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COMUNIDADES QUILOMBOLAS | 83

ORIGINAL | ORIGINAL

A rede de causalidade da insegurança


alimentar e nutricional de comunidades
quilombolas com a construção da
rodovia BR-163, Pará, Brasil1

The causality of nutrition and food insecurity of


quilombola communities with the construction
of the BR-163, highway, Pará, Brazil

Denise OLIVEIRA e SILVA2


Ana Felisa Hurtado GUERRERO 3
Camilo Hurtado GUERRERO 2
Luciano Medeiros de TOLEDO 4

RESUMO

Objetivo
Trata-se da descrição de resultados baseados na elaboração de um modelo de determinação causal de forma
participativa e abrangente, realizada em seis comunidades quilombolas no município de Santarém, no Estado
do Pará, sobre a rede de causalidade da insegurança alimentar e nutricional com a abertura da Rodovia
BR-163.
Métodos
O processo investigativo utilizou métodos de abordagem sócio-antropológica tendo como base o
desenvolvimento de um modelo de causalidade construído por meio da realização de grupos focais com
representantes da comunidade.
Resultados
Os resultados do estudo demonstraram que a utilização de abordagens participativas estimula a auto-estima
da comunidade e o empoderamento sobre os fatores que determinam seus problemas. O modelo causal

1
Artigo elaborado a partir do projeto de pesquisa financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Saúde e
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a partir do Edital MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT
034/2005 (processo CNPq nº 402836/2005-7), compondo trabalhos voltados ao desenvolvimento prioritário em saúde para
a Área de Influência da BR-163.
2
Diretoria Regional de Brasília da Fundação Oswaldo Cruz. SEPN, Bloco A Quadra 510, Ed. Anexo II do MS, Sala 407,
70750-520, Brasília, DF, Brasil. Correspondência para/Correspondece to: D. OLIVEIRA e SILVA. E-mail: <deniluz@fiocruz.br>.
3
Centro de Pesquisas Leônidas Maria Deane. Manaus, AM, Brasil.
4
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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construído revela que a insegurança alimentar e nutricional, para as comunidades, estabelece que fatores
históricos relacionados à posse da terra e ao seu uso atual baseado em práticas predatórias, são os aspectos
fundamentais na compreensão da rede de determinação causal da insegurança alimentar e nutricional.
Conclusão
O racismo e suas nuances sociais têm contribuído para a invisibilidade social dessas comunidades nas políticas
públicas brasileiras. As comunidades quilombolas se consideram em insegurança alimentar e nutricional e
indicam que a abertura da Rodovia BR-163 pode ser uma ameaça ao etno-desenvolvimento sustentável na
região. E referem que o desenvolvimento econômico esperado com a abertura desta rodovia, se não for
realizado com base na participação da comunidade, pode aumentar a fome, a miséria e o racismo.
Termos de indexação: Antropologia cultural. Grupo com ancestrais do continente africano. Insegurança
alimentar. Percepção social. Pesquisa qualitativa.

ABSTRACT

Objective
This work describes results based on the participative and encompassing development of a model of causal
determination done in six quilombola communities of Santarém, Pará State, regarding the causality of food
and nutrition insecurity with the construction of the BR-163 highway.
Methods
The research process used socio-anthropological approach methods based on the development of a causality
model constructed by forming focal groups with community representatives.
Result
The results of the study show that the use of participative approaches stimulates the community’s self-esteem
and takes control of the factors that determine its problems. The causal model reveals that, for the communities,
nutrition and food insecurity establish that historical factors associated with land ownership and current use
based on predatory practices are essential to understand the causal determination of food and nutrition
insecurity.
Conclusion
Racism and its social nuances have contributed for the social invisibility of these communities in public
Brazilian policies. The quilombola communities consider themselves in a state of nutritional and food insecurity
and indicate that the construction of the BR-163 highway can be a threat to the sustainable ethnic development
in the region. They also state that the economic development expected with the construction of this highway
can increase hunger, poverty and racism if the communities do not participate.
Indexing terms: Anthropology, cultural. African continental ancestry group. Food insecurity. Social perception.
Qualitative research.

INTRODUÇÃO forma de sua libertação têm influenciado o acesso


diferenciado a bens e serviços, constituindo-se
Os quilombos são núcleos populacionais como fatores condicionantes da situação de inse-
que, diante da condição de escravidão, consti- gurança alimentar.
tuíram formas particulares de organização social
O reconhecimento legal destas comuni-
e ocuparam espaços geográficos estratégicos no
Brasil1. Estas comunidades geralmente se loca- dades foi estabelecido a partir da Constituição de
lizam em várias regiões do País, notadamente nas 1998, no artigo 68 das disposições constitucionais
áreas rurais; apresentam um relativo grau de isola- transitórias, delegando à Fundação Cultural Pal-
mento geográfico e vivem desigualdades sociais mares os cuidados de todas as questões referentes
e de saúde. Nestas comunidades, as conse- a quilombos. A definição de quilombos está
qüências históricas do processo de escravidão e a baseada na auto-atribuição, com trajetória históri-

