Você está na página 1de 7
wereneNeik MORES, Antony Coa, Ret, Toit’ » Wistoun ny “rll, Say Poul Anahur 2006 CapitTuLo TX TERRITORIO, GLOBALIZACAO F PERIFERTA Os arautos da globalizagao e da inevitabilidade da homogeneizagao global, que teria acabado com as diferenciagdes entre os lugares na superficie terrestre, foram surpreendidos e rebatidos pelos acontecimentos geopoliticos ocorridos logo nos primeiros anos do século XXI_ Imperatives nacionais afirimam-se na condugao da politica externa dos paises centrais, mostrando claramente o enderegamento das teorias globalistas para um uso testrito dos Estados periféricos. Posturas protecionistas (que nunca deixaram de existir) reforgam-se nesta alvorada do novo século, sepultando a pauta hegemfnica de abertura comercial e formagiio de blocos da década passada. Identidades especificas ¢ autocen- tradas manifestam-se politicamente, mostrando que a era dos nacionalismos ainda nao encerrou. Aqueles que acreditaram no fim dos Estados ¢ das fronteiras nacionais terdo dificuldade de explicar a atualidade de um mundo que reitera os fracionamentos geopoliticos e a diferenciagaa dos lugares. As culturas nacionais nfo mostram a diluigdo numa identidade global, apregoada por muitos ha poucos anos passados,! ao contrario, assiste-se a certo revigoramento na luta pela au- todeterminagaio e da manutengo de vantagens de sociedades espacialmente circunscritas. Recentemente, o Estado canadense mostrou — em face do Brasil — como age o governo de um dos paises de melhor indice de Desenvolvimento Humano do mundo, na defesa do interesse especifico de seus cidadaos: no caso, observou-se uma agdo estatal indireta (0 embargo da carne bovina brasileira) como retaliagdo a uma disputa comercial (no sétor aerondutico) com uma empresa privada do pais. Um episddio como este fica dificil de ser equacionado por concepgies tedricas que acreditam no fim dos territdrios e das soberanias nacionais. A inser¢ao profunda e acritica nas redes internacionais e nos fluxos globais nao tem ajudado a economia da Argentina a sair da tow NOU CIS UIE IRIE crise que abate o pais, antes sio apontadas (pelos analistas mais Iicidos) como as causas de tal situagao. O atual quadro argentino mostra a particularidade geografica manifestancdo-se por meio da forga das moedas, o que repde com clareza a existéncia do centro e da periferia, contrariando alguns juizos das “geografias pés- modemas”. A idilica equalizagao ca “aldeia global” nao se realiza num mundo cada vez mais dividido pelo acesso diferenciado aos beneficios da modernidade, o que distingue os paises entre si € cada um internamente. Nesse sentido, os préprios elementos de homogeneizagao, em sua distribuigao social se revelam elementos de diferenciagao dos lugares. A condig&o periférica qualifica as situagdes em que a moder- nidade é restrita socialmente ¢ convive com formas de vida e rela~ ges arcaicas (claramente ancoradas numa sociabilidade pré-moder- na). Como falar da superagao do projeto modemo em tal contexto? Como abdicar da teoria da luta de classes em sociedades onde tais embates tém elevada visibilicdade no cotidiano? Tais questdes, apa- rentemente ébvias ¢ banais, desaparecem todavia nas perspectivas dos intelectuais ‘‘globalizados” da periferia, os quais — como parte da elite de seus paises — circulam pelos circuitos globais, que acabam por pautar suas pesquisas ¢ reflexdes,? A vivéncia exaustiva em “ndo-lugares” parece deturpar a sensibilidade para captar as especificidades que fundamentam o estudo da geografia humana. O desfoque do nacional como escala de apreen-gao basica para se entender a realidade geografica emerge como o problema politico central das orientagGes teéricas aqui criticadas. A concep- cao de um mundo estruturado em redes e da existéncia de cidades globais (supranacionais), por exemplo, bem revela a adesao a pressupostos tedricos neoliberais (mesmo que tal aproximagao nao seja consciente, por seus praticantes). Esta concepgao perde de vista as desigualdades espaciais, nao oferecendo nada para explicar e transformar os lugares e segmentos sociais excluidos dos fluxos dos grandes capitais. Estes verdadeiros “nfo-lugares” (na dtica das redes) sio, contudo, os predominantes em muitas partes do mundo . Renato Ortiz. Mundializagao e cultura. S80 Paulo: Brasiliense, 1994; Octavio ‘tani. Teorias da globalizag@o. