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ponsabilidade penal da pessoa juridica — incompatibilidades dogméticas Cezar Roberto Bitencourt 1, Considerac6es preliminares Parece-nos conveniente examinar a respossbilidade da pessoa ju- ridica, em primeiro plano, 2 luz da atual Consituigho Federal, que se vies hana essa possibilidade, na medida em que, sem impé-la, néo a epele; 20 contrari, debxa, prudentemente 9 fabor da evolucao da Tginitica juridica, atenta & globalizagéo 20s modernos movimentos furidicos que se intensificam em vérios paises sobre essa temistica, Duas correntes debatem hé longo tempos possibilidade de aplicar anges pensis as pessoas juridicas: nos paises filiados ao sistema r0- mmano-germanico, que representar 2 ‘esmagadora maioria, Vige © prin~ Cipio societas delinquere non potest segundo o qual é inadmisstvel @ punibilidade penal das pessoas juridicas, aplicando-se-Ihes somente @ Panibilidade administrativa ou civil de outro lado, nus pafses anglo~ saxdes e naqueles qUe receberam suas influéncias, vige © principio da common law, que admite & “esponsabilidade penal da pessoa juridica cere erdade que essa orientacio comeca sconquistay espago entre te paises que adotam o sistema romano gennicoy como, por exem= plo, a Holanda e, mais recentemente, 2 Franca, a partir da reforms de Pre Cadigo Penal de 1992, ¢ # Dinamarca, «partir da reforma de seu Cédigo Penal de 1996. 1 Sivina Bacigalupo. La responsabilidad penal de las personas jurtdicas. Bar- ccelona, Bosch, 1998, p- 30. 93 Embora o principio societas delinquere non potest seja, historica- mente, adotado na maioria dos pafses da Europa Continental e da ‘América Latina, a outra corrente comeca a ganhar grandes espacos nos debates dogmaticos de vérios petses, ante a dificuldade de punir efi- cazmente a chamada criminalidade moderna, na qual as pessoas juri- dicas comecam a exercer importante papel. Os argumentos fundamentas para nio se admitir a responsabilida- de penal das pessoas juridicas resumem-se, basicamente, 3 incompati- bilidade da pessoa juridica com 0s institutos dogmaticos da acio, da culpabilidade e da funcao e natureza da propria sangao penal. Ha mais de um século se debate a incompatibilidade dos conceitos dogméticos do Direito Penal com a natureza e esséncia da pessoa juridica, culmi- nando, inevitavelmente, na comparagio entre pessoa fisica ¢ pessoa juridica. Mas serd esse 0 tinico critério, a dessemelhanca entre os sujeitos — pessoa fisica e pessoa juridica —, para um dia encontrar-se a solugio necesséria e indispensavel dessa desinteligéncia secular? 2. Antecedentes histéricos Para melhor analisar a possibilidade de admitir a responsabilidade penal da pessoa jurfdica, recomenda-se um pequeno retrospecto his- ‘térico das diversas concepgées que esse tema mereceu nos diferentes estégios da histéria da civilizagio humana. ‘A evolugao social ¢ filoséfica reflete-se no desenvolvimento dos conceitos dogmaticos do Direito. Essa evolucio levou, no Direito Pe- nal, ao reconhecimento exclusivo de responsabilidade individual. Contudo, para se entender e avaliar os fundamentos que deram ori- gem essa responsabilidade individual é fundamental que se conheca 0s primérdios dessas elaboragies. 2.1. O Direito Romano Embora jé existissem conjuntos de pessoas aos quais se reconhe- ciam certos direitos subjetives, o Direito Romano, em principio, nao conheceu a figura da pessoa juridica, Distinguia-se perfeitamente en- tre os direitos e as obrigagées da corporacéo — universitas —e os dos cio mai - seus membros — singuli. Apesar de o conceito de pessoa jurtdica ser Sesconhecido, nessa época, segundo Ulpiano, podia ser exercida a ac- tio de dolus malus (a acusacSo) contra 0 municipio, que era a corpora- importante. Quando o “coletor de impostos" fizesse cobran- os indevidas, por exemplo, enganandlo os contribuintes ¢ enriquecen- Go indevidamente a cidade, podia ser exercida a actio de dolus malus Contra o municipio, Comprovada a (ir)responsabilidade dos “coleto- res", os habitantes da cidade deviam indenizar os contribuintes lesa- dos (Digesto, 4, 3, 15, 1). A partir desse entendimento, os romanistas passaram a sustentar a existéncia da capacidade delitiva das corpora- ‘oes no Direito Romano. ‘A distingdo entre os direitos e obrigacbes da corporagdo e dos seus membros foi, sem divida, uma das maiores contribuicbes ao estudo em exame, Em outros termos, 0 proprio Direito Romano jé admitia, em certas circunstancias, a responsabilidade de uma corporagéo, como era 0 caso do Municipio. Por outro lado, a distincao feita pelo Direito Romano entre a universitas € os singuli pode ser considerada como a raiz mais remota da importante evolugio que esse instituto vai ter na Idade Média’. Enfim, as fontes do Direito Romano mostram nao s6, a existéncia de responsabilidade delitiva de uma corporagdo como também as raf- zes da distingio entre responsabilidade coletiva e responsabilidade individual?. 