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A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 E ume identidade. Ser PCE ume coisa muito forte. Porque nao ena 36 ser de um partido pelitico. Ser do PC era uma coisa muito maior. Esa ser de una faa, agua coisa muito pesada, muito dif. sso tudo crow a catega da gente wna culara pecebista muito forte. Catlos Nelson Coutinto Foi mito founda a influéncia do marsismo sobre a cultura brasileira, conde ela se proeson de um modo espontaneo, quando erum os préprasertisas on inelectusis ou outos que manifetavam eras posiges, pone pensavam deguela mancira. E ndo onde se fenton impor uma certa disciplina partidéria, ‘A ideoiogia sé tem uma influéncia positiva quando 0 proprio ants sene daquela manera ¢, porque ele sen, expressa ‘Mitio Schenterg** © 10s30 humor no CPC em muito dijere dp humor comunista anterior a wb, que tna vivido outa coisas, Capinn*** SDepoiment a0 aur. ‘*Depaimento 3 Antonio Abbino Canela Rubim. ***Depoimento a0 ater, Nota introdutéria OPCB tem reconbecidamente um histSrico ideol6gico de junc do marxismo- lerinismo(-stalinismo) como tenentismo de esquerdh, de inspiragio positivista, smo e postivismo estio longe de qualquer tragosignificati= ceditados em Lisboa (1976), confirmasua distincia do romantismo: praticamente ino hi vestigios nostalgicos na construcio da utopia do futuro, tampouco sinais de voluratarismo; a tonica estava na proposta de jungio das forges progresistas pelo fim do atraso, contra 0 imperialismo e o latifiindio, o que demarcaria a etapa da revolugio burguesa no Brasil, pacific, nacional e demosrdtca.' Nao obstante, uma das matrizes do romantismo revolucicnsrio nos anos60 surgi no interior do PCB, particularmente do setor cultural. Se hi algo de romintico na visio de mundo do PCB, talvez sejam possiveis leituras da énfise na questio nacional (e conseqiientemente na constituigiode um ovo), que o colocariam em sinronia com aspectos da ideologiatrabalhista, cons tituinte da chamada democracia popula. As prétcas¢idéas poiticas do PCB nes se perfodo eram influenciadas pelo trabalhismo, com sua afirmagio do povo, de nagio, da estrutura sindical vrguista ete, Como o PTBera em suamaioria mode- rado ou até conservador — emora com uma ala significativa de esquerda —, 0 PCB esti sendo aqui considerado como o mais importante da esquerda, sem es- quecer sua divida com certa versio doidedrio trabalhista que, afinal, predominava 65 EM BUSCA DO POVO aR, xaos movimeentos sociais do pré-64. Noutras palavras, a0 difundit-se no seio das «esquerda, as idias de povo enacionalidade caracteristicas do trabalhismo em geral passavam pelo filtro recriagiodo PCB Como exemplo de aproximagio entre comunistas ¢ trabalhistas, aparece de passagem na Resolugdo poldica do V Congresso do PCB, de 1960, referénciaa “ob- Jetivos comuns como a defesa da cultura nacional” (1976: p. 37). Essa defesa da cultura nacional abriu portas, especialmente no campo das artes, para vertentes rominticas, que se inspirsram no resgate da identidade de um supsto homem suténtico do povo brasileiro para implantar o progresso € a revolugio, ‘uso chs nogdes de povo e de nagio nao é, contudo, suficiente para caracte- Tizar qualquer tipo de romantismo, Por exemplo, em seu pequeno ¢ difunclido 10 Brasil? o intelectual ccmunista Nelson WerneckSodré defini 0 pave como “o conjunto dhs classes, camadas ¢ grupos sociais empenhia~ dos na solugio objetiva das tarcfas do desenvolvimento progressisca ¢ revolucio- nario na érea em que vive" (1962: p. 14). Ou seja,em conformidade com a orien- ‘aio politica do PCB, o povo —a quem caberia realizar a revolugio brasileira — seria composto pelas forgas opositoras daalianga entre o immperialismo eo latifiin- dio, empenhadas em romper o atraso nacional, a saber: 0 campesinato, © semiproletariado, o proletariado, a pequena burguesia progressistae as partes da alta e média burguesia com interesses nacionais. As masias do pove — isto 6, parte do povo sem consciéncia de seus interesses —deveriam ser educadas e dirigidas ela vangnarda do pove. Para Werneck, “em politica, como em cultura, s6 é nacio~ tal o queé popular” (1962: p. 17). Essa leitura progressista e modernizadora do macional-popular, quase sem referéncia ao resgate do passado—aparentada tam= bbém com o desenvolvimentismo trabslhista—, nfo pode ser caracterizada como romintica. E preciso enfatizar que ha, sobretudo nas esferas politicas ¢ econdmi- jonalismo popular eminentemente desenvolvimentista, modemizador, industrialista, voltado para a ruptura com o “atraso”, Entretanto, no das cultura, intelectuais etambém politicas do perfodo, muitas lo progresso revolucionsrio ligava-se a busea das ausénticas raftes povo brasileiro, ‘ederico refere-se a documentos internos e pouco conhecidosdo PCB sobre cultura, produridas no final dos anos 60, sob inspiragio lukacsiana, que “ ‘A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 colocavam o PCB a valorizar: no particular, ur internacionalismocultu- ismoabstrato como do nacionslismo extreito. 0 dos que atribuem ao PCB uma postura especialmente p. 285-293), Esses textos (0 de reflexdes sobre pelo menos uma década de embates ‘uma época marcada pelo romantismo revoluciondrio, que lembrava o messanismo nacionel do século XIX, no qual "povo c nagio,afraternidade € a Histéria, serium o veiculo de regeneragio e redencio” da humanidade, nas, palavras de Saliba (1991: p. 63). A virada cultural do PCB nos anos 60 ‘A partir de mexdos dos anos 50, naesteira cas dentinciss de Krushev no XX Con- ¢gresso do Partido Comunista da URSS,?¢ também da consolidscio da “democra- cia populista" edo ascenso dos movimentos de massa no Brasil, foram ocorrenda certas mudangas de rumo no PCB, inclusive na 4reacultural, com oabandono do adanovismo? ea proposigio de uma arte nacional e popular, que permitem apro- ximar os setores culturais do Partido de certos tragos rominticos — nem sempre perceptfveis nos documentos oficisis do PCB, mas evidentes na prética e nas for~ imulagBes diferenciadasentresi de seus militantes do campo zrtistico e intelectual, Segundo Carlos Nelson Coutinho: inicio dos anos 60 € um periodo de muito florescimento cultural. Bo perio Fundamentos do marxismo-leninisme, que o Leandro também dizia: “sio os afun- damentes do marxismo-leninismo”. Entio, eu acho que o Bnio teve um papel, fio eo grupa que o cereou, Moacyr Felix or EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO Acultura pecckista anterior aos anos 60, perfodo do stalinismo, pode ser re= dos anos50, Amado disse a Antonio Albino Canelas Rubim,com sinceridade: “eu ‘nunca li Marx, nio tenhiosaco para isso.” No mesmo sentido vai a entrevista que ‘me dew o cineasta Nelson Pereira dos Santos, sobre sua mil anos 40 e 50: *Tados nés, naquela época, nos chamAvamos de marxistas. E uma ‘mentira, porque ninguém lia [Marx], Em geral, nfo havia nas minhas relagoes alguém que fosse tio estudioso assim a ponto de ler Marx. [..] A gente lia uma revista do Partido chamada Preblemus (1 rnunis de marxismo-leninismo soviéticos. Nelson séestudou Marx, 18 Brumério, quando foj encarregado de dar um curso de formagio politica numa célula de bairro, Na opinigo de Jacob Gorender, falando a Antonio Albino sobre a adesio de expressivos intelectuais ¢ Drummond de Andrade: “Eram o1 claro, Partido era pequeno; de re muito grandes ¢ |...] seus dirigentes nio tinham cultura pessoal, nem Prestes nem os homens de quem ele se cercou — Arruda, Amazonas, Grabois e Po- 1as potencializar o préprio Partide com a adesio tlectuais de tamanha envergadura.” Para Gorender, a situagio mudou di dos anos 50 para os 60, cm que o PCB procurou “aproveitar os inte- is naquilo em que eles sio especialistas, o trabalho intelectual", desen- volvido com autonomia. Exemplo da politica cultural no perfodo stalinista, nos anos 50, € dado por Nelson Pereira dos Santos. Ele me relatou que era um quadro