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Introdugio O vestigio ea aura Walter Benjamin diz, em um de seus textos: (O vestigio & aparecimento de uma proximidade, por mais distance que ‘estejadaquilo que o deixou. A aura 60 aparecimento de uma distancia, por mais préximo quecsteja daquilo queasuscita, No vestgio, apossamo- nos da coisa; na aura, ela se apodera de nés' (Benjamin, 1994: 226). Esta afirmagio vai direto a0 coragio da vida subjetiva. E intuitive admitir que vivemos entre 0 passado ¢ 0 futuro, Me- nos evidente é pensar que a relagio mantida com os dois é a. Nossa relasio com os vestigios do passado é de pos- see proximidade; com a aura do futuro, de distancia despossessio, Na verdad, fgo ut te da cag de Benji, emborsssbendo que ete uso io correspond # inte central do clin tabalho do aston, De forma das mentalidades ov tensbilldedes em relapuo 4 tradiqgo. culteral. Ne tmodernidade, 0 sujet tes abandonado sua posgio Je narair de expecnciat itive animase de rtd de obras de te Sic para assum ma out inverse pel “rprodasbidade tenia"; o maradordelaru de see porto de lendas © onto, 40" sins apenas pod srecentar ui pono, pas sero autor de bitras recpetiveis, sem comm medida com a otdem dor fats © do mando “exper ‘entds” ¢ testemenkads por todos. A pales “ture, como 4 uit, tm © Aeiow de wer «obra de ate damimads pela “aus” qc a fe hia, por assim dizer, se teotido de “anunciagio”, "prem no staque eplepco”, a "cee de ensaguecat”, 20 enlgre rat ee Ver Benji Wale, Ober ear I~ Carr Bendy om lien nny de cptlina, Ko, Beasiense, 199, eigia u {A fungao do que chamamos tradicao € a de preencher a lacuna entre as duas experigncias. Os valores ¢ os ideis tradicionais esten- dem o passado até torné-lo remoto ¢ encurtam o futuro até cornd- lo préximo. O passado estendido se torna a Fundagio, 0 nitcleo inabalivel do que nos deu origem; o futuro préximo, a sombra protetora da solidez que estava no inicio e estaré no fim. A tradisio, 20 iluminar 0 futuro com as luzes do passado, permite que as novas geragtes ingressem no mundo com a confianga dos que pisam em terreno conhecido, Nela e por els, o mundo estranho ao qual che- ‘gamos se torna, rapidamente, um mundo familiar. Essa é a razo pela qual desafios culturais inéditos tendem a set vistos como insultos & tradigéo, Aquilo que nfo sabemos in crever na linguagem dos valores tradicionais ¢ facilmente etiquetado de perigoso ou injurioso. A aspiragio & seguranga nos faz esquecer que 0 substrato da tradigio ¢ 0 tempo € a mudanga, ce que a sua gramética é permanentemente refeita pela incorpora- «fo de novos estilos de vida e visses de mundo. Nos textos deste livzo, tentei contribuir para o debate sobre a angistia de destradicionalizasio ou temor da perda de valores A abordagem do assunto é em geral, marcada pela perplexidade ou por profecias catastréficas. Alinho-me aos que se sentem per- plexos, mas nio aos que sucumbem 20 catastrofismo. Penso que existe algo de verdadeiro na constatagio de que a ética cotidiana baseada no trabalho, na familia ¢ na religiio vem sendo abalada pela moral do espeticulo, Os ideais da felicidade sensorial ¢ da vida como entretenimento corroeram a credibilidade das insti- tuig6es que davam suporte 4 moral tradicional. Desse prisma, sem duvida, houve um remanejamento profundo perturbador na esfera dos valores, cujo epicentro é a crise de autoridade, co- mentada em um dos ensaios 2 OVEsTICIO BA AURA, Aceitar iso, contudo, néo é 0 mesmo que vaticinar a “perdi- 0” do mundo. Suspeito desta retérica, € por bons motivos. A cexperigncia civilizatéria burguesa, desde 0 comego, & assombrada por fantasmas do género. O século XIX, em especial, foi prédigo em prentincios de desastres. Naquele periodo, uma legido de eri- ticos invectivou contra a velocidade do progresso tecnolégico; contra o nivelamento por baixo da moralidade das massas e das elites; contra o perigo da degradacio ecolégica; contra a ganancia ca inescrupulosidade dos ricos e poderosos; contra a desumanizagio dominante nas grandes cidades; contra a mixérdia das visbes de mundo filoséficas, estéticas, politicas ou espirituais em competi so etc. A indignagio diante dos males da modernidade foi um mote recorrente na pena de jornalistas, moralistas, filésofos, polt- ticos, religiosos, médicos e literatos, que vio de Balzac, Zola, Flaubert ou Ega de Queiroz até os mais anénimos autores de folhetim.? ‘er, por camp, Weber, Eagen, Fase feds Soo Pl, Companhia ds Lett, 198, Meyer, Mae, Flin ~ me tira, So Pole, Corpanhin das Tee, 1966 Epa de Quer, sided a nan Si ado, Hed 2000, Como Caro, ho 0 segue ucco diode Weer "poh, pespopsara, taro, newos «droge sens 90 et amb 4 pa A spun cane Pia «plc, on ceton socio da imprean de pub ¢ dr propped {0 decline doe padtespablcerc prvadon bande crests de tanopeaies do om pegs ew dem.) o ar fs om form nah ogc ton compaio it po hese efron pen steer hg de tener apeies dove” (bil 5) Vows, bem, ets psp de Ea de GQuekox “OR, ee Pa, Jaco, ne teu Ps! Quechee roe boa inn Kala etre dees pion dios aman cop tdaes to pratclras onde 4 api hurridadt A mais vitor» de ano at pets Saivar, bem envernzadas, A tls de tesa nor akon, nov desvon, sobre Pancha de pio na ent © ps sa) Logo dep fe 0 Hamann, © Taeomelete, Depts o Nichia, © Feutne pies. Depa pasos © Talula, uo frorenso de tenancmeno cneblico.Depols velo © Emersoninnos- Ma pag cel Teel = Ent, meu flo, una Bab de Bas « Ex. Pac pte dent. ba we degrades sae tenn reo Laces amigas nova cota ecard ro Fao. ‘Urn hose ue edd repent os ota epoca crn ede pr © ets” (id pp 368540) J 13 Hoje, 0 catastrofismo voltou 4 tona, principalmente, de duas maneiras. Em primeito lugar, no alarmismo popularesco, criado ¢ divulgado pela midia. As comezinhas baixezas humanas sio colecionadas, arrumadas e expostas em bloco como sendo a ver- dadeira face da realidade. O mundo ¢ apresentado na forma de uum registro de ocorréncias policiais ou de um circo de horrores, onde tudo esté de pernas para o ar. A vida cultural entra em transe, em vésperas do apocalipse. Fatos ¢ valores, coisas e pessoas parecem safdos de telas de Bosch ou Brueghel. Em segundo lu- gar, no alarmismo erudito. Aqui, o trivial é desdenhado como ilusio dos espltitos confusos. Por trés da miriade de questivinculas, do fie divers desprezivel ¢ irrelevante, se encontra um tinico € grande enigma bloqueando a passagem para o futuro. Ou 0 deci- framos ou seremos devorados. Vistos de perto, todavia, 0s alarmismos sfo bem menos apa- vorantes do que parecem. Como exemplo, cito um desses perigos ceruditos. Hoje, se tornou corrente, em alguns meios intelectuais, falar-se sobre a perda da transcendéncia. Finalmente, diz-se, a sociedade burguesa realizou seu sonho, ou seja, laicizou-se de ponta a ponta e de alto a baixo. O Um, 0 Outro, o Transcendence religioso ou politico morreram. Primeiro assistimos aos funerais de Deus, agora, a0s do Estado, seu herdeiro leigo. © coletivo dos individuos abriu mio da Lei, da Norma, do nome do Pai, em favor da liberdade de atribuir a si mesmo a dltima palavra na resolusio dos conflitos privados. Fim da alienacio, comego da desorientagio. A isonomia de todos ndo facilitou as tomadas de decisio. Postergou sine die a indecisio em matéria de escolhas morais. Se todos sio iguais pe- rante 0 gosto, a preferéncia, a inclinagdo, 0 desejo ou 0 capricho, {quem ou o qué decide qual a verdadeira Vontade Geral ou qual 0 “ legit Consenso Moral? Sem o Transcendente, sem 0 poderd dizer “isso est4 certo” por- que “assim foi dito € estava escrito”? Enfim, se cada um pode se Heterénomo, quem ou 0 qui ‘outorgar a mestria de impor © que bem entende aos outros, onde ‘comesa a violéncia ¢ termina a persuasio? A laicizagio conquista- da a duras penas nos privou da transcendéncia, deixando-nos entregues a0 casuismo ou aos golpes de forca dos mais truculentos. © Um podia, as vezes, aterrorizar, mas, sobretudo, apaziguava; a ‘massa informe e andnima dos iguais é sempre fonte de ansiedade € insatisfagao. TTeorias desse teor, como as de Marcel Gauchet, por exem- plo, mesclam o mais clarvid fe ao menos sagaz.’ © autor mos- tra com inteligéncia ¢ propriedade aspectos da cultura contem- porinea que escapam aos ibitos interpretatives comuns. Mas atenta pouco para o que salta 8 vista. Como mostrou Luckmann, nfo é verdade que a privatizacao da religiosidade e da moralidade resultou em rebaixamento da consciéncia critica ou dos padres éticos pessoais ¢ coletivos.* A moralidade tradicional, diz ele, apenas deslocou o seu centro irradiador das instituig6es impes- soais para a comunicagio pessoal multiforme, variada e renova- da, Em tiltima instincia, os preceitos morais dom antes per manecem os mesmos, modelados, é claro, pelo colorido da atu- alidade, ‘Thompson, por sua vez, assinalou que a tradigio foi “des- ritualizada’, “des-localizada” e, por vezes, “des-personalizada’, como na comunicagio un{voca dos porta-vozes da midia com seus 3 Ver Gauche, Marcel La dine Big, Psi Stock, 2003, 4 Ver Luckmann, Thomas. "The Privatization of Religion and Morality a Desraditneton. Elite by Paul elas, Scot Lath & Pal Mors. Cambedge, Mastchusets, Oxford, UK, Blackwell Palle 1996: 72-87 7 15 ouvintes, leitores, espectadores ou telespectadores.