O sistema de controle judicial das greves no Brasil
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O sistema de controle judicial das greves no Brasil - Danilo Uler Corregliano
PREFÁCIO
Marcus Orione¹
Lembro-me até hoje do dia em que conheci Danilo Uler Corregliano.
Após palestra que ministrei na PUC/SP, em 2011, Danilo veio ter comigo. Tivemos uma prosa agradável, ali mesmo em duas das cadeiras da sala de exposição. Depois, o encontrei novamente quando se submeteu à concorrência pública do mestrado na Faculdade de Direito da USP. Tendo sido bem-sucedido nas fases anteriores, apresentou o seu projeto concernente ao controle judicial das greves no Brasil, partindo da paradigmática greve dos petroleiros em 1995. A qualidade do texto (tão elevada que serviu de base para um projeto aprovado e financiado por meio da disputada bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP), a sua inserção na minha linha de pesquisa e a qualidade do curriculum do candidato foram determinantes para a sua escolha a uma das vagas de mestrado.
É engraçado que, anos depois de tê-lo orientado na pós-graduação, fiquei sabendo que era conhecido de toda a gente por um apelido: padre. Embora não saiba exatamente a sua procedência (mas não seja credor de que um jovem recebesse esse apelido pelas mesmas razões que aponto a seguir), o modo como se devotou à sua formação acadêmica é algo que me remete à dedicação típica da vida monástica. Devotado, produziu um dos mais importantes livros sobre o direito de greve no Brasil, que ora prefacio.
A seu respeito um último registro se faz importante. Militando há vários anos na área do direito do trabalho, acumulou rara experiência que teve importância decisiva na redação tanto de sua dissertação de mestrado, que deu ensejo a essa obra, quanto à sua tese de doutoramento, publicada sob o título O direito e as greves por fora.
Dito do autor, devemos dizer da obra: as duas razões que conduzem alguém à leitura de um livro.
O sistema de controle judicial da greve no Brasil impressiona de imediato por ser a primeira incursão no âmbito da pesquisa por parte de Danilo. A escrita fácil nos remete a um dos temas mais fascinantes do direito de trabalho: a greve. O livro parte de uma grande premissa: o controle do direito de greve por parte do Estado teria passado por grandes transformações em especial com o seu deslocamento para o âmbito do Poder Judiciário. No entanto, mesmo essa passagem não teria sido abrupta e a grande transformação teria se dado em especial a partir de 1995, com a greve dos petroleiros. Desse momento em diante, o Judiciário, por meio, no caso, de fundamental atuação do Tribunal Superior do Trabalho, passou a ser o mais relevante gestor do controle das greves no país. Trata-se, em especial, de mudança de natureza qualitativa com o aumento do nível de sofisticação do ato de controlar os movimentos de insurreição da classe trabalhadora. Entra em campo uma nova expressão da ideologia jurídica que, com essa inédita modalidade de intervenção, alcança uma etapa distinta na conformação da forma jurídica no Brasil. Partindo dessa moldura, o autor realizou uma ousada análise materialista histórico-dialético do movimento paredista considerando a noção de totalidade não meramente aparente, mas aquela que envolve a relação essência/aparência.
As sutilezas jurídicas, políticas e econômicas do processo são descritas com riqueza de detalhes a partir da experiência dos petroleiros, demonstrando como o Estado joga as suas partidas a favor da burguesia, embora sempre sob o manto da imparcialidade. E é exatamente sob esse véu que se promove o truque de domesticar a classe trabalhadora pelo exercício, nos limites da institucionalidade, de seu direito de greve. Não o faz, no entanto, sem uma dose de coerção, consentida e escondida pelo monopólio autorizado
da violência – como se percebe nos casos das decisões judiciais proferidas no caso analisado.
Vejamos algumas etapas da obra para cumprir todo o seu percurso.
Depois de introduzir o recorte epistemológico com o qual pretende manejar o objeto analisado, passa a dizer de aspectos fundamentais da greve dos petroleiros em 1995. Feito isso, Danilo, com rara habilidade, descortina os segredos da captura da greve na perspectiva jurídica, com destaque para a sua análise a partir da doutrina do direito coletivo do trabalho. Revelando, aqui, como a ideologia jurídica opera, nos remete ao procedimento adotado por Bernard Edelman na sua famosa obra A legalização da classe operária. Daí para a clausura do movimento grevista pelo Judiciário é um passo. Com isso, finalmente, estão assentadas as bases epistemológicas que deram ensejo ao enfrentamento realizado na obra. Aliás, esse instante de natureza conceitual é, no meu sentir, uma das grandes contribuições teóricas da obra. Ali, estão os verdadeiros pressupostos para a compreensão do aspecto ideológico, no sentido althusseriano do termo, de tudo que se passou com o novo papel assumido pelo Judiciário na intervenção nas manifestações coletivas de trabalhadoras e trabalhadores a partir da greve dos petroleiros de 1995. Nessa parte, na perspectiva epistemológica, estão assentadas as bases para o estudo do caso paradigmático.