formado no PCB, (que plinejava para ele uma carreira politica na burocracia partidéria, Quando se preparava para filmar seu primeiro longa-metragem, Ria 40 graus — rodado em 54-55, langado em 56, considerado como o precursor do Cinema Novo, a0 colo- ‘ear nas tclas 05 dramas dos favelados no Rio de Janeiro, até entio ausentes da Aiiwogralia nacional —, a diregio do PCB tentou impedi-lo, por intermédio de seus tepresentante no Comité Cultural: ‘A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURA'S DOS ANOS 60 Eu pedi, disse: “Vou fizer um filme." Eo cirigente me disse, nunca me esqueco disso: “Voc8 esté tendo uma ilusio pequeno-burguesa; porque o cinema, no Basil, 36 depois da revolusio." Agora, ev sabia que podia fazer nas maos todos os elementos: as pessoas, o equipamento,a possibilidade de ter iro,osatores, a histiria pronta caqueletesio enorme para fiero filme. ] Afocara me rebaixou, me botou de castigo, Fui ser da célula de bairro, que ceraem Santa Teresa, [.]. Tive que vender jeensl no morro, aqucls coisas to- dds, [1] EntSo, entre fazer uma careeia promisiors, funcionsrio do Partido, © ‘fzercinema, uma aventura enorme, eu esiava evidentemente possufdo de uma ilusio pequeno-burguesa, Avida nos morros ariocas que Nelson Pereira freqientava era retratadaem Rio 40 graus: “eu s6 nfo coloquei, no filme, comunistaentrando, vendendo jor- nal, ninguém comprando”, O filme foi proibido em setembro de 1955, nio pela censura, mas pelo chefe de policia do Distrito Federal, que entendeu que ele mostrava uma imagem degradante do Rio de Janeiro e sua. rardistdrbios na ordem pablica. I do filme, que foi usado com fins eleitorais pelos apoiadores da candidatura de Juscelino Kubitschek 3 Presidéncia da Repiiblica, PCB entrou na campanha movimento pela liberagio do filme. Naqueles dias, Nelson foi esealado para um curso de formagio de 30 diss, em local secreto, que 0 poria fora de circulagio paiblica: ‘queria que eu fosse fazer um curso: ‘Werneck, que era ditetor da Jmprensa Popular, um amigo da érea cultural. Ele disse: "Vooé diz que 0 Comité mandou voc ficar” Ae ful encontrar o carana ‘esquina,s 6 horas da tarde, €0 sistema era oseguinte: encontra, vai andindo, cera no caro, pde wma vend © bum. Era um seqiestro. Suma. fa para algum [EM BUSCA DO POVO BRASILERO lugar e reaparecia um més depois. Af eu filei para 0 cara: “Olha, o Comité Cultural disse para eu nao -vocd esti sibendo, eu sou aquele cara do filme que sii no j le disse: “Nao interessa. Voc® va.” Eu tive que reagir com forsa para eseapardo cara, como se estvesse Fugindo da polcia. Mas, enfim,o filme foi fnalmente liberado pelajustica. Epis6dios como esse, de arbitratiedade e destespeito no trato com artistas € intelectuais (¢ outros militantes também), foram freqiientes na hist6ria do PCB nos anos 50, mas no ouvi nada parecido sobre o Partido apés a desestalinizaclo, Depois das dentincias de Krushev no XX Congresso do PCUS, abriu-se umam= plod:bte no interior do PCB, expresso nas piginas da Imprensa Popular. Comoo tom contestadoria-se avolumando,o secretirio-geral, Luiz Carlos Prestes, sus- tou adiscussio, Segundo Nelson Pereira, a maioria do Comité Cultural recusou- ‘se “a accitar o encerramento da discussio, votou pela sua comtinuagio”, que en~ tretanto foi bloqueada: “Foi a dltima vez que eu participei. Depois disso nunca ‘mais me chamaram, nio fui mais. Efiquei com umestigmade comumista, que éa pior coisa, nfo sendo.” E acrescenta, brinc:lhio: “Fai promovido a inocente iti.” ‘ApSsscu distanciamentodo PCB, Nelson Pereira dos Santos tornou-se um mili~ tante da “politica de cinema”, dos “movimentos de defesa do cinema brasileiro, ‘com uma visio nacionalista’, nas palavras dele préprio, Nessa luta, “a esquerda ‘sempre me apoiou, no s6 0 Partido”, ‘Niosedeve,contudo, caricaturara ago cultural do PCB nos anos 50, significa tivaem areas como o cinema (por intermédio de militantes como Alex Viany ¢ Walter da Silveira), teatro (Guarnieri, Vianinha eo pessoal do Teatro Paulista do Estudan- te)etc. O salto cultural pecebista dos anes 60 vinha sendo lentamente maturado no perfodo em que ainda prevalecis o stalinismo. A vida cultural comunista nessa Epo ‘cacontava com a partcipagiode iniclectuas artista significativos. Mauricio Segall —que foi professor assstente da Faculdade de Ciéncias Econdmicas da USP de 1949 2 1957 efazia parte dh redacdo da revista do PCna época, a Fundamentos—me disse que foi secretirio ds célula universitiia de Sio Paulo do PC, integrads por intelectuais como o fisico Mirio Schenberg eo arquiteco Villanova Artigas, “oJosé ‘Eduardo Fernandes, um médico que tocavaa parte cultural do Partido [..] Eulida- ‘vacom os irmios Duprat, os misicos, que foram do Partido". 70 ‘A GRANDE FAMILIA CONUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 © arquiteto ¢ artista plistico Sérgio Ferro ingressou no PCB no final dos «anos 50, da Faculdade de Arquiterura ¢ Urbanismo da USP (FAU), que contava ‘com forte base comunista. Ele esclarece que, desde esse perfodo, tanto arquitetura quanto 2 ‘vam se adequnr, se aproximar de preocups ro campo da arquitetura, que é uma ‘edo, Nés comegamos a crticar a arquitetura que cra ccomplemente no 6 suas misses sociais —a casa pop ‘dentro di propria arquitetura ha um campo d co: no canteito de obras éalguma coisa de inimaginiy ‘um livtinko sobre essas coisas, O can posterior; mas esas preocupacdes eram presentes no nosso tr escola, Nio parece, mas o desenho de 2 violéncia que ocorre noe: ura que eu fatia procurae Foi muito mis ripido Ferro, que desde osegundo ano de faculdade montou um escritério de arqui~ tetura com seu amigo Rodrigo Leftvre, conta que *havia um microcosms ent He a FAU c Faculdade de Filosofia” da USP, de modo que suas preocupagoes “safam do campo restrito da arquitetura para a filosofia, a teoria, a sociologi, tudo isso", ‘Conta que discutia pintura no PCB, porexemplo, com Mario Schenberg, que no cera “nada reaciondrio em termos de pintura, mas cle tinha semprea mesma coisa, a evolugio das forgas de produgao também na pintura, valorizava muito a van- fguarda que procurava meios novos de expressio, de comunicagio ete™.* Quando Sérgio Ferro ingressou no PCB, ‘oresismo-sorialsta jf tinha mais ou menos seabado, Pelo menos no Brasil, no luenciado ¢ determinado pelo Mario ‘osdciseram muito maisaberos, avangados, progresssts, do qua velha lina do Partido. Eu nio soffi nada do n EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO realismo socialsta, nenhurma pressio, nenhurma ecnsura, nada disso. Mas, nes- ‘9 €poca, cu ja queria fazer uma pintura que se aproximasse das pessoas, que qualquer um pudesse entender ou se sproximar ou dialogar com a pintura. 1850 i colocava uma pequena diferengazinha com relagio a Mério Schenberg, pot exemplo, ‘Com o fim do zdanovismo, nio havia dirctrizes claras da diregéo do PCB para uma politica cultural partidaria. Esta passow a ser formulacda na pritica po em que o PCB mais tenha influenciado a vida politica ¢ intelectual nacio- ral, quando ele preponderou no seio de uma esquerda que foi forte o suli~ ciente para Roberto Schwarz falar numa “hegemonia de esquerda” no campo cultural (1978).* Por exemplo, o Comité Cultural do PCB no Rio de Janeiro, nos anos 60, tor= nnou-se muito mais aberto que aqucle da década de 1950, referido por Nelson Pereira dos Santos. Segundo Leandro Konder, em entrevista a0 autor: (© Comité Cultural era um Srgio do Partido para tuar no fot dh polticacul- dessa experidneia, desss tentative de definir os critérios de 1s méiodos adequados numa nova época. A grande preo- logo com os produtores e difusores de cultura, exercer No ditava regra, nfo impunka coiss alguma. Ele nasceu dessa disposigio — muito interessante, pioncira — de auar junto a artistas, eeritores,€ af inka jreas que se organizavam especificamente para discutir seus problemas, mas sempre comalgum representante do Comité Cultura, ...] Tinha