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ca própria, dotada de relações territoriais especí- Com o propósito de conhecer os efeitos da


ficas, com a presunção de ancestralidade negra, abertura desta rodovia para estas comunidades o
relacionada com a resistência à opressão histórica edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento
sofrida2. Científico e Tecnológico, MCT-CNPQ/MS-SCTIE-
DECIT número 34/2005 em 2006 selecionou
O conceito de segurança alimentar e nutri-
inúmeros projetos de pesquisa para descrever os
cional no Brasil está em construção. Seus pressu-
diversos impactos da construção e da
postos conceituais têm sido elaborados em razão
pavimentação da Rodovia BR-1636. Nesse sentido,
de disputas de interesses de movimentos sociais
coube à Fundação Oswaldo Cruz, por meio das
e de governos. A noção de segurança alimen- unidades da Amazônia e de Brasília, descrever a
tar,originalmente concebida na Europa a partir da percepção dos quilombolas sobre insegurança
I Guerra Mundial, vem, ao longo desses anos, alimentar e nutricional com a abertura desta
assumindo contorno ampliado3,4. rodovia. Para obter a compreensão desse
No Brasil este conceito foi rediscutido na fenômeno, foram utilizadas abordagens
III Conferência Nacional de Segurança Alimentar. metodológicas quantitativas e qualitativas, por
meio de técnicas de geoprocessamento,
Neste evento, foi ratificada a dimensão do con-
epidemiológicas, demográficas e econômicas. O
ceito de soberania alimentar4,5, que parte da visão
processo investigativo ainda está em curso com a
do direito de povos e nações de produzir alimentos
adição de estudos etnográficos sobre o tema.
pela valorização das dimensões sociais, ambientais
Assim, a proposta deste artigo é descrever a rede
e culturais da produção própria de alimentos; da
de causalidade de insegurança alimentar e
ampliação do acesso da população a alimentos
nutricional construída pela população quilombola
de qualidade, com o apoio às formas eqüitativas
com a abertura da Rodovia BR-163 na cidade de
e sustentáveis de produção agroalimentar; do
Santarém, no Estado do Pará, Brasil.
estímulo à diversidade de hábitos alimentares; e
da promoção de práticas alimentares saudáveis.
O conceito de insegurança alimentar e nutricional MÉTODOS
está baseado nas múltiplas funções associadas à
atividade agrícola e ao mundo rural, que vão além Trata-se de uma pesquisa qualitativa reali-
do aspecto produtivo e mercantil e têm forte asso- zada em seis comunidades quilombolas no
ciação com a forma de ocupação social do espaço município de Santarém, no Estado do Pará, com-
geográfico, ao patrimônio natural e à herança posta por 2.164 habitantes. Nesta investigação,
cultural5. Nas comunidades tradicionais brasileiras, foram previstas várias abordagens e estratégias
para apoiar as comunidades a obter a segurança
onde estão inseridas as populações quilombolas,
alimentar e nutricional. Como primeira etapa,
têm sido desenvolvidas várias iniciativas governa-
discutida com os líderes quilombolas, foi estabe-
mentais e da sociedade civil para a promoção da
lecido o desenvolvimento da rede de causalidade
segurança alimentar e nutricional. Dentre estas
da insegurança alimentar e nutricional com a aber-
iniciativas, destaca-se a abertura da Rodovia
tura da Rodovia BR-163. Em razão dessa decisão,
BR-163, via expressa que ligará o Estado de Mato foi escolhido o método de investigação socioan-
Grosso ao Estado do Pará. Esta rodovia tem 1.780 tropológica para abordagem de fatores deter-
quilômetros e atravessa um trecho com grande minantes causais por meio da participação social
diversidade econômica, cultural e ambiental. O de atores envolvidos com o projeto7. Neste método
asfaltamento não foi totalmente concluído e cerca estão previstas a realização de Grupos Focais (GF)
dos 1.000 quilômetros que faltam estão localizados e a construção de modelos causais para obter um
próximos ao município de Santarém, onde estão enfoque global e compreensivo da insegurança
situadas comunidades indígenas e quilombolas. alimentar e nutricional.

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A técnica de abordagem baseada na reali- feminino. A média de idade dos representantes


