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NICOLAS BoUuRRIAUD ESTETICA RELACIONAL Tadigio DENISE BOTTMANN martins Martins Fontes INTRODUGA A que se devem os mal-entendidos que cercam 2 ar- te dos anos 1990, sendo a uma falha do discurso teérico? Critics efilésofos, em sua imensa maioria, no gostam de abordar as priticas contemporineas: assim, elas se man- ‘8m essencialmente iegiveis, pois no é possivel perceber sua originalidade e sua importincia analisando-as a par- tirde problemas resolvidos ou deivados em suspenso pelas ageragbes anteriores. £ preciso accitarodolorsofato de que certas questies nio sio mais pertinentes~6, por extenséo, demarcar quais delas so assim consideradas atualmente pelos artistas: quais sio os verdadeiros interesses da arte contempordinea, suas relagies com a sociedad, a hist6ria, ‘cultura? A primeira tarefa do critic consiste em recons- tituir 0 complexo jogo dos problemas levantados numa de- terminada época ¢ em examinar as diversas respostas que hes sio dadas. Muitas vezes, a critica contenta-se em in ventariar as preocupagées do passado apenas para poder 0 NICOLAS wouRRIALD Jamentara auséncia de respostas. Ora, primeira pergunta, em selagfo is novas abordagens refere-se, evidentemente, forma material das obras. Como entender essas produ ‘Bes aparentemente inapreensiveis, quer sejam processus ‘ou comportamentais ~ em tado caso, “estlhagacias” se- ‘gundo os padres tradicionais- sem se abrigarna histria daarte dos anos 1960? Citemos alguns exemplos dessas atividades: Rinkrt ‘Tiravanija organiza um jantar na casa de um colecionador deixa-the 0 material necessério para o preparo de uma: sopa tailandesa. Philippe Parzeno convida pessoas para praticar seus hobbies favoritos no Primeiro de Maio, nu ‘ma linha de montagem industrial. Vanessa Beecroft ves tecerca de vinte mulheres, que o visitante s6 enxerga pelo Vio da entrada, cm roupas iguaise perucas rvs, Mauri- io Cattelan alimenta ratos com queijo Be Paese e os ven= de como miiltiplos, ou expde cofres recém-artombados, Nama praga de Copenhague, Jes Brinch e Henrik Plenge: Jacobsen instalam um Gnibus eapotado que, por emla- ‘so, provoca um tumulto na cidade. Christine Hill empre Be de gindstca semanal numa galeria. Carsten Hiller recria 4 formula quimica das moléculas sectetadas pelo oérebro ‘humano em estado amoroso, monta ui veleiro de phis {ico inflével ou cria tentilhdes para Ihes ensinar um now ‘canto. Noritoshi Hirakawa publica um pequeno classifica do num jomal, a procura de uma javem que aceite patie como caixa de supermercado © mantém uma sala stencaReLACEAL u par de sua exposicio. Pierre Huyghe chama pessoas para a montagem de um elenco, coloca uma televiséo a dispo- sigio do publieo, expe a foto de operitios trabalhando a alguns metros do canteiro de obras... Muitos outros no- mes ¢ trabalhos se somam a lista: em todos esses casos, a ppartida mais animadamente disputada no tabuleiro da arte se desenvolve em fungio de nogSes interativas, com relacionais, Hoje,» comunicagio encerra 0s contatos humanos dentro de espasos de controle que decompern 0 vnculo social em elementos distintos.Aatividade artistic, por sun vw, tentaeftuarligagdes modestas, abrir aguas passa- gens obstradas, pir em conato nies de realidad apar- fads, As famosas “asto-estadas de comunicagao, com seus pedgiose expagosdelze,aneagam se impor como os inicos tats posses de um lugar a outro no mando Ihumano, Se por um lado a auto-estrad realmente permi- te uma viagem mais pda fete, por outro ela tem 0 defo de transformar sous uutios em consumidore de aqullmetos e sus derivads, Peranteas iis eltni- as, os parques ecreativos, os espaos de convo, a pro liferagSo dos moldes adequados de socalidae,verno-nos pobrese sem recuros, como o rato de laboratro cnde- ‘nado um percursoinvridvel em sun gaol, com peda- «0s de quip expalhados age all. Assim, o ujito ial da sociedad dos fgurantesestaia resin condicio de consumidorde tempo ede espa, poiso que no pode ser 2 acoLAsHOURRALD omercializado est fadado a desaparecer. Em breve, as lagSes humanas no conseguir se mane fora des asos mercantis: somos intimados a conversa em wlta de uma bebida e seus respectivosimpostos, forma simbali ca do conviviocontempotineo. Vocés