2.2. Os glosadores No infeio da Idade Média, quando as corporagies comecam a des- frutar de maior importancia, tanto na esfera econémica quanto na politica, entra em pauta o debate sobre a responsabilidade penal des- sas instituigdes. Os Estados comegam a responder pelos excessos que cometiam contra a ordem social, especialmente em relacio as cidades que estavam adquirindo sua independéncia. Hoje, a despeito de toda sorte de abusos e desmandos que o Estado pratica contra 0 cidadao, no vemos os “representantes da sociedade” (Ministério Pablico, De- fensoria Pablica, Onbudsman etc.) sairem em defesa do cidadao lesa- 2 Silvina Bacigalupo. La responsabilidad penal de las personas jurtdicas, p. 44 3° Apud Silvina Bacigalupo. La responsabilidad penal, p. 44 do, Todos submetem-se a vontade soberana do leviaté, indiscrimina- damente. Os glosadores, a exemplo do Direito Romano, nfo criaram uma teoria sobre a pessoa juridica, que, na verdade, ndo existia nas fontes do Direito Romano. No entanto, embora os glosadores no tivessem. conhecido um conceito de pessoa juridica, nio ignoraram a figura da corporacao, entendida como a soma e a unidade de membros titulares de direitos. Essas corporacées podiam delingjiir. Havia crime da cor- poracio, quando a totalidade de seus membros iniciava uma ao pe- nalmente relevante por meio de uma decisao conjunta. Era indispensé- vel, para configurar um crime conjunto da corporacio, a existéncia de uma agdo corporativa, decorrente de uma decisao coletiva dos mem- bros da corporagio. A acio realizada com base nas decisdes tomadas por maioria era equiparada 3 acio decorrente de decisio da totalidade do conjunto. Fora dessas hipéteses, a responsabilidade pela ago era atribufda ao membro da corporacao individualmente responsavel, se- gundo os principios da imputagdo individual. Jé nessa época os glosa- dores distinguiam a responsabilidade coletiva e a individual, apesar de reconhecerem a responsabilidade das instituicSes corporativas: qual- quer de seus membros podia ser individualmente responsabilizado pe- los atos que praticasse no seio de uma corporacéo. Enfim, os glosadores sustentavam que a wniversitas era responsd- vel por suas acGes civil e penalmente. Para eles, os direitos da corpo- ragio eram ao mesmo tempo direitos de seus membros, Os glosadores limitaram-se, na verdade, a reconhecer certos direitos a corporacio e a admitir sua capacidade delitiva 2.3. Os canonistas A dificuldade pratica em explicar o fendmeno real da organizagdo eclesidstica, a partir da concepsao dos glosadores, forgou os canonistas, a elaborarem uma nova teoria que atendesse a essa Instituigdo. Segun- do a Igreja, os direitos nao pertenciam a totalidade de seus fiéis, mas a Deus. Com fundamento nessa premissa, 0s canonistas comecaram a elaborar um conceito técnico-juridico de pessoa juridica. Partiam da aceitagio da capacidade juridica da universitas, distinta da capacidade juridica dos seus membros, e procuravam, assim, abranger todas as corporagées e, especialmente, a Igreja, que seria a corporagéo mais importante, Nessa nova concepsio, passou-se a sustentar que os titt lares dos direitos eclesidsticos ndo eram os membros da comunidade religiosa, mas Deus, na figura de seu representante terrestre. Esse entendimento cristaliza o conceito de instituigdo eclesidstica, distinto do conceito de corporagao adotado pelos glosadores, concebendo-a como pessoa sujeito de direito. Aparece aqui, pela primeira vez, a distingao entre o conceito jurtdico de pessoa e conceito real da pessoa como ser humano, a pessoa natural. Esse rompimento da identificacao entre a corporagao eclesidstica e a pessoa como ser humano dé origem 20 conceito de pessoa juridica, que, por ficcio, passa a ter capacidade juridica. Nessa linha de pensamento, o Papa Inocéncio IV, por razies ecle- sidsticas, sustentou que a universitas era uma pessoa ficticia, como um ser sem alma, e, por isso, no podia ser excomungada. Pelas mes- mas razées, sustentava Inocéncio IV, a universitas também nio tinha capacidade de acio, e, conseqiientemente, capacidade delitiva. Essa concepcio de pessoa ficta foi adotada pelos decretos papais seguintes, consagrada no Concilio de Lyon (1245) ¢ na colegio de decretos de Jorge IX*, Segundo Gierke e Binder, pode-se afirmar que esses cano- nistas foram os pais espirituais da moderna concepcio de corporagao. “Indiscutivelmente esta teoria dos canonistas também traz em seu bojo a origem do dogma societas delinquere non potest”®. Na verdade, a partir daqui a pessoa jurfdica passa a ser considerada uma pessoa ficta, cujo entendimento chega até nossos dias. Constata-se do expos- to grande semelhanca entre a teoria elaborada pelos canonistas © a teoria da ficgao do século XIX, que recebeu 0 conhecido polimento de Savigny, : Pode-se concluir, enfim, que os canonistas foram os primeiros a distinguir a corporacao e seus membros, bem como a responsabilidade desta e a daqueles, que existiam paralelamente. 2.4. Os pés-glosadores Os pés-glosadores aceitaram a definicdo dos canonistas, segundo a qual a universitas era uma pessoa ficta; no entanto, ao contrério dos canonistas, admitiram a possibilidade de ela praticar crimes. Nesse sentido, Bartolus (1314-1357) sustentava a capacidade delitiva da universitas como uma fictio iuris e distinguia os crimes da corporacéo 4 O.Gierke. Das deutsche Genossenschaftsrect,t. 3, p. 245. 5 Silvina Bacigalupo. La responsabilidad penal, p. 49. em préprios e impréprios. Delicta propia seriam aquelas ages estrita- mente relacionadas com aesséncia eo dmbito especial dos “deveres da corporacao”. Delicta impropia, por sua vez, seriam aquelas aces que a corporacdo somente poderia realizar por intermédio de um repre- sentante, Pelos delicta propia responderia a corporacdo, e pelos delic- ta impropia responderiam as pessoas fisicas, excluindo-se a universi- tas dessa responsabilidade. Constata-se que, a exemplo dos glosado- res, 0s p6s-glosadores distinguiam a responsabilidade individual da co- letiva, mesmo em relagio aos fatos praticados no seio das corporacées (pessoas juridicas ou sociedades) Silvina Bacigalupo sintetiza, afirmando que “na Idade Média a res- ponsabilidade penal das corporacies (pessoas juridicas) surge como uma necessidade exclusivamente pritica da vida estatal e eclesiésti- ca”®, Essa orientacio perdurou até fins do século XVIII; apenas o Di- reito Natural afastou 0 contetido espiritual originario da pessoa ficta, dando-Ihe um novo conteddo e relacionando-a com a personalidade coletiva da corporagéo. As idéias do Iluminismo ¢ do Direito Natural, ro