zação de GF foi escolhida pelo seu papel de da comunidade foi de 25 anos e dos pesquisadores
permitir ao pesquisador perceber as diversas visões de 40 anos.
sobre o tema investigado. A técnica de GF é muito Foram realizados cinco encontros na sede
eficiente porque estimula a participação dos da FQS, divididos em cinco turnos de quatro horas
membros do grupo, com o propósito de compar- diárias, totalizando 40 horas de trabalho. No pri-
tilhar e discutir opiniões e sentimentos para que meiro encontro, os pesquisadores apresentaram
sejam elucidadas as diferenças e aprofundados a dinâmica do trabalho, baseada na discussão do
os argumentos8-10. conceito de insegurança alimentar com a abertura
O modelo causal é uma representação grá- da Rodovia BR-163 e a construção de um modelo
fica simplificada de um conjunto de hipóteses causal sobre esta situação. A confecção do mo-
organizadas, de forma hierárquica, de fatores delo causal foi apresentada a todos os partici-
determinantes de uma situação, processo ou siste- pantes, por meio da descrição dos fatores causais
ma para efetuar diagnósticos nutricionais10,11. Este mais imediatos nos primeiros níveis do modelo
instrumento permite selecionar as informações até chegar ao(s) fator(es) básico(s) da rede de
empíricas requeridas pelo diagnóstico e facilita a determinação causal7,10,11.
análise e a interpretação. O modelo causal deve Com a apresentação finalizada, os pesqui-
ser construído por uma equipe multidisciplinar com sadores convidaram os participantes a pactuarem
participação dos atores envolvidos com a situação os procedimentos gerais do trabalho no GF. Foram
que será analisada, em que as regras de sua cons-
escolhidos os auxiliares e o desenhista do modelo
trução deverão ser pactuadas7,10,11.
causal e organizada a gravação da fita de vídeo
O processo foi iniciado com o envio de carta de todo o processo. Os membros do GF aceitaram
da coordenação do Projeto Quilombos da Funda- a proposta e foi designado imediatamente um
ção Osvaldo Cruz (Fiocruz), com a descrição dos facilitador, que assumiu o papel de estar atento
objetivos da pesquisa e a forma de abordagem aos participantes e demonstrar interesse às falas,
para sua execução, à Federação Quilombola de ter liderança e flexibilidade quanto às sugestões
Santarém (FQS), em novembro de 2005. Nesse oferecidas pelos membros do GF. Foi escolhido
documento, foi sinalizado que a pesquisa previa
também o auxiliar encarregado de controlar o
diversos procedimentos e que inicialmente a pri-
funcionamento do processo de filmagem, e outro
meira etapa consistia na realização de entrevistas
para auxiliar na confecção do desenho do modelo
com membros da comunidade e na realização de
causal.
grupos focais.
Todos os encontros foram gravados em fita
Em janeiro de 2006, ocorreu uma assem-
de vídeo com assinatura de um termo de autori-
bléia sem a participação dos pesquisadores da
zação prévia de sessão de imagens e do termo
Fiocruz, em que foi aprovada a realização da pes-
de consentimento livre e esclarecido.
quisa e agendada, para fevereiro daquele mesmo
ano, a visita dos pesquisadores para apresentar a Os pesquisadores utilizaram diários de
proposta de investigação. Em fevereiro de 2006, campo, com o propósito de registrar os aconteci-
foi apresentada a proposta e destacada a impor- mentos antes, durante e após a atividade. Este
tância da realização de GF com a participação de instrumento buscou apoiar a análise do material
membros da comunidade. A proposta foi aceita registrado em fita de vídeo, com o propósito de
na assembléia e foram indicados 21 líderes comu- registrar falas informais, linguagem corporal e
nitários. Em abril de 2006 foi composto o GF com outras expressões8,9. Ao fim da realização do GF
21 líderes comunitários e três pesquisadores, sendo foram gravadas 28 horas de imagem, convertidas
12 pessoas do sexo masculino e 11 do sexo em CD-ROM.

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A análise e a interpretação dos resultados de Ética em Pesquisa da Fiocruz, em setembro de


da pesquisa estão em curso e utilizam como ca- 2006, sob o protocolo 35106.
minho as representações sociais, com vistas ao
trabalho de unir a experiência vivida dos sujeitos
em seu contexto de elaboração da rede causal RESULTADOS E DISCUSSÃO
da insegurança alimentar com a abertura da
Rodovia BR-16312. Este processo foi efetuado Em Santarém, foram identificadas seis
com os participantes do GF, que discutiram e comunidades remanescentes de quilombos. Entre
pactuaram os ramos causal que deveriam ser estas comunidades, quatro encontram-se
aprofundados para a discussão da insegurança localizadas na área do planalto (terra firme) - Bom
alimentar e nutricional. Foi estabelecido que a Jardim, Murumurutuba, Murumuru e Tiningu; e
posse da terra e a ilusão quilombola eram os duas se localizam na área de várzea - Saracura e
aspectos causais a serem aprofundados, consti- Arapemã. A localização das áreas quilombolas
tuindo-se dos núcleos de sentido utilizados neste está entre 40km de barco, a mais próxima
artigo. (Arapemã), e 100km por terra a mais distante
(Bom Jardim) (Figura 1).
Embora a opção metodológica da pesqui-
sa, baseada no método das representações sociais O contingente populacional identificado
possibilite a análise simbólica das falas dos sujeitos, por meio do censo realizado pela Fiocruz, em
para a construção deste artigo, foi priorizada a 2006, é de 2.164 habitantes, como demonstra a
apresentação da rede de causalidade, por meio Tabela 1.
da apresentação dos modelos causais, com a A distribuição por sexo correspondeu a
utilização de depoimentos dos sujeitos de forma 47,1% para o sexo feminino e 52,9% para o
ilustrativa. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê masculino. Os pesos da razão de dependência são

Figura 1. Localização das comunidades quilombolas.


Fonte: SEMDE/SEMAB - STM/PA, 2002 e Fundação Oswaldo Cruz37.