querer be aconchego a dos? Eno provem nosso ea ago das relagBes habitus € 0 que se encontra mais cara siento atingido pela reifcagogeral, Se quiserescapr a0 dominio do prevsive, a relagSo humana ~ simbolizada os subsituida por mereadoras sinalizada por logomarcas — precisa assumifformas extremas ou clandestnay uma ver que owinculo social se tornou um produto paeonizado ‘Num mundo regulado pela divisio do trabalho e pela superespecialzago, pela mecanizago humana pe ei do luca, 20s governos importa tanto que as relages ‘manas seam canalizadas para vias de said pojtaan pa 1a essa finalidade quanto que elas se processem segundo alguns princpios simples, controliveis e epetivis. A "se paragio™suprema,a que afeta os canais elacionas con tua fima etapa da transormasio rumo a “wociedade do espeticula” deserts por Gay Debord. Sociedade en que a eases humanas nfo sio mas “ivetamente vidi das, masse afstam em sua representagio “espetacula” # aqui que se situa a problemstica mais candente da ate atual: sed nda posse grat relages no mundo, nm Campo ic a rs aeons tinado 3 repRentagio™ dees? Ao cori do que en seva Debord, para quer Ando do arte no possava de stare Assim,oes STEMCA RILACIONAL B lum depésito de exemplos do que seria preciso “realizar” concretamente na vida eotidiana, hoje a préticaartistica aparece como um campo fértil de experimentagsessociais, ‘como um espago parcialmente poupado & uniformizagio ‘dos comportamentos. As obras que serdo aqui tratadas es- ‘bogam vérias utopias de proximidade. (Os textos a seguir foram publicados em revistas, prin- mente Documents sur VArt, ou em catilogos de expo- sides, © passaram por alteragSes e reelaboragSes. Outros so inéditos, Além disso, ao final desta coleténea de en- saios hi um glossatio que o litor pode consultar quando aparecer alguma nogSo problemstica, Para faciitar a com= preensio da obra, sugerimos que ele consulte desde jé a defnigio da palavra “Arte”, 7a puget Fe Ctr ct tf pide plc visu chinre 935 iton cert pbno rnc» eae ‘seenerpsinn devon 95) AFORMA RELACIONAL Aatividade artistic constitui no uma esséneiaimuts- vel, mas.um jogocujas formas, modalidades efungdes evo- |uem conforme as épocas eos contextos sociais. A tarefa do ctitico consiste em estud-la no presente, Um certo aspec- todo programa da modernidade jé est totalmente encer- ado (mas nio o espirito que o animava insstamos nesse Ponto em nossos tempos pequeno-burgueses). Esse e3g0- tamento esvaziou o conteido dos critéios de julgamento esttico que nos foram legados, mas continuamos a apli- cé-los As priticas artisticas atuais. © novo néo é mais um ctitério, a nfo ser entre os detratores ultrapassados da ar- te moderna que retém do detestado presente apenas aqui- lo que sua cultura tradicionalistaIhes ensinow a abominar na arte do passado, Para cri ferramentas mais efcazes e pontos de vista mais adequados, & importante aprender as transformagdes atualmente em curso no campo social, captar o que jé mudou e o que continua a mudar. Como 16 NICOLAS OURRALD entender os comportamentos artisticos manifestados nas exposigBes dos anos 1990, e seus respectivos modos de pensar, a no ser partindo da mesma situagio dos artistas? As préticas artisticas contemporiineas seu projeto cultural ‘A modernidade politica, nascida com a flosofia das Luzes, baseava-se na vontade de emancipao dos indi duos e dos povos: 0 progresto das técnicas e das liberda- des, 0 recuo da ignordncia ¢ a melhoria nas condigbes de trabalho deveriam lberar a humane e permiti a ins- tauragio de uma sociedad melhor. Existem, porém, varias versies da modernidade. Assim, o século xx foi paleo de ‘uma luta entre ts visdes de mundo: uma concep r cionalista-modernista derivada do século xv, uma floso- fia da espontaneidade e da liberagdo através do irracional (@adafsmo, surrealismo, situacionismo) e ambi se opondo 4s foras autoritérias ou utilitaristas que pretendiam mol- dar as relagdes humanas e submeter os individuos. Em vez de levar& desejada emancipagio, 0 progress das téenicas da “Raz” permit, através de uma racionalizagio geral do processo de prociucio, a exploragio do hemistéto sul, 4 substituisdo cega do trabalho humano pelas maquinas, além do recurso a ténicas de