umaespécie de comissio executiva, que dirigia o Comité Cultural (eu era do Comité Cul= tural, mas nio da comissio executiva, de que fii uma vez suplemte). O Comité CColeural, em geal tink a Fungio de dar asistincia. O assistente — sempre um sujeio dessa comissio executiva — rifo decidia nada, x6 coordenava os trabalhos, ‘A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 Assim, havia reunies espectficas de comunistas nas ércas de teatro, cine ma, miisica etc, Um exemplo; em recente cronies, Gutemberg Guarabyra relembra uma reunio de musicistas do PCB, da qual participou, por volta de 1967, na casa do maestro Guerra Peixe, com apresenga de “Ester Sclia, a grande professora ¢ comp ccondes, a primeira mulher arranjadorade que tive 0 incrivel maestro Gaya”. Nes- sa reunio, os presentes solfejaram um chorinho, que Guerra Peixe acabara de compor (Guarabyrs, 1997), Outro exemplo: Konder contou-me dos spuros por que passou para conter os Animos numa acalorada discussio na base tea- tral, que varou a madrugads, jé por volta de 1967-68, Ele tinha ido substituir © assistente do Comité Cultural na base teatral, Ferreira Gullar, que estava doente: Eram quatorze atores e diretores [...] Gullar me disse:“Vocé vai e tora muito cuidado, porque nio tem nenhuma contradiglo poltiica nessabase de teatro que ‘no esteja ma histéria da contradicio pessoal. Entio, o que vocé tem que fier & simples na concepsio ¢ delicado na execugio. Vocé néo pode se envlver nos confltos dos bravos companheiros. Eles vio brigar ferozmente. Vocé tem que ser oagente apuziguadlor etal, E nfo tem que forsar nenhurma decisio, deixe as decisdes fuirem quando fluitem, se luirem; se nio fuftem, tudo bern.” [.] Eu nunca tinha vivido uma aventura dessis de bodémin comunista tio radical, fiquei muito impressionado, Oassistemte do Partido junto aos militantes ¢ simpatizantes comunistas do CPC carioea foi Marcos Jaimovich, Ferreira Gulla, ditigente do CPC, disse-me, a respeite: No CPG, nas reuniées, sempre participava o Marcos Jaimorich, como repre= sentante do Partido. Evidentemente, aintengio secreta que devia estar ali era dda gente nio fizer “porta-louquice”, Quer dizer, alguém para vigiar 0 pesscal, {que pusesse um pouco de erdem na loucura. Mas o Marcos é uma pessoa mai todelicada eles vezes ponderava, porque o Partido tinha informagées de coi- sas que estavam aconmecendo no subsersineo da luta politica, até do Estado, do B EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO governo, coisas que mio eram do nosso sleanee, porque nés estévamos em ou- tra Srea. Af servi para enriquecer as nossas indagagSes ¢ a gente pensar sobre aquilo. Nunca dizis: “no fz isso". O Jaimovic tinhaaté certo constrangimento de dar palpite no que 2 gent estivesse pensando, Ba gente também ndoobede- ceria nada, Noentender do intelectual comunista Arménio Guedes, em depoimentoa Antonio Albino Canelas Rubim,a propostado CPC “nasee com os estudantes ¢ penetra no Partido", No infcio dos anos 60, segundo Guedes, teria havido “uma ascensio das coisas do Brasil, de maita universalizacio da politica, de socializa~ io da politica. Todo mundo participava ativamente. Entio, ‘© momento que antecede o outro, Hé uma certa interagio” entre Partido movimento, Havia comités culturais do PCB em varias cidades, antes e depois de 1964. As observacies sobre o comité do Rio de Janciro— entao acapital cultural do pals —sio genericamente validas para os demais comités. A presenga cultural do PCB cra relevante nas principais capitais brasileiras, especialmente no inf- cio dos anos 60, em que a agitacio politica e cultural nio se restringiu ao eixo Rio—Sio Paulo. Recife — conhecida como cidade vermetha, pela sua tradi ‘si0 comunista em Pernambuco, que era governado por forgas de esquerda, aliadas em torno de Miguel Arracs, por ocasio do golpe de 1964 — foi cens- rio de um amplo e diferenciado movimento popular, que mereceria um estu- do especifico, como no caso do