. Quando se tra- tluz 0 nao dito e se omite o dito. Mensagem em palavras Mo nocionais: artigos, pronomes, numerais, conectivos. Quests Dalavras estrangeiras. de tratamento: axiénimos, verbos de cortesia. CAPITULO ANTERIOR, em que se tratou de falsos amigos, WMOnimos, pardnimos, sindnimos, holéfrases, metaforas Ipeugdes, poderia ter dado a algum leitor distraido ou #sacdo a impressdo de que traduzir é vencer uma série de uildades isoladas, encontrando equivaléncias para cada Wr Ou expressdo do original. Esta impressio, porém, feria justa. 7 Lembre-se primeiro que, para transmitir uma mensage: ils Sob denominagio de “linguagem silenciosa”, titulo 20) a pessoa falante no se serve exclusivamente de palavras; a livro norte-americano” segundo o qual a ignorancia comunicagao é completada pela entoagio, por gestos e por linguagem seria em parte responsavel pela antipatia fodeia, no mundo, os compatriotas do autor. jogos fisiondmicos. Cada lingua faz uso diverso desses mei complementares da linguagem. A entoagio, por exemplo, desempenha papel capital na ‘ois a lingua escrita também possui recursos acessérios lingua monossilabica que € 0 chinés, no qual trés, quatro das palavras. Sio, em primeiro lugar, os sinais de ou cinco homénimos se distinguem apenas pela altura do Hing. Ocorrem de imediato, como exemplos de ex- tom. A nenhuma outra lingua parece aplicar-se melhor @ ditado: C'est le ton qui fait la musique. que os de interrogagio, destinados a ajudar o falante a A gesticulagio excessiva é tipica de italianos e judeus fA entonagao (e nisto o requinte castelhano de us4-los é - e Ie 5 a i ant depois da frase, constitui aperfeicoamen- € quase impossivel falar italiano ou ifdiche com as mio Bios, antes ¢ dep eperely nihoso), mas também o ledor a melhor perceber o 208 bolsos. Em compensagio, o japonés falado parece abrir mac | . al . J ssim como os elementos da linguagem silenciosa, quase completamente dos gestos, assim como do jo: x : 7 ES 2 5g is tipograficos podem mudar de sentido conforme o fisiondmico; em Toquio, assisti a um banquete em q . a be-se que a cor do luto em certos povos é 0 branco; todos os oradores falavam sem sequer uma contragio do : . . © abanar da cabega de cima para baixo, que entre misculos da face. rn . | ee q ver dizer sim, na Turquia quer dizer nado. Da mesma A observagao ou nio de certos ritos, habitos e convengde fumerosos sinais graficos sem contetido conceptual sociais é também um complemento da linguagem falada 5 P pre eens prego diferente nas diversas linguas. Entrar num quarto de chapéu na cabega e charuto na boe livros brasileiros, por exemplo, o travessio é usado expri é ilidade. Traj eR — ‘prime menosprezo, pouco caso ou até hostilidade. Traj Minde frequéncia para marcar 0 inicio e o fim de de luto sio um aviso para que se respeite 0 estado de Ani . Nos livros franceses, ele abre a fala sem fech4-la, mo de quem os veste. Nao oferecer cadeira a um visitant vezes pode causar uma pequena confusio. Nos significa que o dono da casa nao faz questdo de prolonga jeses, ele no indica nem 0 comego nem o fim da lhe a permanéncia. Essas praticas, embora generalizada nem sempre sdo as mesmas. Cada comunidade, cada po! Hall, The Silent Language, Greenwich, Conn., A Premier Book. Fawcett tem algumas que lhe sao particulares. Elas j4 foram capi 1965. 12 73 fala (marcados ambos por aspas), ficando seu uso restrito a no tempo nos informando do carater exibicionista marcar uma pausa (de suspensio, surpresa ou espanto) ou ito do proprietario), a palavra “do” (pondo em a introduzir uma proposi¢do incidente. 0§ seus direitos de propriedade), a palavra “senhor” Interessante observar como numerosos tradutores ¢ o entender que ele nio passa de um pé-rapado) ou i i dio ram e livergénc: tal pon- x = ee editores ainda nio percebe! ssa divergencia, a tal p a “Jodo” (quando entio exprimiria davida sobre hos duzem servilmente a praxi A ote « : to que em seus trabalhos reproduzem serv pred »o verdadeiro nome do individuo ou informaria inglesa. Quando pouco, a sua falta de atengSo dificulta a de um pseudénimo). Talvez devido a essa com- adronizacio de nossa produgio impressa. i . . . P 1 P * 6 'P 4 , muita gente de pouca instrugdo usa as aspas a Lembremos a esse respeito que em russo cabe ao travessio . " “ : " ; : _ . ibuindo-Ihes fungdo honorffica ou decorativa. Nao um papel muito especial. Em frases nominais ele € posto 1 a. essoas colocarem entre aspas a prépria assinatura. entre 0 sujeito e 0 predicativo como sucedineo da cépula, expressa noutras linguas pelo verbo “ser”. Assim: Ia totchds . Loe |! - on ee } io sendo 0 uso expressivo das aspas privilégio do por- potchivstvoval, tchto etot tchelovick — Khristés, “Eu logo senti i a. . . eens BL (a ndo ser nesta Gltima redundancia), ainda assim ele que esse homem era 0 Cristo”. . : : E . . ; | atengdo do tradutor, que deve descobrir 0 motivo Ai do tradutor que ignore essa praxe singular! : ; emprego. O maior problema consiste, na verdade, wo se ate 8 F rcebé-las onde 0 autor nao as pés por nio julga- Bom exemplo da expressividade dos sinais tipograficos ee F BGs LOraeaa Baga 4 4 * a nt . irias, por exemplo itacd justi - € 0 caso das aspas. Além de encerrar uma citagio e deli- a plo em citagdes que ele justificada: adi 5 : « 20 sup6e serem de co i mitar titulos, elas tem também um uso ideoldgico quando P le conhecimento geral. denunciam apropriagio indébita, falsa qualidade. O enun- ida obra literdria é 0 Hltimo elo de uma longa evolu- ciado “A casa do sr. Jodo” muda de sentido segundo coloco de certa maneira, é baseada em todas as obras ante- as aspas nas duas extremidades (indicando provavelmente a mesma literatura. Eis por que, em linguas cujo uso © titulo de um livro, artigo, filme) ou encerro entre elas possui longa e forte tradigio, como, por exemplo, o apenas a palavra “casa” (querendo dizer que nao é casa, mas =° francés, mesmo textos nio literarios, desprovidos algo muito mais insignificante, digamos uma choupana, nfase, e até textos de cardter técnico, cientifico ou ou algo bem mais importante, como seria um palicio —e jal, sio entremeados de reminiscéncias literdrias, istinguidas por nenhum sinal especial dentro da ina impressa. Por fazerem parte da meméria nacional, 2Turgueney, citado por André Mazon em Grammaire de la Langue Russe, 2* edy Paris, Droz, 1945, p. 289. tengas e versos tém forte carga afetiva, que desa- 4 vi} parece se o tradutor os servir a seus leitores sem qualquer adverténcia, nem um par de aspas sequer. Alguns desses excertos sio universalmente conhecidos, outros apenas dentro dos limites de uma comunidade linguistica. Cabe ao tradutor descobrir a citagio, verificar a qual desses dois tipos ela pertence e achar meio de a destacar se pertencer ao segundo tipo. Mas para isso é preciso que ele, gracas A sua cultura, esteja em condi¢des de dar com ela. Ditos de Goethe e Schiller sio os que mais frequentemente se encontram em obras de lingua alem§; frases de Moliére e La Fontaine, as que mais facilmente ocorrem a um autor francés; Shakespeare é 0 tesouro inesgotavel de todo escri- tor inglés; Dante é 0 autor mais lembrado pelos italianos, Cervantes, pelos espanhdis. Proust, em certo trecho, reproduz uma conversagdo de varias pessoas diante do Grande Hotel de Balbec: — Oh! elles s’envolent, s’écria Albertine en me montrant les mouettes qui, se débarrassant pour un instant de leur incognito de fleurs, montaient tous ensemble vers le soleil. — Leurs ailes de géant les empéchent de marcher, dit Mme de Cambremer, confondant les mouettes avec les albatros. (A la recherche du temps perdu, II, 814.) CO irénico sabor desse trecho consiste no fato de a sra. Cambremer, esnobe e pretensiosa, citar desastradamente um verso de Baudelaire que todo leitor francés identifica a primeira vista. 76 xcelente versio brasileira de Em busca do tempo tradugdo de Sodoma e Gomorra, que contém esse , coube ao poeta Mario Quintana.” Como nessa WWilo da Editora Globo nao havia notas explicativas, quisito incluir aqui uma explicagao ao pé da pa- © tradutor saiu-se bem incluindo a observacio de Cambremer entre aspas, que alertam mesmo o nilo familiarizado coma literatura francesa quanto ao 0 da personagem.”> lisando, em seu livro S/Z, a novela Sarrasine de , Roland Barthes mostrou com que frequéncia o tealismo reproduzia ndo o real, mas apenas uma (0 do real, pelo consumo extraordinario que fazia de céncias livrescas. O grande nimero dessas referén- turais, em sua maioria inacessiveis ao leitor de hoje, ‘Oh, elas voaram! — exclamou Albertina mostrando-me as gaivotas que, ayando-se por um instante de seu incdgnito de flores, subiram todas ira. 0 sol, 8 asas de gigante impedem-nas de andar’ — citow a sra. Cambremer, lindo as gaivoras com albatrozes.” (Sodoma e Gomorra, Globo, 1957, p. 171.) ei outra citasio no explicita ao mesmo soneto de Baudelaire numa obra eriria, Expedition famous, a trois mille metres sous VAtlantique, onde se jont de merveill es ix badaunds, Us peuvent passer des heures a regarder flotter une caisse, in miarsouin ou planer les vastes oiseaux des mers.” Aqui o tradutor brasileiro incluir apés a tradugio de planeras palavras “os albatrozes”. adiante 0 capitulo “A Operagio Balzac”. 7 Miss Lydia s’était flattée de trouver au-dela des Alpes de == Qui a du papier? — dit Pacaud d’un air qu’il s’efforce choses que personne n’aurait vues avant elle et dont el de rendre enjoué et en promenant son regard sur le cercle. pourrait parler avec les honnétes gens, comme dit Personne, apparemment, ne s'en est muni sauf Cara- Jourdain. mans, qui a dans sa serviette, je l’ai vu, un bloc-notes vierge mélé a ses dossiers. Mais Caramans, la paupiére 4 mi- ops 5 , : course, la lévre revée, ne bronche pas, soit que la fourmi ne O tradutor brasileiro nao se pejou de observar, ao pé d ' ‘ ak on BL AZ fl » 2% a . . soit pas préteuse, soit qu’il désapprouve les jeux d'argent.” pagina, que se tratava do “burgués metido a gentil-homen de Moliére”.*> © tradutor que ignorar a fabula da Cigarra e da Formiga, O segundo esta em A Vénus de Ile. O orgulhoso desco » La Fontaine, nao percebera as aspas inexistentes e nio bridor de uma estatua antiga, a i | , ga, a0 Ouvir comentar-lhe a fero: pnderd a frase. beleza, exclama: “Cest Vénus tout entiere a sa proie attachée. Note-se a esse respeito que muitas vezes 0 acervo de re- A frase € bem mais significativa para quem se lembra d culturais constituido pelas citagdes e alusdes nao se contexto de onde é tirada, a patética confissio de Fedra fringe necessariamente ao setor da mesma comunidade na tragédia de Racine. Em sua tradugio, Ondina Ferreira’ yuistica. O romance russo do século passado contém nao explicita a citagdo, nem a destaca por meios tipogra qjuentes referéncias ao patriménio cultural francés; por cos; Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e eu, na nossa, i) Vez, a literatura francesa dos séculos XVI e XVIII utilizamo-nos de ambos os recursos. ssupde oO conhecimento dos classicos da Antiguidade. Vejamos agora um trecho curioso pescado num auto “amo se vé, do coitado do tradutor, tio malpago, exigem-se de nossos dias, Robert Merle. Em seu romance Madrapour, hecimentos enciclopédicos, quase universais. passageiros de um avido, que acabam de ser saqueados pot um pirata, resolvem jogar poquer — com vales, pois ficaram sem dinheiro. © emprego de iniciais maitsculas ou minisculas ndo as vezes obedece a intengdes que o tradutor deve saber eobrir. A maitiscula de cortesia é recurso comum da ua italiana, que chega ao bizantinismo de utiliza-la nes ibs no meio de palavras, enfeitando com ela os pronomes *Prosper Mérimée. Novelas completas. tradugio de Mario Quintana, Porto Ale Globo, 1960. icliticos. Prosper Mérimée. Histérias Imparciais, Sio Paulo, Cultrix, 1959, p. 150. *7Mar de histérias. Antologia do conto mundial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, vol. II, p. 153. bert Merle. Madrapour, Paris, Editions du Seuil, 1976, p. 211. 