entanto, diminuiram o autoritarismo do Estado e das corporacdes, que haviam atingido seu auge no fim da Idade Média, assegurando um novo espaco ao individuo na ordem social. Essa nova orientacao, liber- tadora do individuo das velhas ¢ autoritarias relacdes medievais, im- plica, necessariamente, na recusa de qualquer responsabilidade penal coletiva. A responsabilidade coletiva € incompativel com a nova reali- dade de liberdade ¢ de sutodeterminacio do individuo, que rep sentam conquistas democriticas da Revolugéo Francesa. A mudanca filos6fica de concepgio do individuo, do Estado e da sociedade con- duz, necessariamente, a responsabilidade individual. Os autores, dentre os quais se destac Malblanc’, passaram a suistentar a impossi- bilidade de manter-se a teoria da responsabilidade penal da pessoa jurfdica, Malblanc negava tanto a capacidade delitiva da pessoa juridi- ca como sua capacidade de entender a aplicagao da pena. ‘A consagracio do principio societas delinquere non potest, a0 con- trario do que sustentam alguns autores de escol, nfo decorreu da im- portincia da teoria ficcionista da pessoa jurfdica de Savigny®, que ne- 6 Silvina Bacigalupo. La responsabilidad penal, p. 53. 7 Malblane. Opuscula ad ius criminale spectantia. Erlangen, 1793. 8 *O Direito Penal trata somente com pessoas como seres pensantes ¢ com vontade. A pessoa jurfdica nfo tem estas qualidades e, por isso, deve Ficar exclut- gava a capacidade de vontade e, por conseqtiéncia, a capacidade deli- tiva da pessoa juridica, na medida em que essa fic¢io nio foi obsticulo aos glosadores e pés-glosadores, que admitiam a responsabilidade pe- nal da pessoa jurfdica, Na verdade, segundo Schmitt, ndo foram razoes juridicas, mas conveniéncias politicas, que determinaram a desapari- Gio da punibilidade das corporagées, uma vez. que estas perderam a importéncia e o poder que tinham na Idade Média. E, ainda, como destaca Bacigalupo®, aliaram-se contra as corporacées dois poderes antag6nicos: 0 absolutismo dos principes e 0 liberalismo do Iuminis- ‘mo. Assim, a monarquia absoluta suprimiu todo o poder daqueles que poderiam competir com 0 Estado, procurando eliminar as corpora- Ges ou, pelo menos, retirar-Ihes © poder politico e os direitos que detinham. O Tluminismo, por sua vez, admitia que as liberdades do individuo somente poderiam, dentro de determinados critérios, ser limitadas pelo Estado. Esse esvaziamento da importincia e do poder politico de que as corporagées desfrutavam na Idade Média tornou desnecessdria a responsabilidade penal destas. A negacdo de responsa- bilidade, adotada de plano pela doutrina penal, foi igualmente recep- cionada pelo préprio Feuerbach”, que, segundo sustentava, mesmo com a deliberacio undnime da corporacao, seria impossivel a respon- sabilidade penal, jé que, nesse caso, nfo estariam atuando de acordo com a finalidade da associacao, mas com finalidade distinta do seu desiderato. 3. Incompatibilidades dogmsticas da responsabilidade penal da pes- soa juridica Considerando-se que o fator fundamental, como afirmamos aci- ma, que tornou desnecesséria a responsabilidade penal da pessoa juri- dica (corporacéo) — perda de importdincia e de poder politico que des- frutavam na Idade Média — poderia ser invocado, na atualidade, na defesa do retorno de dita responsabilidade penal coletiva, ante 0 ex- dda do imbito do Direito Penal” (Savigny, System des heutigen Ramischen Rechts, +2, p.312) 9 "Silvina Bacigalupo. La responsabilidad penal, p. 55: 10 Feuerbach. Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gillrigen peinlichen Rechts. 14. ed., Aalen, 1973, p. 52. traordinério poder e importincia — dir-se-ia globalizados — que as corporagées adquiriram a partir da segunda metade do século XX. Contudo, esse aspecto seria verdadeiro, como demonstraremos adian- te, no fosse outro fator muito mais relevante, no plano juridico-cien- tifico, que inviabiliza o aspecto puramente pragmitico: a evolucio cientifico-dogmitico da teoria do delito (culpabilidade; antijuridici- dade; e tipicidade), que nao existiam no final da Idade Média, pelo ‘menos no com o mesmo acabamento cientifico-metodol6gico. Enfim, o Direito Penal de outrora nao é 0 mesmo Direito Penal de agora (a rima € proposital), como passaremos a demonstrar. ‘A polémica sobre a responsabilidade penal das pessoas juridicas apresenta intimeros problemas, dentre os quais se podem destacar, como principais, os seguintes: a) questes de politica criminal; b) 0 problema da (in)capacidade de aco; c) a (in)capacidade de culpabili- dade; d) o principio da personalidade da pena; e) as espécies ou nat reza das penas aplicdveis as pessoas jurfdicas. Analisaremos, neste li- mitado ensaio, apenas algumas dessas questées, aquelas que nos pare- cem fundamentais no presente contexto. 3.1. Fungio do Direito Penal Segundo Welzel, o Direito Penal tem, basicamente, a fungdo éti- co-social e a funcao preventiva. A funcio ético-social € exercida por meio da protecio dos valores fundamentais da vida social, que deve configurar-se com a protecio de bens juridicas. Os bens juridicos sio bens vitais da sociedade e do individuo, que merecem protecio legal exatamente em razio de sua significacio social. O Direito Penal obje- tiva, assim, assegurar a validade dos valores ético-sociais positivos e, a0 mesmo tempo, o reconhecimento e protecao desses valores, que, em outros termos, caracterizam 0 contetido ético-social positivo das normas juridico-penais'’. A soma dos bens juridicos constitui, afinal, a ordem social. O valor ético-social de um bem juridico, no entanto, nao € determinado de forma isolada ou abstratamente; ao contrério, sua configuracio seré avaliada em relacio a totalidade do ordenamen- to social. A funcio ético-social é inegavelmente a mais importante