sueigdo cada vex mais sofis- ticadas. Assim, o projeto emancipadr moderno fo substi {ido por inimeras formas de melancoia, As vanguardas do século xx, da dadaismo &interna- ional situacionista inscreviam-se nalinhagem desse pro- STETICA RELACIONAL v jeto moderno (ransformar a cultura, as mentalidades, as condigées de vida individual esocia), masnio esquecamos {ue ele era anterior is vanguardas edelas se distinguia sob muitos aspettos. Pos a modernidade do se reduz a uma teleologia racionalista nem a um messianismeo politico. Hé de se denegrita vontade de melhorar as candies de vida de trabalho 6 porque malograram suas tentativas con crotas de realizasio, repltas de ideologias toalitétias ou devises histricas ingénuas? O que se chamava vanguar- da certamente foi deserwolvido a partir do “banho” ideots: ico oferecido pelo racionalismo moderne, mas, posto isso, seus pressupostos flosdfcos, cultura e sociais sio total- mente diversos. claro que a arte de hoje prossegue nessa, lta, propondo modelos perceptivos, experimentais, cit- 08 € partcipativos, seguindo o rumo indicado pelos fis sofos das Luzes, por Proudhon, Marx, pelos dadafstas ou por Mondrian, Se a opinido publica tem dificuldade em re- conhecer a legitimidade ou ointeresse dessas experiénclas, 6 porque elas nao se apresentam mais como prentincios de uma inexordvel evolugio histrica: pelo contritio, elas se mostram fragments, isoladas, sem uma visio global do _mundo que possa thes conferir 0 peso de urna ideologia. [Nao foi a modernidade que morreu,e sim sua versio ldealista e teleotigica (combate da modernidade ocorte nos mesmos ter mos do passado, exceto pelo fato de que a tanguarda dei- ou de ir @ frente como batedora, ea tropa imobilizou-se, temerosa, num bivaque de certezas. A arte devia preparar 18 icoLAs mount ‘ow anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta modelos se universos passives (s artistas que inscrevem sua pritica na estera da ‘modernidade histrica ndo pretendem repetir suas formas nem seus postulados, tampouco atribuir arte as mesmas fungSes que elaatribuia,Suatarefaésemelhante que ean- Frangois Lyotard conferia 3 arquitetura pés-moderna, a qual “se vé condenada a gerar uma série de pequenas mo- dificagGes num espago erdado da modernidade ea aban- ddonar uma reconstrugdo global do espago habitado pela hhumanidade”. Aliés, Lyotard parece indinctamente -mentar esse estado de coisas: ele define asituagio de m: nelra negativa, usando o termo “condenada’. E se, pelo contritio, ssa “condenagio” constituisse a oportunidade hhistriea a partir da qual, nos Giltimos dez anos, vem sur- gindo a maioria dos mundos artisticos que conhecemos? Essa “oportunidade” cabe em poucas palavras: aprender a ‘habitar methor 0 mundo, em vez de tentar construi-lo a par- tir de uma idéia preconcebida da evolu histérica. Em ‘outros termos, as obras jé ndo perseguem a meta de for- ‘mar realidades imaginérias ou ut6picas, mas procuram constituir modos de existéneia ou madelos de aso denteo da realidade existente, qualquer que seja a escalaescolhi- da pelo artista, Althusser dizia que sempre se toma o trem, do mundo em movimento; Deleuze, que “a grama pressio- ‘nano meio", e no por cima nem por baixo: 0 artista habi- Tec Ra Fan ta Lone ee eis as _stETICa RELACIONA 9 ta.as circunstincias dadas pelo presente para transformar © contexto de sua vida (Sua relacio com o mundo sensivel ‘ou conceitual) num universo duradouro. Ele toma o mun- do em andamento:é um loeatiri da cultura, para retomar a ‘expresso de Michel de Certeau Hoje, amodernidade pro- longa-se em priticas de bricolagem e reciclagem do dado cultural, na invengéo do cotidiano ena ordenagio do tem- _po-vivido, objetos tio dignos de atengdo e estudo quan- ‘10 as utopias messiinicas ou as “novidades” formats que +a caracterizavam no passado. Nada mais absurdo do que afirmar que a arte contemporanea no apresenta nenhum Projet cultural ou politico, e que seus aspectos subversi- vos nio se enraizam em nenhum solo teérico, No entant, seu projet, referente as condigbes de trabalho e de produ 80 dos objetos cultural, bem como as formas variéves da ‘vida em sociedade, parecerd insipido aos espititos forma- dos nos moldes do darwinismo cultural ou