Após a interferência produzida, pelo Judiciário, na greve dos petroleiros de 1995, não apenas o modo de controle pelo Estado modificou, mas a própria maneira de o Poder Judiciário proceder em relação aos movimentos grevistas em geral, com a construção de novos instrumentais de intromissão na luta da classe trabalhadora: veja-se, por exemplo, o uso de multas extorsivas ao sindicato por descumprimento de decisões em dissídio coletivo em curso.
Enfim, de tudo constata-se que o autor elegeu, na perspectiva procedimental de investigação, uma hipótese ótima
(no sentido mesmo de otimização) para a análise da nova conformação da forma jurídica. Só isso seria suficiente para indicar a majestade da obra, mas Danilo não parou aí, ousou e foi além também nas pretensões da pesquisa em si, entrevistando alguns dos principais agentes envolvidos na batalha jurídica que então foi travada. As entrevistas são reveladoras! Confirmam, com rara oportunidade, a hipótese. Confirmada, teórica e empiricamente, a hipótese se transforma em tese: o livro se transforma também numa aula de como se realizar uma pesquisa científica. Não há mais nada a entregar ao leitor, que poderá se dar por satisfeito com a leitura dessa excelente obra.
Como visto, não são poucas as razões para a leitura do texto. Mas gostaria aqui de destacar uma: a ousadia de desvelar o que se encontra por detrás da jurisprudência e doutrina do direito do trabalho. E, uma vez reveladas as razões (que não decorrem meramente de escolhas subjetivas, devendo ser analisadas a partir da sobredeterminação de um modo de produção que se erige a partir da forma mercadoria), fica claro o seguinte: ou a classe trabalhadora se insurge contra a forma jurídica ou nada lhe restará como alternativa.
Decorrido anos da greve dos petroleiros de 1995, fica claro que algo há que ser feito e isso dever corresponder a muito mais do que a busca pela solução conciliada, já que a repressão aos movimentos grevistas somente se intensificou nos últimos anos com o auxílio do aparato judicial. Cada vez mais impinge-se à classe trabalhadora uma condição de subordinação à dinâmica da institucionalidade, e isso tem que ser confrontado. Como bem lembra Edelman: Eis, portanto, em poucas palavras como se apresenta a ‘sociedade burguesa’, em que, literalmente, a classe operária desapareceu. Sem território, sem voz, sem palavra, encarcerada no Estado, na Empresa, nos partidos e nos sindicatos, amordaçada, enganada e errante. Sem eira nem beira, em delito contínuo de vagabundagem
².
Capturada, a classe trabalhadora se transformou em meros trapos, destroçada em farrapos. Urge juntar os retalhos e fazer dos trapos uma peça única, vigorosa: uma colcha vistosa.
A tarefa não é de pequena monta: ergamos a manga e mãos à obra.
São Paulo, primavera de 2021
1 Professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
2 EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Trad. Marcus Orione (coord.). São Paulo: Boitempo, 2016.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
O PROBLEMA E COMO O COMPREENDEMOS
1. GREVE
1.1 Os anúncios da greve dos petroleiros de 1995
1.2 A grande batalha
1.3 Os significados da greve dos petroleiros: um balanço jurídico-político
1.4 A reação jurídica à greve dos petroleiros: a virada
2. A CAPTURA DOUTRINÁRIA DA GREVE
2.1 Por um referencial teórico para a compreensão da greve: as classes sociais
2.2 Os significados do desenvolvimento histórico: da greve ao direito de greve
3. A CAPTURA JURISDICIONAL DA GREVE
3.1 O sistema de controle judicial enquanto função estatal
3.2 A interdição judicial das greves no Brasil
4. REFERÊNCIAS PARA A NEUTRALIZAÇÃO OU MITIGAÇÃO DO CERCO REPRESSIVO ÀS GREVES NO BRASIL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
ANEXOS
Anexo A – Transcrição da entrevista semiestruturada realizada com o Dr. José Antônio Cremasco e Dr. João Antonio Faccioli
Anexo B – Transcrição da entrevista semiestruturada realizada com o Dr. Magnus Farkatt
Anexo C – Transcrição da entrevista semiestruturada realizada com o Dr. Ricardo Gebrim
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
O PROBLEMA E COMO O COMPREENDEMOS
Dirige-se a atenção para um corriqueiro fato da sociedade. Embora sua aparição geralmente surpreenda, dividindo opiniões e sentimentos, trata-se de fato relativamente recorrente que, no Brasil, já não causa tanta estranheza. Tamanha frequência que o olhar comum nem se digna em compreender ou desconfiar das explicações correntes. Fato complexo e contraditório que embaraça os interesses econômicos de uns e, ao mesmo tempo, resgata a dignidade de outros. Incomoda e gera esperança. Escandaliza.