do Direito Penal, e, baseada nela, surge a sua segunda funcio, que € a preventiva, 11 Welzel. Derecho Penal aleman, pp. 11-2. Na verdade, o Direito Penal protege, dentro de sua funcio ético- social, 0 comportamento humano daquela maioria capaz de manter uma minima vinculagio ético-social, que participa da construcio posi- tiva da vida em sociedade por meio da familia, escola e trabalho. O Direito Penal funciona, num primeiro plano, garantindo a seguranca e a estabilidade do juizo ético-social da comunidade, e, em um segundo plano, reage, diante do caso concreto, contra a violacio ao ordena- mento juridico-social com a imposigéo da pena correspondente. Orienta-se 0 Direito Penal segundo a escala de valores da vida em sociedade, destacando aquelas aces que contrariam essa escala social, definindo-as como comportamentos desvaliosos, apresentando, as- sim, os limites da liberdade do individuo na vida comunitaria. A viola~ do desses limites, quando adequada aos principios da tipicidade e da Culpabilidade, acarretaré a responsabilidade penal do agente. Essa conseqiiéncia juridico-penal da infrac3o a0 ordenamento produz como resultado ulterior o efeito preventivo do Direito Penal, que ca- racteriza a sua segunda fungéo. Enfim, 0 Direito Penal tem como objetivo a protecio dos valores 6tico-sociais da ordem social, que necessariamente devem ser repre- sentados e identificados por bens juridicos especificamente protegi- dos. Na verdade, a funcao principal do Direito Penal, para Welzel, € fungdo ético-social, e a fungdo preventiva surge como conseqiiéncia ogica daquela. 3.2. A (in)capacidade de ago da pessoa juridica ‘A doutrina dominante, ainda hoje, entende que a pessoa juridica nav tem capacidade de agdo, c todas as atividades relativas a ela sia realizadas por pessoas fisicas, mesmo na qualidade de membros de seus conselhos diretivos'?, A incapacidade de agdo da pessoa juridica nao decorre do conceito de agdo que se adote — causal, social ou final —, mas da absoluta falta de capacidade natural de acdo. Direito Penal atual estabelece que o Gnico sujeito com capacida- de de agdo 6 0 individuo. Tanto para o conceito causal quanto para 0 con- ceito final de acao 0 essencial € 0 ato de vontade. Acdo, segundo a con- 12. Jescheck. Tratado de Derecho Penal; Parte General, trad. da 4. ed. de 1988, de José Luis Manzanares Samaniago, Granade, Ed. Comares, 1993, p. 205: "As pessoas juridics eas associagSes sem personalidade podem ata somente atra~ és dos seus 6rgios, razio pela qual elas propris ndo podem ser punidas”. cepeao causalista, é 0 movimento corporal voluntario que causa modifi- cacao no mundo exterior. A manifestagéo de vontade, o resultado e a re- lacao de causalidade sio os trés elementos do conceito de acio. Para Welzel'’, “aco humana 6 exercicio de atividade final. A acéo 6, portanto, um acontecer ‘final’ e no puramente ‘causal’. A 'finali- dade’ ou 0 caréter final da ago baseia-se em que o homem, gracas a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as conseqiién- cias possiveis de sua conduta, Em razio de seu saber causal prévio pode ditigir os diferentes atos de sua atividade de tal forma que orien- te o acontecer causal exterior a um fim e assim o determine finalmen- te’. “Aatividade final — prossegue Welzel — é uma atividade dirigida conscientemente em funcao do fim, enquanto 0 acontecer causal no std dirigido em funcdo do fim, mas é a resultante causal da constela- io de causas existentes em cada caso. A finalidade , por isso — dito graficamente — ‘vidente' e a causalidade € ‘cega’""*. Em sentido se- melhante, Maurach afirmava que “uma acio em sentido jurfdico-pe- nal € uma conduta humana socialmente relevante, dominada ou domi- nfvel por uma vontade final e dirigida @ um resultado", Enfim, a agdo, como primeiro elemento estrutural do crime, € 0 comportamento humano voluntério conscientemente dirigido a um fim. A aco compée-se de um comportamento exterior, de contetido psicolégico, que & a vontade dirigida a um fim, da representacdo ou antecipagéo mental do resultado pretendido, da escolha dos meios ¢ da consideracao dos efeitos concomitantes ou necessérios ¢ do movi- ‘mento corporal dirigido ao fim proposto, Como sustentar que a pessoa juridica, um ente abstrato, uma fic- cao normativa, destituida de sentidas e impulsas, possa ter vontade e consciéncia? Como poderia uma abstragdo juridica ter “repre- sentacdo" ou “antecipacao mental” das conseqiiéncias de sua “agao"? Por ser o crime uma agdo humana, somente 0 ser vivo, nascido de mulher, pode ser autor de crime, embora em tempos remotos tenham sido condenados, como autores de crimes, animais, caddveres ¢ até estétuas!®. A conduta (aco ou omissao) € produto exclusive do ho- 13, Welzel. Derecho Penal alemdn, p. 5; El nuevo sistema, p. 25 14 Welzel. EU nuevo sistema, p. 25 18 Maurach e Zipf. Derecho Penal, pp. 265 e 269. 16 Cezar Roberto Bitencourt. Manual de Direito Penal; Parte Geral, 5. ed., So Paulo, 1999, Cap. XI. mem, Juarez Tavares, seguindo essa linha, afirma que: “A vontade cleva-se, pois, & condigdo de ‘espinka dorsal da agéo'. Sem vontade nio hi acio, pois o homem aio é capaz. nem de cogitar de seus objeti- vos, se nao se Ihe reconhece o poder concreto de prever os limites de sua atuagio"!”, René Ariel Dotti destaca, com muita propriedade, que “O conceito de acdo como ‘atividade humana conscientemente dirigi- da a um fim’ vem sendo trangiiilamente aceito pela doutrina brasilei- ra, 0 que implica no poder de decisao pessoal entre fazer ou nao fazer alguma coisa, ou seja, num atributo inerente as pessoas naturais”' Com efeito, a capacidade de agdo e de culpabilidade exige a presenca de uma vontade, entendida como faculdade psiquica da pessoa indivi- dual, que somente o ser humano pode ter. O