* Nada disso, entretanto, redundou em desmoronamento dos valores tradicio- nais, As decis6es morais da maioria das pessoas, no Ocidente rico ¢ na petiferia pobre ocidentalizada, continuam sendo regidas pe- los prineipios reigiosas do cristianismo, pelos ideais de justiga ¢ decéncia do Iluminismo ¢ pelos ideais de auto-realizacéo do Ro- mantismo filos6fico-literdtio. A tradigio nio se perdeu. Nés, con- temporaneos, é que lutamos para retiré-la de seus nichos secula- res, 0 que é completamente diferente. Tendo em mente essas questées, busquei investigar, nos arti- dos 3 gos que se seguem, dois fatos culturais asso destradicionalizagio:o consumismo ¢ 0 culto ao corpo. Os dois se tornaram quase formulas encantat6rias, quando se trata de aludir ao desengajamento pablico ou a0 individualismo 2 ourrance da sociedade atual. Procurei revé-los, tanto quanto possivel, sem frau- de nem favor. Nao pude, contudo, contornar 0 viés do método Todos os trabalhos sio focados na formagio das identidades pes soais, analisada a partir de observagées clinicas ¢ de observagoes sobre comportamentos sociais. do de- ménio sexual”, “Consideragées sobre 0 corpo em psicanilise” € Nos artigos sobre clinica psicanalitica ~ “A com “0 uso do corpo como objeto transicional"-, estudei, sobretudo, a repercussio do culto a0 corpo sobre 0 equilibrio emocional. Sugeri que 2 patoplastia dos transtornos da imagem corporal & tum efeito inesperado da moderna cultura somdtica. Sugeri, além disso, que a dinimica destes distirbios ganha um novo vigor te- érico a0 somarmos as contribuigSes de Winnicott as teses clisi- cas de Freud sobre a corporeidade, Em outros termos, os trans- JT Ver Thompron, Joba B. “Tradition and Self io a Mediated Work, i Damani op. ct. pp 89-109 ornos corporais sio mais bem esclaecidos se articularmos a idéia freudiana do corpo como sede de sensagées libidinais 3 idéia winnicottiana do corpo como centro de ages motoras agressive Partindo dessa premissa, propus duas leituras dos sintomas corporais. Na primeira, enfatizei o conflito entre a imagem corpo- ral ¢ 0 esquema corporal, na segunda, entre a imagem do corpo como sede de centages © a imagem do corpo como centro de agbes motoras. Em ambas, 0 sincoma corporal surge como um compro- isso malogrado entre o impulso do eu para corporificar a ima- gem narcisica desejada pelo Outro € 0 impulso para manter 0 sentimento de continuidade da existéncia por meio de agdes cri- ativas, Descrito de outro modo, a intencionalidade do eu-senciente se choca’ com a do exagente, ¢, no ponto de atrito, emerge 0 transtorno da percepgio do corpo. As leituras nao revogam a pertinéncia das interpretagées freudianas sobre 0 assunto, Apenas revelam facetas do conflico obscurecidas pela presenga ofuscante da “deusa Libido” em nos- sas metapsicologias. Esta parte do livro & dirigida aos especialis- tas, embora tenha me esforgado para torné-la acessivel 20 leitor Ieigo interessado na questio. Nos textos sobre comportamento social ~ “Declinio do com- prador, ascensio do consumidor”, “A personalidade somética do nosso temp “Notas sobre a cultura somatica” -, me detive na anilise do habito do consumo ¢ nas regras ordenadoras do culto 0 corpo. No que concerne a0 consumismo, centrei a andlise em dois tépicos que considero relevantes para a construgio das iden- tidades. O primeiro é a crenga economicista segundo a qual so- mos aquilo que produgio econdmica nos faz. ser. Esta crenga, que esté na base de um amplo arco de ideologias politicas, goza, 7 a meu ver, de uma reputagio tedrica imerecida. A recapitulacéo histérica do tema do consumo permite ver a grande falha no ar- ‘gumento economicista, qual seja, identificar qualquer compra- dor de produtos industriais como “consumidor". A identificago, do ponto de vista psicolégico, ¢ indefensivel. Objetos ou merca~ dorias adquiridos por um “comprador” integram uma rede de sentidos emocionais, sociais ¢ culturais muito diversa da pritica aquisitiva do “consumidor”. O ato de adquirir mercadorias tem uma significagéo diferente para quem simplesmente compra ¢ pata _quem sobretudo consome. O contraste entre 0 comprismo dos sécu- los XVIII ¢ XIX ¢ 0 comprismo consumista atual mostra que a economia nao ¢ o destino, no obstante 0s economicismos de ou- trora e de hoje. © segundo t6pico é a erenga emocionalista segundo a qual sentimentos so entes espirituais que devem ser protegidos do contato espiirio com objetos materiais. Neste raciocinio, buscar satisfagio emocional por meio de aquisigao de objetos, em part cular de mercadorias, seria uma forma abastardada de realizagio afetiva. Contra esta opiniao, sustentei a idéia de que sentimentos sem expresso material € uma fiogéo idealista desprovida de senti- do. Experigncias emocionais ou se exteriorizam em coisas e even- tos extracorporais ou desembocam no beco sem saida da psicopatologia. EmogGes sio feitas de imagens e narrativas de ca- ‘iter mental, mas também das propriedades que lhes so empres- tadas por objetos e situagées materiais: peso, cor, cheito, som, altura, largura e profundidade, Nao conhecemos criaturas huma- nas que no tenham parte de suas emogées extrovertidas nos ob- jetos do ambiente. Imaginar um eu, uma consciéncia ou um in- consciente confinados no “interior da mente” ou “dentro” dos limites do corpo fisico ¢ ir de encontro A mais corriqueira evidén- 18 cia, Todos temos relagies emocionais com objetos, que, intimeras veres, si mediadores necessérios @ aproximagéo com 0 outro. Satisfazer-se emotivamente com a posse de coisas no é apenas moralmente legitimo; é psicologicamente indispensével a0 equi- brio afetivo. Na discussio sobre © culto ao corpo, de modo similar, jul- guci importante separar o joio do trigo. Primeiro, sugeri que 0 interesse pelo corpo néo é gratuito ou despropositado. A enorme expansio dos saberes neste dominio ~ do avango das ciéncias bi- oldgicas ¢ das tecnologias médicas até a difusio cultural das espiritualidades asidticas ~ nos fer perceber a realidade corpérea de maneira nova, atraente, curiosa e surpreendente. Segundo, contestei a idéia de que cuidar de si significa, compulsoriamente, ser egoista, hedonista, narcisista ou qualquer epiteto semelhante. lado nocivo da obsessio pelo corpo ¢ inegivel. Ele aparece na estigmatizasio dos que se desviam da norma somitica ideal, na proliferagio dos transtornos da imagem corporal ¢ na submis- so compulsiva & moda publicitéria. Estes aspectos negativos, entretanto, nao encampam por inteiro o imaginério da cultura somitica. Em paralelo a isto, extraimos numerosas vantagens cognitivas, psicolégicas ¢ morais do aumento de interesse pelo corpo. Renovamos, por exemplo, 0 estoque de imagens sobre a Vida mental, concedendo maior relevo 20 desempenho do corpo fisico, ¢alteramos a percepgio da vida fisca, criando novos ideais de auto-realizasio, Pelo fato de nos tornarmos mais atentos & va- riagio de formas e fungées corpéreas, pudemos nos tornar mais sensiveis & idéia de que “para corpos diferentes, felicidades dife- rentes", O acréscimo de interesse pelo corpo nos levou a viver ais tempo e, por vezes, em condigbes anémalas, se comparadas 4 normalidade anatomofisiolégica canénica. Em vircude disso, 19 envelhecer ou viver sob normas biol6gicas distintas das da média estatistica ndo significa mais “sobreviver”, Significa viver de outra maneira, com pretens6es & felicidade pessoal e a0 convivio social que no encontravam acolhimento na cultura do passado. A medida ética do intetesse pelo corpo, portanto, no esté no montante de cuidados a ele dedicado, mas na significagao que 10s cuidados assumem. Se o interesse pelo corpo comega ¢ termina rele, caimos na corpolatria, forma de ascese humanamente pobre ¢ socialmente fiitil. Se, a0 contrétio, 0 interesse coma a diregio centrifuga, volta-se para a ago pessoal criativa © amplia os hoti- zontes da interagio com os outros, nfo vejo em qué isto contraria ‘os nossos credos morais bisicos. O abuso no desaut Cuidar de si, aliés, pode ser o melhor meio de se colocar dispont- vel para 0 outro, Pois, como mostrou Freud, as melhores inten- s6es se esfarelam diante da mais banal dor de dentes. Enfim, refletir sobre destradicionalizagio nao é dotar 0 pas- sado da aura que © magnifica, nem reduzie o presente as ruinas do que passou. Os valores, tradicionais ou nio, sio deste mundo, Eles nunca sio 0 ouro puro concebido por nosso narcisismo ou 0 chumbo de nossas culpas superegéicas. Oscilamos incessantemen- te entre 0 pior e o melhor. No que somos € queremos ser, hé sempre um resto das “baixas origens”, avistadas por Nietzsche, Freud, Marx e Cioran, ou das “altas origens’, que 0 Buda, Jesus de Nazaté, Francisco de Assis, Ghandi, Winnicott, S mone Weil ‘ou Dictrich Bonhoeffer souberam ver. Na morada dos ideais, se acotovelam, lado a lado, vinganga, rancor, inveja, pusilanimida. de, mesquinhez e compassividade, solidariedade, coragem, des- prendimento, magnanimidade, generosidade (Os mais cinicos, certamente, verio nisso verdades acacianas ‘ou vicios em pele de virtude. Afinal, dirio eles, Raul Pompéia 20 tinha razao: “o meio termo € o status quo da covardia"! As terceiras vias, cedo ou tarde, mostram 0 que verdadeiramente sio: bufves na corte dos poderosos. Nao se trata, porém, de clogiar a docura hipécrita dos que acendem velas para “o diabo eo bom Deus”. Trata-se de sugetir que a arte de viver € a de ctiar o “suficientemente bom”, de fazer 0 possivel para que © melhor se tore uma real possibilidade para todos ou p: a maioria. Fora disso, deixar-se seduzir por éticas de pureza & resvalar, hist6ria oblige, para a servidio consentida, para 0 terror que se reclama da Verdade ou, 0 que ¢ pior, do Amor. Em conelusio, criticar pontos de estrangulamento da cultu- ra atual ndo é pedir que ideais cedigos ressuscitem, nem apontar com o dedo para utopias salvadoras. E dar crédito a0 novo inicio, E tentar mostrar, como disse Foucault, as heterotopias possiveis E seguir a recomendagao pragr ica de Wittgenstein, William James, James Dewey ou Henri Bergson: onde houver uma con- tradigao, faga uma redeseri ! Mude a perspectiva de observa- ‘0, troque as premissas dos raciocinios, explicite os acordos téci- tos que fundam as conclusoes consensuais ¢, por fim, submeta a sua opinio & dos outros. No minimo, o que parece sem sentido ganha um novo sentido; no maximo, uperamos o ténus da vontade de sentir, pensar, julgar e agie em liberdade. 