MCP, ligado 3 Secretaria da Educacio. Salva dor, Porto Alegre*e outras cidades também viveram intensamente a agitagio polftico-cultural de esquerda dos anos 60, cujos ecos ainda se fariam sentir por muitos anos. Outro exemplo € 0 de Belo Horizonte; conforme relato de Izafas Almada ar na base de estudantes secundaristas do PCB, em squcla cidade, apesar do clima preponderantemente conservador, tam nna época certa efervescéncia cultural de esquerda em lugares como “o cineclube, o Centro de Estudes Cinematogrificos, algamas redacSes de Jornal como 0 Ditrio de Mines, O Estado de Minas, por exemplo. Junte-se af também o grupo de jomalistas ¢ escritores. Tinha o tea:ro experimental €0 m4 ‘AGGRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 ‘um jornal muito importante na época, o Bindmio — que fazia oposiglo 20 go- vverno estadual, federal —, muito contundente nas suas matérias", Nesse pe- Fiodo, Almada contou-me que conviveu com intelectuais e artistas como Ivan Angelo, Moisés Kendler, Rodrigo e Sih Jo Horizonte teve sew CPC di UNE, onde atuow 0 poeta Aifonso Romano de Sant’Anna, entre ou- tros. No infcio dos anos 60, 2 cidade de Henfil — O rebelde do trago, como diz co titulo de sua biografia (Moraes: 1996) — foi um dos bergos da AP e, mais tarde, dos Colina. Depois de 19¢4, Belo Horizonte sediow neovanguardas nas artes plésticas (Ribeiro, 1997), ¢ a turma do Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Fernando Brant, que se destacou tanto por sua qualidade musical como por ‘sua participagio na resist 3 ditadura — como se pode verificar nas letras de imtimeras cang6es e no livro de memérias do integrante do clube, Marcio Borges (1996). Por exemplo, logo depois da morte do estudante Ed- son Luis, em margo de 1968, Milton Nascimento ¢ Ronaldo Bastos compuse- ram em homenagema ele a cangio Menino, que s6 seria pravada anos depois, uma vez que os autores ¢ sua turma nio queriam parecer oportunistas, segun- do Marcio Borges (1996: p. 180). Diz a letra: “Quem cala sobre teu corpo/ cconsente na tua morte/ talhiada a ferro e fogo/ na profundeza do corte/ que a bla tracou no peito/ quem cala morre contigo/ mais morto que estés agora..". Alembranga do enterro de Edson Lufs também inspirou Milton Nascimento ‘€ Wagner Tiso na composigio de Coragto de estudance, em 1983, para a wilha sonorado filme Jaugo, de Silvio Tendler (Mello eSeveriano, 1998: p. 304-305). Voltndoao Rio de Janeiro no inicio dosanos 60,0 Comité Cultural do PCB spunha regras as atividades artisticas dos comunistas. Hsvia respeito& auto- nomia dos movimentos artisticos marcados diferenciadamente pelo idedrio co- munista, De modo que setia equivocado supor, por exemplo, que as idéias dos rilitantes e simpatizantes do PCB no intetior do CPC da UNE expressassem posigdes do Partido. Segundo Konder: EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO ‘iia do Comité Cultural erapreservar uma cera disponbildade para lidar coma cultura nas saas mais diversas formas, nos mais diverso Carlos Estevam Martins, era um negicio meio rte popular, arte parao povo, arte popular revolu- fo ques6 a arte popular revolucionéria era boa, as outras duas eram alienadas. Ev achei aquilo um horror. Posteriormente, 0 CPC na prética foi retificando_a linha, mas eu fiquei sempre preso iquela primeiraimagem. Entio, -as ao CPC em geral tomam por base “An CPC", escrito pelo socislogo Carlos Estevarn Mi pressousuas idéias na época seap6s 0 término de seu mandsto, riamente por Cacé Diegues, durante tr¢s meses, assumindo em s Gulla, que permaneceu no comando até seu encerramento, como golpe de 1964. ‘As posigées originais de Estevam foram sendo cada vez mais questionadas dentro do CPC, que continuava entretanto adefender umaarte nacional e popular, voltada para.a conscientizagao politica, o que levou sobrecudo alguns cineastas a buscar ‘outra alternativa de arte politizada e esteticamente revolucionirz, caso de Carlos Dicgues. No depoimento que me dew, Dias