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Tabela 1. Distribuição absoluta e relativa da população quilom- A maior parte das comunidades recorre à
bola nas seis comunidades referenciadas para o mu-
iluminação de lamparinas de querosene e nenhu-
nicípio de Santarém (PA), Brasil, 2006.
ma delas conta com rede de energia elétrica.
População Famílias
Quilombo
n % n %
A população analfabeta não funcional (não
Arapemã 252 012,5 59 011,5 consegue escrever sequer um bilhete) alcança
Bom Jardim 312 015,4 73 014,2 31,8%, porém a população que terminou o 1º grau
Murumuru 322 015,2 72 014,7
do ensino fundamental é de 51,4% . As escolas,
Murumurutuba 371 016,3 77 016,9
Saracura 596 026,2 124 027,1
em sua maioria, são multiseriadas, algumas em
Tiningú 344 014,4 68 015,7 precário estado de conservação, e oferecem até
Total 2.197 100,0 473 100,0 a 8ª série, motivo pelo quais alguns alunos transi-
Fonte: Fundação Oswaldo Cruz37. tam entre outras localidades para conseguir
terminar a 1ª série do ensino fundamental.
Com relação às fontes de renda apenas
fortemente influenciados por crianças e jovens, 6,2% recebem aposentadoria, 5,4% Bolsa Escola,
com a participação muito pequena dos idosos na 3,3% Bolsa Família e 81,8% não têm nenhum
população. Os valores de participação dos jovens tipo de renda.
na razão da dependência estão em torno de
Essas comunidades localizadas na Ama-
97,2%, enquanto que para os idosos são de
zônia habitam uma região com a maior biodiver-
12,9%.
sidade e com um dos ecossistemas mais íntegros
Os núcleos familiares, geralmente, são e produtivos do planeta, ao mesmo tempo em
ampliados, com até 15 filhos, comportando laços que apresentam grandes desafios para se desen-
de vizinhanças e familiares ou pessoas bem próxi- volver de forma harmônica e sustentável14,15.
mas, como filhos, avôs, irmãos, genros e noras.
O desenvolvimento da agricultura familiar
Geralmente, as associações ou as lideranças comu-
é influenciado por um conjunto de condicionantes,
nitárias são compostas por membros do núcleo
entre os quais, o tipo de inserção socioeconômica,
familiar.
a localização geográfica, as oportunidades, a
Em relação à composição étnico-racial, a conjuntura econômica, as instituições e os valores
presença do negro é mais forte nas comunidades culturais da família16.
do Bom Jardim e de Saracura. Nas outras comuni-
Nas comunidades quilombolas brasileiras,
dades observa-se maior miscigenação.
segundo o Relatório Geral - Diagnóstico Socioeco-
A maioria das habitações é de palhoça, nômico-Cultural das Comunidades Remanescentes
madeira e algumas utilizam esses dois materiais de Quilombos -, elaborado pela Fundação Cultural
sem divisórias de cômodos. Tiningu é o único qui- Palmares e a Universidade de Brasília, as condições
lombo em que predominam construções de alve- de acesso aos alimentos, por meio da produção e
naria. Estão distribuídas em núcleos habitacionais pela renda, são muito precárias17.
em forma de mocambos familiares13.
Os territórios quilombolas foram consoli-
O abastecimento da água nas comunidades dados em regiões periféricas e seu desenvolvi-
é proveniente de poços artesianos e de cacimbas mento foi baseado na preservação do uso comum
ou nascentes, especialmente nas comunidades de da terra, e a produção de alimentos foi concebida
planalto, enquanto nas comunidades de várzea é por meio de práticas herdadas de seus ancestrais.
proveniente de rios e igarapés. Tiningu é a única São exemplos vivos de sustentabilidade ambiental,
comunidade que conta com água encanada, mas conceito incorporado ao debate da segurança
sem nenhum tratamento sanitário. alimentar e nutricional2,3.

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Em Santarém, as comunidades de Planalto A redução dos estoques pesqueiros na


vivem principalmente de cultivos agrícolas (roça), Amazônia tem estreita relação com a derrubada
combinando esta atividade com uma incipiente de matas ciliares, a destruição de nascentes, o
produção de pecuária de subsistência. A produção assoreamento, a poluição e o represamento dos
é uma espécie de reserva econômica. A comer- rios14. Nas comunidades de várzea, essa situação
cialização de seus produtos é mais direcionada é mais acentuada e se reflete na redução gradativa
para produção e venda da farinha de mandioca e da disponibilidade de uma proteína de alto valor
de seus subprodutos no comércio central da biológico, em decorrência do fenômeno denomi-
cidade. Geralmente, os quilombolas vendem seus nado pelos quilombolas como “terras levadas”.
produtos por valores muito baixos a atravessadores, Este fenômeno consiste na extração indiscriminada
que os comercializam em Santarém. Este problema de barro-argila para a fabricação de tijolo e telhas
é determinado pelo isolamento da comunidade e
em olarias da região, por pessoas que não são da
pela ausência de meios de transporte. As comu-
comunidade. Essa prática contribui para a erosão
nidades de planalto contam com uma linha
do solo com a perda de terrenos e a mudança
irregular de transporte viário que as liga a algumas
constante de moradia das famílias quilombolas.
comunidades e a outras localidades no município.
Outra forma de depredação ambiental é referida
Os ônibus estão em precárias condições e são
pelo nome de “geleira”. Segundo a definição local,
utilizados tanto para o transporte de pessoas como
este é um problema ecológico determinado pela
para cargas e animais. Em épocas de chuva, a
pesca predatória em larga escala feita por barcos
ausência de estradas asfaltadas determina
de grande porte que ocasiona buracos de terra
inúmeras dificuldades de deslocamento, que são
na região, determinando a diminuição da produ-
parcialmente solucionadas pelo uso de transporte
fluvial, dependente das condições meteorológicas. ção de pescado.