dolo, elemento essencial da agdo final, compée o tipo subjetivo. Pela sua definigio, constata-se que 0 dolo constituido por dois ele- mentos: um cognitivo, que & o conhecimento do fato constitutive da aco tipica; e um volitivo, que é a vontade de realiz4-la, O primeiro elemento, o conkecimento, é pressuposto do segundo, que é a vontade, que nio pode existir sem aquele. Para a configuracao do dolo exige-se a consciéncia daquilo que se pretende praticar. Essa consciéncia deve ser atual, isto é, deve estar presente no momento da agio, quando ela esti sendo realizada. A previsdo, isto 6, a consciéncia, deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos, normativos ou subjetivos. Quando o movimento cor- poral do agente nio for orientado pela consciéncia e vontade nio se poderé falar em agao. Em termos juridico-penais, consciéncia, na li de Zaffaroni'®, “é o resultado da atividade das funcdes mentais. Nao sc trata de uma faculdade do psiquismo humano, mas do resultado do funcionamento de todas elas”. Quando essas fungées mentais no fun- cionam adequadamente se diz. que hé estado de inconsciéncia, que € incompativel com a vontade, e sem vontade nao hi aco. ‘A vontade, por sua vez, deve abranger a aco, 0 resultado e 0 nexo causal. A vontade pressupée a previséo, isto é, a representagao, na medida em que é impossfvel querer conscientemente senio aquilo 17 Juarez Tavares. Teorias do delito. Si0 Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, p. 59. 18 René Ariel Dotti, A incapacidade criminal da pessoa juridica. Revista Brast leira de Ciéncias Criminais, IBCCrim, n. 11 (jul//set. 1995), p. 191 19 Zaffaroni, Manual de Derecho Penal, p. 363. que se previu ou representou na nossa mente, pelo menos, parcialmen- te. A previsao sem vontade € algo completamente inexpressivo, indi- ferente a0 Direito Penal, e a vontade sem representacio, isto 6, sem previsio, é absolutamente impossivel. Para Welzel, a vontade é a espi- nha dorsal da acio final, considerando que a finalidade baseia-se na capacidade de vontade de prever, dentro de certos limites, as conse- qiiéncias de sua intervengdo no curso causal e de dirigi-la, por conse- guinte, conforme um plano, a consecucio de um fim. Sem a vontade, que dirige 0 suceder causal externo, convertendo-o em uma agio diri- gida finalisticamente, a agdo ficaria destruida em sua estrutura e seria rebaixada a um processo causal cego. A vontade final, sustentava Wel- zel”, como fator que configura objetivamente o acontecer real, per- tence, por isso, & agdo. Como se poderd pensar em acdo sem vontade ou sem consciéncia, ou, pior, sem ambas? Por mais benevolente ¢ compreensivo que se possa ser, seré impossivel admitir que a pessoa Juridica seja dotada de vontade e de consciéncia “pessoais”. A evidén- cia que esses dois atributos — consciéncia e vontade — sio tipicos da Pessoa natural, que nao se confunde com a abstracao da pessoa juri- dica) Na verdade, os elementos subjetivos que compéem a estrutura do tipo penal assumem transcendental importéncia na definicéo da con- duta tipica. E por meio do animus agendi que se consegue identificar © qualificar a atividade comportamental do agente, Somente conhe- cendo e identificando a intencéo — vontade e consciéncia — do agen- te se podera classificar um comportamento como tipico. Especial- mente quando a figura tipica exige também, para a corrente tradicio- nal, o dolo especifico, ou seja, o especial fim de agir, pois esses elemen- tws subjetivos especiais do tipo nao podem ser caracterizados nas ati- vidades passiveis de serem executadas por uma pessoa juridica, Enfim, sem esses dois elementos — consciéncia e vontade —, ex- clusivos da pessoa natural, é imposstvel falar, tecnicamente, em agao, que é 0 primeiro elemento estrutural do crime. A menos que se pre- tenda destruir o Direito Penal e partir, assumnidamente, para a respon- sabilidade objetiva. Mas para isso — adocao da responsabilidade ob- jetiva — nao € preciso suprimir essa conquista hist6rica da civilizagao contemporiinea, o Direito Penal, como meio de controle social forma- lizado, na medida em que existem tantos outros ramos do Direito com 20 Welzel. El nuevo sistema, p. 26. menores exigeacias garantistas e que podem ser muito mais eficazes e funcionais que 0 Direito Penal, dispondo de um arsenal de sancées avagsaladoras da pessoa juridica, algumas até extremistas, como, por exemplo, a decretacio da extingdo da corporagéo, que, em outros ter- mos, equivaleria a pena de morte da empresa, algo inadmissfvel no Ambito do Direito Penal da culpabilidade. 3.3, A (in)capacidade de culpabilidade das pessoas juridicas Segundo Welzel”, “O Direito Penal no parte da tese indetermi- nista de que a decisio de cometer o delito proceda inteiramente, ou parcialmente, de uma vontade livre e no do concurso da disposigo do mundo circundante; parte do conhecimento antropoldgico de que © homem, como ser determinado a responsabilidade, esta exis- tencialmente em condicdes de dirigir finalmente (conforme ao senti- do) a dependéncia causal dos impulsos. A culpabilidade nao um ato de livre autodeterminacio, mas precisamente a falta de uma deciséo conforme ao sentido em um sujeito responsavel” A culpabilidade 6 a reprovabilidade do fato antijuridico indivi- dual, e 0 que se reprova “é a resolugio de vontade antijurfdica em relacio ao fato individual”, De certo modo, o conterido material da culpabilidade finalista tem como base a capacidade de livre autode- terminagdo de acordo com o sentido do autor, ou, em outros termos, 0 poder awa faculdade de atuar de modo distinto de como atuou. Disso depende, pois, a capacidade de culpabilidade ou imputabilidade. Depois de fazer algumas consideracées sobre os problemas na de- terminagio da capacidade de culpabilidade, Welzel