78 79 Um exemplo curioso esta neste trecho de Antonio Fogazzaro, em que um padre se dirige ao seu penitente: Bisogna che la Sua cella sia nel Suo cuore, nel pid interno dei Suo cuore. Si, caro, pianga di dolore, ma pianga pure di tenerezza. Vi é Qualeuno che gliela prepara, in questo momento, la cella, che vi si dispone ad aspettarLa, che Le dice di venire a Lui, di abbandonargli il capo in senso, perché ha tanta pieta di Lei, perché vuol perdonarLe tutto, tutto, tutto.” Note-se que a maitiscula honorifica se refere ora a Deus ora ao interlocutor; e que, por um pedantismo ortogrifico, usa-se apenas nos pronomes comeg¢ados por /, mas nao nos comegados por g. E de temer que os efeitos de filigrana tio cuidadosamente preparados pelo autor de Pequeno mundo moderno venham a se perder em toda e qualquer tradugio, pela inexisténcia de semelhante requinte grafico. Sabemos que os simbolistas costumavam grafar com maitscula certos substantivos; a Morte, a Dor, a Vida. Ora, um tradutor alem3o de Baudelaire teria de renunciar a esse expediente meramente visual, pela simples razdo por que o alemio até hoje escreve todos os substantivos com maitiscula. Essa particularidade, que teve inicio na traducio da Biblia por Lutero, ao que parece conseguiu perpetuar-se, em parte, porque o nome tradicional do substantivo em alemio ¢ Hauptwort, isto é, “palavra principal”. A conser- "Antonio Fogazzaro. Piccolo mondo moderno, Milao, Hoepli, 1928, p. 77-78. 80, aram a inicial mindscula de maneira generalizada. inal de inconformismo, porém, perde-se inteira- nenhuma delas distingue hoje os substantivos pelo que da letra inicial. Os paises escandinavos, que te muito tempo seguiram a praxe alema, acabaram m parte devido a antipatia provocada pela ocupagio sta. Curioso pensar que a manutengio ou o abandono a simples pratica ortografica possa tornar-se indicio de srafico em inglés; escrevé-lo com inicial maitiscula seria de arrogancia em qualquer outro idioma. Escrever do problema, em que foram expostos os argumentos vor de ambas as solugd 81 Em contrapartida 4 maitiscula honorifica, assinalemos a mintscula ofensiva com que se iniciava tantas vezes entre nds, até hd pouco, o nome do adversirio em polémicas eleitorais e até filolégicas; e acrescentemos que grafar o nome de Deus com maitiscula ou mintiscula pode denotar as vezes atitude filoséfica. Voltando aos sinais de pontuagdo, notemos que os habi- tos de pontuagio variam de lingua para lingua. E preciso conhecer a praxe do idioma de que se traduz para nao impor ao texto os costumes daquele para o qual se traduz. Ao contrario, quando um autor adota pontuagio pessoal, divergente da em geral adotada, o bom tradutor tentara conservar essa particularidade em sua versio. A respeito do travessdo observa Aila de Oliveira Gomes que em Emily Dickinson o travessio nao pontua apenas (embora possa valer por qualquer tipo de pontuagao — virgula, dois-pontos, reticéncia, ponto, pardgrafo etc.); ele pode também servir para enfatizar o que segue, ou mesmo o que precede; ou, segundo a maioria dos cri- ticos, para marcar pausas de leitura, numa espécie de nota¢4o musical. Em raros casos, ele pode substituir as interrupgdes de pensamento, no que ele se detém em busca da melhor palavra ou do melhor arranjo sintatico, anotando assim como que 0 processo, ou o ritmo da propria composigio. 82 r ser caracteristica da autora, e njo do idioma, essa devera ser repetida pelo tradutor. azem parte do anedotario histérico certas frases em supressio da pontua¢do importava numa ambiguidade ional. Muitas respostas da Sibila e de outros ordculos ntiguidade tém sentidos diametralmente opostos de {> com a pontuagao usada ou omitida. Lembro-me da lendaria de certo primaz hiingaro que, convidado a ar contra a vida da rainha, teria tentado eximir-se de sabilidade mandando aos conspiradores esta resposta: lnam occidere nolite timere bonum est si omnes consentiunt ego ontradico, o que, de acordo com os sinais de pontuagio nela se pusessem, podia ser interpretado como consen- sto Ou protesto.) ixemplo de pontuagio nio individual, caracteristica ima lingua, é a omissio das virgulas em enumeragdes nas: Era alto biondo simpatico, ainda frequente apesar de ramaticos a desaconselharem.*! Nio ha motivo para medar esse uso em qualquer outra lingua. hiingaro, usa-se obrigatoriamente virgula antes da jun¢do equivalente ao nosso “que”, peculiaridade essa haturalmente nao seria transposta em portugués. ) processo é diferente, como vimos, no caso de es- ores de tendéncias artesanais que adotam pontuagio pria. Caso frequente é a supressio completa de qualquer randi ¢ G. Cappuccini. Grammatica laliana, G. P. Patavia & C. Torino, . 269. 83 pontuagio na transcrigao da fala de pessoas ignorant seguiu, A custa de esforcos tremendos, contrariados como no conto “A confissio de Leontina”, de Lyg jas tendéncias dos revisores formados pelo ensino prima- Fagundes Telles, ou no de cartas de gente simples, semi obrigatério, reticéncias de apenas dois pontos. Mestre nalfabeta, como vemos nalgumas cartas do Cabinet no rélio Buarque de Holanda Ferreira propde que pelo nd- de Max Jacob, e que o tradutor inteligente respeita ro de pontos se opere uma disting3o entre as reticéncias E, por outro lado, de conhecimento geral que muit ¢ indicam uma suspensio do pensamento (trés pontos) e poetas modernos — entre eles Guillaume Apollinaire que substituem a parte omitida de uma citacdo (quatro abrem mio de toda e qualquer pontuagio, sem divi nitos), que ele chama de interpontuagio. para acentuar o que o discurso poético tem de impreci: Outra caracteristica formal da pigina impressa, que pode e indeterminado. ¢lar intengSes aos olhos do leitor atento, é a escolha da © romancista espanhol Valle-Inclan usava frequen ta tipografica. Entre nés o grifo serve sobretudo para mente os dois pontos, seguidos de maitscula, com val (acar palavras ou frases em lingua estrangeira ou titulos de ponto e virgula, como nesta descrigdo de um sarau } portugués, e menos geralmente para por em relevo um Cassino: inento importante. Mas nao temos o hdbito, observavel inglés e noutras linguas germAnicas, de marcar com letra La charanga gachupina resoplaba um bramido patrio linada a entoago da palavra, como se vé nestes exemplos David Copperfield, de Dickens: Los cabos tresillistas dejaban en el platillo las puestas: carriles del dominé golpeaban con las fichas y los bolic! seosas: Los del billar salian a los balcones blandien, oe : Jama determined character, said Mr. Creakle; that’s what los tacos. 7 Tam. I do my duty; that’s what Ido (cap. VII). Lembremos outro emprego nio menos individual, S ; BES Jam not afraid of him: Iam not proud; Iam ready to take muito expressivo desse mesmo sinal no titulo do gran care of him (cap. XIV). livro de nosso Guimaraes Rosa, Grande sertéo: veredas. Ari i Fr Varios autores, como por exemplo Gilberto Frey: Does he keep aischibol? (cap: XV). fazem uso pessoal das reticéncias. Léon-Paul Farg) Procurei verificar na tradugo brasileira mais popular como *Tirany Banderas, segunda parte, Livro I, cap. IIL. roblema fora resolvido. Nos dois primeiros exemplos, o 84 85 t escrita gética (Eckenschrift ou Fraktur), bem mais complexa de leitura mais cansativa.» tradutor simplesmente no levou em consideragio 0 grifo, e€ no Gltimo exemplo, suprimiu toda a frase sem mais ne! menos. Outras vezes, tradutores nossos conservam escrupu: No Japao, os alfabetos silabicos, de relativa simplicidade e losamente o grifo enfitico, como o autor de uma recente oucos sinais, so usados apenas em textos de utilidade pratica; versio de Josefina, romance infantil da sueca Maria Gripe, escolha de alfabeto ideografico, de origem chinesa, com Mais acertada me parece a praxe da equipe de tradutores s tres mil e tantos caracteres, € um sinal da complexidade franceses que, chefiada por Léo Lemonnier, consegue por lo texto. meios nio tipograficos © efeito visado, assim: Outros componentes de um texto, que inegavelmente Je suis un homme décidé, dit M. Creakle. Voila ce que je lificam o sentido do enunciado, embora nao consistam suis. Je fais mon devoir. Voila ce que je fais, moi. ) vocdbulos, sio elementos estruturais aos quais possivel- lente ndo corresponde nada semelhante na lingua-alvo. Je n’ai pas peur de lui, moi; je ne suis pas vaniteuse, moi; (a entdo ha de fazer uso de recursos sintaticos. je suis préte a le soigner, moi. Um meio de explicitar ou matizar a comunicagao é a idem de colocagio das palavras na frase. Nem todas as Est-ce lui qui tient une école? tiram deste recurso os mesmos efeitos, nem 0 ex- rami na mesma extensio. HA idiomas como o francés em jue essa ordem é bem fixa; outros, como o latim, em que Tampouco temos 0 habito, observavel em livros alemies, na liberdade quase total quanto 4 colocagdo das palavras. de espagar as letras das palavras em destaque, praxe tipogra fica conhecida sob o nome de grifo alem do. Sio minicias, dir-se-4. Mas a tradugdo € 0 mundo da Jespeito do eftito que um alfabeto estranho pode exercer no espirito do leitor, ontro na Histéria de Serguei Petrovitch, de Leonid Andreiev, um trecho eloquente, minucias. . 7 wtagonista do conto, alma simples, se deixa conquistar pelas ideias de Nietasche, Nos paises que dispdem de varios alfabetos, a adogio d Jurticular pela doutrina do super-homem, que acabara por levi-lo ao suicidio, ‘ 4 ze decorando-Ihe piginas inteiras.) um ou outro pode corresponder a intengdes que € impos: 10 lato é que na tradugZo, por melhor que fosse, os aforismos perdiam muito de jJhiyas tornavany-se excessivamente simples ¢ claros, como se em sua profundeza ‘losa transparecesse © cho; a0 paso que, quando Serguei Petrovitch con jiplava a escrita gotica das letras alemis, percebia em cada frase, além do sentido spfiamente dito, algo que nio se podia exprimir com palavras, ¢ a profundeza parente escurecia-se e nfio mais deixava entrever o chio.” Ne Liye, ausgewihlte Geschichten von Leonid Andreev, tradugio de Nadja Horns- Dresden-Leipzig, Verlag Heinrich Minden, s.d., p. 78. sivel transportar para a tradugdo, Na Alemanha do comego do século XX, era sinal de progressismo adotar o alfabetg romano (Rundschrift ou Antiqua); durante o regime de Hitler caracterizado por paroxismo nacionalista, houve uma volta 87 Mas liberdade nao quer dizer indiferenca. O sentido de Aqui vai a tradugio literal de uma frase das Con- enunciado modifica-se conforme o lugar que nele cabe de Eckermann com Goethe® com a ordem das palavras determinada palavra. tida tal qual: O provérbio Manus manum lavat poderia também A enunciado na ordem Manum manus lavat, ou ainda nes Nos temos entretanto no pequeno vale descido onde a Lavat manus manum, e outras mais. Sabendo que a ord estrada de madeira, por um telhado coberta ponte passa, comum em latim queria o sujeito na frente e 0 verbo no fin debaixo da qual as em diregio de Hetschburg descentes podemos mais ou menos conjeturar como essas variagées d Aguas pluviais se um leito tinham feito, que agora seco ordem modificavam 0 sentido aos ouvidos de um romané estava. 