Nas terras de várzea, a população vive Na terra firme, a produção agrícola tenta
principalmente da pesca. A disponibilidade de ser desenvolvida em escala de economia de
peixes tem sido freqüentemente baixa, afetada mercado, com oferta de produtos, como: melan-
pelo saque de terras, para produção de argila em cia, feijão, milho e alguns subprodutos da man-
olarias da região. dioca. Contudo, a quantidade produzida é
insuficiente para alimentar a população e gerar
A ameaça ambiental às condições de vida
renda durante o ano inteiro. A base da alimen-
dessas populações é outro aspecto destacado na
tação é o peixe, a farinha de mandioca e as frutas.
compreensão dos fatores causais da insegurança
As aves são consumidas em ocasiões especiais e
alimentar e nutricional. Tanto nos quilombos de
a carne bovina raramente. A carne de caça tam-
várzea como nos de terra firme, a ausência e a
bém é uma opção referida. Outros alimentos,
diminuição do peixe representam a ameaça da
fome por causa da depredação ambiental. como arroz, feijão e macarrão, são consumidos
quando existe disponibilidade de renda de um ou
O peixe aqui está desaparecendo. Tem
mais membros da família. Foram observadas pre-
pescador que passa 15 dias atrás de peixe
parações regionais como o vinho de açaí, doces
e volta pra casa sem nada. Há 5 anos isto
de frutas da região e a confecção da farinha do
não era assim. Cada ano vai ficando mais
peixe (piracuí)18.
difícil. Eu acho que a natureza tá revoltada
com os abusos dos homens [...] Arapemã Os programas de suplementação alimentar
já teve melancia e muito peixe. Agora eu governamentais identificados no momento da
não acho lugar para plantar. As terras pesquisa entre 2003 e 2006, aos quais as comu-
estão caindo, por causa do roubo para nidades têm acesso, são: Bolsa Alimentação, do
fazer argila [...] (Homem, 56 anos, pescador). Ministério da Saúde (MS), que tem a distribuição

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dos alimentos realizada em Santarém, o que obriga A visão segundo a qual estar em inse-
os quilombolas beneficiários a gastarem cerca de gurança alimentar é não ter acesso à posse de
70% dos recursos oferecidos pelo programa com suas terras é marcante para as comunidades, tanto
transporte e deslocamento para o recebimento para atrair investimentos como para reprimir abu-
dos alimentos. O Programa de Alimentação Escolar sos relativos à depredação ambiental. Assim, a
é um programa de suplementação alimentar refe- não-titulação das terras quilombolas explica, em
rido pela comunidade, como uma estratégia grande parte, o reconhecimento da comunidade
inadequada aos hábitos alimentares dos escolares, ao se considerar em insegurança alimentar. Este
porque oferece somente formulados, como sopas fator é a causa do impedimento para a instalação
e mingaus e tem regularidade deficiente. de empreendimentos com bases sustentáveis, e
Com a realidade socioeconômica e am- pode influenciar o estado nutricional das coleti-
biental influenciada por dimensões históricas e vidades pela forma como se dão a oferta e a dispo-
políticas no contexto de identidade étnica, a dis- nibilidade, o acesso, o consumo de alimentos.
cussão da insegurança alimentar foi debatida à A questão da titulação das terras dos rema-
luz da reflexão dos fatores de progresso ou de nescentes de quilombos é um ponto da pauta na
acirramento da exclusão social com a abertura agenda dos governos brasileiros, mas seu processo
da Rodovia BR-163. é lento e litigioso. Esta situação expressa o racismo
O reconhecimento de que as comunidades institucional que tem suas raízes desde as estra-
estão em insegurança alimentar foi expresso por tégias de branqueamento da sociedade brasileira,
todos os líderes comunitários que participaram do incentivadas pela imigração de portugueses, ita-
GF. Os fatores causais considerados de maior rele- lianos, alemães e japoneses nas regiões Sul e
vância foram: a falta de posse da terra; a ausência Sudeste no início do século XX. Estas políticas
de uma renda monetária; o aumento de doenças; imigratórias contemplaram os estrangeiros em
os fatores ambientais; a falta de tecnologia algumas regiões e estados do Brasil, mas foram
apropriada para pesca e obtenção de subprodutos desiguais e racistas porque não priorizaram negros
agrícolas do açaí e da mandioca; a marginalidade e indígenas da mesma forma, tendo como conse-
e o analfabetismo (Figura 2). qüência a sua exclusão social e marginalidade19,20.

Figura 2. Modelo causal da ilusão quilombola com abertura da Rodovia BR 163 elaborado por líderes quilombolas. Santarém (PA),
2006.