21 A personalidade somdtica de nosso tempo No presente, se tornou um lugar comum afirmar que o indi- viduo vive em uma crise de valores. Os erfticos da modernidade sustentam que © processo de globalizacio econémica enfraqueceu as tradicionais instincias doadoras de identidade, como a famflia, a religito, © trabalho, a idéia de Bem comum etc. O individuo, liberado da pressio normativa destas instituig6es, viu-se levado a basear o sentimento de identidade em dois principais suportes, 0 narcisismo ¢ o hedonism, Basear a identidade no narcisismo significa dizer que o sujei- to € 0 ponto de partida e chegada do cuidado de si.! Ou seja, 0 “que se €" © 0 “que se pretende ser” devem caber no espago da preocupasio consigo, Familia, pitria, Deus, sociedade, futuras geragbes sé intetessam a0 narcisista como instrumentos de auto- realizagio, em geral entendida como sucesso econémico, presti- gio social ou bem-estar fisico © emocional. O hedonismo, por sua vez, & um efeito desta dinamica identitéria. O narcisista cuida apenas de si, porque aprendeu a acreditar que a felicidade ¢ sind- 1A nogio de nacissmo, no conteto da presote dicetio,éentendida como a vertene do indvidulismo contemporineo paricuarmenteimensivel «compres missos com Seat de condutacoltvamente ovens Exe so da paste alo ‘coincide com o que € feito na tertra cies picnllcn. Narciso, em pie Ilse, € a ondicho mental indpensve!& aug do semineno € da cnacenla de “idenidade” subjeniva Neate senior aver com “pot” - ade ‘moral pejorativa, no idctioigualitéio © compassiva ~ nem com dstsbio “pricopligo", em cenas tans poms do deenvohimennn pila Cuando *palveanressmo na acepeo precisa digger lg cla ou Glan de expecialitas de ciécis humanss, porque comidero pe ce deserve safer stent o oer mon ds exmadas wars Urn sococrmomicamente roe, 185 unawonn eRERE.COSTA nima de satisfagio sensorial. Assim, o sujcito da moral hodierna teria se tornado indiferente a compromissos com os outros ~ faceta narcisista — e a projetos pessoais duradouros — faceta hedonista. sentido da vida deixou de ser pensado como um processo com, finalidades em longo prazo ¢ objetivos extrapessoais. Essa leitura € plausivel ¢ corresponde, em certa medida, 20 {que podemos observar. Mas simplifica quest6es tortuosas. Em pri- eiro lugar, podemos perguntar se, de fato, abdicamos a todos of valores tradicionais; em segundo lugar, se no abdicamos a eles, como tais valores foram reconfigurados no estado atual da culeura? Para facilitar a discussio dos dois tépicos, considerarei a opi« nizo de Gilles Lipovetsky (Lipovetsky, 1997), um pensador que se ‘ope & maioria dos criticos da cultura contemporanea. Lipovetsky pensa que a matriz imagindria da cultura de hoje seja 0 fenémeno dda “moda” ou a “forma moda’. A moda ~ que ele chama de “impé= rio do efémera” ~ nio deve ser vista como sinal de decadéncia do cspitito civico-moral. Sua versatilidade ¢ inconstincia mostram, contritio, que “o velho dispositivo religioso da submissio hn ‘em relagio a um prinefpio superior fora de alcance” foi elimi pelo individualismo democritico (1997: 247). No texto abaixo, o cerne do pensamento do autor é sin zado de maneira clara [A desafeigao pela odistias ideologicas e seu correlato, 0 advent sentido “leve", sio menos o produto de uma tomada de consei coletiva do inferno do Gulag edo toalitarism da revolugo com do que das mudanga ocorrdas no proprio interior do mundo centregue a processo da moda consumada. Foi o estilo de vida estético-hedonista-pscologsta-posmididtco que minou a utopia lucionéra, ue desqualificow os dscursoslowando asociedade sem} ses €0 futuro reconciliado, O sistema final da moda estimulao salvagio individual eda vida imediata,saeraliza a felicidad pri pessoas ¢o pragmatismo das aitudes, rompe as solidariedades econsei- ‘nas de classes, em beneficio das reivindicagSes e preocupasbesexplici- ‘tamenteindividualistas.O império da seduso foi 0 coveiro euférico das srandes ideologias que, no levando em conta nem o individu singular, nem a existéncia de vida live hic mune, viram-se no contrrio exato das aspiragées individualistas ontemporineas (1997: 249). A atmosfera moral do narcisismo, continua 0 autor, nfo & incompativel com a tradigio, apenas dispensa aquilo que nela envelheceu: “A moda consumada néo tem sentido sendo na era democritica em que reinam um consenso e um apego forte, ge- ral, durivel, relacionado aos valores fundadores da ideologia mo- derna: a igualdade, a liberdade, os direitos do homem" (1997: 240). Em resumo, a moda, no fundo, preserva 0 que as democra- cias tém de mais importante, “amadurecendo-as, cornando-as mais estiveis e mais impermedveis as guerras santas, menos ameagadas do interios, menos vulnetéveis aos delirios histéricos da mobilizagso total” (1997: 275-77). ‘Além de respeitar os valores mais significativos da res publica, © império da moda respeita igualmente os valores privados da liberdade e da autonomia individuais. Falar de “uniformizagio” das consciéncias pela moda ¢ um engano: Acra da moda consumadasigifca tudo menos uniformizago das con- viegBes e comportamento, Por un lado, ca certamente homogencizou ‘0s gostos e mods de vida pulverizando os ultimosres{duos dos cost- mes locas, diftndiu os padroes universis do bem-estar, do lazer, do sexo, do relacional, mas por um outro ado, desencadeou um processo sem igual de fragmentagio dos etilor de vida. (.) NEo estamos mais ‘numa sociedade da dvisio sangrenta. Também nfo estamos numa soei- ‘clade climatizada chomogencirada,¢o modelo da moda que rege nosso «spago coletivo, os antagonismos prmanecem, massem espirito deen rad, vivemos a era da coabitagso pacifica dos contitios (1997: 263). 187 JURANDIR FREIRE COSTA © pont de vista de Lipovetsky tem a vantagem de deflacionat 0s perigos imagindrios que cercam os novos acontecimentos cults rhis, Ao mostrar que o individuo moderno nio se tornou um mons tro moral, ele relembra que podemos nos tornar vitimas de habitos de interpretagio caducos. Afinal, 0 mundo que antecedeu a nosta cra estava longe de ser 0 melhor dos mundos. j No entanto, mesmo levando em conta que o autor se diige a0 Ieitor do rico Atintico Norte, podemos perguntar se o seu entusi= asmo pela moda se justifica, sobretudo quando se trata de atribuite Ihe a fungio de reformatar os valores tradicionais. O que significa, por exemplo, dizer que os individuos continuam atentos aos gram des principios democriticos da igualdade, liberdade € direitos homem? Em qual pals ou sociedade Lipovetsky conseguiu det indicios de adesio viva aqueles principio’ Do mesmo modo, acredicar que os individuos, pela “extingo dos fanatismos idol cos, pela decomposisio das tradigdes e pela paixio da informaga se mostram “cada ver mais capazes de exercer um livre exame, de tolerar menos os discursos coletivos, de servir-se do préprio entene dimento, de ‘pensar por si mesmos, 0 que nio significa auséncia de ‘qualquer influgncia” (1997: 262). De quais argumentos Lipovet disp6e para nos persuadir de que os individuos, hoje, so mais criticos do que ontem? © autor tem razio 20 dizer que as pessoas io eram mais livres quando estavam submetidas aos dogmas das religides e das “ideologias messianicas” (1997: 262). Mas a certeza de que 0 antes nio era bom nfo é razio para a afirmagio de que @ agora € melhor. Ele proprio admite que a “individualizagio das consciéncias conduz. também a apatia ¢ a0 vazio intelectual, a0 pensamento-spot, & salada mental as adesoes mais desarrazoadas, & novas formas de superstiges, ao ‘qualquer coisa! (1997: 264) Pen 60, entdo, que a tese da reconfiguracdo dos valores tradicionais pelo 188 OvEsTICIO RA AURA império da moda nao € convincente como parece. No presente como no passado, os principios de justiga e decéncia da Reptiblica da Democracia permanecem invengées frigeis, criadas pelos espt- ritos mais livres, E, como ideais que io, continuam longe de espelhar as condutas das massas na era da efemeridade. De acordo com Lipovetsky, néo ereio que os individuos desist ram de agit moralmente para se tomar bolhas narcisicas. Continua- mos, como quaisquer seres humanos, a valorar nossas ag6es, ot seja, « cassficar ¢ a hierarquizar 0 que fazemos em termos de Bem e Mal. ‘A questao, porém, é saber qual valor esté no alto da hicrarquia € a dual parte da tradigio ele se vincula, Enunciada de outra maneira, a pergunta é a seguinte: se ndo delegamas mais & teligiéo, 2 trabalho, a politica ou & familia o papel de dar sentido & vida, o que funciona com valor transcendente aos meros propésitos de auto-realizasio? Minha hipétese & a de que essas instincias ndo perderam toda a forga normativa que tinham. Simplesmente, como mostrou Luckman, foram “privatizadas” (Luckman, 1996: 72-87). Ou seja deixaram de agir “institucionalmente”, por meio de regras impes- soais ¢ universas, para screm ativadas caso a caso, ponto por pon- to Em contrapartda, o lugar do universal, do incontestivel, pas- sou a ser ocupado pelo mito cientifcista. A mitologia cientifica, ¢ ‘Como exemple, tomemos o caso da religto. A religito nto desapareeeu do universo ub secuarizado, © vem se foralecenda ols vison A rligo, de, ma forma de sits roformadan, nas ceormas esxmaseas do entlcnmo 120 modo das espitualidades de orig mitica~ India China, Tbe, Jap et =, soe uma grnde expansio, nor mos vinte ou tnt anos. O sentimento rligiovo continua vivo, io obstane o colorido individualista contemporineo, ‘Sep forte apelo a emogsen dos crentes, mudanga fiegueate de eros a0 Tongo da vida, sobreuo nas espistaidader ais, vilor positive dato 40 corpo como instarento de elevagio expt, Sobre cate tpico, vet Baron, Mata Thecesu da Costa O depo do budone no as XX! ~ nn ten ot shih. Tese de dovtorada Insteato de Medicina Socal de UER). 