0 ordem natural da lingua alemi, que o tradutor evi- lemente ha de alterar de acordo coma ordem natural do Higués. Ele, porém, tem de possuir em si 0 sentimento ordem, para perceber qualquer alteragio que poderia exemplo. Quando é 0 verbo que principia a sentenga, & que € posto em relevo: acentua-se que o que uma das mig faz com a outra é lavd-la e nao sujé-la. Tais malabarisme oe ces . _ . ; ; sdo impossiveis em linguas sem declinagic, como a nos: far o sentido. que é forcada a recorrer a circunléquios. A declinagio ea jtemos a esse respeito a belissima quadra de Goethe, facilidades de colocagio que dela decorrem permitem ai que Fausto, aceitando © pacto infernal oferecido por latim um laconismo que talvez nenhuma outra lingua po: les, jura que nunca se dard por satisfeito e autoriza alcangar. Sio também elas que tornam possivel a compressi ; 4 . Demo a destrui-lo se o fizer. de qualquer pensamento dentro dos esquemas complicados d versificagdo classica, gracas ao namero praticamente infinite ' “ Werd ich dem Augenblicke sagen: de permutagGes a que as palavras podem ser submetidas.34 a of A . : a 394 Verweile doch! du bist so schén! A mente latina e mesmo 4 anglo-saxénica, a ordem Even ‘ i & fem Biante Dann magst du mich in Fessein schlagen, alavras numa frase alema parece a um tempo cémica | 5 P ® r F Dann will ich gern zugrunde gehn. *Ao mesmo tempo que elemento de preciso na prosa, a colocago das palavras no vee so latino pode ser fator estético as vezes requintadissimo, como neste distico do Cule Al volucres pauulis residentes duleia ramis Carmina per varios edunt resonantia cantus. — Fator estético de que o tradutor hi de abrir mio fatalmente. ure indes das kleine Tal hinabgefahren, wo die Strasse durch eine hélzerne, WF pinem Dache tiberbaute Briicke geht unter welcher das nach Hetschburg, ibiliessende Regenwasser sich eine Bette gebildet hat, das jetzt trocken lag.” swnann, Gespriche mi Goethe, Potsdam, Gustav Kiepenheuer Verlag, 1920, Ip. 228. 88 89 Ao tradutor familiarizado coma lingua nio escapa, lo} nservando-se aparentemente fiel 4 estrutura gramatical, no inicio da quadra, a inversio do sujeito e do verbo, m \ibilou por inteiro o sentido. este com que o alemio pode indicar 0 carater condicio: © mesmo se vé numa terceira tradu¢io brasileira, onde da afirmagio, em vez de explicité-lo por uma confirmag WM sequer a imposigao do verso pode ser alegada, pois o equivalente ao nosso se.*® Wma goethiano foi vertido em prosa: Daj a tradutora Jenny Klabin Segall ter vertido assi passagem: Direi ao tempo que foge: Demora eternamente. Es tio lindo! Podes entdo algemar-me, que me arruinarei com Se vier um dia em que ao momento Prize. Disser: Oh, para! Es tao formoso! Entio algema-me a contento, que aconteceu foi os dois Ultimos tradutores terem ver- J Entao pere¢o venturoso. lo escrupulosamente as palavras constantes do texto. Nao § Ocorreu que o sentido de um enunciado nio é a mera Sem examinarmos outros componentes do trecho, dire a dos vocdbulos que o compdem. Desta vez, porém, apenas que a tradutora, ao introduzir a conjuncao se, deu lnversio deveria té-los advertido da necessidade de, em periodo uma forma condizente com 0 uso da nossa ling tugués, completarem a sentenga.” Ja outro tradutor brasileiro, que, em vez de eneassilab Muitas vezes, porém, mesmo semelhante memento adotou versos alexandrinos para neles caberem todas futural faz falta; ai sé a convivéncia com a lingua-fonte nuangas do original, manteve a aparéncia de oragao ind pendente da primeira sentenga: de advertir o tradutor de que ha elementos subentendidos. fetanto construgdes tais, corriqueiras até hoje no alemao de todos os dias, no Devo sempre clamar ao momento fugaz: ii nem em inglés, nem em francés, Veja-se esta frase de Dickens: Aguarda! Tu és lindo! Espera! Nio te vas! B B ae “I assure Mr. T. T,. that I would not intrude upon his kindness, were 1 in any other position than on the confines of distraction.” (David Copperfield, cap. XLIX) Podes agora, sim, manter-me na prisio! Mergulho com prazer em toda a perdi¢io. i festa quadra de La Fontaine: Ne faut-il que délibérer, La cour en conseillers foisonne: Ext-il besoin d’exécuter Lon ne rencontre plus personne. (“Consetho tido pelos Ratos”) ‘Compreendeu-o Gérard de Nerval (Thédtre de Goethe, Pleiade, 993), quando na sua famosa tradugio, clogiada pelo proprio Goethe: “Si je dis 4 instant: donc, 1 me plais tant! alors tu peux: mentourer de liens! Alors je consens d m'anéantir! 90 91 Assim, em latim ocorrem amitide sentengas sem cépula tais como Periculum in mora, “O perigo [esta] na demora”, ou outros enunciados com reticéncia, como, por exemplo, Condito sine qua non, “Condigio sem a qual [nao se conclui negdcio]”, ou ainda Panem et cirenses, “[Queremos] pio € dugdes publicadas sucessivamente em que tentou a dificil jogos de circo”, que nao devem constituir dificuldade ma para um profissional com alguma tarimba. Mas 0 tradutor inexperiente, o mesmo que por instinto falta, em francés, diluiria 0 enunciado, enquanto a sua Senga destaca nitidamente a novidade da identificagio. 4 em portugués seria absurdo manté-lo. Bem o sentiu 0 poeta Darcy Damasceno em suas duas fa de trazer Valéry para o portugués: Oh, recompensa, apés um pensamento, se limita a verter os elementos visiveis de uma sentenca, Um longo olhar sobre a calma dos deuses! mais de uma vez cair4 no erro contrario, traduzindo vo- (Orfeu, Rio, 1949) cabulos apenas expletives, Ainda que nao empaque no falso artigo definido (meramente eufdnico) deste periodo francés, Si l’on me cherchait, dites que je ne suis pas 1a, “Se me procurarem, diga que njo estou”, sera capaz de traduzir E longo, o olhar, apds um pensamento Sobre a calma dos deuses se derrama. (Edi¢io Dinamense, Salvador, 1960) _ Podemos capitular entre os elementos estruturais de um obrigatério em francés (lingua em que ele estende a vigén- cia da conjungao quand 4 oragdo seguinte) mas supérfluo em portugués, ou nestoutro ainda: Cest un terrible luxe que fincrédulité (onde sua serventia esti em melhor separar 0 predicativo e 0 sujeito), €quivalente a: “E um luxo terrive a incredulidade?” (o a repeti¢do, cujo significado nao é o mesmo em todas linguas. Eugene A. Nida lembra que na Biblia, onde recurso € com frequéncia encontrado (“Tiuly, truly I Wy you”), est a servigo da énfase, ao passo que em certas ijuas filipinas é, a0 contrério, um meio de desenfatizar Mensagem; traduzida tal qual, a frase citada passaria a Pode-se considerar outro expletivo © que no segundo ificar “talvez eu diga”. Ainda que seja pouco provavel destes dois versos do “© cemitério marinho”, de Valéry: @ um tradutor brasileiro venha a traduzir do filipino, por isso devemos descartar o fendmeno, que também O récompense apras une pensée orre em linguas bem mais préximas. No italiano a re- Qu’un long regard sur le calme des dieux! elivio é processo intensificador em exemplos como mogio Wie, tratto tratto, adagio adagio, piano piano, e no somente 92 93 em express6es adverbiais; € comum uma frase como: és) nJo tem artigos ela mesma. E 0 caso do latim. Cada no, scusa scusa, Zilto zilto. Por se tratar de caracteristica geral z que num texto latino ocorre um substantivo o tradutor da lingua, nio peculiar a um escritor, ser4 preferivel ni opta, ainda que inconscientemente, entre trés solugdes: copid-la na tradugao. Em hingaro € comum, também com wzendo-o preceder de artigo definido, ou de indefinido, intuito intensificador, a repeti¢do do verbo. deixando-o sem artigo nenhum, Vejam-se os titulos de Esses exemplos mostram que todo texto é alguma coi: uns epigramas de Marcial: mais do que a simples soma das palavras que o compdem. C que devemos traduzir é sempre algo mais, isto é, a mensat Ad somnum Ao sono gem. E no ha duas linguas que exprimam uma mensagem dn malum poetam Contra um mau poeta de certa complexidade de modo completamente igual. 4 Ad Libram Ao seu livro lingua A ora explicita algo que na lingua B fica subenten: In obitum Severi Para a morte de Severo Ad lectorem Aum leitor. dido; ora deixa de exprimir, por dbvio, algo que naquel; exige uma ou varias palavras. Poderiamos alinhar exemplos indefinidamente. Prefir 4 tradigao ajuda-nos quanto aos titulos de algumas obras me limitar, porém, a palavras nio nocionais, esses simple ten eferimo-nos 4 Eneida, de Virgilio, aos Tristes, de instrumentos gramaticais que “no tém sentido” e por iss idio, 4s Histbrias e aos Anais, de Tacito: mas dentro de um parece que nao oferecem problemas ao tradutor. yntexto mais de uma vez pode haver incerteza. Di-se o mesmo com 0 russo, como © provam alguns titu- Tomemos um dos mais simples, 0 artigo definido. Ess Mat’, de Gorki, traduz-se por “A Mie”, mas Krassavitsa, Puchkin, é “Uma beldade” e Stikhi krassivoi jentchtine, de in, sio “Versos a uma linda mulher”. Evidentemente, palavrinha to inexpressiva (a mais nova nas partes dl discurso, que etimologicamente representa uma degeneres céncia do pronome demonstrativo) tem os seus percalco: Enquanto a maioria das linguas em que existe 0 us (nidutor russo de um texto portugués ndo enfrenta esta iiculdade; em compensacdo deve ter outras provenientes antes do substantivo, o romeno usa-o depois. Assim també F fazem as linguas escandinavas nas quais 0 mesmo artigo alguma caréncia do portugués. indefinido ou definido, segundo esta antes ou depois d Luis B. Solomon Iembra 0 caso curioso de um filme substantivo: sueco stenen, “a pedra”, ensten, “uma pedra ces cujo autor foi obrigado pela censura a mudar o Isso, porém, é apenas uma curiosidade lo de La femme mariée para Une femme mariée, pois o ti- lo original podia insinuar que todas as mulheres casadas O problema come¢a quando a lingua de que traduzi: para outra dotada de artigos (como por exemplo o portt jeavam o adultério! Era em 1964, quando a censura de 94 95 filmes pensava ainda poder conter o erotismo. Se o titulo para se distingui-las recorre-se obrigatoriamente aos fosse em latim, observa Solomon, brincando, o autor nao pronomes: je parle, tu parles, il parle, elle parle, ils parlent, elles teria de enfrentar essa complicacao. parlent. Dai vem que a tradugio francesa de um romance Acontece também que o artigo ganha valor afetivo. brasileiro tera trés ou quatro vezes mais pronomes pessoais Temos disto exemplos continuos em portugués quando que o original; inversamente, o tradutor brasileiro de uma falamos familiarmente em 0 Francisco, a Célia, o Motinha, ‘fiarrativa francesa tera de ter muito cuidado para nao verter o Fernandes. Outras linguas apresentam fendmeno seme. maior parte dos pronomes que se lhe deparam no original lhante — apenas a conotacdo do nome préprio precedido nio s6 por motivos estéticos, mas também para evitar de artigo é diferente. Em francés, essa associagao tem sabor eyentuais confusdes. camponés e matiz pejorativo; em alemao tem carater regio: _ Nio é tudo. O pronome mais comum, vous, que pode nal, pois der Meyer, der Fritz sio usados no Sul, mas nao no {unto referir-se a uma como a virias pessoas, e desempenhar Norte da Alemanha. Mais curioso ainda o caso do italiano,’ fungées de sujeito, objeto direto e objeto indireto, nio em que 0 artigo é, regularmente, anteposto a sobrenomes 1m equivalente exato em portugués, 0 que importa dizer ilustres: [’Alighieri, la Duse, il Tasso. que ele exige varias tradugdes conforme o contexto. O seu ‘eognato vds s6 raramente pode substitui-lo; assim, na tra~ Os pronomes, antes elementos estruturais que nocionais lug’io de textos antigos, por exemplo do teatro do século XVII. Vocé pode apenas verté-lo para designar pessoa da ‘intimidade do interlocutor ou inferior a ele. Mais comu- a primeira vista nao deveriam apresentar problemas. Na verdade, eles constituem um cipoal, onde sé se pode avancar com 0 maior cuidado. Os pronomes pessoais em particular lente ha de ser traduzido por “o senhor” ou “a senhora”. estio envolvidos numa rede de convengdes e complicagdes. ‘Tem, além disso, um emprego sem analogia em portugués: de hierarquia social que é impossivel desenredar sem co quando, segundo as gramiticas, funciona como flexdo nhecimento intimo da lingua de partida. Precisamente por le on, € quando sua tradugao mais indicada é “nds”. On ne seu sentido ser dbvio, eles se prestam mais ao erro que o$ 14s pardonne pas vos vertus equivale a “Nao nos perdoam as substantivos menos familiares, pois esses, pelo menos, sia Hossas virtudes”. abordados com desconfianga. _ Poder-se-ia pensar que pelo menos 0 francés tu e 0 nosso A lingua francesa é a que faz 0 maior consumo de pro- tu’ se correspondem perfeitamente. Mas, ao passo que tu nomes pessoais sujeitos’ Devido 4 queda das consoantel de uso exclusivo entre parentes e€ amigos na Franga, no finais e ao emudecimento das vogais da tltima silaba, rasil é de uso regional e em grande parte do pais se subs- diversas pessoas do verbo pronunciam-se da mesma forma tui por “voce”. 