Gomes também afirma que, apesar de ser amigo ecompanheiro de Partido de viios integrantes do CPC, nunca tomou parte dele,"por discordar fundamentalmente de sua visio” Segundo Dias Gomes, que inteprava e chegoua dirigir o Comité Cultural do PCB no Rio de Janeiro, o Co- rmit® e 0 CPC “eram duas coisas completamente diferentes; o CPC, apessr de ter vvirios membros do Partido, nio era subordinado a esse Comité de modo algum. Havia um relacionamento normal de aliados",’ Por sua vez, era pacifico orelacio- namento dos militantes da 4rea da cultura com aditecio do PCB, Segundo Carlos Nelson Coutinho: 76 ‘A-GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 Sea gente ndo se metesse em politica, [a diregio] também no se metia em cultura, Entio, vocé podia defender o que quisesse, tropicalismo ou nio, contanto que no dissesse que lata armada era a solugio, ou que Lénin estava superado, que Unito Sovitca era uma merda Se vod ni falzssenisso, cho fato de ques em sua entrevista, Dias Gomes referiu-se as reflexdes do Comité Cultural do PCB: Era 6 discussio, na verdade era um grande falatério. Bram discussdes intermi- nveis que iam pela madrugada até As seis horas da manhi. Discutia-se tudo, eu acho que esgotei toda a minha capacidade de discussio naquele perfodo. Hoje ceundo quero diseutir mais nada, scho que tudo jé foi diseutido, Na verdade era esse 0 papel, era muivo mais discursivo do que outta coisa. Ferreira Gullar esclarece que jamais pertencera ao PCB {grou-se 20 Partido no exato dia do golpe: Eu era independente dentro do CPC. Entrei para 0 Partido exatamente no dia 48de abril, quando fi incendisdaa UNE eo ridio sestava dizendoque o Forte que ness época eram casados. Léestivam o Vianinha, Marcos Jaimorich, que contato do Partido na érea cultural, eeu comunique 20 Jaimovich que, a laquele momento, eu entriva para 0 Partido, no dia ds error. ssesideais de generosidade, nobreza de carter e solidariedade com os ven- cidos sio caracteristicos de muitos artista ¢intelectuais engajados da €pocs. Par- ticularmente elesse encontram na vida na obrade Gullar, como & demonstrara 7 EM BUSCA DO FOVO BRASILEIRO um episédio em Sio Luiz do Maranhio, em 1950, quando ele nfo tinha qualquer relagio com a politica: Eu estava escrevendo A luis emporal em Sto Luts do Marantioe houve if um confltopolitico, onde mataram um operérioceu vi na praca. Eu era locurorda Ridio Timbira. Quando no dia seguinte pela mani eu cheguei nario, tinha ‘uma nota do governador, dizendo que os comunista tinham asszssinado o cara, Eu me negucia ler a nota. © diretor veio, implerou,éisse que iia me demitir secunto esse. Eu nfo lia nowae fui demitido. Mas eu nfo tinhanadaa ver com politica. Tinhaa ver com a dignidade do ser hurrano, coma verdade das coisas. Entio, nio li e fui demitico, i toa, como um maluco, um Dom Quixote, por nada, Nio tinka ringuém para me amparar, porque ew nd estavaligado anada, © que howve & que © pow éa cidade, os jomalisas, 30 saberem o que tinha acontccido, fizeram o maior alade desse negécio ¢ eu terminei virando uma figura popular na cidade, até 0 porco de nao pagar Gnibus, ao pagar café 0 bbotequim. © povo € gratoas pessoas que iém gestes generosos, Esse tipo de postura perantea vida seria marcante também em sua bra, lesde a primeira fase, de vanguards. £ 0 que se pode concluir de suas palavras: Eu tinhs posigbes exstencais,nio eram formalista. Eu nunca fui formalist. Inclusive, a minha divergéncia com os paulistas [irmiios Campos e Décio Pignatar] sempre foi porque eleseram formalist. Eu sempre busquei ma poesia ‘oma colts mais nosentido ds vida e ds propria literatura do que frzerexperiéncias formsis. Bo que existe na minha potsiadeaudicia formal &conseqiéneiadessa indagacio de fundo. Essa indagogo de fundo da vida era compartlhads por muitos artistas dos anos 60, como Capinan, que defini poesia como “uma forma de conhecimento coistencilisada”, na entrevista que me concedeu. A entrega de si mesmo