2002. Somes Gabrica Bass: O ier nocowumpoenae 9 nh doe brats be “ese de doutorade Issues de Mes Socal da UER), 2004, no a moda, vem substituindo as instituigdes tradicionais, na taree fa de propor recomendagées morais de teor universal Ente 0s fabricantes de opinio, em especial a midia, o mito cientifico encampou o dircito intelectual de falar do lugar da Verdade, provocando uma reviravolta no terreno dos valores. AS formas de vida, antes referendadas por valores religiosos, éticos ou politicos, passaram a se legitimar no plano do debate cientific 0, © que era medido por crtérios pertencentes & esfera dos ide= ais morais passou a ser avaliado por métodos de controle ¢ validae sfo experimentais. A virtude moral deixou de ser 0 nico padeio dda vida reta e justa. Agora, © bom ou o Bem também sio definie dos pela distancia ou proximidade da “qualidade de vida", que tem como referentes privilegiados 0 corpo € a espécie. A renaturalizagio das condutas humanas, todavia, néo tenta descartar os antigos valores, ¢ sim retraduzi-los no triunfalismo cientificista. © cuidado de si, antes voltado para o desenvolvic mento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirk ge-se agora para a longevidade, a satide, a beleza e a boa forma, Inventou-se um novo modelo de identidade, a bividentidade, € uuma nova forma de preocupagio consigo, a bioascese, nos quais a ‘fimess & a suprema virtude. Ser jovem, saudavel, longevo e atento, 4 forma fisica tornou-se a regra cientifica que aprova ou condena ‘outras aspiragies & Felicidade. Crengas religiosas, politicas, psicolégicas, sociais ¢ outras si0 admitidas desde que se afinem com os cinones da qualidade de ra mages de biidenidade ebioacese, ver Ortega, Francisco “Da ssc secae ow do corpo subnet 4 sub «Daye reson marina Ong, Rag, Mc Orla, a € Weige Ney Ae Rio, DP&A. 202: 9-20; “Biopolteas da snide ~ reflexes & pa Foucaul, Agnes Hele © Hanna Arent ims Rete nae ~ Com Edie v8.0.1, f/2004 138-473, 190 vida. A boa religiio & aquela conforme o ideal da boa sade; a boa politica é a que respeita 0 cuidado com o ambiente fisico da espé- cie natural. A nogio de mundo politico perdew a sua primazia absoluta ¢ passou a concorter com a de mundo ecoligico. A id da sociedade como teatro da agio humana descomprometida com as nevessidades “animais” foi abalada em seus pilares. O justo € 0 saudavel; o reto € 0 que se adapta a0 programa da vida bem- sucedida, do ponto de vista biolégico. No entanto, a0 contritio do que parece & primeira vista, a construgio das bioidentidades e o cuidado com a espécie nao sio condutas meramente passivas ¢ hedonistas. A bioascese exige uma enorme disciplina dirigida para a reeducagéo de habitos insalu- bres, predatérios ou poluidores, entre os quais estio o legado cultural greco-judaico-cristio. Nesta tradigio, deviamos olhar as coisas ¢ seres do universo como instrumentos a servigo da vontade humana, cujadiltima meta era a salvagio da alma. O homem era 8 finalidade da criagao ¢ tudo mais estava submetido a suas neces- sidades. Hoje, estamos sendo levados a rever tais crengas. Nio nos sentimos mais aurorizados a dizer salve-se 0 homem e perega 0 ‘mundo, pois 0 mundo nem é mais a cidade politica greco-romana nem a cidade terrena criss, € a cidade ambiental. A bivética, © nao a ética politico-religiosa, se tornou 0 cortelato moral do ideal natural da qualidade de vida. O sentido da existéncia, a origem das obrigagées éticas, as escolhas dos esti- los de viver, todos estes itens implicados na busca da felicidade foram agregado ao rol de perguntas que a ciénca, cedo ou tarde, vai responder. Tornamo-nos, dessa forma, politestas tolerantes, sexualmente liberados ¢ complacentes com as pequenas trans- gressdes morais, desde que nada disto desequilibre as taxas de colesterol, A inflexio no cixo valorativo das condutas criow, por conse- guinte, novas concepsées morais de “normalidade” ¢ “desvio", Vejamos quais os elementos da metamorfose. A ideologia cientifcista confere ao corpo € a espécie o valor, anteriormente, concedido 8s virtudes puiblicas ¢ privadas. © corpo deixou de ser ‘um meio de agir sobre 0 mundo ou de enobrecer sentimentos para voltar-se para as finalidades de sua prépria autoconservagio ¢ reprodusio. Na tradigéo poltico-religiosa — chamemos assim 0 pano de fundo moral dos wltimos 18s ou quatro séculos de cultue 1a ocidental ~, controlamos 0 corpo de modo a fazé-lo servit & causa das boas obras ¢ dos bons sentimentos. A realidade corporal jamais foi comada em sua nudex material como algo digno de ser | cultivado com propésitos morais. Querfamos ter sade ou longevidade para cumprir tarefas familiares, sociais, religiosasy sentimentais ou outras. Nunca, entretanto, havlamos imaginado ‘que a forma corporal pudesse ser garantia de admiragio moral, © advento da cultura somética vitou de ponta-cabega imagindrio. © desempenho corporal foi posto no mesmo pa ‘mar do aperfeigoamento sentimental ou das finalidades civicas. alteragio nos costumes, & primeira vista, € minima, Olhada perto, porém, impressiona. O interesse pelo corpo exacerbow atengio dos individuos para com a sensorialidade, € superexploracéo dessa faceta da experiéncia corporal vem 6 acompanhada de efeitos fisicos, mentais ¢ socioculturais imusi dos. Explicitemos 0 que foi dito. Nossa sensibilidade, ou seja abertura sensorial para os estimulos do ambiente, € miltipla maleivel, Podemos desenvolvé-la de virias formas ¢ em varias regbes, segundo os hébitos fisicos ou culturais. Assim, pode nos tornar mais ou menos sensivis a certas experiéncias fi 192 ovisricio eaauna dependendo da mancira como avaliamos a relevancia delas para 0 nosso ideal de desempenho corporal, moral, sentimental ou clvi- 0. A agio piblica, por exemplo, é pouco afetada pelo gozo sen- sorial, pois o seu objetivo é a transformagio da realidade externa ‘com vistas aos interesses do Bem comum. No agit voltado para a esfera publica, a intensidade © a qualidade das sensagdes privadas so remetidas ao segundo plano da atengio consciente. O que conta é, sobretudo, a convergéncia das experiéncias individuais que visam aos aspectos do mundo que concemem a todos. © aultivo dos sentimentos, de forma similar, usa as sensa- ‘s0es privadas como meio de refinar a satisfagio que podemos ter com a meméria das interagdes emocionais vividas com 0 outro préximo, © romantismo amoroso é um exemplar tipico desta ‘ordem de satisfacio. A realizagao romantica tem no gozo das sen- sages um trampolim para 0 reforgo dos sentimentos de apego, ernura, preocupasdo, devogio ou deleite com a posse ou 0 mo- nopélio do desejo erético do parcciro. No amor romintico, a sensasio fisica permanece subordinada a algo que Ihe é exterior. A satisfagio sensual & um instante que abrevia a histéria da relagéo entre sujeitos, cujo maior objetivo é a fiuigéo do sentimento a dois. Saber 0 que significa “estar apaixonado ou enamorado” exige dos sujeitos a competéncia para distinguir entre a “pura satisfa- fo sensual” ¢ a “satisfagio com a rememoragio da satisfagio sen- sual ¢ sentimental que se pode ter com 0 outro’! A educagdo civico-sentimental, portanto, sempre manteve 0 valor moral das sensagSes no banco de reserva. Apenas as consci- éncias mais grosseiras ou egoistas se deixavam escravizar pela se- {A disogo ewe cultura dos senimentos das senses se mis bem explcada finde neve fawr, Rio, Roceo, 1998, 193, 199 wos ‘>foy souneass anb op sodioo soudgsd sor sowie souou no stew urea “218 [TAX 0[no98 op snadosno souressinj so no 3eDUDTY 9p 380 2p sequrmequls se “]AX SIN] ap SoEsD1I09 so 95 eVUNBiod ‘o}dusax> sod ‘Sourassgajosa1 ag “]NUI wares eUIN 9 ,sOUDKH no stew, 7 anb © sages ‘sose sossau ‘onbiod gay “ois oF e>tpap ona{ns 0 anb oduray s0reur 0 9 ofu ‘ormeasod ‘odio> oF anno op rozeU! y e10dio9 apepyeuaew ep onuaw}sayuo> oped svep sempuos sop 2 voynbyed pia vp wrainyeu & reoyjdxo v 9 sapuoiuo e opuenniqey sou sours ‘souniar sonno wig “spmpt soeipdios soquaduarep ojapow owo> 424 tuonap srerous sooSeurdse (q anb 9 r0p9f smr> 2 waStao wos soSpy ond soap (e anb sex1po19e j}ssos0A nowsO) 95 ‘s1uDuIyEMAe ‘els 1nQ “SooIsy soanqune sossou ap anied v ‘as souanap 9 sowos anb 0 atuyop e2yruis odios ov apepnuspt 9p omusunuds © 119}>4y -sod sopepnuspr sep opSnnsuo> © raed opeifayiand ayuaiayes um copeuzos 2s-r01 odi02 0 ap omy o tatd opSuate © eureyp esipasduyy ogSeufisap ¥ “asejug ap osmnoas win 9 ‘orSiuyop um 7 ovu ‘odso9 for 03]7o no ‘odios op eamyng ‘suarede 9 ‘owuesonud ‘eouEP -unpas y “steausus-oo1sy songyy ap orSnposdas 9 orSuoinueur ‘orseisai 9 ramyno sjod ‘,odion op, aiuowrenessooou 9 esmajno ‘por ‘jeuyy ‘auepunpar so20red apod ‘esta esourd ¢ ‘ovssaid -x9 Y ‘2ppes © wlo> 9 woIsy vunZOy & WoD eusDpoU! oxSednooaid 'y opsnpe wo ‘odioa op winyjno, ap s9[ey wMWOD 2s-nowsoy, VILIPULOS VANIINI V 31GOS SPLOT 007 ‘fain *p je>9g upypoyy2p omy ‘opeiomnop 2p as opng naurusony 99 dias op onsdie 0 :aprpraursoduasuas rm sapodony 0 soaeg vpGeS ‘SRAVOS €LI-GET 5007/1951 Ug » oxdompr apmee ‘opboonenuer ~seefiony rinaay 2 spuasy yeuuey 2:0) sau ‘anesnog pypipy ap snzed e soox2yor —apnes ep seanyjodorq., ‘0-6-2007 ‘Vdd “ORLY “OnN-8i34 2-7 “Tp yy ‘08Ey “IC suergosoU Impupuonne srenqocy 2 symone 2p sua3oy :u1 *,ods0> oF oxsstu 4" oprawgns odio> op no sseoseorg x ass FI, “OOS "VEO L661 Ser] mp EN oe xg srapous op Mprver oman mora rpou 9 —sruelopopdttS) $ISLAAOAT ‘9861 smu INR O85 2 OUI —— 6461 104 Buy pO oN Mang 94) Budo HOSVT 661204 on YOAE OW apmey wag ———— ‘won SWebpe e961 ‘eID ‘ony omppureid 2 mea “H214 mpuERN ISOS '8661 TPM PRE VSN spUqUIED 7 19 PERO Wymoyy wxzpouaieg us showy — guouSiuy us ofry saudi, SYNE Zo02 ‘fan &p Hes epmpyy2p omnsuy opesoinop ap 25 x0q7p ov aphmnuruay I Dexcermprou ourpng op musdop @ aso ep 210, EN 'SOMUVE / eyedorgig pergunta de modo satisfaério. Todos poderiam ser vistos como ‘mais ou menos obeecados pelo corpo do que somos, dependendo da perspectiva de andlise. O que diferencia a atual cultura somata dessas outras no é a quantidade de tempo despendido nos euie dados do corpo, mas a particularidade da relagio entre a vida psicol6gico-moral ¢ a vida fisica Entender, no entanto, como ovoreu a moderna vinida corponil cxige parciménia. O tema deve ser abordado passo a passo e sem a ambigio de explicagées exaustivas, Partindo desta premissa, sugito que 0 culto a0 corpo vem sendo condicionado por vérios fatores, centre 05 quas dois sio especialmente importantes: 1) o remapeament cognitivo do corpo fisico' e 2) a invasio da cultura pela moral cexpeticulo. O primeio fendmeno fomece as justifcativas racionas, 4 redexrigho do que somos; 0 segundo, as normas morais do que ser. Em conjunto, os dois vém competindo com outros ideais ‘dentidade pessoal, em particular com o idea! do sujeto sen Explicitando, podemos dizer que 0 Ocidente conheceu grandes modelos de construgto de identidade. No primeira, sujeito era instado a saber “o que era” pela forma como se af sentava em piblico. Adquirir uma identidade significava se portar socialmente segundo os ideais de conduta do grupo qual se pertencia por nascimento. O individuo reconhecido pares era o que se identificava com a posigio simbélica que lhe assinalada na hierarquia das castas. Da Antigtiidade greco- na até a sociedade aristocrética do Antigo Regime, este foi 0 canismo soberano de regulagio das identidades individuais, A expreno “corpo ko” pode parecer redundant, mas & epee de dsiernda Com tao de mowinr em outs tbalhos deste Heo, 0 ‘Bo corporis, embors ko sam «6 corporis, pos podem se dental decfton ¢stuagies do ambiente exten 206 No segundo tipo, a identidade foi concebida, sobretudo, como sinénima da vida intima. Esta forma de subjetivagio, esbogada na tradigio estéico-cristé e plenamente realizada no apogeu da cultura burguesa romantica ¢ sentimental, se assenta- va na idéia de que o “verdadeiro eu” era 0 eu interior, Isto é, 0 auténtico substrato do sujeito residia em seus impulsos, desejos e aspiragbes psicolégico- moras, ‘As duas formas, apesar das diferengas, tinham em comum 0 menosprezo pelo papel das fungées fisicas na composicio dos ideais de eu. Na tradigio politica ou guerreina da Antigitidade Clissica, por exemplo, 0 corpo fisico era percebido como uma espécie de instrumento mecinico a servigo da asda, ¢, na tradigdo floséfica, como um empecilho para que a alma alcangasse a esséncia da unidade ordenadora do mundo. O caréter do sébio, do herdi ou do politico no tinha vinculos com as necessidades animais. O homem supetior ¢ virtuoso agia por meio do corpo ou contemplava 4 realidade com a Razio, mas nada do que fazia ou pensava de mais nobre dependia da “estupider” da vida biolégica Na educagéo burguesa, intimista e sentimental, o desdém pelo fisico ganhow outra coloracio. Nao se tratava mais de pensar ‘no corpo como um obstéculo ao conhecimento racional do mun- do ou como uma rosca ferramenta usada para se atingir a gléria ou a imortalidade politica, A realidade somitica, entéo, era vista como uma ameaga & delicadeza da interioridade psicoldgica. Ela era a “nédoa humana’; 0 reservatério de instintos agressivos e sensuais que precisavam ser domados e postos a servigo da evolu- «0 sentimental, moral e espititual. Essa visio do corpo se manteve hegeménica por muito tem- Po, ¢, ainda hoje, influencia nossos ideais éticas ¢ psicolégicos. Nos tragos gerais, ela constitui o mticleo da moral dor sentimentos, 205 moral esta que vem sendo corroida pela moral do especéculo, Por este motivo, ¢ importante relembrar quais as suas pri racteristcas e acentuar os contrastes que 2 diferenciam da «ltima moralidade. 1. O corpo na educagio sentimental burguesa. A educagio sentimental burguesa baseava-se em duas ‘25 ticitas sobre a relagio do fisico com 0 subjetivo. A pri era a da divisio filosofico-religiosa entre mente ¢ corpo: @ da, a da subordinagio do aprimoramento fisico a0 aprimorat to sentimental Deixo de lado, no momento, a primeira para retomé-la ante, Passo para a segunda, mais préxima de nossa inves ‘Autores como Michel Foucault, Peter Gay ¢ Norbert daram a questio de forma minuciosa. Em outros estudos, cocasiéo de discutir © pensamento de Foucault sobre 0 ass razdo pela qual me limito a considerar apenas os tabalhos de Elias. Gay chamou 0 conjunto de disciplinas que visavam a0) moramento sentimental a parti do fisico de “educagio dos dos” (Gay, 1988, 1990, 1995, 2001). Nas grandes fin educagio equivale a0 que Norbert Elias chamou de pi ‘ivilizatério, nos estudos sobre a vida de corte no Antigo: (Elias, 1987, 1990). Para os dois, a finalidade da edt poral, na fase durea da burguesia europa, era levar 08 i a controlar tensées ¢ impulsos fisicos, em beneficio do af amento dos sentimentos. A burguesia fez do sentiment 2 Vor Cont, Janie Bec, Onkor mids «nr fir Rio. Gena 198 Iroc #9 in Ro, Rene Damask 1992, fur ¢ +r, Eat sk. 1994, Se fede en fr = ead 206 OVESTICIO E AURA lanterna do Coragio como havia feito do utilirarismo a lanterna da Razio. O sujeito sentimental se tornou 0 zer0 e 0 infinito do imagindrio burgués. Amar croticamente, procriar decentemente € criarfilhos senses dia “quem era quem’, em matéria de po- derecondmico, prestigio sociocultural enobreza afetiva, Para tanto, © corpo ¢ seus sentidos foram submetidos a rigorosas disciplinas, entre as quais as mais analisadas foram as sexuais as intelectuais, as higignicas © as de apresentagao social As disciplinas sesuairvisavam a moderar os prazeres sensu, de modo a drenélos pars 0 sentimental amoros, 0 euidade com a familia ou a sublimacio artistico-cientifica. As intelecruais buscavam adequar os sentidos ¢ a motticidade as exigencias da cul- {ura erudica: ler em vor baixa e de forma correta, escrever bem, Porta os livos em posigio corporal conveniente etc. As higibncas tinham por objetivo adestrar a visio, a audigfo, 0 tato, 0 gosto © 0 olfato, de modo a despertar nos individuos desprezo ou repulsa Pela sujeira, fetira © grossetia dos compos mal-educados. Normas de Timpeza; manciras de mesa; ritmos de trabalho, sono e lazer; apreciagio de certos esportes etc, eram itens obrigatérios na educa- So das criangas burguesas nas casas ou nas escolas. Por fim, as dlisciplinas de apresentaro social ou regras de etiqueta ensinavam 20s individuos como se vestt, andar, sortt, sentat,receber convidados, onversar, dangar, cantar, ocar instrumentos musicais ete, a fim de aque 0 “bergo” dos “bem-nascidos” Fosse evidente & primeira vista, Em retrospectiva, vé-se que a espontancidace corporal era ‘onsiderada a sede de paixGes ruces que deviam ser domesticadas para dar lugar 3 sutileza dos sentimentos. L4, onde estava a sensa- $40, 0 sentimento devia advit. O sujito fsico era a pedra bruta da qual a surgit, per via de porre ow per via di levare, 0 sujcito sentimental Na atualidade, a educagio do corpo tomou outro mudangas no valor moral conferido 3 autoridade, nas trabalho, nos padrées de consumo, nas estratégias da publicidade, e, enfim, nos conheci nos ideais de auto-realizagio redirecionaram-na part # somitica. Vejamos, entio, como os dois iltimos fatos ram para a difusio ¢ a solidificagio desta cultura 2. O remapeamento cognitive do corpo fisico. © progresso em alguns dominios do saber foi decis revalorizagio do corpo na formagio das identidades. O deles foi o da ciéncia, Nas duas ou trés dlcimas neurofisiologia, a neurologia e disciplinas afins neurociéncias ¢ a psicofisiologia, desfizeram muitas cestabelecidas sobre 0 papel do fisico na vida mental. As entre 0 fisico € o psiquico se tornaram infinitamente nuangadas desde que os cientistas, dispondo de mai financeiros ¢ com mais empenho intelectual, comegaram a tigar o funcionamento do cérebro. Atividades mentais, até peteebidas como auténomas em relagio as fisicas,tiveram, de seus correlatos neurais desvendados. Grificos e imagens dos por téenicas neuro-radioldgicas e leituras computador revelaram conexSes desconhecidas entre a estrutura do of dererminadas fungées psiquicas. Ties principais grupos de menos vém sendo pesquisados com mais freqliéncia: a) deficitérios produzidos por les6es anatémicas ou disfungbes légicas; b) comportamentos simples induzidos por estim Tim “Deano do comprar, ateenso do cons 208 itera de dreas corticais © c) intervengées farmacolégicas nas tro- fs sindpticas dos neurdnios.