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasilicica, 1995. 2. Milton Santos. O pais distorcido. O Brasil, a globalizago e a cidadania. S&o Paulo: Publifolha, 2002. WER DOI POUR OR eon toe periférico, qualificando as situagGes locacionais de baixo ou nenbum interesse para a acumulagao capitalista.? Wa verdade, a dtica das redes manifesta a es-pacialidade dus grandes corporagées e instituigdes internacionais (que em geral possuem sedes centrais nos paises do chamado Primeiro Mundo), as quais operam numa légica escalar que sé concebe a existéncia- do local e do global, posto atuarem por meio de fluxos e pontos A contigilidade, os entornos, e as determinagées de escalas intermediarias a estas, se perdem nessa perspectiva que acompinha ‘o movimento do capital, assiri como os gedgrafos do século XIX acompanhavam 0 avango territorial dos impérios coloniais.* © loco apenas nas escalas global © local esvanece as figuras do Estado © do territério (cujo fim esta implicito nessa concep¢ao), que sé tamam sentido quando se aborda o espago e a sociedade Ty termos nacionais. WNesse sentido, as novas poslturas repetem cm muito a estratégia teérica da geografia possibilista francesa no uticio do século XX, que — para desligitimar o fundamento ratzeliano «a expansio territorial alema — promoveram profunda despolilizagio da reflexfio geografica, elegendo uma escala de andlise ¢ um objeto (a regiao) avessos ao estudo da agio estatal. Eloje, o cullo do globalismo ou do localismo (ou da relagao entre eles) reproduz o mesmo efeito diluidor das instfncias basicas de atuagdo politica, ¢ da propria atividade politica no limite. Nao por acaso uma geografia cultural omamental — que divide as leituras da paisagem em “ideolégicas” ¢ “estéticas” — adquiriu tanto éxito na atualidace, emerginde como o modelo importado de maior aceitagio pelos geégrafos “‘globalizados” da periferia. A preocupagiio de estar sempre perfilado com a dillima moda teérica dos centros hegeménicos j4 mostrou maleficios em outras conjunturas analisadas nos capitulos anteriores. O antiestatismo radical dos anos 70 por exemplo, tendo a frente as formulagées de Michel Foucault (¢ sua recusa em discutir a questio do poder 3. Gilberto Dupas. Economia global ¢ exelusdo social. Pobreza, emprego. Estado e o futuro do capitalismo. Sio Paulo: Paz ¢ Terra, 1999: 4. Mary Louise Pratt. Os olhas do império. Reluuos de viagem e transculturagedo Bauru: Eduse. 1999. 152 ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES. na ética do Estado),3 é avaliado hoje como tim dos veiculos de legitimagao da proposta neoliberal do “Estado-minimo”, pois — na melhor das hipéteses — contribuiu significativamente para a postura passiva em face do desmonte dos aparatos estatais operado nos anos 90.6 Enfim, cabe investigar o préprio pés-modernismo (e o globalismo a ele associado) como uma proposta politica, questionando seu sentido pratico. O nove momento do capitalismo, ancorado num imenso desenvolvimento tecnolégico (informatica, robética, telematica, etc), nfio anulou a existéncia do centro ¢ da periferia ¢ nem a persisténcia de estruturas estatal-nacionais como fundamentais na ordem politica vigente, muito menos a presenga de classes sociais dotadas de interesses antagénicos.? Todavia, 0 novo momento implica redefinigGes ¢ ajustes, situago que — numa formulagao dialética — poderia ser sintetizada no seguinte enunciado: o capitalismo atual ainda é estruturalmente o mesmo dos séculos passados, mas também & historicamente outro.