argumenta que a culpabilidade individual nao mais que a concretizagao da capacida- de de culpabilidade em relaéo a0 ato concreto, de tal forma que a reprovabilidade encontra sua base “nos mesmos elementos concretos ccuja concorréncia em cariter geral constitui a capacidade de culpabi- lidade. Isto 6, 0 autor tem de conhecer o injusto ou, pelo menos, tem de poder conhecé-lo e, igualmente, poder decidir-se por uma conduta conforme ao Direito em virtude desse conhecimento (real ou poten- cial). A culpabilidade concreta (reprovabilidade) est4, pois, constituf- 21 Welzel. El nuevo sistema, pp. 93-4 22, Welzel. El nuevo sistema, p. 100. da (paralelamente & capacidade geral de culpabilidade) por elementos intelectuais e voluntérios"®. ‘A culpabilidade tem, por sua vez, como seus elementos constitu tivos a imputabilidade, a potencial consciéncia da ilicitude e a exigibi- lidade de conduta diversa. Imputabilidade 6 a capacidade de culpabilidade, € a aptidio para serculpavel. A capacidade de culpabilidade apresenta dois momentos especificos: um cognoscitivo ou intelectual e outro volitive ou de von- tade, isto &, a capacidade de compreensao do injusto e a determinagdo da vortade conforme essa compreensio. Deve-se ter presente, no en- tanto, que somente os dois momentos conjuntamente constituem, pois, a capacidade de culpabilidade. Como afirma Muvioz Conde™, “quem carece desta capacidade, por nao ter maturidade suficiente, ou por sofrer de graves alterades psiquicas, nfo pode ser declarado cul- pado e, por conseguinte, nio pode ser responsével penalmente pelos seus atos, por mais que sejam tfpicos e antijuridicos". Assim, sem a imputabilidade entende-se que 0 sujeito carece de liberdade e de fa- culdade para comportar-se de outro modo, com 0 que no é capaz de culpabilidade, sendo, portanto, inculpavel. Pode-se afirmar, de uma forma genérica, que estard presente a imputabilidade, segundo o Di- reito Penal brasileiro, toda vez que o agente apresentar condigdes de normalidade e maturidade psiquica, “Maturidade” e “alteragées psi- quicas” séo atributos exclusivos da pessoa natural, e, por conseqiién- cia, impossivel serem trasladados para a pessoa ficticia. Enfim, a pes- soa jurtin crece de “maturidade e higidez mental”, logo, é *inimpu- tavel”, ‘Como se poder exigir que uma empresa comercial ou industrial possa formar a “consciéncia da ilicitude” da atividade que, por inter- médio de seus diretores ou prepostos, desenvolvers? Nessas circuns- ‘tancias, nem seria razodvel formular um jufzo de reprovabilidade em razdo da “conduta” de referida empresa que, por exemplo, contrarie a ordem juridica, Por fim, o terceiro elemento da culpabilidade, que é a “exigibili- dade de obediéncia ao Direito”. Embora esse elemento, em tese, pos- sa ser exigido da pessoa jurfdica, esbarra no cardter seqilencial dos 23. Welzel, El nuevo sistema, p. 100. 24 Mufioz Conde. Teoria geral do delito, p. 137. demois, uma ver que a exigibilidade de obediéncia ao direito pressu- poe tratarse de agente imputdvel e de estar configurada a potencial enseiéneta da ilicitude, que, como jé referido, € impossivel no caso da pessoa juridica. Assim, ausentes 0s dois primeiros elementos — impu- pepilidadle e consciéncia da ilicitude —, ser4 impossivel a caracteriza~ Go do terceiro — exigibilidade de conduta conforme ao Direito — gue configura a possibilidade concreta do autor — capaz-de culpabil- Gade _-de poder adotar sua decisio de acordo com 0 conhecimento dio injusto, E, por derradeiro, a falta de qualquer dos trés elementos ceaminados impedirs que se configure a culpabilidade, e sem culpabi- Iidade no se admitirs, na seara do Direito Penal, a aplicacio de pena, jé que nullum crimen, nulla poena sine culpabilidade. 3.4, Criminalidade moderna e Direito Administrative sancionador Fala-se abundantemente em “criminalidade moderna”, que abran- geria a criminalidade ambiental internacional, criminalidade indus- trial, tréfico internacional de drogas, comércio internacional de detri- tos, onde se incluria a delingiéncia econdmica ou criminalidade de colarinho branco”. Essa dita “criminalidade moderna” tem uma din8- mica estrutural e uma capacidade de producio de efeitos incomensu- ravels, que o Direito Penal classico no consegue atingir, diante da Sificaldade de definir bens jurfdicos, de individualizar culpabilidade e pena, de apurar a responsabilidade individual ou mesmo de admitir a presungao de inocéncia e o in dubio pro reo. ‘Como sentencia Hassemer”5, “Nestas dreas, espera-se a interven «0 imediata do Direito Penal, nao apenas depois que se tenha verifi- Sido a inadequacdo de ontros meios de controle nao-penais. O vene- ravel princfpio da subsidiariedade ou a ultima ratio do Direito Penal € simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ow prima ratio na solugio social de conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responséveis por estas éreas cada vez mais Freqiientemente como a primeira, senio a tinica safda para controlar os problemas”. Para combater a “criminalidade moderna” 0 Direito Penal da culpabilidade seria absolutamente inoperante, ¢ alguns dos seus principios fundamentais estariam completamente superados. 