‘ Estas pesquisas mostraram corres- Pondéncias entre atividades neuroquimicas ¢ neurofisicas fun- Ses mentais que ampliaram, de modo significative, o conheci- Mento cientifico das interagGes entre 0 fisico € o psicolégico, O segundo dominio do saber esté estreitamente relacionado 80 primeiro, ¢ compreende os avancor das tecnolegias médicas. Por fecnologia, entendo a série de meios ¢ inserumentos que aumen- taram a expectativa de vida dos sujetos, desde as mais simples Fegras higitnicas e preventivas até as sofisticadas proteses orgini- 2s ~ inclusive as genéticas ~ ¢ inorginicas. Ter uma vida mais longa fez com que os individuos percebessem o corpo de outra manera. Viver até os 60 ou 70 anos de idade ¢ diferente de viver até os 80 ou 90. Os requisitos para uma vida produtiva, livre de dores © grandes limitasées, aos 90 anos, sio muito diversos da- queles exigidos quando as expectativas de vida eram menores Além do aumento da expectativa de vida, a sobrevivéncia em condig6es flsicas precétias passou a ser garantida por préteses, Firmacos ¢ outros meios de supléncia anatomofisiolégica antes inexistentes. A adaptagio ao ambiente, em situagdes de privasio fsica grave, revelou potencialidades auro-reguladoras e exptesi- vas do organismo das quais ndo suspeicévamos. O que era inter- retado como mera sobrevida, agora, é percebido como uma outra Jorma da existtncia humana viabilizada pela plasticidade corporal © terecito fator responsével pela alteragio na percepgao cul- tural do corpo é de ordem politica. O desinvestimento nos temas politicos tradicionais ~ conflitos de classe, conflitos entre Estado ¢ Sociedade, conflitos entte blocos ideolégicos, conflitos econd- 4 Sobre 0 stunt, ver Change, JanPie & Rice, Pal eg’ er ‘ena aie Pat Eons Otc co. 1098 ieee micos ete. ~ provocou um deslocamento do interesse dos indivle duos para questoes circunscritas & esfera social, como conflitos raciais, sexuais ou geracionais, Nos debates destes assuntos, a diferengas biolégicas se tomaram componentes fundamentais a construgio de identidades pessoais e sociais. Discussbes a da discriminagio de tendéncias erdticas minoritérias; acerca esteredtipos psicossociais sobre a natureza de homens € mull res; acerca do preconceito “racial”; e, por fim, acerca dos dire cu privilégios sociais a serem concedidos aos “cidadios de tel idade”, fizeram dos predicados corporais um dado crucial pleitos por igualdade moral ow politica © quarto fator & de ordem espiritual. As transformagoes fridas pela religiosidade ocidental permitiram a incluso de mentos das doutrinas espirituais da India, Tibet, China, etc, na formagio dos ideais de eu. A maioria das doutrinas das espiritualidades indianas ou chinesas tradicionais, e algul como o budismo, vém endo uma grande aceitagio entre as ses médias urbanas brasileiras. Uma das caracteristicas fundamentais das espiritualidades) ‘Aticas € 0 tratamento dado ao fisico na condugio moral do su A conporeidade fisica, em oposicio 3 religibes judaico-crist € vista apenas como obstéculo ao aperfeigoamento espititual excessos sensuais, como nas religides curocéntricas, sio desa dos. O corpo fisico, porém, nao é definido como um mero to de instincos moralmente perniciosos. Conhecé-lo & uma da para a vida virtuosa. Aprender a respirar, a se sentar, ase al a dormir ou a acordar corretamente sio etapas que se devem para superar o softimento ¢ chegar & serenidade ¢ & sabedority As espiritualidades asidtieas,além do mais, vém capad os individuos a discriminar sensagGes corpéreas que 210 irrelevantes para a clissica educagio burguesa dos sentidos. Na- quela educago, o conhecimento dos mecanismos de auto- regulasio fisica nunca foi associado & idéia de aperfeigoamento ‘moral ou sentimental. Detalhes anatémicos ¢ fisiolégicos do cor- po eram deixados & competéncia dos especialistas médicos. As douttinas asiétcas, a0 contririo, valorizam a consciéncia de sen- sages proprioceptivas motoras e articulares ou de fungées vitais como a respirasio, e, por esse meio, ajudam a consolidar 0 inte- resse contemporineo pela corporeidade.* Finalmente, 0 quinto fator & de origem intelectual. As teorias filoséficas sobre a natureza do corpo, aliadas ou nao as ciéncias ¢ tcenologias medico-biolégicas, favoreceram a revisio de muitas idéias sobre a natureza dos eventos mentais. Entre estas teorias, destaco a fenomenologia, 0 reducionismo fisicalista, a heterofenomenologia ¢ o pragmatismo lingiistico. Malgrado as peculiaridades técnicas que as distinguem entre si, dois elemen- tos so comuns a todas: a recusa da divisio cartesiana entre mente © corpo © a defesa da concepgio holistica ou ecolégica da vida mental As concepgies holisticas ou ecolégicas sustentam a tese de que a dualidade mente/corpo nasceu da ignorincia sobre a natu- rcza das relagées do organismo humano com 0 ambiente. Na ver dade, dizem os autores, nao existe divisio mente/corpo como nao existe nenhum “lugar neutro” onde corpo ¢ mente venham a se conectar. Tal elo ou espaco ficticio ~ como a glandula pineal imagi- nada por Descartes ~ & uma invengio desencontrada de pensado- om; Maria There de Costa O deprar do baie mo lo XXI — sore Lpufabnie 29 debate Tese de doutorae, nwetsto de Mediins Social da UER), 22; Soar, Gabi Baton. O bar na enepurniede « ie de arta ¢ ‘atnative bd, Tete de doutorado, Insta de Medici Soci da UERJ, 2004 2 res que tentam, a posteriori, religar 0 que suas proprias teorias haviam desligado de forma artificiosa © cartesianismo, em qualquer das variantes, no consegue provar o que postula, ou seja, a existencia de wm corpo que é pura ‘matéria extensa no espaco, divisivel esujcita as les icas da naturena ede uma mente que é substancia pensante, sem extensdo, indivistvel endo sujita as leis de causalidade mecanica ou outra.’ Obviamente, existe diferenca fenoménica entre 0 fico ¢ 0 mental. Todos sabe- ‘mos distinguir coisas fisicas, como andar, deglutir e suar, de eventos ‘mentais, como amar, odiar ¢ ter respeito pelo outro. Mas ambos 0s fendmenos, isto &, 08 dois tipos de manifestasto corporal aos quais damos sentido, n30 sio entidades metafisicas estranhas uma a ou- tra; sio expressbes diversas de wm mesmo corpo em contextos ambientais diferentes Distingao fenoménica ou fenomenoligica, portanto, nfo € distingao ontolégica. Na distingio ontoldgica, a propriedade que caracteriza um dado evento ¢ exclusiva dele € no pode ser partic Ihada pelo outro do qual se diferencia; na fenoménica, nada € jntrinseco a qualquer coisa ou The pertence como “qualidade pri- ‘maria’, pois tudo & questio de perspectiva descritiva. Sua, andar cou deglutir sio atividades com dimensées mentais, assim como amar € odiar expressam propriedades fisicas. Considerar tais fats de uma ou outra mancira significa, simplesmente, relaciond-los a0 ambiente de modo a ressaltar o aspeeto fisico ou mental de cada um. Fisico € mental sio distingSes operacionais que visam a facie litar a execugio de resolugies ¢ tarefas pragméticas. Aprendemos 6 Vee Crone, Nick, The Sail Bah Hal ity ad rn, London 8 Thows Oaks & New Deli, Sage Polcations, 2001 212 2 eoncebé-los como “seres” incompardveis ¢ incomensuréveis, por- que nao estévamos suficientemente atentos a dependéncia que ambos tinham da “relagéo com o ambiente”, Ao nos darmos con- ta de que © corpo visa primordialmente a agit sobre 0 meio, a distingio idealista se esfumaga, Do Angulo da relagio com 0 meio, 4 expressio fisica ¢ 0 modo do corpo agir e reagir ds circunstancias Presentes, enquanto a expresso mental, o modo de rememorar ages ¢ reagées passadas que auxiliam o organismo a obter satisfagso” nas interagSes atuais ou futuras com este meio. Ao agit no agui ¢ ‘agora, © corpo projeta os seus atributos fisicos no ambiente para interpreté-lo € modificé-lo, com vistas a satisfazer necessidades em curto prazo; a0 se retrair do presente imediato, relaxa o ténus da preparagéo para a ago ¢ permite que a meméria de ag6es pre- téritas reforce a eficicia da intengio pretendida Os fenomenologistas, sobretudo, pela descrigio aprofundada de fungées © movimentos fisicos iluminaram aspectos da cosporeidade obscurecidos pelo cartesianismo. As sensagées interoceptivas responsiveis pelo equillbrio gravitacional horizon- tal e vertical; pela oriemtas2o nas coordenadas espaciais de frente! vers0 ¢ cima/baixo; pelo controle do ritmo dos movimentos: pelo estado de prontidio para agir e pelo sentido de localizagio de partes do corpo em relagio a totalidade conporal, foram redefinidas como modalidades nao lingitsticas de conhecimento, em tudo seme- hanes ao conhecimento concetual. Isto &, 0 conjunto das ativida- des adaptativas ~ 0 chamado “arco intencional” ~ é formado pela “intencionalidade mental", mas também pelos reflexos inatos Por “stsagio" emtendo a coincdénca da tengo eom seus peoprios fas, ow Sci, 4 reaiagio plena da intengo, Sasfagi, por comsegints& eae categoria vailorativa que enplobs fates empitios como reaizag de itagber cognitions 213 hbitos fsicos, a “intencionalidade sensbrio-motora”. O fisico € cae paz de desempenhos refinados e criativos que eram subestimados ou desconhecidos.* Apés a renovagio cognitiva, 0 corpo deixou de ser um concei= ¢ inventado para unir teoricamente fendmenos concretos como 0 fisico eo mentale ressurgiu como o verdadeiro locus da concretude, A equacio explicativa se inverteu. No inicio, argumenta-se, esté 0 corpo que, na relagio com 0 meio, busca garantir sua auto- regulagio, auto-reprodugio ¢ autosatisfagio; depois emergem 0 fisico ¢ 0 mental, que nada mais sio que abstragées da inteligén- ia a servigo da eficiéncia © compo fisico, até entéo reduzido ao silencio da saiide ou 20 ruido da doenga, se mostra, agora, loquaz em suas demandas: ele intenciona, age, conhece, sente, jul e, se soubermos excutd-lo, fala” As minticias de seu funcionamento impuseram-se as consciéncias © jf fazem parte das regras de sociabilidade cotidiana. Hoje, em qualquer conversasio urbana trivial, é comum a referencia as taxas de colesterol Eun, € caro, dfcenga ene intenconaldade mental ¢« sensicio-motorn. Os reflec natin © ox hablton fos slo nancial efcaen apenas eat ‘contexts particles c-em tlagio 4 objeton parcalares,enguanto as intense tent, formas pelos ats volves, afetivose coiivos, ko eral pata individuos e citeunstincias divers ao tempo © a0 expago. Pats Hustae & aciomaldade do hibito fisen, pensemos no tguinte exemple, Se Grermog os tent driamente¢ a0 longo de anes em deternada exci, epee: thor o geo de mance exrcmamenteben-sacdid. No precsaremos reap {ular coneitualniente as propoedaes fscas dh cada ou a fades para at ‘yas fo fabrics para os sentarmon como sempre nos tetamose nfo cote thos o aco de ei enor machuear Eaten ne a cadis for