aes amantes do “centralismo democrético” intelectual. chegado, como «iz Maurizio Cattlan, o tempo da “dolce utopia. ‘A obra de arte como interstcio social A possbilidade de uma arte relacional (ama arte que toma como horizonte teérico a esfera das interagdes hu- ™manas ¢ seu contesto social mais do que a afirmaggo de um espago simbélico autSnomo e privad) atesta uma in- Tit Cnn, ans dfn Pas es Cal Py NICOLAS HOURRIALD versio radical dos objetivos estéticos, culturaise politicos ;postuladlos pela arte moderna, Em termos socioligicos ge- ras, essa evolugdo deriva sobretudo do nascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicaglo desse modelo cita- dino a praticamente todos os fenémenos culturais. A ur- bbanizagdo generalizada que se desenvolveu apés o final da Segunda Guerra Mundial permitiy um aumento extraor- dinério dos interedmbios socials e uma maior mobiidade dos individuos (gragas ao desenvolvimento rodoferrovid- to edas telecomunicagées e progressiva abertura dos lo~ ‘ais isolados,simultaneamente a uma maior abertura das ‘mentalidades). Devido as esteltas dimensdes dos espacos, |habitéveisnesse universo urbano, assste-se, paalelamen- te, 2 uma recucdo na escala dos méveis e dos objetos, que se orientam para uma maior facilidade de manejo: se, por ‘muito tempo, a obra de arte péde ostentar um ar de kuxo -senhorial nesse context citadino (otamanho da obra, bem ‘como o tamanho do apartamento, servia para dstnguir do joio-ninguém seu proprietéria), a mudanca da fungao edo ‘modo de apresentagio das obras mostra uma urbanizapio crescente da experincia artistiea, 0 que esté desaparecen- ddo sob nossos olhes & apenas essa concepofalsamen- te aristocitica da disposicio das obras de arte, ligada a0 sentimento de adquirir um territéio. Em outros termos, {no se pode considerar a obra contemporinea como um cespaso a ser percorrido (a “volta pela casa do proprieti- rio ésemelhante do colecionador). Agora clase apresenta ‘como uma duragdo a ser experimentada, como uma aber- [STEMCARELACIONAL a tura para a discussio ilimitada. A cidade permitiu e ge neralizou a experiéncia da proximidade: ela € o simbolo tangivel ¢ © quad histérico do estado de sociedade, es- se “estado de encontro fortuito imposto aos homens”, na expressio de Althusser, em oposigéo Aquela selva den sa e “sem istria” do estado de natureza na concepsio de Jean-Jacques Rousseau, selva que impedia qualquer en- conto fortuito mais duradouto, Esse regime de encontro casual intensivo, elevado & poténcia de uma regra abso- Ita de civilizagSo, acabou ctiando préticas artis respondentes, isto é, uma forma de arte cujo substrata & «dado pela intersubjetividade e tem como tema central es- {arjuntos, 0 “encontro” entre observador e quado, a ela- boragdo coletiva do sentido, Deixemos de lado o problema dla historicidade desse ferdmenc: a arte sempre fo relaio nal em diferentes graus, ou sea, fator de socalidade e un- ddadora de dislogo, Uma das potencialidades da imagem & seu poder de reliance [sentimento de ligagio, retomando © termo de Michel Maffesoli: banderas, siglas,fcones, si nais eriam empatia e compartilhamento, geram vinculo. ‘A arte (as préticas derivadas da pinturae da escultura que ‘se manifestam sob a forma de exposigdo) mostrase parti- cularmente propicia a expressio dessa civilizagio da pro- ximidade, pois ela estetaoespago da relagdes, a0 conteério so agit Ath Eat pies ines Fr Se Mice! Mt, Le memati ds mde Pais Gr, 19 ot Sots ena do mand Pai ein Rr Ag te 2 NICOLAS WORLD da televisio ou da literatura, que remetem a seus respec tivos espasos de consumo privado; ao contrério também do teatro e do cinema, que reinem pequenas coletividades diante de imagens univocas: com efeito, nessassalas no se comenta diretamente 0 que se vé(a discuss fica para depois do espetdculc). Inversamente, durante uma expos ‘io, mesmo que de formas inertes, estabelece-se a possi- bilidade de uma discussio imediata nos dois sentidos do termo: percebo, comento, desioco-me mum mesmo espa- coctempo. Aarte 60 lugar de produgio de uma socialida- de especifica: resta ver qual & 0 estatuto desse espaco no conjunto dos “estados de encontro fortito” propostos pe- Ja Cidade. Como uma arte concentrada na producéo de