25. Hassemer. Trés temas de Direito Penal, Porto Alegre, Publicacéo da Escola Superior do Ministério Pablico, 1993, p. 48, 107 Nessa criminalidade moderna, 6 necessério orientar-se pelo perigo em ‘yer do dano, pois quando o dano surgir serd tarde demais para qual- quer medida estatal. A sociedade precisa dispor de meios eficientes e répidos que possam reagir ao simples perigo, a0 risco, deve ser sensivel a qualquer mudanga que possa desenvolver-se e transformar-se em problemas transcendentais. Nesse campo, 0 Direito tem de organizar- se preventivamente. E fundamental que se aja no nascedouro, preven- tivamente, ¢ ndo representativamente. Nesse aspecto os bens coleti- yos so mais importantes que os bens individuais; é fundamental a prevencdo, porque a repressdo vem tarde demais. ‘Na criminalidade moderna, inclui-se particularmente a delingiién- cia econémica, com destaque especial os crimes praticados por meio das pessoas juridicas. Nesse tipo de criminalidade, as instituigdes, a5, organizacSes empresariais ndo agem individualmente, mas em grupo, realizando a exemplar divisdo de trabalho de que fala Jescheck*®, Nor- malmente, as decisées so tomadas por diretoria, de regra por maio- ria. Assim, a decisdo criminosa nao é individual, como ocorre na crimi- nalidade de massa, mas coletiva, embora, por raz6es estatutarias, haja adesio da maioria vencida. E mais: punindo um ou outro membro da organizacio, esta continuaré sua atividade, Icita ou ilfcita, por inter- médio dos demais. Sem endossar a nova doutrina do Direito Penal funcional, mas reconhecendo a necessidade de um combate mais eficaz em relagio & criminalidade moderna, Hassemer”” sugere a criacao de um novo Di- reito, 20 qual denomina Direito de Intervengio, que seria um meio- termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que nio apli- awe as pesadas sancoes de Direito Penal, especialmente a pena priva- tiva de liberdade, mas que seja eficaz e possa ter, a0 mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional. 26 Jescheck, Tratado de Derecho Penal, p. 937; Hans Welzel. Derecho Penal alomdn Sani, Editorial Juridica de Chile, 1987, p. 155. 27 Hassemer. Trés temas, pp. 59 @ 95: "H4 muitas razbes para se supor que os Fee te ees sotdade carlo © supiment ¢ desenvehi mento de um Det inten correspondent “moderno’ na zona fron- eitiga eatre o Direito administrativo, o Direito Penal a responsabilidade civil Belo ats los, Certamente rd em cont a eis do mercalo eas possibilda jes de um sutl controle estatal, sem problemas de imputagio, sem pressupostos de culpabilidade, sem um processo meticuloso, mas, ent, tam! ey pociodepemciniai ae Nio se questiona a necessidade de o Direito Penal manter se liga- do as mudancas sociais, respondendo adequadamente as interrosa- pes de hoje, sem retroceder a0 dogmatismo hermético de enter Quando a sus intervencio se justifizar deve responder eficazmente A questdo decisiva, porém, serd: de quanto de sua tradigao ¢ de suas Jarantias 0 Direito Penal deverd abrir mao a fim de manter essa atuae Thdade? Nessa linha de raciocinio, e respondendo a nossa interrogecio, Munoz Conde, referindo-se ao Projeto de Cédigo Penal espanol de 1994, a respeito da necessidade de eventual crimsinalizaglo, recomen- daz “ce no entanto for necessério criar algum novo tipo penal, faca-se, poréim, nunca se perca de vista a identificagio de um bem juridico aeterminado € a tipificagdo do comportamento que posse afeté-lo, om uma técnica legislativa que permita a incriminagio penal somen- cede comportamento doloso ou, excepcionalmente, modalidade cul- posa que lesione efetivamente ou, pelo menos, coloque em perige aencreto o bem juridico previamente identificado™* Para a protecio da chamada “ordem econdmica estrita” — assim entendida aquela dirigida ou fisealizads diretamente pelo Estado — foram criados os crimes fiscais, crimes monetérios, crimes de contra- pando, erimes de concorréncia desleal, os chammados crimes falimen- tures, Mais recentemente, surgiram novas figuras delitivas, como, por txemplo, grandes estelionatos, falsidades ideol6gicas, crimes contra te relscBes de consumo, monopélios iregulares, os escindalos finan ceiros e mesmo as grandes faléncias, com prejuizos incalculaveis. & inegivel que para a prevencio e repressio de infragdes dessa naturezs wr juotifica a wtilizagdo de graves sangGes, inclusive pivativas de liber dade. No entanto, € preciso cautela para nio se fazer tébula rasa, violan- do, inclusive, os principios da intervengdo minima, da culpabilidade, delbem jurfdico definido e do devido processo legal, entre outros. No se pode igualmente esquecer que a pena privativa de liberdade tam- bem deve obedecer ultima ratio, recorrendo-se a ela somente quan- go no houver outra forma de sancionar eficazmente 28 Mufioz Conde. Principios politicos crtninales que inspiran el tratamsenie 2 ec contra el orden socioeconbmico en el Proyecto de Codigo Pena! Jt de 1998, Revista Brasileira de Ciéncias Criminais, mero especial 11, 1995, p. 11 109 4, Responsabilidade penal da pessoa juridica 3 luz da Constituicéo Federal Como ja afirmamos, os autores contemporaneos mantém, majoritariamente, o entendimento contririo a responsabilidade penal da pessoa juridica, Maurach ja sustentava a incapacidade penal das pessoas juridicas, afirmando que “.. o reconhecimento da capacidade penal de acéo da pessoa juridica conduziria a conseqtiéncias insusten- taveis, Isso jé era assim, segundo o conceito tradicional de agéo. Inobs tante, uma concepgio similar seria inaceitavel de acordo com os crit rios do finalismo, os quais distanciam © conceito de aco do mero provocar um resultado penalmente relevante e apresentam a acéo de ‘modo incomparavelmente mais forte, como um produto original do individuo, isto 6, do homem em particular. Mesmo a partir de uma perspectiva mais realista, no é possivel equiparar a vontade da ‘asso- Giagio! com a vontade humana, na qual se apdia a aco". Nessa linha de raciocinio, conclui Maurach, a incapacidade penal de agao da pes- 50a juridica decorre da esséncia da associagao e da prépria agao. Seguindo a mesma orientacio, Jescheck enfatiza que “as pessoas juridicas e as associagdes sem personalidade somente podem atuar através de seus 6rgios, razio pela qual elas préprias nio podem ser punidas. Frente a elas carece, ademais, de sentido a desaprovagdo éti- o-social