retinas do gat o arranjo dos outros movels da sla for modiiado, hestaremos antes de wo fentat featemor atentor 20 que fazemos. Neste cao, 0 hibito fico perde © poder de informar preconcetualmente o que podemot faxee, pols ea pariclar aa qual cle era eficiente mudov, A efickia do habito fsiea & fredutivelmentepestoal « dependente de contextoninfesiveis pars 4 rela de seu desempento exon. Sobre oasuni, ver Tees, Same. Bad end Wer = Tnvsodoctone by Haber t- Dey and Pe Haffman. Cambrsdge, Masachoet tne Landon, England. The MET Pres, 2001 214 ou triglceridios; as novas detas; aos novos exercicios fsicos; 3s novas técnicas de relaxagio ¢ alongamento muscular; aos ganhos ou perdas de “consciéncia corporal”, Mais que isso, além de aprendermos a distinguir diferentes estados posturais, diferentes ritmos respiratéi 0, diferentes estados de tensio ou relaxagio muscular, diferentes cstados de flexibilidade ou rigider articular, diferentes estados de circulagio artério-venosa etc., estamos nos habilitando a relacionar estados emocionais a variagbes em taxas de horménik certo tipo de alimento, a0 excesso de consumo de outros © que estava confinado 20 confuso reino das necessidades animais invadiu a arena piblica, Estar bem com 0 préprio corpo deixou de ser uma precondigio da exceléncia politica, religiosa ou sentimental para se tornar uma finalidade quase independen- te, O encantamento pelo corpo nos leva a desejar uma “boa vida fisica” com a intensidade com que outrora desejvamos a paz es- piritual, a honra civica ou o prazer sentimental 3. Um encanto sob suspeita, © moderno reencantamento pelo corpo, porém, esté longe de ser undnime, Muitos vém na recente corpolatria a marca da subordinagio a ideologias politicas ou a um triunfalismo cientificista sem razio de ser. Os novos saberes, dizem os criticos, por significativos que sejam, nao justficam entusiasmo teérico- moral de leigos e especialistas. Se o corpo vem ofuscando o brilho dda mente é porque vivemos em uma sociedade que perdeu a sua alma, Ninguém duvida de que a matéria corpérea seja a condigao sine qua non da vida biol6gica ¢ sociocultural, Esta condigio ge- nética, no entanto, nlc a promove & funcéo de chave epistémica para a compreensio de nossa humanidade ou de chave ética para 0 sentido da vida sUnANoIR REE COSTA © teor dos contra-argumentos usados pelos adversérios da virada corporal &, grosso modo, dessa ordem. Observemos, nos detalhes, como a controvérsia se desenvolve.’ Comecemos pelo progresso cientifico-tecnolégico sobre a naturcza ¢ 0 funciena- mento cetebrais, © cérebro, afirmam tais autores, nio é a caixa preta da mente humana, Um grande enigma ainda nao foi resol- vido pelas teorias fisicalistas do mental: a natureza da correlagso centre os achados neurais os fitos mentaiz, Como exemplo, tome- mos 0 caso da depressio, que vem sendo bastante pesquisada pe- las ciéneias. Entre os clinicos os pesquisadores, ¢ relativamente consensual a rese da causalidade neural das depress6es. O deste cordo comeca quando se trata de saber © que “causa” significa. Para alguns teéricos, como os partidérios do naturalismo prage miético," causa ¢ simplesmente aquilo que se encontra na génese de certos efeitos. Assim, a mudanga cerebral é causa da depression como muitos outros fatores psicoldgicos ¢ culturais. Qualquet evento fisico ou mental, cujo aparecimento fax surgir a depressd0 ceujo desaparecimento a abole, € legitimamente considerado uma “causa” da depressio. Para outtos te6ricos, como os representantes do fisicalisma ou biologismo reducionista, a explicagio ¢ insuficiente. Na opie nifo deles, as atividades fisico-guémicas tettatadas nas ima newrais no sio apenas uma das causas da depressio; sfo a ve deira causa ¢ 0 verdadeiro sentido do que se conhece como 3 Deno de indo a iscsi floxiia, plo fo de ser mas longa sob 10 Sobre nosio de matte pragmitice, ver Cosa, Juni Free.“ «© procesto picanalitcor Freud, Wigensea, Davidson e Ror i {kp ~ ena gmat, Rio, Rerame/ Dara, 1994, pp 9:6 216 OvEsTIcto Ea AUR ressio". Ou seja, a depressio é tida como “idéntica” & sua trans- ctigo neuroquimica, Esta idéia, todavia, esté sujeita a dois fortes contra-argumentos. © primeiro é de ordem lgica: 0 segundo, de ordem empirica (© contra-argumento légico ¢ 0 seguinte: um fato A no pode, a0 mesmo tempo, ser “causa” de um fato Be “idéntico” ao fato B. Uma causa que possui todas as qualidades de seu efeito nao ¢ causa do feito, & 0 proprio efeito. As atividades neuroquimicas ino podem ser, simultancamente, a “causa’ da depresséo e a pré- pria “depressi (© contra-argumento empirico pée em diivida a pretensa equi- valéncia entre a atividade neuroquimica e a atividade mental dlepressiva. A imagem das atividades neuroquimicas, objeta-se, nem “representa” a totalidade dos estados deprewsivas, nem a dos Processos depresives, No que concerne aos estado, isto é, a configu ragio global dos elementos que formam a depressio, é impossivel dizer se uma imagem neural correlata a um estado depressivo “representa” a totalidade do transtorno ou apenas uma parcela dele, como a lentificagio do pensamentos a tristeza ou dor moral; a baixa da atividade motora; a diminuigio do sentimento de auto- estima; 0 enfraquecimento dos impulsos e desejos; a perda da vontade etc. Os estados depressivos, além desta composigéo plu- ral, sio diversos em intensidade, durasao, ¢ variam em fungio das circunstincias relacionais do sujeito com o ambiente; com seus ideais éticos, intelectuais ou espirituais; com sua biografia senti- 1 Uso 4 pees “eps cn um sentido proposiainent impeecia. Na He ‘ur expeicada brea rele cote o Esko eo men Es mula ergs dimmu qe oetcbro"wepresen” erentos ment evo gue orexadon cena ‘io arabe materi da gual on fon ments le pas “sparenctae” ag aes forma pr vidos de cnc ow rmahar tics, Eras que {ber to pears ao ttn que pretnde dete hen eto 27 mental, profissional ¢ familiar. Nesse enorme universo de do, saber 0 “qué” esti sendo “representado”, “evidenciado”, % ficado”, “memorizado” ou vertido na linguagem dos sinais quimicos ou clétricos requer uma pericia tedrica € récnien estamos longe de possuir. Por exemplo, qual a diferenga entre a “representagio bral” de uma depressio de natureza amorosa e a “represent cerebral” de uma depressio decorrente de doengas fisicas de frustragdes profissionais, econdmicas, politicas, religiosaly assim por diante? A representagio da depressio em todos eventos é a mesma? Se for, como justificar a existéncia de “id dade” entre a uniformidade do fato neural ¢ a diversidade fatos psicoldgicos? Como o homogénco pode ser “idéntica” heterogéneo; como o uno pode ser “idéntico” 20 miilkiplo? Pode-se objetar que, do ponto de vista terapéuticn investigative, nio importa como é “tepresentada” a depressio, fundamental é diagnosticar a modificagio neural que acom 0 estado depressivo, qualquer que seja a sua origem ou forma aparecimento. A objegio é sedutora, mas nio resolve a questi, Pois, neste caso, nao estamos mais falando de “depressio”, por de estados neurofisiolégicos que inibem ou liberam fragment do comportamento humano, como elagio, indiferenga afetiva, hipobulia, hipopragmatismo etc. Tais fragmentos, contudo, nig so patognomdnicos da depressio, ou seja, nfo so exclusivos dos quadros depressivos, e, sobretudo, no dio conta de seu real sige nificado subjetivo Constatar alteragdes neurais concomitantes a alteragbes mentais nao é 0 mesmo que constatar alteragdes fisico-quim cas correspondentes a alteragdes anatomofisiolégicas. O des vio nas taxas de glicose sanguinea, por exemplo, nao é apenas 218 uum fato contemporaneo aos sintomas elinicos do diabetes, é a prépria doenga traduzida na linguagem de seus constituintes quimicos. A descrigao das deficiéncias no metabolismo da slicose esgota a explicasio de sintomas, como a politiria, a polifagia e a polidipsia. © caso dos sintomas mentais € de outra ordem, Na de- pressio, a imagem neural do distarbio é apenas uma pequena parte do que significa “estar ou se sentir deprimido”. Depressio nao é um estado neurofisiolégico estagnado, que ocorre em pa- ralelo a certos sintomas mentais. E um precesso dinimico de atribuigao de sentido as telagées do sujeito consigo, com os ou- tros ¢ com o mundo. As neuroimagens “representam”, se tanto, atividades neuroquimicas concomitantes a hdbitos sensério- motores recorrentes, fixados em condutas psicopatoligicas, mas ‘do 0 processo formador de novas ¢ antigas condutas. Este pro- cesso, que & 0 sentido mesmo do sofrimento depressivo, com- porta atitudes e disposigies que se repetems, mas também habili- dades fisico-mentais criadas ad hoc © em situardes ambientais ‘inicas. Estas habilidades, por serem irrepettveis, no podem ser- vir de “padrio de reconhecimento” para eventos psicoldgicos faturos. Padrio, por definigio, implica regularidade, ¢ 0 que é ‘inico, irrepetivel, singular, néo pode ser “regular” ou “padronizavel", Imaginar que as técnicas de detecséo de ima- gens neurais “representam’ integralmente 0 processo depressivo equivale a afirmar que poderiamos conhecer o padrio neural de lum miisico que, em um dia feliz, comove a platéia com um dlesempenho excepcional ou de um jogador de Futebol que mar- ‘ca um gol ¢ leva o seu time a vitéria em uma partida final de campeonato. Tal possibilidade é inconcebivel por um motivo simples. Comportamentos complexos, como os descritos acima, 219 dependem de numerosos elementos de naturezas neural, psico- légica e culcural, mas, principalmente, do fluxo da vida relaciomah que nfo pira a fim de que a ciéncia possa, a seu bel-prazer, fixar qualquer um deles em imagens ou tragados.”