tis modes de convivio é capaz de elangar e completa o proje- toemancipacor maderno? Como ela permite o desenvolvi- mento de novos enfoques culturaise politicos? ‘Antes de passar para exemplosconcretos, importante reconsidetaro lugar das obras no sistema global da econo- mia, simbélica ou material, que rege a sociedade contem- porénea: para nés,além de seu caréter comercial ou de seu valor semintico, a obra de arte representa um intersticio social. © termo inferstco foi usado por Karl Marx para de- signar comunidades de troca que escapavam ao quadro da, economia capitalist, pois no obedeciam lei do lucto:es- cambo, vendas com prejuizo, produgées autirquicas ete. 0 Intersticio € um espago de relagbes humanas que, mesmo Inserido de maneira mais ou menos aberta © harmonio- ‘a no sistema global, sugere outras possibilidales de troca ISTEMCARE.ACONAL 2 lém das vigentesnesse sistema, exatamente esta ana tureza da exposigio de arte contemporines no campo do comérco das represenagBes: la criaespagos livres, gera daragbes com um ritmo conterio a0 das duragdes que or: ddenam a vida cotdian, favoree um intercémbio humano diferente das “zonas de comunicagio" que nos si impos- tas. O contest social tual rstringe as possiblidades de selagdeshutmanase, ao mesmo tempo cra espagos para tal fim, Os banheiros pbc fram crados par que as uas fcassem limpas: & com esse mesmo exptita que se desen- volvem as ferramentas de comunicagio, enquanto as russ das cidade fcam limpas de qualquer escriarelacional as relages de viinhanga se empobnecem. A mecanizacéo eral das fungiessociaisreduz progressivamente 0 espa- so relacional. Até alguns anos atts, o servic de desperta- dor pelo telefone era exzeutado por pessoes: agora & uma woz sintética que se encarrega de nos acorde...O guiché sutomatico tormou-se © modelo para cumprir as fangSes sociais mais elementares,e 0 comportamento dos profs- sionais segue os moldes de efcincia das méquinas que vém a subtitulos, executando tarefas que, antes, ofere- cam acasides de contato, de prazer ox de conilto. Aarte contemporinea realmente desenvolve um projto politico quando se empenha em investire problematizar a esfera das elagies, ‘Quando Gabriel Orozco coloca tuma laranja na ban- ca de um mercado brasileiro vazio (Crazy Tourist, 1991) ou m NICOLAS HOURRIALD instala uma rede no jardim do Museu de Arte Moderna de Nova York (Hamoc en el MoMA, 1993), ele est operand no centro do “infafino social’ esse minisculo espago de ges- tos cotidianos determinado pela superestrutura constitut- da pelas “grandes” trocas. Sem legendas, as fotografias de ‘Orozco documentam fnfimas revolugies no cotidiano ur- ‘ano ou semi-urbano (um saco de dormir em cima da gra- ‘ma, uma caixa de sapatos vazia etc): elas mostram essa vida silenciosa (il! if, natureza morta) hoje formada pe- las relagdes com 0 outro. Quando Jens Haaning transmite historias engragadas em turco, por ato-falante, numa pra- 8 de Copenhague (Turks Jokes, 1994), cra instantanea- mente uma microcomunidade ~ a dos imigrantes unidos por um iso coletiva que subverte sua condigio de exilados ~formada na obra e em relagio A obra. A exposigao & 0 lo cal privilegiado onde surgem essas coletividades instanti- ineas,regidas por outros princpios: uma exposigo riaré, segundo o grau cle participacio que o artista exige do es Pectador, a natureza das obras, o8 modelos de socalida- de propostos ou representados, um “dominio de trocas” Particular. E esse “dominio de toca” deve ser julgado de acordo com critétiosestticos, isto 6 analisando-se prime ro a coeréncia de sua forma e depois o valor simblico do “mundo" que ele nos propée, da imagem das relagies hi- _manas que ee reflete. No interior desseintesticio social, 0 artista deve assumir os modelos simbslicos que expBe:to- da tepresentacdo (mas a arte contemporsinea cria madelos, endo propriamenterepresentacées; ela se insere no tecido STETICARELACONAL 25 social sem proptiamente se inspira nele)remete a valores transferiveis para a sociedade, Atividade humana baseada ‘no comérco, a arte 6 a0 mesmo tempo objeto ¢ sujeito de uma ética, tanto mais que, ao contrio de outras aivida- Aes, sta inca funda €seexpor a esse comércio, A arte € um estado de encontro fortuit, A