inerente 2 pena, visto que a reprovacio de culpabilidade so- mente pode ser formulada a pessoas individualmente responséveis, ¢ no perante membros de uma sociedade que ndo participaram do fato nem perante uma massa patrimonial”™. No Brasil, a obscura previsdo do art. 225, § 3°, da Constituicéo Federal, relativamente ao meio ambiente, tem levado alguns penalistas a sustentar, equivocadamente, que a Carta Magna consagrou a respon- sabilidade penal da pessoa juridica. No entanto, a responsabilidade ‘penal ainda se encontra limitada a responsabilidade subjetiva e indivi- dual. Nesse sentido manifesta-se René Ariel Dotti, afirmando que, “no sistema juridico positivo brasileiro, a responsabilidade penal é atribuida, exclusivamente, as pessoas fisicas. Os crimes ou delitos ¢ as, contravencdes néo podem ser praticados pelas pessoas juridicas, posto 29 Reinhart Maurach e Heinz Zipf. Derecho Penal. Buenos Aires, \strea, 1994, v. 1, p. 238. Ls i Dee 30H. Hi. Jescheck. Tratado de Derecho Penal. Barcelona, Bosch, 1981, p. 300. que a imputabilidade juridico-penal é uma qualidade inerente 20s se- ses humanos"®". A conduta (ago ou omissio), pedra angular da Teoria Geral do Crime, € produto essencialmente do homem. A doutrina, quase 3 unanimidade, repudia a hipétese de a conduta ser atribuida § Sessoa juridica. No mesmo sentido também é o entendimento atual He Mufoz Conde, para quem a capacidade de acao, de culpabilidade t de pena exige a presenga de uma vontade, entendida como faculda- de psiquica da pessoa individual, que no existe na pessoa juridica, mero ente ficticio 20 qual o Direito atribui capacidade para outros fins distintos dos penais™. Para combater a tese de que a atual Constituicéo consagrou a res- ponsnbilidade penal da pessoa juridica, trazemos a colacéo o disposto ae cau art, 173, § 5°, que, ao regular a Ordem Econdmica e Financeira, dispde: “A lei, sem prejutzo da responsabilidade individual dos diri- igentes da pessoa juridica, estabelecerd a responsabilidade desta, sujei- fando-a ds punicdes compattveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econ6mica e financeira e contra a economia em parti- cular” (grifamos). Dessa previsio podem-se tirar as seguintes conclusbes: 1*) a res- ponsabilidade pessoal dos dirigentes nio se confunde com a responsa- bilidade da pessoa juridica; 2°) a Constituicao nfo dotou 2 pessoa juridica de responsabilidade penal. Ao contrério, condicionou a sua responsabilidade & aplicacio de sangées compativeis com a sua natu- rera. TEnfim, a responsabilidade penal continua a ser pessoal (art. 5%, XLV). Por isso, quando se identificare se puder individualizar quem sao og autores fisicos dos fatos praticados em nome de uma pessoa Juridica tidos como criminosos, af sim deverSo ser responsabilizados penalmente. Em no sendo assim, corremos 0 risco de ter de nos con penta com a pura penalizagdo formal das pessoas jurédicas, que, ante a dificuldade probat6ria e operacional, esgotaria a real atividade judi- iéria, em mais uma comprovacio da fungao simbdlica do Direito Pe- nal, pos, como denuncia Rail Cervini', “a ‘grande midia’ incutiia na 31 René Ariel Dott. A incapacidade criminal da pessoa juridica. Revista Bras: leira de Ciencias Criminais, n. 11, p. 201, 1995. 32 Musa Conde e Gercie Arén. Derecho Penal, 3.ed., Valencia, 1996, p. 236. 32 Ral Cervini, Macrocriminalidad econdmica — apuntes para una aprox Sion tcvodelogica, Revista Brasileira de Ciéncias Criminais, n. 11, p. 77, 1995. mi opiniso piblica a suficiéncia dessa satisfacfo bésica aos seus anseios de Sustica, enquanto as pessoas fisicas, verdadeiramente responséveis poderiam continuar tio impunes como sempre, atuando através de Sutras sociedades", Com efeito, ninguém pode ignorar que por tris de ‘uma pessoa juridica sempre hé uma pessoa fisica, que utiliza aquela como simples “fachada”, pura cobertura formal, Punir-se-a a aparén- cia formal e deixar-se-ia a realidade livremente operando encoberta em outra fantasia, uma nova pessoa jurfdica, com novo CGC, em outro enderego, com nova razio social etc. : Mas isso no quer dizer que o ordenamento juridico, no seu con- junto, deva permanecer impassivel diante dos abusos que se come- tam, mesmo por meio de pessoa juridica. Assim, além da sancio efe- tiva 20s autores fisicos das condutas tipificadas (que podem facilmen- te ser substitufdos), deve-se punir severamente também e, particular- mente, as pessoas juridicas, com sangées préprias a esse género de entes morais. A experiéncia dolorosa nos tem demonstrado a necess dade dessa punigao. Klaus Tiedemann relaciona cinco modelos dife- rentes de punir as pessoas juridicas, quais sejam: “responsabilidade civil’, "medidas de seguranga", sancées administrativas, verdadeira responsabildade criminal e,finalmente, medidas mistas. Essas medi das mistas, néo necessariamente penais, Tiedemann* exemplifica com: a) dissoluclo da pessoa juridica (uma espécie de pena de morte), b) corporation's probation (imposicéo de condicées e intervencio no funcionamento da empresa); c) aimposicio de um administrador ete EB, em relacéo as medidas de seguranca, relaciona 0 “confisco” e 0 “fechamento do estabelecimento”. No mesmo sentido conclui Mufioz Conde**: “cot atual Direito Penal disponha de um arsenal de meios cspecifcns de reacio ¢ controle juridico-penal das pessoas jurfdicas. Claro que estes meios devem ser adequados & prépria natureza destas entida- des. Nio se pode falar de penas privativas de liberdade, mas de sages pecuniérias; ndo se pode falar de inabilitacSes, mas sim de suspensio de atividades ou de dissolucio de atividades, ou de inter- 34 Klaus Tiedemann. Responsabilidad penal de fe th derecho compurado, Revita Bens de Csene Cina nimere pe

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