? © que importa ressaltar, no meritério conhecimento ci- entifico da depressio, nao ¢ a falsa identidade semantica dos fatos psfquicos com os fisicos, mas a possibilidade empirica de se intervir nos esquemas sensério-motores bloqueados em e5- tados de equilibrio deficitério. Isto muitissimo, ¢ formidé- vel, mas é tudo. Querer ir além, ¢ inferie dos exames comple- mentares a hipétese do reducionismo fisico-quimico da depressito apenas mostra a tendéncia moderna a se deixar fascinar pelo corpo fisico, assim como, em épocas precedentes, nos deixa- ‘mos fascinar pelo mundo dos sentimentos. No auge da cultue ra sentimental, foi ficil accitar que os acontecimentos mental nada tinham a ver com as fungées fisicas do corpo, porque este ‘vamos convencidos de que 0 nosso verdadeiro ew era um et sete timental, Uma ver accito este pressuposto, 0 corolirio era come puls6rio: sentimentos, conflitos ¢ sintomas mencais «6 poderie am ter uma natureza psicoldgica! Foi assim que muitas teoriag psicolégicas, inclusive a psicandlise, encontraram eco na cule tura contemporinea. Hoje, 0 animo das mentalidades € outro. Na cultui somética, se torna cada vex mais plausfvel aceitar que os fe menos psicoldgicos tenham uma causalidade fisica. O fisico, 12 Node impede, ¢ obvi, que venhamos a se cultunimentetsnados pas fla depressio ow qualquer cut etado mental por men da bnguagem Seu {ive a convengao sep asta por todos. Matt sistema de notasfo ingii fhesmo se viele 1 ee fund, io seria menos arbitra 220 Oo VEstfcio ea aves pecialmente na dimensio cerebral, deixou de ser © coadjuvante para ser 0 grande astro das historias sobre a mente. Os enormes € inegaveis progressos das citncias “des- recalearam” a imagem do corpo fisico recalcada na Era dos sentimentos. O insignificante de outrora é, hoje, extremamente significativo. As restrigées teéricas apontadas neste primeiro tépico po- dem se estender, mutatis mutandir, as politicas de minorias. Al- guns estudiosos insistem em chamar a atengio para 0 que nelas € inconsistente, no obstante os reais avangos éticos obtidos, que poucos pensam em subestimar. Dois grupos de objesio si0 levantados contra a presensa invasiva do corpo na teoria e priti- «as sociais. O primeiro, de filiagio marxista, é bem representa- do por Turner (2001). Turner se insurge contra a prevaléncia da nogio de corpo no pensamento contemporineo, argumentando que este artefato tedrico naturaliza os fatos histéricos, neutrali- 22 08 conflitos de classe ¢ deixa intocado © modo de reproducio econdmico-social do capitalism. Para 0 autor, 0 pensamento corpocénttico, ao invés de res- suscitar o materilismo vulgar dos séculos XVIII e XIX, median- tea ideologia do Aipermaterialismo biolégico, deveria criticar “as relagées de produgio pessoal, que significam, simultaneamente, controle da produgio das identidades pessoais e das condig6es imateriais da existéncia pessoal corpérea” (2001: 45), $6 assim crvitaria a ilusio fetichista do corpo e combateria, de fato, a hie- rarquia socioeconémica opressora de maiotias € minorias. © uso do corpo como referente identitério nessa vertente, ou seja, como lum subcapfeulo na luta contra a alienagio capitalist, pode real- mente contornar as armadilhas ideolégicas que o cercam. Caso contrério, apenas perpetua 0 que as politicas de minoria buscam modifica. [A segunda objecio € de matemnidade arendtiana, e concerne 20 papel do corpo na teoria politica da autora." Para Hannah “Arendt, © corpo, em sua realidade fisica, & um existente politica mente pré-qualificade. Politica & exercicio da liberdade, e liberda- dde nada tem a ver com 0 corpo, que pertence ao reino da necessi dade, Necessidades particulares podem integrar, é claro, a at dade politica, mas a titulo de preliminares ¢ no de finalidades. A ‘ilkima razio da politica continua sendo a defésa do Ber comum ¢ do direito a felicidade prépria a cada um. Estes objetivos no po- dem se subordinar a objetivos privados de qualquer sorte, sob pena de serem traidos em seus fundamentos. Em uma sociedade democrética ¢ republicana, qualidades fle sicas no podem justificar a exclusio de certos individuos do use firuto de seus direitos humanos bisicos, mas também néo podem ser trunfo na reivindicagio do direito de cidadania, O que nos torna excelentes como cidadios ¢ a capacidade de manter 0s idee ais de liberdade ¢ diteto & felicidade vivos ¢ ativos, Isto, todavia nao deve estar compulsoriamente atrelado a posse de atributos fisicos peculiares a determinados grupos ou individuos. Restrime gir o exercicio da politica & defesa de interesses deste tipo ¢ corre (0 isco de justificar a fragmentagio individualista da sociedadey produzida justamente pelo sistema discriminador que s¢ quet | modificar. © papel do corpo na toia poten de Arend, ver Tamborino, Job Carpaeal Tare ~ Pain, Nutty, Plier Lanta /Boalder/New York/ Ox Rowman & Lice Prblihers, In. 2002 Helle, Agnes, eher, ete, Le madiniady bs Boron del cps. Ediciones Penna ‘Omega Francisco "Da sere 1 None os do corpo submeio 4 bmi corpo", in magyar de Fowl ¢ Dele ravines miter. Orgs Rg ‘Odhnd, I. toe Veet A. Rig, DP&A. 202: 9.20; "Biopocas da reflexes pair de Michel Fovcan, Agnes eller © Hannah Arend i Tne ~ Coir, Sate dae 8. a. 14, fe/2008 BOATS. 222 OVESTIGIO EAAURA ‘Além do mais, hiperestimar o valor dos predicados fisicos na formasio dos objetivos politicos pode ser um meio involuntirio € inadvertido de identificar os individuos ’s suas vidas muas. Entre tanto, a vida nua, a vida biol6gica, s6 tem “valor moral” se for vista como um atributo de sujeitos que gozam do dircito de tet a sua integridade fisica e a sua dignidade de pessoa humana preser- vadas. Sem este selo ético, ela esta exposta aos desmandos © & arbitrariedade dos tiranos, como no terror nazista ou nos sérdi- dos episédios de “limpera” étnica, religiosa ou racial. Na histéria ocidental contemporinca, 0 exemplo do nazismo mostrou que a tentativa de justificar a igualdade ou, a0 contririo, a supremacia de uns individuos sobre outros com base em crtérios biolégicos culminou no exterminio. Assim, as politicas de identidade cor- poral, para cumprir os seus objetivos de eqitidade e justiga, de- vem ter a precaugdo de valorizar as bioidentidades sem deixar de fora os propésitos politicos mais vastos. O terceito tépico, © das espiritualidades asidticas, também se mostrou vulnerével a criticas. Como ilustragio, cito a opiniao de Slavoj Zizek sobre duas dessas espirivualidades, 0 budismo taoismo (Zizek, 2001). Zizek, um filésofo de inspirasso lacaniana, opina que qualquer visio de mundo, religiosa, espiritual ou poli- tica, carrega em seu. bojo elementos transgressores, apagados de sua superficie racional" Estes clementos formam 0 miicleo origi- nal da crenga ¢ podem vir & tona por ocasifo de disputas entre figis pelo monopélio da ortodoxia ou de lutas ideolégicas contra doutrinas adversirias. Nestes casos, a crenga ameagada vé-se obri- gada a mascarar, negociar ou simplesmente suprimir alguns de 140 fundamento da tee da “tanegresio incrnte” is crengas detiva da tora de {acan sobre a irupgio do Res! nos furor da eadeiaSimbulca Este aspeeo do raciocinio & dapensivel pars 4 chiidgio do ponto de vata te Zach 223 seus principios para “perseguir” ou “neutralizar” os porta-vozes da contestagio. O modelo da perseguigo marcou a dominasio catdlica da Europa ¢ os regimes politicos autoritérios, ditaroriais ou totalitérios. Neste modelo, os contestadores ~ descritos como bruxas, hereges, infis, dissidentes, subversivos ou radicais ~ sfo climinados ou banidos da vida publica No modelo neutralizados, a demonizagio do transgressor dé lugar & sua cooptagio. A ideologia leiga do capitalismo globalizado funcionaria desta mancira, Apés ter solapado a moral religiosa, que havia se tornado um estorvo 3 sua expansio, a dinimica capix talista volta agora a requisité-la como valvula de escape para alge mas de suas contradig6es. Desta feita, porém, a religiosidade jue daico-crista foi pretetida em sua fungio de “épio do povo” pelas espititualidades asidticas, que se revelaram mais complacentes com 6 estilo de vida competitivo e consumista do que o antigo crise anismo ocidental. Para Zick, no momento mesmo.em que no nivel da ‘infracstrutura econ6 mic tecnologia eo capitalismo ‘curopeus triunfam em todo o mundo, nivel da superestraturaideoldgie’ a eranga judaico-critdéa 1 proprio espaso europeu pelo ataque do pensamento da "New asic’ o qual, em suas diferentes aparéneias, do" Budismo ocide (contrapartda contemporinea do marxismo ocidental, como opost ‘mansisino-leninismo asitico) a0 diferentes" Taos, ests estbel como ideologia hegem6nica do capitalism global (2001: 12) [A participagio budista na reprodugio ideoligica do eaph lismo consistiria no seguinte: (..) 0 "Budismo ocidentl’ se spresenta como remédio conttaa cstressante da dinimica capitalist, pornos permitir dssociar€ inceioreserenidade (Gelasenbei\, mas, de fato, funciona como o tosuplemento ideolégico daquela dinimica. Asim, em vez da critica ao ritmo aceleado do progress tecnolégicae das mudangas soca, taoismo © budismo ensinam a renunciar a0 controle sobre o que acontece, Iejitando ese objetivo como algo que faz parte ‘da légica da dominagio ‘moderna’. Em vez do dominio do Outro, como no judaismo ou crs nismo, aregra € ‘deixar-se ir’ enquanto se ‘guarda disténcia interior € indiferenga em relagio 3 danga louca do acelerado process, distancia baseada na compreensio que essa convulsto socal e tecnolégica em ‘leima instinca, apenas uma proliferasio nio-substancial de aparéncias ‘que, verdadciramente, em nada concerne o mais profundo ceme de nosso ser" (2001: 13). Donde, prossegue ele, 0 meditative ‘Budismo ocidenta’ se imcio mais eficiente que temos de paticipar plenamente da dindmica

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