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A população negra recém-liberta tinha so- temo energia elétrica para guardar o
mente os quilombos já instalados como espaços peixe; não sabemo outras técnicas para
de resistência à escravidão para iniciarem sua vida conservar o peixe; como fez o pessoal de
como libertos. Esses territórios, em sua maioria, Oroximiná [...] nós não vira marginal por
estavam em áreas inóspitas, porque sua origem obra de Deus. (Homem, 37 anos, pes-
tinha como estratégia a idéia de esconderijo13,19. cador).
A situação fundiária dos quilombos loca- As categorias profissionais mais freqüentes
lizados em Santarém tem a grilagem de terras e nas comunidades quilombolas são de pescadores
a invasão de fazendeiros como principais desafios (15,30%), seguidas de domésticas (12,30%) e
a serem superados. Essa situação tem sido assu- agricultores (5,70%). O emprego formal, repre-
mida pela comunidade por meio da organização sentado pela carteira de trabalho assinada, está
coletiva, com enfrentamentos, por vezes, pela presente em 0,60% da população acima de 18
violência física, com relatos de assassinatos de anos. Cerca de 29,70% dos chefes de família
lideranças quilombolas na região18. declararam que nenhum membro de sua família
A falta de uma renda monetária, de em- recebia qualquer renda. Do contingente de traba-
pregos e salários é outro aspecto na identificação lhadores acima de 18 anos, 9,00% declararam
dos fatores causais da insegurança alimentar e que recebiam, no máximo, meio salário-mínimo;
nutricional. O reconhecimento que a circulação 19,80%, entre meio e um salário-mínimo; 21,26%
monetária mais estável se dá pela aposentadoria recebiam de um a dois salários-mínimos; e
de idosos e inválidos foi referido como única 19,80%, acima de dois salários-mínimos. Algumas
garantia mensal de renda. famílias quilombolas declaram que recebem
Eu nunca pensei que a aposentadoria da R$15,00 por mês18.
mãe é que ia dar a nós o que comer. Todo A visão de vulnerabilidade social é referida
mês eu demoro uma manhã para chegar em relação à saúde e à doença. A morbimortali-
com ela no Banco e uma tarde para voltar dade, tanto de origem infecto-contagiosa quanto
para casa. Aqui em Santarém não se acha crônico-degenerativa, compõe o repertório de
trabalho. Nós vive do que ela ganha. reflexão da rede de causalidade da insegurança
Quando acaba, ficamos comendo o que alimentar e nutricional.
a gente consegue pescar e a farinha que
Estamos esquecidos aqui. [....] quando
dá pra guardar [...] (Mulher, 32 anos,
alguém adoece, não sabemos como tratar
dona-de-casa).
da doença e não temos lugar para ir [...]
A ausência de acesso à energia elétrica é
morre gente aqui de doença que nem
considerada um fator importante para a dificuldade
sabemos como aconteceu [...] já vi falar
de emprego e renda, porque contribui para a
de tudo, hepatite, AIDS, problema de
incapacidade da comunidade em desenvolver
coração. Não adianta vocês do governo e
qualquer empreendimento de cooperativas de
da pesquisa ajudar a gente melhorando
produção. Concorrem com isto a baixa instrução
a produção de comida se tem a doença
e o analfabetismo, que impedem a apropriação
(Homem, 51 anos, pescador).
de conhecimento de novas técnicas e tecnologias
para o melhor manejo do pescado e de seus A importância do recorte étnico/racial na
subprodutos. assistência e na atenção em saúde relativa às
Se nós tem apoio do governo para bene- doenças e às condições de vida da população
ficiar nosso peixe, vender nosso arte- negra, permite que sejam identificados contin-
sanato, colocar escolas para nossos gentes populacionais mais suscetíveis a agravos à
filhos, nossa vida ia melhorar [...] nós não saúde, como hipertensão e anemia falciforme21.

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Nesses quilombos, nenhuma das taxas de O debate sobre a insegurança alimentar e