cstética relacional e 0 materialisio aleatério A estéticarelacional inscreve-se numa tradigdo mate tlalista, Ser “materialista” nio significa seater & banalida- de dos fatos, tampouco supe aquela forma de estreiteza ‘mental que consiste em ler as obras em termos puramen- te econdmicos. A tradgio filosética que sustenta essa es- ‘tica relacional foi admiravelmente definida por Louis “Althusser, num de seus tltimos textos, como um “mate- rialismo do encontro fortuito” ou materialismo aleatério. Esse materilismo tem como ponto de partida a contin- .géncia do mundo, que nfo tem origem nem sentido pree- xistente, nem Razdo que possa Ihe atrbuir uma finalidade, ‘Assim, a esséncia da humanidade é puramente transindi- vidual, formada pelos lagos que unem os individuos em formas socais sempre histércas (Mare: a esséncia huma- ‘na oconjunto das relagbes sociais). Nao hi “fim da hist ria" nem “fim daarte” possiveis, porque a partida sempre é retomada em fungio do context, ist & em fungio dos jo- _gadores e do sistema que eles constroem ou criticam, Hu bert Damisch considerava as teorias sobre o “fim da arte” 2% NICOLAS HOURRIALD ‘como resultado de uma lamentavel confusio entre o “fin lo jogo” (game) eo “fim da partida” (play): quando 0 con- texto social muda radicalmente, 0 que se anuncia & uma nova partida, sem que seja colocado em questio o sent do do jogo em sP. Mas esse jogo intr-humano que consti tui nosso objeto (Duchamp: “A arte € um jogo entre todos (0s homens de todas as épocas”)ulkrapassa © quadro da uilo que, por comodidade, é chamado de “ate: assim, as “situagoes construidas” preconizadas pela Internacional st ‘tuacionista pertencem inteiramente a esse “jogo", mestno {que Guy Debord thes negasse, em tikima insténcia, qual {ur caréterartstco, vendo nelas, pelo contirio, a “supe ‘ago da arte” pormelo de uma revolugio da vida coidiana. ‘A estéticarelacional consitui no uma teoria da arte, que suporia o enunciado de uma origem e de um destino, e sim ‘uma teoria da forma, © que chamamos de form? Uma unidade coerente, uma estrutura entidade automa de dependéncias interns) (que apresenta as caracteristcas de um mundo: a obra de arte nio detém © monopstio da forma; ela é apenas umn subconjunto na totalidade das formas existentes. Na tra- digho filosfca materialista inaugurada por Epicuro¢ La crécio, 0s étomos caem paralelamente no vazio, seguindo uma leve inclinasio. Se um dessesstomosse desvia do cur- $0, ele “provoce tna colo [encontro fortuito] com 0 éto- Fiber Dansk Fonte STEMCA RELACIONAL, 2 ‘mo vizinho ede cliso em colisfo um engavetamento eo rnascimento ce um mundo. Assim nascem as formas: do desvioe do encotr aleatrio entre dos elementos até en to paralelos, Pra criarum mundo, ese enconto fotuto tem dese tornarduaouroos elementos quo constituem dever se unificar numa forma, ist & “0 elementos tem de dar iga (assim como dzemos que alguma coisa ‘eu i- 82')". “A forma pode ser definida como um encontro for~ tuto duradoura” Assim podem ser descias as linhas ¢ fas cores que se insrevem na superficie de um quadro de Delacroix, os ees qu enchemn of “quads Merz” de Schwitters, as performances de Chris Burden: an dot po de disposio na pina ou no espago, ls se mostra dradouros spastic do momenta em que ss componen tes foram um conjnto co sentido “vem do momento dese nascimentosusitando nova “‘posblidadesdevi- "Asim, toda obra é modelo de um mundo vive. Toda oa, até o proto mascrico edemolidor, passa por esse estado de mando vive, porque ela permite o encom or tuto de elementos separads: por exemplo, amore a. dias em Andy Warhol. E o que diziam Deleuze e Guattari quando definam a obra de act como um “loco de afetos «perceptos ate mann juntos momentos de subjetiv dade igados a experincias singular, seam as mags de CCizanne ow a etrturas isteadas de Baten A compos «fo dessealutnants, por meio do qual dtomos colidindo hegam a constr im mundo, natralmente depend do context histo 0. plc nformadoatalenten 28 NICOLAS HOUR de por “manter juntos” nio & 0 mesmo que se imaginava no séeulo passado. Hoje a “cola” & menos visivel, pois nos- sa experincia visual se tornou mais complexa,enriquecida, por um século de imagens fotogréficas e depois cinemato~ Bgrificas (introduso do plano-seqjiéncia como nova uni- dade dindmica), a ponto de podermos reconhecer como tum “mundo” uma colegio de elementos esparsos (a ins- talagio, por exemplo) que nao estio ligados por nenhuma matéria unificadora, nenhum bronze. Outras tecnologias talvez venham a permitir que o espirito humano reconhe- ‘a tipos de “formas-mundos” ainda desconhecidos: por ‘exemplo, a informatica prvilegia a nogo de programa, que altera a concepgio de certs artistas sobre seus trabalho, ‘Assim, a obra de um artista assume a condigio de um con- Junto de unidades que podem ser reativadas por um obser- ‘vador-manipulador. Aqui insisto, ecertamente de maneita bastante enftica, sobre a instabilidade e a diversidade do conceito de “forma",cuja abrangéncia pode ser vista na fa 1mosa exortagdo do pai da sociologia, Emile Durkheim, a considerar os “fatos socials" como “coisas".. ois a “co sa” artistiea 3s vezes se apresenta como um “ato” ou uth ‘conjunto de fatos que surgem no tempo ou no espago, sem que sua unidade (geradora de uma forma, umn mundo) ja questionada. © quadro amplia-s; alm do objeto isola- do, ele agora pode abarcar a cena inteira: forma da obra de Gorton Matta-Clark ou de Dan Graham ni se reduz & forma das “coisas” que esses dois artistas “produzem’s ela do € 0 simples efeito secundario de uma composi, co [STETICA RELACIONAL 2» ‘mo suporia uma estéticaformalista, e sim o principio ativo cde uma trajetiria que se deseneola através de signs, ob- jetos, formas, gestos. A forma da obra contemporinea vai ake de sua forma material: ela é urn elemento de ligacio, ‘um prineipio de aglutinagio dindmica, Uma obra de arte é ‘um ponto sobre uma linha Aforma eo olhar do outro Se, como escreve Serge Daney, “toda forma é um 105- to que nos olha’, 0 que se torna uma forma quando esté mergulhada na dimensdo do diélogo? O que é uma forma cessencialmente relacional? Parece-nos interessante discutir essa questi tomando a definig3o de Daney como ponto de referénca, justamente por causa de sua ambivalénciajé {que as formas nos alham, como devemos olhé-las? Geralmente, a forma & definida como um contor- no que se ope a tum canted, Mas a estética modernis ta fala em “beleza formal” referindo-se a uma espécie de (on)fusdo entre forma e fundo, a uma adequagio inven- tiva da primeira ao segundo. Uma obra é julgada por sua forma plistca: a crtica mais usual as novas prticas artis- ticas consiste em Ihes negar qualquer “ficcia formal” ou fem apontar suas falhas na “resolucdo formal”. Observan- do as prétcas artisticas contempordineas, deveriamos falar mais em “formagies” do que em “formas”: a0 contro de tum objeto fechado em si mesmo gracasa um estiloe a uma atual mostra que s6 existe forma no en- assinatura, a a 30 NICOLAS BOURBUALD conto fortuito, na relagéo dinimica de uma proposigdo ar- tistica com outras formagSes,artstcas ou no, "Nao existem formas na natureza, no estado selvagem, porque & nosso olhar que as cia, recortando-as na espes ‘sua do visivel. As formas desenvolven-se urnasa partir das ‘outras. O que ontem seria considerado informe ou “infor- ‘mal” jnio 0 mais. Quando a diseussio esética evolui,o estatuto da forma evolu com ela e através dela, [Nos romances de Witold Gombrosvicz, vemos como «cada individuo gera sua propria forma através de seu com- portamento, sua maneira de se apresentare se digit aos ‘outros Ela nasce nessa zona de contato em que oindividuo se debate com o Outro para Ihe impor aquilo que julga ser 0 seu “ser”. Assim, para Gombrowicz, e retomando uma terminologia sartreana, nossa “forma” é apenas uma pro- Priedade relacional que nos liga aos que nos reficamn pe- Jo olhar. O individuo, quando acredita que se estéolhando objetivamente, no inal das contas estécontemplando ape- aso resultado de intermindvelstransagies com a subjet- vidade dos outros. Para alguns, a forma artstca escaparia a ess fata- lidade por ser intermediada por uma abr. Nos, pelo con- trério,julgamos que a forma s6 assume sua consisténcia (e adquite uma existéncia eal) quando coloca em jogo in- teragdes humanas; a forma de uma obra de arte nasce de. uma negociagdo com o inteligivel que nos coube, Através dela, o artista iniia um dilogo. A esséncia da pstica a tistcaresdiria, assim, na