® Entre as novida- des importantes de serem assimiladas pela reflexdo geoerafica, salientam-se as novas fungées atribuidas aos paises periféricos e a reavaliagdo do papel dos patrimGnios naturais e dos fundos territoriais para a acurnulagao capitalista Apés meio século de avango exponencial e initer-rupto da fronteira de inovagées tecnolégicas, as forgas produtivas capita- listas deparam-se com um novo momento de requalificagio da propria nogao de recurso natural ¢ de identificagao de seus esto- ques e fontes na superficie terrestre em face da nova qualidade definida. Fala-se hoje em capital natural ¢ em ativos e servigos ambientais, requalificando elementos que as teorias econdmicas até enta@o definiam como bens livres.? A disting&o entre recursos 5. Antdnio Carlos R. Moraes. Foucault ¢ a geogral Foucault vivo, Campinas: Pontes, 1987. 6. Suzanne de Brunhoff. 4 hora do mercado. Sao Paulo: Edunesp, 1996. 7. José Luis Fiori. Globalizagio, hegemonia e império. In: Maria Conceigao ‘Tavares et al. Poder e dinheiro. Uma econontia politica da globalizagao. Petrépolis: Wozes, 1997. 8. Antonio Carlos Robert Moraes. Geografia, captialismo & meio ambiente, ‘Tese de livre-docéncia. Sio Paulo: DG/ FFLCEIV/USP, 2000. 9. Peter H. May & Ronaldo S. Motta (org.). Valorando a natureza. Andilise econdmica para o desenvolvimento sustentdvel. Rio de Janeico: Campus, 1994. In: ftalo Tronca (org.). TERRITORIO & HISTORIA NO BRASIL 1s3 naturais (expressos em produtos) ¢ recursos ambientais (que recobrem condigdes) ja manifesta as preocupagées do novo equacionamento do tema, uma vez que permite agir dife- renciadamente sobre estoques, fontes e meios locais, avaliados quanto a qualidade, quantidade, disponib estratégica,!9 ade ¢ importaincia A diferenciagao entre recursos renovaveis e nao renoviveis é ainda mais explicita quanto A nova ética de equacionar o relacionamento da sociedade com a natureza. Pode-se dizer que essa visio — que contempla bem as idéias de finitude de recursos e de limites maturais do planeta — constitui parte da mentalidade contemporanea, conhecendo j4 em seu interior urn intenso debate ideolégico, o que permitiria falar hoje de teorias ambientalistas de esquerda e de direita (o que contraria a formulagao neoliberal de ver a questao ambiental como supra-ideolégica). Enfim, a consciéncia das limitagdes impostas pela natureza A produgao e a catalogagao quantitativa precisa dos recursos disponiveis no globo (propiciada sobretudo pelo grande desenvolvimento das técnicas de sensoriamento remoto), imp&e uma nova geopolitica mundial, que tem Como um de seus eixos essenciais o controle dos estoques ¢ fontes de riqueza natural. Dai o esforgo internacional de nommatizagio desta matéria, ¢ os antagonismos interestatais que acompanham tal processo."! A questio da biodiversidade ¢ dos bancos bioge-néticos ilustra bem o afirmado, notadamente quando discutida em associagao com o tema das patentes tecnolégicas. Enquanto a preservacao das florestas tropicais, por exemplo, é equacionada no que se refere a interesses globais, o patenteamento industrial é pensado em marcos genuinarnente nacionais. Tal descompasso nos enfoques permite atuagio diplomAtica seletiva de alguns paises centrais nos féruns internacionais, movimentando seu poder de pressdo para compromissos de protegdo das florestas fropicais, ao mesmo tempo que se exime de responsabilidades no tema do aquecimento global e das emissées de carbono. 10. Bertha K. Becker. A geopolitica na virada do milénio: logistica ¢ desenvolvimento sustentivel. In: Ind Elias de Castro et ai. Geografia: conceitos ¢ temas. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995. IL. Wagner Costa Ribeiro. A ordem ambiental internacional. SGo Paul Cantexte. 2001

Você também pode gostar