96 a7 ade crescente. Na Fedra de Racine, a heroina comeca involuntaria confissio de amor a Hipdlito tratando-o is; “Quand vous me hairiez, je ne me plaindrais pas”; mas is que ela lhe escapou toda, passa para o fu (embora o Jocutor nao Ihe partilhe os sentimentos): “... Ah, cruel, O dualismo de formas Stonas e acentuadas (como je mot, ile lui), sendo muito mais limitado em portugué aparentes tautologias como moi je pense devem desaparec obrigatoriamente na tradugdo portuguesa: “Eu penso) ou “Por mim, penso”, mas o francés que traduz um livre brasileiro tem de imaginar a entonac3o para saber quand reproduz “eu” por je ou por moi je. ay trop entendue.” Is pronomes pessoais ingleses exibem variedade menor. Chamemos acessoriamente a aten¢do para este fendmen to brasileiro que é a mistura de tratamento: “Vocés conhe: cem as vossas obriga¢des”, e que, sendo comum nas pesso de cultura deticiente, é um indicio de Status social. Com ingua comum you é a tinica forma de tratamento. Subs , porém, na lingua literaria a forma thou e suas Hens , thy, thine, arcaica, poética e retérica. Sio uugias também \ que se dirigem a Deus. Na frase final de David Copper- |, em que © narrador inyoca a esposa, 0 emprego eles jas indica um excesso de amor confinante a veneragio, semelhante fenémeno nio existe nem no francés nem n inglés (embora haja coisa semelhante em alemio), 0 traduto: do texto brasileiro para uma dessas linguas compensara © qual nio possuimos correspondente: caracteristica por outra, eventualmente de natureza léxica, Para se ter ideia do matizamento complexo expresso n; © Agnes, O my Soul! so may thy face be by me when I close my life indeed; so may I, when realities are melting from me like the shadows which I now dismiss still find escolha dos pronomes em nossa lingua, leia-se o excelente artigo de Ivana Versiani, “Tu, vocé (e outros Pronomes) n: poesia de Drummond” (Minas Gerais, Suplemento Literario, 18 e 25 de dezembro de 1976), em que a autora aponta| efeitos de familiaridade, intumismo, humorismo, ironia e thee near me, pointing upwards. r O efeito, é claro, desaparece na tradugio brasileira: até migoa e desespero obtidos Por nosso grande poeta por meio da adogio desse ou daquele pronome ou da mistura de pronomes, e percebidos pelo leitor brasileiro ainda que inconscientemente. Pois efeitos semelhantes podem existir € nos passar completamente despercebidos em qualquer outra lingua. O Inés, 6 minha alma! Possa esta imagem estar sempre comigo, até o derradeiro instante, quando fechar aioe olhos a vida presente; ao deixar eu a realidade, como deixo hoje estas sombras queridas, possa eu vé-la ainda ao meu lado, apontando-me 0 céu... A passagem de vous a tu, encontradic¢a na literatura fran- cesa, é de Ambito bem menos amplo e indica normalmente 98 Da mesma forma, s6 circunléquios poderiam, talvez, rmay verbais de deferéncia em virias If | varias linguas: traduzir uma curiosa conotagio dos pronomes italianos Bess wey: » . . . ah tira”, “digne-se”, veuillez etc. No russo popular ainda lei, tu e voi, s6 teoricamente permutaveis; ora, durante o ; 4 . . . . oo ; nanece a particula de cortesia: da-ss “sim senhor”, niet-ss regime fascista, 0 partido tentou reanimar voi, mais arcaico, 38 » senhor”. Parece que o japonés é particularmente rico qualificando-o de mais popular que 0 aristocratico le Ay : desinéncias e até palavras correspondentes a diversos . ca ; is de deferéncia. E claro que n: Fi i Podem ser tratados aqui os chamados axidnimos, tais Ge na traduyan; de tats forums : ne : “« q idutor procedera d j — como “senhor”, Sir, Monsieur, Herr etc. Embora “senhor” P ea mntenda-se que n§o pretendemos esgotar o assunto, jas exemplificar a existéncia de problemas de tradugio menos esperariamos. e “senhora” muitas vezes correspondam a Monsieur e Ma- dame, 0 uso desses dois termos nas formulas oni monsieur, non madame geralmente € idiomatico, isto é, ndo se traduz, contrariamente A tradugio recente de um romance frances Juem pensaria encontrar dificuldades como as que onde pululam frases desastradas como esta: “Muito obri- r ‘4 : “p “« 4 os de assinala: i gado, senhora, a senhora é muito gentil” ou “Bom-dia, it no setor dos numerais, palavras de ido claro e inequivoco? Entretanto, para o nosso ad- senhor”.>’ Mademoiselle tem seu equivalente em portugués: r “ .» A . « a? : ae segundi $1 3 senhorita”, mas que evitamos usar antes de nome proprio, gundo” o francés possui duas tradugdes, second € me, que, de acordo com algumas gramaticas, muitas substituindo-o pelo axiénimo “dona”, menos discrimina- nao seriam permutaveis. tivo. “Exceléncia” é de uso corrente em Portugal como Os, a esse respeito, num artigo do Coronel Remu, forma de cortesia; quase nunca lhe corresponde o francés ado Et si Hitler avait gagné la guerre. “excellence”, restrito a alguns casos bem-delimitados. Em. francés uma carta dirigida a um desconhecido comegari Or mon ami a qualifié Deuxigme Guerre Mondiale celle pot Monsieur, que no inglés corrente equivale a Dear Sir. . que les historiens dénomment généralement ‘Seconde’ S=Sob o fascismo era obrigatério tratar por voi os superiores e por ti 0s inferiores, dans l’espoir inavoué que notre planéte n’en connaitra pas [A discriminagio das pessoas entre superiores e inferiores, entre as classes do voi ou lei e do tu, persiste naturalmente até hoje.” Famiglia cristiana, 9. LV, 1978. A simples tradugio de Madame vocativo & apontada em Portugal também cong erro: “Quantas vezes nos nossos filmes ou nas pegas de dramaturgos portuguese se ouve no palco, ou na tela, um homem tratar uma senhora apenas por senhora: senhtora quer? ow a senhora gosta? ou outra frase do género, desconhecendo as regriy mais elementares da educagio, que nos ensinam que senhora, sozinha, nio se utiliza sem o dona.’™*Donas, senhoras ¢ madames”, de Fausto Lupo de Carvalho no n° de 5 de outubro de 1980 do Didrio de Noticias, de Lisboa. une troisiéme, un peu comme I’on touche du bois pour conjurer le destin, reméde qui semble, hélas, douteux... (Les Nouvelles Litéraires, n° 218, outubro de 1972.) compensa¢do, para os nossos numerais “setenta” e venta”, o francés é que tem duas formas, soixante-dix ou 100 101 me hipnotizam”. No romance As meninas, uma das perso: Dentro de minha propria experiéncia de tradutor, nagens de Lygia Fagundes Telles serve-se volta e meia d brarei que em hingaro as palavras de empréstimo diferente prestigio social segundo a lingua de onde : muitas de origem latina, que, no decorrer do mesma palavra hibrida bouleversada, de grande for¢a cara¢ terizadora. O tradutor francés, quando aparecer, ver-se=j em apuros, pois se empregar 0 termo corrente boulevers po, desceram da gentry para o povo, tém sabor cam- que nada tem de hibrido nem de afetado, ter4 perdidt ino: penna, notdrius, drkus; as de origem alem4, usadas grande parte do efeito. O mesmo acontece na novela “At da Catedral de Ruio”, de Mario de Andrade, cujas perso © meio pequeno-burgués, revestem-se geralmente de halo cémico ou pejorativo: Schlafrock, Zuspeis, Vater, nagens em sua meia-lingua franco-brasileira recorrem a luiicr; enquanto as de francés — toilette, costume, salon, inexistente vocdbulo “afrosa” (affieuse).* oir — dao impressio de aristocraticas. Impossibilitado Semelhante dificuldade percebe John Hollander‘ transmitir essas conotagdes pela simples reproducio iis palavras em questao, o bom tradutor procurar4 outros 08 para situar socialmente trechos do seu texto. primeiro verso de Brise Marine, de Mallarmé, para quem queira traduzir em inglés: Je partirai! Steamer balangant ta mature, Léve l’ancre pour une exotique nature! Segundo ele, traduzir o verso deixando steamer tal qual, acrescentando quando muito uma nota de pé de pagina pa assinalar que no original a palavra estava em inglés, seri uma confissio de derrota. Preferiria uma palavra francesa usada em inglés com a mesma frequéncia: paquebot. “Num excelente estudo sobre “Francés ¢ francesismos em Pedro Nava” (Suple mento Literirio do Minas Gerais, 13 ¢ 20 de setembro de 1980), Agenor Soa dos Santos arrola um sem-ndimero de francesismos semelhantes na obra do grand memorialista, entre outros: afublar, amenajar, bedonar, brasseria, chaperonar, devisajay emagazinar, enjambar, harcelar, hurlar, larcinio etc “Versions, interpretations and performances”, in On Translation, organizado pok Reuben A. Brower, A Galaxy Book, Nova York, Oxford University Press, 1968 p. 205 ess. 104 105 4. USOS E ABUSOS DA TRADUGAO Apogen e decadéncia da tradugio entre nés. Influéncia prejudicial do best-seller, Remuneragio inadequada e pressa. Escolha do original. Recurso a um texto interme- rio, ou tradugio de tradugdo. Tradugao a quatro mios. ‘Tradugdes através do portugués de Portugal. Tradugio e dii adaptagao. Alteragdes e corre¢des do original. Vantagens e desvantagens do copidesque. A tradugio dos titulos, ou como verter textos sem contexto. OS CAP{TULOS ANTERIORES a tradugio tem sido consi- rada como atividade meramente intelectual, na qual as nicas dificuldades sao as oferecidas pelo texto. Na pritica, jorém, a tradugdo se apresenta como uma operacio de Muitas faces, que envolve aspectos comerciais, técnicos, psicoldgicos etc. Se ndo os levassemos em consideragio, fiossas conclusées ficariam como que suspensas no vacuo. Quem um dia escrever a histéria da tradugio literaria ‘no Brasil ha de verificar um fendmeno semelhante ao da urbanizagdo. Nas grandes cidades europeias houve uma evolugao arquitetOnica lenta e progressiva, que permitiu a 107 formacao de bairros centrais de caracteristicas estéticas e José Olympio, Melhoramentos, Vecchi, Pongetti, Difusio imprimiu a cada cidade uma imagem inconfundivel. Nas Europeia do Livro, langaram colegdes de obras universais. nossas metrépoles a evolugdo foi excessivamente rdpida e Os tradutores, embora no muito bem-pagos, podiam ca- febril. Bairros de aspecto provinciano, sem ruas asfaltadas, prichar em suas tradugdes e muitos fizeram-no por amor 4 nem esgotos, tiveram suas casinhas substituidas de repente arte. Foi quando safram tradugdes de Balzac, Dostoiévski, por arranha-céus sem passarem pela fase intermedidria. Dickens, Fielding, Maupassant, Manzoni, Flaubert, Proust, Alhures edificios de quatro e cinco andares foram demoli- ‘Tolstdi, Stendhal, e outros. dos antes de atingirem 0 minimo de idade previsto. Ruas Mas de uns vinte anos para c4 a influéncia crescente dos inteiras desaparecem para dar lugar a viadutos, ttineis, pas: Meios de comunicagdo vem contribuindo para o abandono sagens subterraneas. Quando abrimos os olhos, descobrimos progressivo da literatura de alta classe em prol dos eventuais que no meio dessas transformagées radicais desapareceu best-sellers, mesmo com prejuizo da qualidade. Depois da precisamente aquilo que outrora justificava a criagio de primeira repetigio no Brasil de um éxito internacional, Bl 0, que ndo acabou até hoje. Os editores tentam garantir a uma cidade: uma vida mais segura e mais alegre em meio ) verito levou, comegou a caga aos livros de grande éxi- as pracas, as alamedas arborizadas, aos bancos das ruas, ao: asseios par: a ital. Boordbl i i Pp para 0 fldneur, ao espaco vital. fecuperagio rapida de seus investimentos, procuram obras indiistria editorial é 6 i z . AS see editorial é, entre nés, relativamente = le escoamento certo, ¢ para isso querem aproveitar-se da As primeiras grandes editoras comegaram a surgir na décad . 