invengio de relagdes entte sul STEMCA RILACIONAL 31 tos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar ‘um mundo em comam, enquanto o trabalho de cada arts ta comporia um feixe de relagSes com 0 mundo, que gera- ria outrasrelagbes,e assim por diante, até o infinite, Aqui estamos nos antipodas da versio autortéria da arte que se encontra nos ensaios de Thierry de Duve, para ‘quem toda obra néo passa de uma “soma de juizos” hist ricos eestéticos, enunciados pelo artista no ato da realiza- ‘fo. Pintar seria seinscrever na histiria através de escolhas plsticas. Estamos na presenca de uma estética de tribunal ‘segundo a qual oartistasecoloca perante a histéria da arte na autarquia de suas convicqGes, uma estética que rebaixa «a prtica artistiea ao nivel de uma critica hist sual: 0 *julgamento” pritico assim emitido, peremptério © inrecorrivel, 6a negacdo do didlogo,tnico a confer & for ‘ma um estatuto produtivo,o de um “encontro fortuito”. No {quadro de uma teoria“relaconista” da arte, a intersubjeti- vidade néo representa apenas o quadro social da recep da arte, que constitu seu “meio”, seu “campo” (Bourdieu), masse torna a prépria esséncia da priticaartistica. ca proces: em virtude dessa invengio de relagdes que a forma se converte em “rosto" como sugeria Daney. Essa formula, sem duvida, lembra um conceito fundamental do pensa- _mento de Emmanuel Lévinas, para quem 0 rosto 60 signo da proibigfo ética. Orosto,afitma ele, é%o que me ordena ‘ler Dae Ea i ari Se Din, 22 icotaspovRRAL setvira outrem’, “o que nos profbe matar, Tada “relagdo Intersubjtiva” passa pela forma do rosto, que simboliza a responsabilidad que nos cabe em relacio ao outro: ‘0 vin- culo com o outro 86 se dé como responsabilidad’ escreve Lévinas, Mas ndo haveria um outro hotizonte para a éti- caalém desse humanismo que redur a intersubjetividade a luma especie de interservilismo? A imagem ~ metafora do rosto, segundo Daney ~ s6 seria capaz de criar proibigBes através do fardo da “tesponsabilidade”? Quando explica ‘que “toda forma é um rosto que nos olha’ ele no quer di- 2er apenas que somos responsaves por ela, Para entender Jsso, basta voltar ao significado profundo da imagem em Daney: para 0 critico, a imagem é “imoral” quanclo nos co- lea “onde nao estavamos", quando “toma o lugar de uma ‘outra”. Nao se trata apenas de uma referéncia &estética Ba- 2in-Rossellini ao postular o “tealismo ontolégico” da arte cinematogréfica, a qual, embora esteja na origem do pen- ssamento de Daney, ndo o esgota, Segundo ele, a forma au- 'ma imagem é apenas a representasio do desejo: produzir luma forma 6 criaras eandigées de uma troca, como devol- ver um saque numa partida de tn, Se estendermos um PPouco mais o raciocinio de Daney, a forma é 0 desejo que foi delegado’ imagem. Aquela 0 horizonte a partir do qual esta pode ter um sentido, designando um mundo deseja- do que 0 espectador entio considera passivel de diseus- ‘fo, ea partir do qual seu proprio desejo pote riochetear, rao isn he af Fp 42 STEM RILACIONAL 33 Essa troca se resume a um binémie: alguém mostra algo ‘a alguém que Ihe devolve & sua maneira. A obra procura captar meu olhar, como o recém-nascido “pede” o olhar da Inde: Tavetan Todorov mostrou, em La Vie commune [A v- ‘den comum), que aesséncia da socialidade consiste muito ‘mais na necessidade de reconhecimento do que na compe tigio ou na violencia. Quando urn artista nos mostra al~ _guma coisa, ele expe uma ética transitiva que situa sua ‘obra entre o “olhe-me” e 0 ‘lhe isso", Os tltimos textos de Daney lamentam o fim da dupla “Mostrar/ver, que re- resentava a esséncia de uma democracia da imagem, em favor de uma outra dupa, televisiva e autoitéia, “Promo- verlreceber’, que marca o advento do “visual”. Na concep- so de Daney, “toda forma 6 um rosto que me olha’” porque la me chama para dialogar. A forma é uma dindmica que ‘se inscreve no tempo e/ou no espaco. Ela sé pode nascer de ‘um encontro fortuito entre dois planos de realidade: pois a hhomogeneidade nao produz imagens, e sim visual, isto & “ainformagao em circuito fechado'” {Fan To Lae cm Fry du Sel 98 ba A ‘tocar i: Dive etme © Best ana, Cares Page vom a

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