Trata-se da greve.
Tal como revelado pelas periódicas publicações dos Balanços das Greves pelo Dieese³, notadamente primeira década e meia dos anos 2000, o fenômeno grevista se impôs de modo pujante no Brasil, em razão das mudanças positivas operadas no mercado de trabalho que garantiram mais segurança para a classe assalariada exigir melhores condições de trabalho. Alguns estudos apontaram os fatores que contribuíram para essa recuperação do movimento sindical, em um sentido propositivo: a retomada do crescimento econômico com aumento de rendimentos do trabalho e política de valorização do salário mínimo; a recuperação do nível emprego e aumento do emprego formal; o crescimento da taxa da inflação nos preços dos alimentos, pressionando os trabalhadores em maior escala; a existência de um regime democrático (a ditadura militar logrou crescimento econômico até superior, mas abafou politicamente o sindicalismo); a maior disposição para negociação com os sindicatos dos governos Lula e Dilma; e o desgaste da ideologia neoliberal, que contribuiu para a atuação do movimento sindical em defesa dos direitos trabalhistas ameaçados pela flexibilização⁴. Ou seja, o medo do desemprego não seria mais, naquele momento, um fator de dissuasão, uma vez que os empregadores vinham apresentando maiores dificuldades na contratação.
Apesar da relativa recorrência na realidade brasileira, as greves não costumam se manifestar isentas de complicações. A eclosão de uma greve não se dá isoladamente; é sabido que uma série de outros fatos, processos e estruturas lhe dão causa, bem como um complexo se impulsiona a partir de sua aparição prática. De uma rasa observação se depreenderá que as/os trabalhadoras/es que declaram greve o fazem por certos motivos, e esta declaração afeta diversos complexos estruturais da sociedade: empresas, Estado, mídia, mercado financeiro, opinião pública etc.
A presente pesquisa se situa nesse segundo momento: as consequências da greve. A um determinado movimento grevista reage peculiarmente uma variedade de mecanismos componentes do chamado sistema de controle social informal⁵: os meios de comunicação, as instituições locais (escolas e sindicatos de empregadores), os partidos políticos, as Igrejas, as organizações da sociedade (movimentos sociais, associações de moradores, organizações não governamentais), as Câmaras de Arbitragem, as famílias etc. A este âmbito informal
se soma e sobrepõe o momento estatal em sentido mais estrito, naquilo que a criminologia denomina sistema de controle social formal, concebido como um complexo articulado das funções legislativas, judiciais e administrativas, ativado
quando da deflagração de determinado movimento de reivindicação coletiva. Se no sistema informal a ênfase se dava no viés ideológico, aqui se denota a função repressiva. No que diz respeito às consequências da greve, o estudo transita mais propriamente nos domínios de um específico e fundamental aparelho deste sistema de controle social formal – o aparelho jurídico e jurisdicional.
Do empréstimo das noções de sistema de controle social formal decorre um recorte mais específico à pesquisa, culminando assim na hipótese do sistema de controle judicial da greve; quer-se investigar tão somente o modo de reação judicial à greve, que revela a especificidade da forma jurídica e da estrutura jurídico-política no sistema capitalista de produção.