5 i . opaganda internacional, enquanto quente. Importa, pois, de 1930. A producao nacional nfo era muito abundant ; i . i . ue a obra do momento seja publicada quanto antes e, para e diversas casas incluiram em sua programagio as obras: . ; x . . . . nsegui-lo, faz-se tudo, inclusive, nalguns casos, aumenta- primas da literatura mundial, em parte por verificarem qu 7 a Jon: . F . . ll 0 honorario do tradutor. A vitima n° 1 é 0 livro. Dir-se-4 a linguagem das tradugdes publicadas em Portugal diferi , - i jie a maioria dos best-sellers no acontece injusticga, pois nio muito da usada no Brasil, em parte porque obras do domini eee ae x, a ~ erecem tratamento melhor. As vezes, porém, ha entre publico nio pagavam direito autoral. Comecou entio ui processo que nos paises de cultura jé se tinha concluido: s novidades de real valor literario que, dada a pressa com i - _— a sio vertidas, ficam definiti nte inutili Ti incorpora¢ao e naturalizagao das grandes obras de ficca . ertidas, fi tivamente inutilizadas para 0 especialmente do século XIX. Era a breve idade de oun blico brasileiro. Mesmo no caso de livros mediocres, no da traducao brasileira. (Ao falarmos em ouro, referimo-n tanto, é de desejar uma versio correta, pois a evolugio 3 qualidade das tradugdes, mio 4 sua remuneracio, é claro, vernaculo sofre a influéncia tanto de obras originais, Foi quando editoras como a Cia. Editora Nacional, Glob nto de tradugdes. 108 109 Enquanto isso, a publicag’o das grandes obras classica ido 0 original com antecedéncia, marcados os vocdbulos estancou. A comédia humana de Balzac, as obras reunidat ificeis, esclarecidas as alusdes, ele ndo precisaré mais in- de Dostoiévski nio foram reeditadas. Fato mais tristt yromper O seu servi¢o e estaré em condigédes de executd- ainda: uma caprichada edigdo da obra de Dickens, tod Jo num ritmo uniforme, podendo calcular-lhe a durag’o ela traduzida, esta dormindo nas gavetas da Livraria Jost om exatidado razoavel. Nio basta que o tradutor leia com ateng¢io 0 texto que he cabe verter. Convém verificar-lhe a fidedignidade, Olympio. As Edigdes de Ouro, que durante algum te: po reeditaram em formato de bolso as obras-primas qut refa que ao editor simplesmente no ocorre. Estava eu rabalhando na Editora Globo, quando me veio ter as outras editoras tinham mandado traduzir, aos pouco! renunciaram a fazé-lo. mios a tradugdo das Viagens de Gulliver, de Swift, enco- mendada para a excelente Biblioteca dos séculos. Por feli- idade percebi em tempo que o texto-base foi uma das Quer dizer que pelo menos estes dois fatores obrigam ¢ tradutor 4 pressa, aqui como alhures inimiga da perfei¢do a baixa remuneragio, que o forga a verter num dia o maio Wiuitas adaptagGes para criancas, e consegui impedir-lhe 4 composi¢io. numero possivel de paginas, e a rapidez com que o client lhe reclama a mercadoria. Sem querer langar toda a responsabilidade a conta d Outro caso, talvez ainda pior, poderia ter acontecido na < : a Prémios Nob: i 3 editores, nem isentar inteiramente de culpa os tradutores pias elie Ditecal tage Co mt aoe He ate Jestina a cada premiado um volume especial. Essa Colegio devemos reconhecer que tradugio feita 4s pressas na¢ oo i era calcada num trabalho semelhante publicado em francés pode ser boa. Uma obra original pode 4s vezes nasi . . . “ a . x uma editora de Paris, a qual cedeu 4 sua congénere ao calor da inspiragao, de um s6 jato, em poucas sema ; . . . . Lg. . . sileira as ilustragSes especialmente encomendadas. No nas ou dias, e se beneficiar disto; a tradugdo, porém, | oo, . . x aso de Sienkiewicz, nio havendo tradutor que soubesse sempre lavor de filigrana e nao deve ser executada en i . * ae : twaduzir diretamente do polonés, era 6bvio mandar verter cima da perna. a er : . francés o famosissimo Quo Vadis? E teria entregado o . . spectivo texto a um tradutor, se a delgadez do volume O que se deve desaconselhar, especialmente, é a tradus a fi . . Coney . . ‘illo me fizesse desconfiar de alguma manipulag4o. O cotejo gio feita direto sobre o texto sem uma leitura prév. 2 a A : : 4 gom outra edi¢do mostrou-me que o original fora mutilado ilude-se o tradutor que julga ganhar tempo renunciand — , ——— de maneira inconcebivel, havendo cortes ndo s6 em cada a essa leitura, pois ela lhe permite obter uma visado globa b 2 4 a P P gloy apitulo, mas em cada pagina e até em cada frase. Verifi- das dificuldades e fazer a seu gosto a pesquisa necessaria : * ; . 8 pesd q eando que o romance integral s6 caberia em dois volumes, 110 1 quando a colegio reservava apenas uma Sienkiewicz, es ' © problema substituindo o romance Por uma coletéi contos de sua autoria. los ao desempenho de semelhante tarefa. Incapaz 04 rodeios de outras linguas, impossibilitado de ayras novas por composi¢io e alheio, em geral, ao Este caso leva~me a examinar dois problemas d: ie _— rian = oor literaria: 0 do recurso a uma lingua inter aia J Soc fc va = fo eH * we Het edo curso, acces me idria qu Na carta-prefacio 4 a tradugio de Hamlet, André ag orig al,eo da adapt _qieixa-se da intransigéncia dessa lingua de estritas mal necessirio, § qual obras-primas vazadas em linguas exéticas ous Pox POVvos numericamente reduzidos nio poderiai creulpadas, Durante um século as obras monumentai! uteraiura Tussa s6 puderam chegar ao conhecimento Sug Sra¢as a tradutores sobretudo franceses ¢ vers6es depois eram vertidas para as demais lin, al grandes epopeias hindus, os classicos chineses yi jl uma ne O romance de Genji, a literatura escandilt tudo isso espalhou-se em tradugdes de segunda mio, inconvenientes do processo saltam aos olhos: clas gramaticais e sintdticas, clara, precisa e prosaica, ilo dizer antipoética”.? Jei noutro lugar® dos inconvenientes da transposi¢do {101 texto italiano através do francés. jitre deformagées causadas pela interferéncia de uma ira lingua estio muitas monstruosidades ortogrificas {ranscrigio de nomes estrangeiros, especialmente russos, que a maioria dos tradutores nao segue nenhuma regra, adota em bloco a grafia francesa ou inglesa. Muitos ou- 4 efeitos dessa hibridizagdo poderiam ser demonstrados. ainda assii \téria interessante para trabalhos dos cursos de traducio sdo inferiores aos que deverfamos ao desconhecimento to de criagGes tio importantes da imaginagio humana. A qualidade da tradugio indireta esta, lopicament™ a fun¢ao da do texto intermediério, Por isso a validez d tem de ser estabelecida do modo mais cuidadoso. Pol mesmo um texto intermedidrio de real valor pode d. ria verificar, através deles, quantas obras inglesas chegaram (¢ nds via Paris até o fim do século.* Winclhante depoimento fizeram virios profissionais no Coléquio Internacional dugio (Nice, maio de 1972). Bles sublinharam uma dificuldade inerente jo francés, “lingua excessivamente precisa, mas particularmente inabalivel, cujo Vocabulario se abre muito pouco 4 flexio, a invengio, ao neologismo. Lingua JWeriria como poucas, ignora o registro popular natural, oscila entre a giria ¢ 0 _ jeeiosismo, ¢ dé ideia bem imperfeita do jogo verbal da maioria das outras linguas. ‘Ajiis.o nascimento do franglés bem demonstra a incapacidade quase total da nossa Jinjua para reproduzir as nogdes priticas (e mesmo tedricas) que faz surgir cada dia ina civilizagio em estado de evolugio acelerada”, (BABEL, Revue Internationale se la Traduction, n® 4 de 1972.) Escola de tradutores, cap. “As Tradugdes Indiretas”. NA esse respeito, a tese de Onédia Célia de Carvalho Barbosa, Byron no Brasil, alugdes, Sio Paulo, Atica, 1975, merece mengio especial. ori 6 jei igem a retradugdes desajeitadas ou ilegiveis, quando tradutor na cobri ‘ nao sabe descobrir e contrabalancar efeitos defor. ma A intri lores devidos a natureza intrinseca da lingua de permeio, Oi fr A . see ‘ ‘ances, o intermedidrio preferido da literatura mun. di é é al durante séculos, €, paradoxalmente, idioma dos menos 112 3 A vista desses perigos da tradugio indireta, nio seria pr A famosa versio de Fausto por Castilho confirma o ferivel, no caso de originais inacessiveis a0 tradutor, recorn dissemos. Sem saber alemio, realizou ele obra artisti- ao método do trabalho a quatro mios? Explico-me: mente valida, bem melhor que muitas versdes feitas do verter um conto japonés, pedir-se-ia a um natural do Japil ginal, servindo-se, para tanto, de uma traducdo intralinear ano de tilho, da tradugdo portuguesa anterior, de Ornellas, e estabelecido no Brasil que 0 traduzisse, oralmente ou pe Fiduardo Laemmert, de outra do irmio José Feli escrito, ainda que de forma rudimentar, para o portugues submeter-se-ia depois essa versio a uma revisio cuidado {juatro tradugdes em francés. Afirma o ilustre tradutor de pretens6es artisticas? alguma razio: Apesar de eu haver me beneficiado extraordinariament com esse método, a que devo quase tudo quanto sei ago ~~ Me Parece questdo ociosa, esta de se perquirir se um x % tradutor sabe ou no a lingua do seu original; 0 que im- de portugués, parece-me que ele sé pode ser empregad . . F i . : porta, € muito, € se expressou bem na sua, isto é, com em casos muito excepcionais, quando 0 convidado a faz gs P a 4 . . ; vernaculidade, clareza, acerto e a elegincia possivel, as a traducdo embrion4ria tem manifesto interesse linguis ; ideias e afetos de seu autor. e alguma sensibilidade estética. A nao ser isso, ele tend considerar os limites do seu conhecimento do portugt Cabe aqui assinalar um fendmeno curioso que nio como limitag6es da prépria lingua portuguesa, e, sem qui Jera escapar a quem um dia se dispuser a escrever a his- ter, empobrece 0 original de tal forma que nem o colabg da tradugao literaria no Brasil. E que frequentemente rador mais artista sera capaz de reencontrar-Ihe as riquezi ssionais pouco escrupulosos tém escolhido para lingua perdidas pelo caminho. rmediaria nao o francés, nem sequer o inglés — mas jortugués. Convidados por um editor a verter um ro- Assim sendo, preferir-se-4 0 recurso a uma tradu live classico tanto procuram até que descobrem numa intermediria que, pelo menos, foi executada por um profi oteca ou num sebo alguma tradugio feita em Portugal. = . a 2 . rr : sional da pena, portanto mais capaz de captar as caracterist tarefa é substancialmente facilitada: basta modificar a cas do original e de respeita-las. Desnecessdrio dizer que agio dos pronomes, evitar os lusitanismos fonéticos tradutor deve entdo conhecer a fundo a lingua intermediar se refletem na ortografia, substituir algumas estrutu- para poder perceber 0 que esta, em virtude de suas prop liisas por outras