a uma causa social, a referida indagigdo de find, € algo que Gullar nfo vé em poemas politcosescritos por artistas que “no tém vivéncia alguma da coisa politica”, que fariam obras engajadas por oportunismo, como os poetas concretistas. Sem papas aa lingua, Gullar contou que 0 CPC recebeu para publicacio alguns poemas ‘A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 cengajados dos concretistas, dentre os quais estava o conhecido poema de Décio Pignatari, que toma como referéncia a Coca-Cola, O pessoal do CPC ficou sur- preso, pois os concretistas ram formulistase inimigos declarados do engajammento cepecista. Os textos nio foram publicadlos, pois logo veio o golpe de 1964 € 0 CPC acabou. Segundo Gullar, a artista plistica Lygia Clark contou a ele que Haroldo de Campos — que estava hospedado na casa dela, em Paris, em margo, de 1964 — ficou tio apreensivo como golpe que adiou sua volta ao Brasil e eve distarbios intestinais. Sabendo que Haroldo nada tinha com a politica, Lygia perguntou-Ihe 0 motivo de tanta preocupacéo, Ao que ele respondeu, segundo Gullar, que o problema era o material que as concretis mandado 20 (CPC da UNE. Para Gullar, “era tio grande a presen. ca, da parti- cipagio popular naquele perfodo, que pessoas como eles se sentiam 8 margem de tudo, tinham perdido. t6ria, marcar a histéria pantcipante, porque eles viram que a tese deles estava fora da Hist6ria, do pro- cesso politico brasileiro”. Ele prossegue: “Quando houve onegécio do Guevara, dda guerrilha, af eles também inventaram que a poesia concreta era uma forma de guerrilha; € tudo uma coisa meramente terminol6gica € vorabular, é tudo ‘mimica. Agora, participar mesmo, assumir a vida, o problems, aluta —e arris- car—, isso nunca fizeram.” Oustras tentativas dos coneretistas de aproximar-se do CPC foram mencionadas por Caci Dieguese Caio Graco Prado, em depoi- rmentos a alusa Barcellos (194: p. 48 54). Um desdobramento recente dessa polEmica foi gerado ap6s a publicagio do poema de Haroldo de Campos, dedicado 4 candidatura de Lula nas eleigbes pre- sidenciais de 1994, intiulado “Por um Brasil cidadio", Nele, hd uma referencia implicit — que curiosamente os criticos parecem nio ter notado—a um famoso poema de Gullar, escrito logo depois do golpe de 64, que dizia: “como dois e dois, so quatro/ sei que avida vale a pena/ embora o pio sejacara/e a liberdade peque- na” (0 poema de Campos diz “como um mais dois sio trés/ vai dar Lula desta "), A professora de literatura furnna Simon escreven um artigo de critica con- dente a0 poema ea sew autor na revista do PT, Teoria e Debete (Simon: 1994). Elzacusz oautor de oportunismo e desqualifica o poema literdriae politicamente (seria populista, messifnico ete.). Dois professores de literatura — Boris, R EIA BUSCA DO POVO BRASILEIRO ‘Schnaiderman (1995) ¢ Nelson Ascher (1995) — safram em defesa de Haroldo dz Campos, acusando a critica de stalinista, por supostamente ter usado procedi- ‘mentos semelhantes aos que 0 poderoso implementador da politica cultural na URSS do pés-guetra, Zdanoy,utilizava para enxovalhare perseguir seus adversi- rios, que no rezavam na cartilha que ele propunha e impunka, de exaltagio a0 regime soviético.* Na opiniso de Gullar, os coneretistas continuam “a ler os mesmos autores, a defender as mesmas teses formalistas, af le repente fazem (algo) politico, isso € mero oportunismo; no é verdade, esse €0 problems, Por isso sai ruim e por isso ninguém di crédito”, Por outro lado, em entrevista Folha de S. Paulo, Haroldode ‘Campos afirmou que su: poesia politica tem uma divisio, que resulta em poemnas de agitagio € de rellexio: Existe uma poesia de agitaio, agt-prop. Como os cartzes que 0 Maiakévski le toma a diantcira sobre a funcio estética, £ como um jingle de props~ ganda. Fiz para o Lula, fiz paras candidaturs do Suplieye paraa candidstura da s0u poets como 0 0 que fiz posteriormente sobre

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