mortalidade alcançou níveis considerados satis- nutricional nas comunidades quilombolas foi
fatórios, quando comparados com os parâmetros relacionado à ilusão e ao medo. Este ramo causal
preconizados pelo Ministério da Saúde - de menos foi priorizado pelo GF para discutir os aspectos
de 20 óbitos por mil nascidos-vivos. Foi referido positivos e negativos da abertura da rodovia. Os
que o diferencial na mortalidade de menores de representantes da comunidade vêem a pavi-
um ano de idade para os quilombos da área de mentação da rodovia como uma ação de ilusão
terra firme e várzea é de 30,4 óbitos por mil de um novo eldorado (Anexo).
nascimentos e de 50,2 óbitos por mil nascimentos, O uso da figura mitológica de novo eldo-
respectivamente. As taxas de mortalidade das rado pelos representantes quilombolas resgata
comunidades quilombolas são maiores quando uma expressão simbólica relacionada à conquista
comparadas com a do País (27,0 óbitos por mil das Américas pelos europeus, juntamente com o
nascidos-vivos), da região Norte (26,2/1.000 mito das amazonas27. Este mito, resgatado pelos
nascidos-vivos) e da população negra rural do representantes quilombolas para declarar sua
Estado do Pará (32,9 óbitos por mil)22-24. compreensão com a pavimentação da Rodovia
Os serviços básicos de saúde estão ausen- BR-163, foi usado com a mesma compreensão do
tes nas comunidades. O único quilombo que conta advento da extração de ouro em garimpos na
com um Posto de Saúde é a comunidade de Amazônia. Seu conceito, para os representantes
Murumuru, que funciona como pólo de atendi- quilombolas, expressa a idéia de fronteiras de
mento para todos os quilombos, em média distante riquezas e desenvolvimento econômico a serem
a 70km. O atendimento, segundo a comunidade, desbravadas.
não é adequado em razão da ausência de pro- [...] a gente fala muito aqui que a BR-163
fissionais de saúde e agentes comunitários e da é um novo eldorado igual aos garimpos
falta de medicamentos e infraestrutura. Observa- que são descobertos aqui na região. Vem
se que, nas urgências médicas, os doentes são gente de tudo quanto é lugar para ganhar
transportados em um puxírum - meio de transporte dinheiro [...] tudo se desenvolve, tanto as
feito por duas ou mais pessoas em rede, elaborado coisas ruim como as boas [...] (Mulher, 33
com lençóis. A pessoa é carregada pelas trilhas anos, professora de ensino fundamental).
de terra até as avenidas da cidade de Santarém O novo eldorado revela a visão dialética
na espera de ser socorrida. Embora neste artigo do desenvolvimento econômico da região. Para a
os itinerários terapêuticos não sejam objetos de comunidade quilombola, a rodovia vai atrair pro-
discussão, o exame dos fatores causais relaciona- dutores rurais, principalmente os interessados na
dos à atenção à saúde, revelou que são estabe- produção de soja, das regiões Sudeste e Sul, sem
lecidos itinerários terapêuticos com base em preocupação com a realidade social da região.
práticas de medicina tradicional e no sistema de Estes desbravadores em busca de terras farão uma
saúde vigente no País. De fato o uso da medicina valorização ilusória dos preços das terras quilom-
tradicional guarda relação com a cultura destes bolas, o que estimulará a venda das terras, prin-
grupos étnicos, porém a utilização desta não cipalmente pelos moradores mais jovens. O temor
impossibilita que a comunidade recorra a outros revelado é que isto, embora seja bom, contribua
sistemas de práticas de cura provavelmente com para a perda de identidade quilombola, ocasionan-
a incorporação de elementos externos, gerando do fome, miséria e racismo.
uma concomitância ou hibridação entre os [...] agora eu comecei a pensar o que eu
processos, mesmo que o modelo de pensamento não tinha pensado: a BR-163 vai trazer
médico vigente não estimule a convivência com mais gente para cá. Vai ter muito “gaúcho”
outros sistemas25,26. querendo plantar soja e vai expulsar a

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gente daqui com dinheiro. E isto pode e está no cenário dos movimentos sociais pole-
acontecer. [...] muitos quilombolas vão mizados em razão da estratégia da política de
vender suas terras iludidos que lucraram, cotas implantada pelo governo. Isso tem gerado
mas vão acabar morando naquela fave- incertezas e dúvidas28. Esse conflito é identificado
linha que existe em Santarém [...] muito pelos líderes quilombolas e vivido em seu coti-
carro passando pelas nossas comuni- diano, quando vão lutar pela titulação de suas
dades, é muito forasteiro, trazendo as terras, por escolas para seus filhos mais próximas
drogas. Será que eles pensam que a gente de suas residências, por assistência à saúde e por
continua “nego bobo”?” (Homem, 43 financiamento para projetos de melhoria de suas
anos, pescador).
condições de vida.
[...] o quilombola vai ficar iludido. Para os
A desconfiança e o temor são os reconhe-
de fora é um novo eldorado. Eles pensam
cimentos de que o racismo ainda está fortemente
em terra para plantar soja e criar gado.
presente na sociedade brasileira. O racismo está
Para o quilombola é o progresso che-
internalizado e propagado intra e intergerações e
gando. Vai ter luz elétrica e todo mundo
a memória perversa da exclusão social é mar-
vai querer comprar televisão, fogão,
cante29. No Brasil, esta situação tem faces ocultas
geladeira e depois o caminhão da loja vai
e existem formas de expressão menos evidentes
vim pegar porque o dinheiro acabou [...]
e que não desafiam as normas sociais29-31. Essa
(Homem, 23 anos, pescador).
realidade é aprendida pelos líderes quilombolas
A pavimentação da Rodovia BR-163 foi
em seu cotidiano de atuação nos movimentos
priorizada por várias ações do Governo Federal
sociais. A busca da inclusão social não é compreen-
com o propósito de melhorar a economia local de
dida como algo a ser dado e sim conquistado por
municípios e localidades e favorecer a inclusão
meio de muita luta.
social da população próxima à sua área de abran-
[...] eu não vejo outro jeito do que a gente
gência. As iniciativas governamentais têm atuado
se prevenir para isto que vai acontecer
a partir de estratégias que contribuam para
[...] é mais uma luta [...] tenho medo da
amenizar impactos sociais e ambientais negativos
força de tudo isto ser maior do que a
na região, com destaque para migrações desor-
gente [...] mas vamos achar forças para
denadas, ocupação irregular de terras públicas,
lutar [...] temos companheiros como vocês
desmatamento e exploração não-sustentável dos
para ajudar a alertar a gente [...] fica mais
recursos naturais e aumento de criminalidade e
fácil quando a gente se prepara. Nós
piora do quadro de morbimortalidade.
vamos se preparar (Homem, 43 anos, pes-
A iniciativa do governo em finalizar a pavi- cador).
mentação dessa rodovia é compreendida como A inclusão social da população negra não
uma estratégia de grande impacto econômico. A pode ser assumida por leis de mercado e por
situação é vista pelos setores governamentais políticas universalistas. As iniciativas de propostas
como uma estratégia de inclusão social, para os de ações e políticas para combater todas as formas
quilombolas, por sua vez, há o medo do que pode- de discriminação enfrentam o desafio de supe-
rá acontecer em seu cotidiano. ração do racismo institucional. No Brasil este
As razões da desconfiança remetem ao problema ainda está expresso no discurso de alguns
passado. A abolição da escravidão, há 117 anos, segmentos de governo e de teóricos, o que tem
empreendeu uma política de exclusão e racismo. contribuído para retardar a implementação de
A implantação de ações e programas afirmativos ações de inclusão social para a população negra
e de inclusão social da população negra é recente e quilombola32,33.