familiares entre nds (assim estar a fazer leis, adicionou ao texto, assim como cercar-se de todas ‘ilar fazendo) e meia dizia de vocdbulos lisboetas por garantias possiveis. Walentes daqui. S6 Deus sabe quantas tradugdes foram 114 115 feitas dessa maneira. Paradoxalmente, o trai ir i! é > dutor pl: windo-se a alterar o desfecho, ¢ muitas vezes até o sen- admite que o seu predecessor fez excelente trabalho, € Bprofundo da obra. E de esperar que essa praxe de todo isso vai pilhando-o sem qualquer preocupacio, € ao m 4 i P qhalquer pI Para, wlendvel desaparega aos poucos com o desenvolvimento tempo da ideia de que esse trabalho nao merece respe tonsciéncia profissional do tradutor: reclamando respeito orquanto se abstém de indicar o nome de quem o Re i irei Bow q fs © proprio trabalho e reconhecimento de seus direitos, assim surgiram esses volumes, em cuja folha de rosto, i de se tornar o defensor dos direitos do autor. baixo do nome do autor, se 1é apenas: “Traducdo revista a Mais de uma vez essas arbitrariedades so acobertadas tem havido tradutores ignorantes ou apr ‘ A * 430”. Ni " g! apressados, € que, etiqueta comoda de “adaptagdo”. Nao se pode afirmar pressa imposta pelo prazo ou pela pobreza, preferem si plesmente deixar de lado os trechos que apresentam dificuldade acima da média. jori que toda e qualquer adaptacdo seja condendvel. Ha ‘Heros em que é mais admissivel do que noutros. Ela pode ¥ defendida com mais argumentos no teatro do que na jlo. Em todo caso a capa de um livro adaptado deveria tas obras classicas podera dar-nos uma primeira impres! . eres : da superioridade destas tiltimas, por estarem adaptada: nossos habitos linguisticos; mas 0 cotejo de ambas com nalar o fato de maneira inequivoca, como o fazem os irtazes teatrais. © setor especial da adaptacao é a literatura para adoles- jites. Desde muito se tém feito condensagées para jovens livros t4o importantes e sérios como As viagens de Gulliver, son € Don Quijote. Mas atualmente parece haver ex- fesso de obras desse tipo no mercado nacional. Ora vemos se permitiu mutilar, recortar, igi en 5 inari ‘ x P » desfigurar 0 original. Pi curtarem-se obras originariamente escritas para jovens, sar-se-ia que, para semelhant i i idadt " ee gns,.P te crime, existe penalidad onde a adaptagdo era desnecessdria, ora desossarem-se e orque os direitos do autor geralmen A ido. 5 hoi ord 8 te estio reconhecid tlomesticarem-se obras as mais adultas e tragicas (como as de mas no caso de obras caidas m inio publi a é i ‘0 dominio piblico nao Marka), onde ela é absurda. Em ambos os casos, os editores sangao aplicavel. Muitas vezes a alteragi was Gay: 4 ran §20 2p eragio se faz em no# uirecem visar a facilidade de leitores de vocabulirio minimo de supostas exigéncias do géni i énci Pi gi genio da lingua para a qual @ cultura escassa. Se nado, como lutar contra a concorréncia traduz; eliminam-se porm: j inttei i 7 pormenores, julgados iniiteis, redi -esmagadora das revistas de quadrinhos ou das novelas de zem-se paragrafos, suprimem-se as fit intei a ‘ e Parag PI € as vezes capitulos inteirg televisio? Por outro lado, as obras assim adaptadas deixam 116 117 de pertencer ao autor e passam a fazer parte da baga do adaptador, muitas vezes escritor de mérito e que asi ligSes corretas — no que andaram errados, pois as \ das eram intencionais. Quer dizer que a boa traducao procura complementar os seus parcos proventos. Talveg pode ser melhor que o original? Elsa Gress* admite dia em que ao tradutor forem reconhecidos direitos sob Hes. Abrandando o tom de um texto pretensioso ou trabalho, se veja diminuir a pletora das adaptacées, de cultural duvidoso. i\irando sua pitada de ironia a outro texto, que seria de jportavel solenidade se traduzido fielmente em dinamar- 4 lingua, ao que parece, abafada, de surdina, cheia de Em geral é preferivel que 0 tradutor se considere o curador do autor antes que o seu colaborador. Quante medida de sua colabora¢o, as opinides divergem. Tog Jerstatement e de ironia —, obedecer-se-ia apenas 4s leis escritas desse idioma e prestar-se-ia servigo ao original. concordardo em que ele pode e deve corrigir os erros { pograficos do original, eventuais trocas de palavras e cor fusdes de nomes. Mas, segundo Valery Larbaud, nio de passar disso: / Palarei mais adiante de toda uma corrente recente da go poética que advoga a versio quase totalmente livre, merecedora do nome de adaptac¢ao ou de imitagao, de Ezra Pound foi um dos representantes principais. No mento quero limitar-me a alteragdes empreendidas por Quem diz tradutor diz servidor da verdade: 0 texto, traduzir pode parecer-nos especioso, eivado de erros d julgamento ou de ideias falsas, mas enquanto texto a th otivos ndo estéticos, como a operada pelo inglés Richard neis Burton,” um dos tradutores de Os Lustadas. Nio - sitou ele em introduzir no poema camoniano toda uma duzir, edificio verbal que tem um sentido preciso, el , estrofe de sua lavra para desafogar-se dos dissabores que verdade, e deformd-lo ou mutili-lo é ofender a verdad : ihe custara uma polémica sobre as fontes do Nilo, que ele ‘ tendera ter encontrado! Toda a cautela € pouca, mesmo no caso das retificagé mais 6bvias. Lembra Robert W. Corrigan® que varias pet sonagens do teatro de Tchecov citam frases de Shakespear de modo errado. Tradutores bem-intencionados, ao verte rem esses dramas em inglés, caridosamente restabelecera Na histéria das adaptagGes teatrais é notdvel o caso de recht, um dos autores que maior nimero de obras adap- laram representando-as com 0 proprio nome. Mas quando “The art of translating”, in The World of Tianslation. Artigos apresentados na Conteréncia de Estudos Literarios, realizada em Nova York, com 0 apoio da P.E.N. Aierican Center, em maio de 1970. "Virederick C. H. Garcia. O Uraguai. Alguns problemas de uma tradugio inédita. Minas Gerais, Suplemento Literirio, 7 de setembro de 1974. **Translating for actors”, in The Craft and Context of Translation, organizado po William Arrowsmith ¢ Roger Shattuck, Garden City, Nova York, Anchor Books Doubleday & Company, Inc., 1964, p. 129 e segs. ug 119 verificava que alguma companhia teatral se permitia intro: vonhecida fabula de La Fontaine, para enxotar uma mosca duzir qualquer alterag’o nesses textos, Brecht era o primeir pousada no nariz do Homem seu amigo, esmagou a ambos vom um paralelepipedo.? O famoso adigio “Errar € humano” encontra exem- a chiar, a invocar os direitos sagrados do autor, a ameag os infratores com protestos.*® Que se ha de fazer, quando 0 texto, insuficientement plificagdo pitoresca e abundante na atividade tradutora. claro para leitores de outra nagio, exige explicagdes? Hi Devido a pressa, 4 desatengdo, ao desconhecimento de uma © recurso As notas, ao pé da pagina ou no fim do volume. ou outra lingua, a incultura, 4 auséncia de bom-senso, 4 Tais notas atualmente sdo desaconselhadas em livros de fic: filta de imaginacio, o tradutor vive a errar e seus erros sio ¢4o, onde, ao que se diz, contribuem para quebrar a ilusio, jpontados com ironia e sarcasmo. Muitas editoras, escalda- prejudicando a identificagao do leitor com a obra. Por iss tlas, tém recorrido ao sistema de copidesque, especialmente hA quem recomende ao tradutor encontrar um jeito par em caso de tradugées técnicas. Em linha geral é de desejar incorpord-las ao texto sem o sobrecarregar. que toda tradugio seja vista por alguém que a leia como ‘ aad nce ra én lhe experimente 0 impacto antes que o Elas porém podem parecer desejaveis em obras classicas bra auténoma e expen eee qv distantes de nds em tempo, Ingar e espirito; como se ver Manuscrito va 4 composi¢ao. Mas, por outro lado, e sobre- coe oo & oe a om tudo em tradug6es literdrias, de valor artistico, convém que mais adiante, achei-as indispensdveis na edigio brasileira d ; 6 a on tais modificagdes nao se efetuem sem o consentimento do A comédia humana de Balzac. De qualquer maneira, é mister distinguir entre as nota proprio tradutor. Tém-se visto casos em que a colabora¢’io Z i de um revisor profissional introduziu erros, pedantismos, do tradutor e as do autor, quando as hd, fazendo-as seguil z . . alteragSes absurdas em trabalhos de alta categoria. Uma entre parénteses, respectivamente, das abreviaturas N. d T.ouN. do A. Ja em obras de natureza nfo literdria as notas de pé d excelente tradutora italiana de Hemingway queixa-se de (ue © revisor riscou todas as repetigdes do tipo he said e she . na en . i said tio caracteristicas desse autor. agina nado despertam oposi¢ao. Cumpre, porém, que ela: . et in : Pag P Posts: Pre, P aq Na tradugio brasileira de As ligagdes perigosas, de Laclos, sejam explicativas. Em minha pritica de assistente editori: Ms Carlos Drummond de Andrade, trabalho modelar, o > > j4 me aconteceu encontrar tradut fe em sui aS St , P : ‘ B a legos, Ec fevisor craseou indevidamente todos os aa no sobrescrito ermitia discutir 0 autor mtradizé- rtam « P com ou conmadizé-lo abertament das cartas que compdem o romance. te. Uma colaboragio desse tipo lembra a do Urso que, ni “O assunto das notas do tradutor ¢ examinado de maneira elucidativa no artigo de Ayenor Soares dos Santos “Problemas da Tradugio”, no n° 1 de 1979 do Abrates, Moletim da Associagdo Brasileira dos Tradutores. “Paulo Ronai, “O Teatro de Brecht”, in Revista de Teatro, setembro-outubro de 197; 120 121 Até prova em contrario, o tradutor que assina o trab é um profissional responsavel e a sua produgao j4 come: set protegida pela lei. O contrato-tipo, cuja obrigatoried, a Associagio Brasileira de Tradutores est4 pleiteando, ha conter uma clausula para proibir esse tipo de revisio. Voltando ao assunto do respeito 4 obra, obviamente deveria comegar pelo titulo. Mas é onde, precisamente, vezes encontramos alteragdes. E que, nesse caso, o traduti no dispéde do recurso tantas vezes utilizado de compens gnais adiante as insuficiéncias da solugdo adotada. O titulo é uma unidade completa em si, e tem de tran: mitir uma mensagem e um impacto, no conjunto de su: poucas palavras. Pode acontecer, porém, que a tradugdo exata do titu nao seja eufdnica, fique ambigua ou inexpressiva ou, at nem dé sentido. Nestes casos, muitas vezes por insisténci do editor, o tradutor altera parcial ou completamente denominagio do livro. E obvio que se deve conservar o titulo de uma ob classica em suas retradugdes periédicas. Compreende-se um rotulo consagrado por dezenas ou centenas de anos, as vezes por milénios, como Odisseia, Eneida, Decameron, David Copperfield, Ana Karenina, Ulisses etc. 6 um element ao mesmo tempo identificador e qualificador, a que nao s deve renunciar. Mas nem todos os titulos sio desta simpli. cidade. No caso dos que se prestam a varias interpretagdes, a primeira ou uma das primeiras costuma aderir A obra de modo inseparavel: assim A megera domada e Sonho d 122 em seus paises de origem, especialmente nos Estados Unidos wna noite de verao (respectivamente Taming of the Shrew e 4 idsummer-Night’s Dream, de Shakespeare), O médico a forca As sabichonas (respectivamente Le médecin malgré lui e Les mmes savantes, de Moliére). Bem mais frequentes as alterages de titulo em obras odernas. Entretanto, os livros que se tornaram best-sellers jragas a uma campanha violenta de publicidade, conservam em geral os seus titulos, sobretudo quando popularizados pelo cinema. Mas nem sempre estes sio tio expressivos como, por exemplo, O exorcista: 4s vezes a sua versio literal seria pobre. Atribui a isso a manutengio, no frontispicio da edigdo portuguesa de famoso best-seller, do titulo Love Story; mas depois soube, por