Com a ativação
desse sistema de controle judicial, entram em cena diversos mecanismos notoriamente antissindicais, devidamente positivados seja no Direito Penal, no Direito Civil, no Direito Administrativo e no Direito do Trabalho. Poderíamos entender cada uma dessas áreas jurídicas como subsistemas oficiais que, ao regular peculiarmente as manifestações grevistas, visam a pacificação do conflito. E de que modo essa pacificação
se processa? Desmobilizando, dividindo e individualizando os grevistas, através da punição das lideranças, da expedição de interditos proibitórios e da declaração da abusividade das greves (juntamente com as exemplares multas). Talvez pela maior efetividade na contenção dos movimentos paredistas, parece que assume relevo a reação advinda do Poder Judiciário Trabalhista⁶, o que atrai a nossa atenção nesse estudo.
Todavia, seria por demais limitado, senão impossível, estabelecer um recorte analítico nas causas ou nas consequências deste – até agora – hipotético fenômeno paredista, encerrando-se aí a investigação. Se assim o fosse, o estudo das causas políticas/históricas ou consequências estatais de um dado movimento grevista propiciaria ao observador um quadro caótico de fatos e processos que embaraçariam a compreensão. Uma infinidade de outros fenômenos, de impossível delimitação, lhe é conexa e com essa greve decerto se relacionaria. Mesmo que se intente priorizar um destes momentos, os resultados sempre deixariam a desejar; os motivos da greve jamais seriam devidamente evidenciados, bem como se teria um quadro restrito de seus desdobramentos e implicações.
Possivelmente porque o conhecimento de um fenômeno não se processa com uma adição sistemática de outros fatos, processos e fenômenos que lhe tocam ou dizem respeito; nem através de um detalhado inventário que descreve as formas com que o fenômeno se manifesta; tampouco mediante o enquadramento desse fenômeno a um quadro ou sistema compreensivo. Compreender determinado fenômeno significa, na perspectiva aqui adotada, compreender a sua posição e inter-relação no todo. Ou seja, parece mais acertado investigar a reação estatal à greve desde o ponto de vista da totalidade; entender esse processo específico como um momento do todo, sendo tal constatação o que precisamente confere historicidade ao fato estudado; em outras palavras, conceber a realidade, enquanto totalidade ordenada, como uma estrutura significativa para cada fato⁷. De modo que a compreensão do presente objeto de estudo – o sistema de controle judicial do movimento grevista no Brasil – só poderá ser levada a cabo no terreno da totalidade concreta, que se estabelece hierárquica e sistematicamente.
Mas, o que precisamente seria essa totalidade? Façamos uma pausa, para breve digressão, com a indispensável ressalva mediante a qual o autor reformulou, pelo menos parcialmente, as reflexões adiante travadas. Seria, todavia, desonesta a sua pura e simples supressão ou atualização, vez que se tratou de importante degrau para a compreensão atual. Até porque os resultados a que essas reflexões instrumentais conduziram continuam relevantes.
*
O relacionamento imediato com o mundo proporciona ao indivíduo um conjunto de impressões que lhe abrem a possibilidade de satisfazer suas exigências vitais e de se orientar através dos sentidos, captando e fixando as formas sensíveis de manifestação da realidade. Poder-se-ia considerar estas noções comuns, fixadas através da atividade prática cotidiana e imediata, como o senso comum.
Ocorre, porém, que essa qualidade ou momento do conhecimento não encerra todo o movimento do real nem possibilita a compreensão do objeto investigado, uma vez que limitado à dança
das formas fenomênicas (e aparentes) da realidade. Deve-se ter em conta que a realidade – enquanto totalidade – não se resume ao mundo dos contatos imediatos; antes se revela no jogo dialético entre fenômeno e essência, impondo ao investigador um esforço, um certo desvio
para poder captar a totalidade. Desvio
(ou détour, segundo Kosik), pois não é a essência da coisa que se chega diretamente (e tal nem seria possível); os seres humanos, relacionando-se entre si e com a natureza, cotidianamente alcançam a essência de modo parcial e inadequado, como uma série de fotografias desfocadas, para se dizer metaforicamente. Ou seja, a dialética fenômeno-essência se traduz em uma brincadeira
de claro-escuro, de verdade e engano: o fenômeno indica a essência ao mesmo tempo em que a esconde, e a essência só se manifesta (mesmo que de modo fragmentado) mediatizada pelo fenômeno, pois sua essência
não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno⁸.
A essência não seria, assim, um imperativo abstrato e imutável, antes a lei do fenômeno, identificada com as relações estruturais que lhe dão origem e determinação. Tampouco estaria apartada dos fenômenos; seria inatingível se o estivesse. Este desvio
do investigador para captar
a essência por trás dos fenômenos é precisamente o fundamento da ciência⁹: o esforço se coloca com vistas a descobrir como o ser da coisa
(a coisa em si, a essência) se manifesta nos fenômenos e, ao mesmo tempo, é por eles encoberta nas aparições imediatas e frequentes, que se colocam como independentes e verdadeiras.