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A preocupação com os problemas de- nutricional, por meio do aumento da fome e da


correntes da abertura da BR-163, na opinião dos miséria e do racismo, foi a expressão representada
quilombolas, pode ser superada com a partici- pelos quilombolas. Embora os núcleos de sentido
pação da comunidade no processo, como a propo- encontrados na pesquisa tenham relacionado de
sição de fóruns de acompanhamento do processo forma negativa o processo de pavimentação da
de pavimentação e de ações de promoção do rodovia, a população quilombola quer se preparar
etnodesenvolvimento da região, o que, para a para esses problemas. Portanto, encontrar formas
maioria das lideranças locais, contribui para evitar de participação popular com as instituições gover-
efeitos perversos. Nesse sentido, a opção por uma namentais e não-governamentais é a estratégia
produção que valorize a herança cultural deve a ser adotada.
prevalecer. Esta opção constitui o referencial para A experiência de construção coletiva, prin-
pensar as novas formas de organização social do cipalmente no campo de pesquisa científica,
espaço que vem se configurando no território. O também deve incorporar estratégias participativas,
conceito de etnodesenvolvimento assume a terri- com o envolvimento dos pesquisadores e da comu-
torialidade como o regime de propriedade comum nidade. A construção de um modelo de causa-
e de sentido de pertencimento a um contexto lidade sobre essa problemática com a população
específico defendido e reafirmado, o qual está quilombola foi uma estratégia muito eficiente. Esse
ligado à profundidade histórica da ocupação método, ao trabalhar com os pressupostos da par-
guardada na memória coletiva34,35. ticipação popular voltados para uma construção
coletiva, permitiu a discussão ampliada da proble-
A sobrevivência das comunidades quilom-
mática do desenvolvimento econômico e de suas
bolas nesses territórios tem se caracterizado tam-
conseqüências positivas e negativas para as comu-
bém por uma invisibilidade social que se vincula
nidades quilombolas de Santarém. Tal estratégia,
à marginalidade econômica e a sua localização
em um projeto de pesquisa, acentua a importância
em áreas intersticiais dos centros econômicos
do compromisso dos pesquisadores em utilizar
como resultado dos interesses do mercado capita-
abordagens metodológicas ampliadas, para
lista por diversos recursos naturais e de terras. Para
responder à complexidade de um fenômeno que
isso, é necessário reconstruir o processo de parti-
trabalha com variáveis quantitativas e qualitativas.
cipação da comunidade a fim de melhorar as
Portanto, a experiência de utilização de um
relações institucionais com todas as esferas de
método participativo permite a reflexão sobre o
governo e com a população. Há necessidade dos
papel da pesquisa como estratégia de co-respon-
representantes governamentais superarem o
sabilidade na superação de todas as formas de
racismo institucional; em relação à comunidade,
discriminação étnica e social36.
é preciso apagar as nódoas do passado relativas
à desconfiança decorrente de frustrações dos A insegurança alimentar, reconhecida pela
comunidade como uma ameaça ao etnodesen-
movimentos sociais. Para isto são necessárias à
volvimento, expôs que há fronteiras a serem ven-
reconstrução conceitual e a proposição de políticas
cidas, em que a miséria, a fome, o racismo e a
públicas com base na análise das relações entre
ignorância conjugam forças poderosas para a
os arcabouços institucionais, as regras do jogo
exclusão social. Assim, a busca de construção de
político-social e a atuação dos atores sociais33.
espaços democráticos representativos e delibe-
rativos, como expressão de um portal dialógico
CONSIDERAÇÕES FINAIS entre as instituições e a comunidade, é a principal
estratégia para a superação de qualquer efeito
A compreensão segundo a qual a rede de perverso às condições de vida das populações que
causalidade relativa à pavimentação da Rodovia habitam próximas à construção e à pavimentação
BR-163 pode propiciar a insegurança alimentar e da Rodovia BR-163.

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sável pela discussão e pela pesquisa bibliográfica sobre
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