uma entrevista do editor, que essa manutengio tinha sido exigéncia do autor. Quando isto nao se da, como no caso de “O poderoso chefio”, a propaganda insiste em identificar a versio com 0 original The Godfather (que alias, em Portugal teve o titulo mais exato de O padrinho). Ha um tipo de titulos que, mesmo traduzidos com fi- delidade, fatalmente perdem suas conotagées na passagem, para a outra lingua. Sio aqueles, geralmente destinados a um publico de bom nivel intelectual, que encerram alusSes literdrias, frases ou expressdes citadas. O fendmeno ocorre com frequéncia no mundo anglo-saxénico. Steinbeck en- controu 0 titulo In Dubious Battleem Milton, Burning Bright em Blake, Of Mice and Men em Burns, Grapes of Wrath no “Hino guerreiro da Repiblica”, The Winter of our Discontent em Shakespeare. Huxley achou Eyeless in Ghaza em Milton, 123 Hemingway For Whom the Bell Tolls em John Donne. Quem na adolescéncia decorou trechos do Macbeth sentira maior — intensidade nas palavras The Sound and the Fury, que enca- becam o romance de Faulkner, do que o leitor portugués em seu equivalente O som e a firia. As vezes, 0 desconhecimento da fonte da citagio pode — tornar o titulo incompreensivel. Assim, é preciso lembrar- se do soneto de Mallarmé “Le Tombeau d’Edgar Poe” para adivinhar o que Duhamel quis exprimir no titulo do romance Tel qu’en Iui-méme; e de “Mon réve familier”, de Verlaine, para entender o titulo escolhido por Flora Groult _ para seu romance Ni tout fait la méme, ni tout d fait une autre. Apesar de traduzido literalmente em italiano — Le parole per dirlo—, 0 titulo de um romance de Marie Cardinal — Les mots pour le dire — nao pode sugerir aos leitores italianos _ © que lembrava aos franceses, estes dois versos de Boileau em Lart poétique: Ce que l’on congoit bien s’énonce clairement Et les mots pour le dire arrivent aisément.® (Em apuros semelhantes se veriam os tradutores estran- geiros que se arriscassem a verter, por exemplo, certos livros nossos cujos autores foram buscar os titulos em poesias de Drummond: Os inocentes do Leblon, Os mortos de sobrecasaca, O anjo torto, E agora, José? etc.) a Traduction Littéraire”, in IT traduttore, Florenga, julho-setembro, Claude Noel de 1978, 124 Daj os tradutores, mais de uma vez, preferirem desprezar © nome original de obras prestigiosas: Limbo, Antic Hay e Mortal Coils, este Gltimo encontrado no Hamlet (todos de Huxley), tornaram-se respectivamente Felizmente para sem- pre, Ronda grotesca e Vinganga pérfida; To Have and Have not, de Hemingway, Uma aventura na Jamaica. Nio se julgue que essas modificages sejam uma especia- lidade brasileira: Eyeless in Ghaza (reconhecivel sob o titulo da edigdo brasileira, Sem olhos em Gaza) viu-se rebatizado em francés La paix des profondeurs, e Mortal Coils em Cercle vicieux, Muitos leitores, mesmo nio franceses, que conhe- cem 0 romance Darkness at Noon, de Koestler, sob o titulo por que ficou célebre na versio francesa, Le zéro et Linfini, devem pensar que se trata de obras diferentes. Os exemplos poderiam ser multiplicados.5! Outro handicap sio os titulos que representam locugées ou idiomatismos da lingua do original, como por exemplo Le chemin des ecoliers, de Marcel Aymé, ou The Heart of the Matter, de Graham Greene. (Aqui 0 tradutor brasileiro caiu na esparrela vertendo pelo sonoro “O coragio da matéria” uma locugdo que significava apenas “O xis do problema”.) Nao raro as modificagdes se operam revelia dos autores. Fistes, desconhecendo em regra geral a lingua da tradugio, poucas vezes chegam a reclamar. Mas acontece surgirem HP ineressante citar a esse respeito uma experiéncia contada por Claude Noel, {yadutora de uma biografia de Hemingway, por Ch. Baker, do ingles para 0 francés: eve de passar dias na Biblioteca Nacional para verificar os titulos franceses dados os livros de Hemingway, a fim de nao inventar outros. “La Traduction Littéraire”, WII ‘Traduttore, Florenga, julho-setembro de 1978. 125 protestos: Joseph Kessel desaprovou, ndo sem razdo, a mes tamorfose de Belle de jour em Luxtiria por parte do traduto brasileiro. E Theodore Dreiser, se estivesse vivo, haverit de protestar contra a transformagao de Sister Carrie em So o pecado. ; Carlos Lacerda relata interessante observagio de Léopol ki Sédar Senghor, o poeta-estadista do Senegal, sobre a trad ho que se deu ao titulo de Casa-grande & senzala na edicig francesa: Maftres et esclaves, que, no seu entender, da wi ideia falsa nio sé do contetido do livro, mas das relagées interraciais e sociais no Brasil colonial. Entretanto, hd alteragdes felizes, originadoras de expres sOes que parecem espontineas, sem cheirar a transplanta¢ao Anos de ternura (The Green Years, de Cronin), O menino do dedo verde (Tistou les pouces verts, de Maurice Druon), O mori dos ventos uivantes (Wuthering Heights, de Emily Bronté), for- mula esta que a tradutora brasileira encontrou na “Balada de Emily Bronté”, de Tasso da Silveira (mas em Portugal o livro teve 0 titulo de O monte dos vendavais). Acrescentemos Foguinho, verdadeiro achado de Athos Damasceno Ferrei: para Poil de carotte, de Jules Renard, ou Os frutos da terra correspondente feliz de Sérgio Milliet para Les nourritures terrestres, de Gide. Carlos Drummond de Andrade, tradutor de Théré: Desqueyroux, de Mauriac, concordou, a pedido do editor, com a versio Uma gota de veneno; no caso pode-se alegar a dificuldade de ler e pronunciar o titulo do original. Rachel de Queiroz traduziu a Forsyte Saga, de Galsworthy, ha 126 tempos, por A crdnica dos Forsyte, porque a palavra “saga” _@ra entdo praticamente desconhecida no Brasil. Lembro-me de alguns problemas que tive de enfrentar quando organizei a edigao brasileira de A comédia humana, de Balzac. Como traduzir Les chouans, termo local que de- ‘ignava os camponeses revoltos da Bretanha e lembrava 0 grito da coruja com que eles se comunicavam? Felizmente, segundo a moda dos romances histéricos da época, havia lum subtitulo: ou La Bretagne en 1799, que virou titulo principal e Gnico: A Bretanha em 1799, Outra dificuldade surgiu com o titulo La rabouilleuse, termo profissional e regional, que indica “moga que revolve com um galho a gua de um riacho para turvar a 4gua a fim de fazer subir | tona os caranguejos assustados”. Ha pouco descobri um termo regional da Amaz6nia que poderia verter a palavra francesa: “gapuiadora”; mas naquela época ele nao ocor- reu ao tradutor, nem a mim. Investigando a histéria do romance, verifiquei entdo que a primeira edi¢do em livro tinha o titulo de Un ménage de garon; recorreu-se, pois, 4 versio Umi conchego de solteirao, j4 usada, alids, numa edigaio anterior em Portugal. (Entre as 89 obras reunidas em A comédia humana houve algumas cujos titulos, embora fielmente traduzidos, nao permitiriam identificag4o facil: por exemplo, O romeiral, equivalente portugués de La grenadiere. Mas como os pre- facios sistematicamente registravam os titulos originais, qualquer divida estaria eliminada, ainda que nao houvesse no fim da obra uma “concordancia” dos titulos franceses e brasileiros.) 127 As vezesa alteragdo equivale a uma retificacao. Biessi, de Dostoiévski, fora traduzido em francés por Les possédés, 0 que passou para 0 portugués sob a forma de Os possessos; em nova tradugdo, Rachel de Queiroz fez questio de restituir a obra o seu titulo verdadeiro: Os demédnios. HA casos em que 0 motivo da alteracao salta aos olhos. Chaines, de Howard Lee, virou Acorrentados, porque “Cor- rentes” seria ambiguo. The Eye, de Nabokov, e The Source, de James A. Mitchener, foram explicitados por um mesmo tradutor com a forma, respectivamente, de O olho vigilante e A fonte de Israel. Que fazer, porém, quando ha ambiguidade proposita- da no titulo original? E 0 que acontece em La jalousie, de Robbe-Grillet. A palavra, em francés, é ambigua: refere-se ao mesmo tempo ao citime do marido desconfiado e ao estore de bambu através do qual ele espia a mulher. O tradutor inglés propés The Blind, termo também ambiguo (pois significa si- multaneamente cego e estore), mas, segundo Richard Howard, 0 editor, “receoso de ver 0 livro tomado por um tratado de oftalmologia”, preferiu a tradugao Jealousy (“Citime”), no que foi depois censurado por alguns criticos. Nesses casos em que 0 titulo, para desespero do tradutor, € um trocadilho propositado, nem todos tém a sorte de lembrar-se de uma versio tio engenhosa como a de Oscar Mendes: A importancia de ser prudente para o titulo de comédia wildeiano The Importance of Being Earnest (que em Portugal, na mao de Maria Isabel Morna Braga, virou A importancia de ser amavel). 128 Muitos acham que um titulo mal-escolhido pode preju- dicara “fortuna” de um livro. Giinther W. Lorenz atribuiu a falta de repercussio de El Tiinel, de Ernesto Sabato, nos paises de lingua alema ao titulo infeliz Der mahler und das Jenster (SO pintor € a janela”). Imagino que 0 editor quis evitar a tradugao exata do titulo por existir um romance alemao de grande éxito, O tinel, de autoria de Bernhard Kellermann. Pelo contrario, uma mudan¢a feliz pode favo- recé-la, como aconteceu em relagao a uma obra do General De Gaulle, Vers l'armée de métier, de titulo excessivamente técnico, substituido entre nés por esta frase muito mais comunicativa: ...e a Franga teria vencido. Sio suposigdes de editor ou de tradutor, de dificil verifi- cagao. Em todo caso, a crenga na importancia do titulo deve ser responsdvel muitas vezes pela ado¢ao de denominagdes mais altissonantes, que falam melhor 4 imaginagdo do leitor. Assim é que King’s Row, de H. Bellamann, se tornou Em cada coragdo um pecado, Shannon’s Way, de A.J. Cronin, Anos de tormenta, e Hausers Memory, de C. Siodmark, Meméria assassina. A respeito desse tiltimo titulo, objeta meu amigo Roldio Simas Filho que ele estraga a surpresa do desfecho, e por isso prefere-lhe a variante adotada em Portugal, O cérebro de Hauser. As vezes, a alteracio deixa-nos intrigados. Vidas secas parece bem expressivo: entretanto © editor alemao, sem consulta ao tradutor Willy Keller, mudou-o em Nach Eden ist weit (“O caminho é longo até o Eden”), conferindo in- devidamente ao livro de Graciliano um sabor protestante, faulkneriano ou steinbeckiano. Mas outro titulo do mesmo 129 ; sta terra € nossa”. Uma relacio de titulos originais e suas dugdes pelo cinema nacional daria leitura divertida. Concluindo: no se pretende condenar as alteragées de ulo in totum. Apenas gostarfamos de lembrar aos traduto- autor, Sdo Bernardo, permaneceu tal qual na lingua ale! embora nada signifique para o leitor alemio ou talvez. at o confunda, levando-o a pensar no desfiladeiro de Sa Bernardo, entre a Suiga e a Italia. (J4 0 tradutor hangar 1 sensiveis que 0 titulo faz parte da obra e, por isso, salvo ntraindicagio especial, é melhor conserva-lo quando wssivel. Mas quando, por um motivo ou por outro, for tcrado, convém que o titulo original seja lembrado no artaz ou, em se tratando de livro, no verso do frontispicio. sentiu a necessidade de dar uma ideia do contetido, ao adot: Farkasember, “Lobisomem”.) Da mesma forma, poder-se-ia estranhar 0 fato de u duzia de tradutores de nacionalidade diferente terem manti- do tal qual o titulo machadiano Dom Casmurro (6 0 tradutot tcheco havendo-se aventurado a verté-lo), quando serii relativamente facil traduzi-lo. 1 Explica-se melhor a reprodugio parcial do titulo Grand sertao: veredas pelos tradutores em alemio, italiano e cas. telhano de Guimaraes Rosa a vista da indefinibilidade d termo. Uma conclusio pratica que se pode tirar de todos esse exemplos € que é altamente desejavel