No presente estudo, compreender o sistema de controle judicial significa, assim, captar as categorias constitutivas que informam a sua estrutura e função na organização atual, que aparecem desfocados ou sequer aparecem. De modo que a atividade científica vem sendo, historicamente, o esforço de superação do caráter natural e imediato das coisas visíveis¹⁰, a busca da verdade por detrás das aparências ou a revelação das conexões necessárias que subjazem à superfície e casualidade dos fenômenos. O caminho aqui trilhado se desafiará a compreender as articulações entre Estado-Juiz e greve como uma parte do todo, mas cuja relação não se dá casualmente, senão informadas pela mesma totalidade histórica construída hierárquica e sistematicamente.
No que tange à distinção entre aparência e estrutura da coisa, algo remotamente similar é ensinado, inclusive, nos bancos universitários (ou até antes, na formação escolar). Diz-se que a investigação acadêmica não pode ser desavisada, despreparada ou incapaz de se diferenciar das demais formas de apreensão da realidade, identificadas com o senso comum. Não se admite que o olhar acadêmico seja equiparado ao senso comum; seria característico daquele a superação deste. Ter-se-ia, pois, a ciência, chamada a superar o senso comum produzido cotidianamente.
Com o presente objeto de estudo não poderia ser diferente. O sistema de controle judicial pode ser entendido tanto pelo senso comum quanto pelos modos da ciência. Naquele, captar-se-ia parcela ínfima da verdade, restrita à sua aparição fenomênica e às suas relações imediatas, ao passo que nos domínios científicos, seria possível abarcar uma parcela mais ampla de verdade: as suas leis estruturais.
O problema (ou a frustração) começa a surgir quando, nos domínios do Direito, a ciência que se oferece não parece ser tão distinta assim do senso comum, na medida em que oferta respostas prontas, estabelecidas antes mesmo da investigação e circunscritas à aparência dos fenômenos. Respostas que, como pretende certo idealismo metafísico, tratam os problemas da greve e do Estado além ou acima da História (presente indistintamente em todas as formas de sociedade). É sintomático que considerável parte da doutrina de Direito do Trabalho seja insuficiente quanto às determinações históricas da greve, ao mesmo tempo em que escamoteia suas próprias motivações ideológicas (a manutenção das relações sociais que instituem a ordem capitalista). É sintomático também um consenso nas visões ingênuas e parciais da greve como um direito humano fundamental, como se isto encerrasse toda a compreensão do fenômeno. Quando se pretende esta visão mais ampla, lançando-se a chamada interdisciplinaridade, a vala comum parece ser uma totalidade aparente¹¹, que desconsidera as determinações econômicas em prol das identidades
isoladas e autossuficientes. Nos capítulos destinados aos problemas da greve e do sistema de controle judicial tais noções serão abordadas, e sua crítica será a base para uma concepção histórica e concreta destes fenômenos.
Tome-se, como exemplo da ativação
do sistema de controle judicial proveniente do Direito do Trabalho no Brasil, e como ponto de partida da investigação, a greve dos petroleiros em 1995. A grande batalha¹² deflagrada no dia 3 de maio somava, dentre suas bandeiras de luta, tanto pautas econômicas (reajustes salariais e melhores condições de emprego) quanto pautas eminentemente políticas, tais como a defesa do monopólio estatal do petróleo.
O movimento grevista, ao qual se somaram as categorias dos eletricitários, telefônicos, ferroviários, trabalhadores dos Correios, metroviários e servidores federais (totalizando-se duzentos mil trabalhadores mobilizados em todo o país), foi obrigado a retomar as atividades produtivas no dia 2 de junho do mesmo ano, após a greve ter sido declarada abusiva pelo TST por duas vezes e quatro refinarias terem sido ocupadas pelo exército brasileiro¹³. Em resumo, um rico exemplo histórico da articulação de sofisticadas formas de controle social informal – basta se lembrar da fraudulenta campanha midiático-empresarial que produziu o desabastecimento do gás e atribuiu a responsabilidade aos petroleiros – com formas de controle judicial e militar.
Se uma análise inteiramente abstrata incorreria nas armadilhas do idealismo que perde de vista a historicidade, um exaustivo estudo sistemático destes acontecimentos – enfatize-se – não daria conta