generalizar-se a pri: tica ja observada por alguns editores brasileiros, a saber, a indicagio do titulo original no verso do frontispicio. Nao falamos até agora do teatro, onde a troca de um ti tulo por outro, mais eye-catching, € ainda mais frequente d que nas editoras, nem do cinema, onde ela se tornou quase uma regra, provocando mais de uma vez excessos grotescos, sobretudo para o lado do horrivel e do macabro. Essa arbi: trariedade as vezes resulta num desencontro entre o filme € 0 publico a que ele é destinado. Assim o filme tirado do magnifico romance de Ferenc Molnar, Os meninos da rua Paulo, auténtico best-seller infantil entre nés também, passou em branca nuvem por causa de um titulo inidentificdvel: 130 131 5. AS FALACIAS DA TRADUCAO Utilidade relativa dos tratados. Duas tentativas de siste- matiza¢ao. As perguntas que o tradutor deve formular. A tradugio preconizada por Joio Guimaraes Rosa. O Hamlet de Tristio da Cunha. Por que cada século volta a traduzir as obras classicas? A tradugio como reflexo da sensibilidade e das ideias de uma época. Onze tradugdes de trés versos de Virgilio comparadas com o original. Em que consiste afinal a fidelidade da tradugio? O que diria Thomas Diafoirus a Béline, se fosse brasileiro. UMa DAS FALACIAS DA TRADUGAO € a ilusio de poder aprendé—la por tratados. Ora, como organizar um manual de traduco, se esta arte (ou oficio, se querem) escapa a toda siste- matizagao? Na verdade, a tradugdo aprende-se traduzindo. Nao quer isto dizer que nao se deva meditar o assunto por escrito; apenas que nao se pode esperar de um manual de tradugio a precisio ea eficdcia de um tratado de Optica ou de Geometria. Um exemplo da sistematizag4o tentada existe no livro A arte da traducéo,” de Theodore Savory. Para examinar a possibilidade teérica de uma traducio perfeita, esse tratadista divide os originais traduziveis em quatro categorias: ©The Art of Translation. Londres, Jonathan Cape, 1957. 133 1. meras informagées de cardter pratico; 2. obras literarias comuns cuja tradugdo é apenas uma questao de rotina; 3. obras literdrias que exigem esforco artistico do tradutor; 4. textos técnicos e cientificos. Infelizmente semelhante classificag’o nao nos ajuda resolver nenhum problema concreto. Em primeiro lugar, é dificil estabelecer uma separa¢ao entre obras informati- vas e cientificas, de um lado, e obras de valor artistico, do outro; um tratado sociolégico, um ensaio filos6fico muitas vezes se impdem tanto pelo estilo quanto pela mensagem, Em segundo lugar, como resolver quais as “obras literdrias comuns” que nao exigem esmero Por parte do tradutor e quais aquelas que o forgam a superar-se — se o proprio Savory inclui entre os livros corriqueiros, sem requintes de estilo (pasmem!), Guerra e paz e Dom Quixote? Afinal, mesmo um livro mediocre exige uma traducio cuidadosa, pois 0 erro, o desleixo, a obscuridade perturbam tanto 0 leitor comum de um livro comum quanto 0 connaisseur que saboreia em seu cantinho 0 poema do seu classico preferido, 134 Outra ajuda que Savory pensa oferecer ao aprendiz de tradutor é a sugestao de formular de si para si trés perguntas em relagdo nao sé ao conjunto, mas a cada pardgrafo e até 4 cada frase do seu texto. 1. Que é que 0 autor diz? 2. Que foi que ele quis dizer? 3. Como o disse? Naturalmente o conselho nao deve ser tomado ao pé da letra: a triplice indagaco transforma-se em rotina automatica ¢ sO & formulada explicitamente em presenca de um trecho ‘rduo. Mas aqui também surgem objegdes, notadamente em relagdo 4 segunda pergunta. Nao porque as vezes é dificil saber 0 que © autor quis dizer; mas também porque, mesmo sabendo-o, 0 tradutor deve traduzir nao o que ele quis dizer, mas 0 que ele disse na realidade. Swift, num fameso ensaio,™ ‘A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People From Being a Burthen to Their Parents, or the Country, and for Making Them Beneficial to the Publick (1729). ‘Talvez nio seja descabido citar aqui um artigo em que Fernando Pessoa, precisamente a propésito dessa obra, explica o que é ironia: “Por ironia entende-se, ndo o dizer piadas, como se cré nos cats e nas redagdes, mas o dizer uma coisa para dizer 0 contritio. A esséncia da ironia consiste em niio se poder descobrir 0 segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se, porém, esse segundo sentido do fato de ser impossivel devet © texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swit, redigi, durante uma das fomes da Irlanda, e como sitira brutal 3 Inglaterra, um. breve escrito propondo uma solugio para essa fome. PropSe que os irlandeses comam 0s ptprios filhos. Examina com grande seriedade 0 problema ¢ expde com clareza € cigncia a utilidade das criangas de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palayra nessas paginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposigio; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta nio fosse feita com absoluta seriedade, se fosse a circunstincia, exterior ao texto, de que uma proposta dessas ndo poderia set ita a sériv.” (Péginas de doutrina estética, Lisboa, Editorial Inquérito, 1946, p. 183-184.) Essa definigo luminosa contém uma condenagio implicita de todo tradutor que se aventure a explicitar os trechos irdnicos do seu original. 135 sugere aos pobres que vendam os filhos aos ricos para servire: de comida; claro, essa cruel sugestiio representa um sarcastic protesto contra a miséria do povo — mas o tradutor, embo: compreendendo a intengao, ndo pode explicitar a ironia. ; Podera Savory responder-nos que ele nem exige tant JA que manda 0 tradutor observar como o autor diz o qui diz. O conhecimento das inteng6es do autor serviria, pois, apenas de informag4o implicita para melhor compreendet 0 original, e nio de norma de procedimento. Mas ai po: deriamos perguntar-lhe por que o tradutor deve fazer a g mesmo apenas trés perguntas e nio quatro, cinco ou seis, Nao deverd ele interrogar-se a si mesmo acerca da impressa que 0 original deve exercer sobre os conterraneos do autor? No caso de um texto antigo, acerca daquela que deixou nos contemporaneos? E, sobretudo, nao deverd perguntar co: os seus botdes como é que a mensagem contida no trecho se vazaria naturalmente na sua propria lingua? Voltaremos a esses pontos; antes, porém, registremos mais uma sugestao de Savory destinada a auxiliar o tradutor, a da reader-analysis. Como 05 leitores se repartem em diversas classes sociais, 0 estilo da tradugSo dever ser norteado pela classe a que ela se destina. Ainda aqui convém discordarmos do tratadista, porque semelhante principio serve apenas aos adaptadores. Ja estamos longe das belles infidéles, que outrora reduziam as obras mais diversas A mesma linguagem exan- gue e rebuscada. Kafka, ao escrever, possivelmente nio pensava em nenhuma categoria especial de leitores; como tantos verdadeiros escritores, escrevia para si. O seu tradutor brasileiro devera é imaginar que ele é 0 Kafka brasileiro e 136 ve, custe 0 que custar, extrair de si mesmo da maneira jiais completa possivel a mensagem de que foi incumbido. A primeira pergunta suplementar que aventamos — que snpressio original deve exercer sobre os conterraneos do tor? — envolve a norma, tantas vezes enunciada e que primeira vista parece Obvia, de que a traducdo deve dar gos leitores a ideia de a obra ter sido escrita em sua propria \ingua. Mas por mais perfeita que seja a interpretagdo, a impressio do leitor estrangeiro sempre sera diferente da do Jeitor patricio do autor, e que 1é a obra com o entendimento moldado por um background e uma experiéncia comuns. Por melhor que seja a traducdo brasileira de A la recherche du temps perdu, que foi executada por um grupo seleto de yrandes escritores — ao leitor ndo familiarizado com o ambiente, a literatura, a histéria, a lingua da Franga, parte das alusées, das indiretas, das ironias, das reticéncias ha de escapar sempre. (E verdade que, se estivesse familiarizado com o conjunto cultural da Franga, leria Proust no original.) Por isso certos tedricos da tradugdo sustentam que 0 tradutor deve pdr inteiramente de lado essa preocupagdo ¢ deixar que o seu trabalho fique com um sabor exético e uma parcela de opacidade. O ficcionista Joio Guimaraes Rosa, que, depois de suas obras comecarem a ser vertidas para linguas estrangeiras, entrou a meditar a fundo sobre as questdes da tradugio, era um desses. No Prefacio genero- samente anteposto a minhas tradugdes de contos hingaros, criticou-me assim, com 0 jeito amavelmente diplomatico de quem elogia: 137 Saudavel é notar-se que ele nio pende para a sua lingu natal, ndo imbui de modos-de-afeto seus textos, que nef mostram sedimentos da de 14; nio magiariza. Antes, é abrasileiramento radical, um brasileirismo generalizadé em gama comum, clara, que do tom. A mim, confesso- talvez um pouquinho, quem sabe, até agradasse també: trata¢ao num arranjo mais temperado A hingara, centradé no seio hiingaro, a versio estreitada, de vice-vez, con travernacular, mais metafrasica, luvarmente translaticia sacudindo em suspensio vestigios exdticos, o especioso df tragos hungarianos, hungarinos — o ressaibo e o vin — como © tokai, que as vezes deixa um sobregosto d asfalto. Mesmo A custa de, ou — franco e melhor falandg — mesmo para haver um pouco de fecundante corrup¢3d das nossas formas idiomaticas de escrever.>+ A segunda pergunta adicional, em se tratando de obra classicas, visa a saber 0 efeito destas sobre os contemporaneo do autor. Tal pergunta envolve outra suposigdo, a de que a traducdo deveria exercer efeito idéntico sobre os contempo: raneos do tradutor. Certos tradutores procuram consegui-lo arcaizando a linguagem. O caso mais conhecido disto é 6 do nosso Tristdo da Cunha, que no preficio de sua famosa tradugio do Hamlet afirma que: a linguagem devia evocar a atmosfera da época. Haveria | tanto anacronismo em fazer falarem a de hoje personagens do teatro da Renascenga, quanto em tratar de coisas do nosso tempo em discurso seiscentista. SAntologia do conto Iningaro, 3° ed., Rio de Janeiro, Artenova, 1975. 138 i idos das A este raciocinio pode-se replicar que aos ouvido: i i e soava personagens seiscentistas a lingua de Shakespear a pers “ atural e nada tinha de arcaico. Por isso essa tradugao, esma de inegavel virtuosismo, € outras baseadas na m: = sa, ma oria, tém antes um valor de curiosidade que o de u i a ante um. yersio eficiente. E, com efeito, como encenar perante i senta publico moderno um Hamlet em que o Rei se apre com esta fala: Posto inda seja vivaz em nossa ae a me de Hamleto, nosso irmio bem amado, ea nds muito conyiera trazer 0 coragio imerso em dé, € 0 reino todo Sonicentrads em sobrecenho de magoa, todavia tanto lutou em nos a discrig3o contra a natureza que ora, com avisada saudade, pensamos nele, cuidando também em nos mesmo. Outros tradutores, porém, julgam chegar ao scilledla almejado por meios diametralmente opostos. eee ee Lieu, a quem se deve uma versio em prosa moderna ing] , da Odisseia e que proclama em seu prefacio com todas as - tras o “principio do efeito equivalente”, subsnete ° origina a uma série de alteragdes para consegui-lo. NE hesita em transformar o poema de Homero numa especie ce romance. ‘As chamadas frases “faticas”, geralmente estexeDECS (que deviam auxiliar a meméria dos ea somo ‘Declarou- The em resposta 0 bem-inspirado Saal ; ee: na tradugdo propositadamente diversificadas, como se a semos: “Ai Telémaco disse”; “Telémaco revigot=ihe sem de- mora”, “Mas Telémaco deu-lhe 0 troco”, e assim por diante. 139

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