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Universidade Federal do Rio de Janciro (UFR)) Programa de Pés-Graduapio em Educacio (PPGE) Laboratio de Imaginirio Social e Educacao (LISE) ‘Cinema para Aprender a Desaprender (CINEAD) ‘Projeto de Pesquisa e Extensio (COLEGAO CINEMA EDUCAGAO Imagen do deseprender Adana Feeagu (0) [Nowa imagens do daprender Adana Fesqete Mica Xavier org) A bpstsenema ‘Alsin Bergala| Préieno lo No ini dosage (8 ive de Clara) ‘Ans Locia de Almeida Soutto Mayor Coordenagio Asiana Feesquet Hernani Hefface Comissio Editorial ‘Adana Fresquet (UFR) -LISE) ‘Ana Lucia de Alneida Soutto Mayor (UFR) -LISE) tia Sebasina Lisboa (UFSC) Francimar Duarte Arruda (UFF -LISE) Gustavo Fichinan (Arizona State University - ASU - EUA) Hernan Heffner (Cinemateca do MAN-Rio - PUC-Rio) Joxge Lacrosa Bondi (Universidad de Barcelona - Espanks) ‘José de Sousa Miguel Lopes (UFMG) Luca Morchiode Wilma Figuciedo de Almeids (UFR) -LISE) Pedro Benjamin Carvalho Garcia (UCP - LISE) Simons Marino (Université deg Studi - Federico I i no (Universidad Nacional de Cayo - UNC Argenin) pol - is) 1 | FRU ALAIN BERGALA AHIPOTESE-CINEMA PEQUENO TRATADO DE TRANSMISSAO (DO CINEMA DENTRO E FORA DA ESCOLA Treducao [Monica Costa Netto e Siva Pimenta Tirulo do autor Copyright © 2008 Alin Beggs ‘em nosso catalog: "Nenhuma parte deste lvzo pode A hipaa sr ulizada ou reproduzia, em (gualguer meio on forma, ef Aria, forocdpa, gravario c, ‘nem aproprada ou estocada em bance de dos, sem sutosisagio dor autores Copa Rachel Bags Eaitoe ‘Glauco de Oliveca Euitor Asiente Bruno Torres Parco Diretos exluos dest edigo: Boollnk Publagées Lida. (Caixa Postal 33014 homepage /e-maildoauton | $2440 970 RoR) Fone 212265 0748 ‘worubookink combe/ahin bela | swneboolink com be stun begala@wanadoo fe Dookink@booklink com be Bergala Alin ‘A hipétse-- % ‘jo. Durante meus anos de encontro com o cinema, eram mais ou mesios af meaeas salas que prssrvam os filmes de Cecil B. DeMille, os primeiros filmes da Nouvelle Va- gue € 0s filmes cdmicos feanceses tradicionais. Mesmo se (5 ozcamentos publicitirios sempre foram desiguais, os filmes ricos nio oeupavam, como hoje, a quase totalida- de do conjunto de salas, ¢ todo ou quase todo lugar reser vvado ao cinema na miia. Os filmes sio, hoje, mais desi- goais do que nunca perante © piblice, o que tem por feito desviar insidiosamente os filmes “diferentes” € 0 filmes imprescindiveis da histéria do cinema para um gueto cada vez mais fechado. A escola tem que propor uma outra cultura, que acabaré se tornando ~ mesmo que involuntariamente ~ “alternativa” diante de um ci- ‘nema imposto cada vez mais macigamente como “o todo” do cinema. Talvez seja a cultura como um todo, simplesmente, que esti na iminéncia de se tornar “exce- ‘i0” diante dos grandes canhdes do bombardeio de pro- dutos industriais, De Pokemon a Dreyer, Nunca acredite na teoria “de-Pokemon-a-Dreyer”, se~ _gundo a qual seria preciso partir daquilo de que as cian- 88 gostam espontaneamente para levi-las pouéo a pou- coa filmes mais dficeis. Na literature, lembramo-nos do ‘que aconteceu nos anos setenta quando os professores de letras tomaram o partido de comecar por Botis Vian para chegar progressivamente a Flaubert: Madame Bovary esperou longamente, em vio, esses novos leitores que 6 acabaram atolando nas piginas de A expuma dos dias* (LEaime des jour) ¢ se refugiando com deleite nas de Asters. O argumento “parti-do-que-eles-gostam” é muitas vezes contaminado pela demagogia e por um certo des- prezo pela crianca. Sobretudo numa época em que se sabe ‘muito bem como eles foram levados 2 “gostar do que ‘gostam’”. Estamos o mais longe possivel de um gosto ou de um apetite espontineo, ou individual, que efetvamen- te mereceria consideragio ¢ respeito. Os pattidirios da teoria “de-Pokemon-a-Dreyer” agem como se ignorassem que, hoje, em matéria de cinema, 0 piblico jovem é antes de tudo um alvo para os negociantes de filmes ¢ produtos derivados que nio ttm a menor preocupagio nem respel- to pela formagio do gosto das criancas. ‘A atitude da escole, em matéria de iniciagio a arte, ndo'pode ser “tirar 0 corpo fora” em termos de cultura, partindo dos pseudo-gostos de marketing. Uma verda- deira cultura artistica s6 se consiréi no encontro com alteridade fundamental da obra de arte. Somente 0 cho- que € 0 enigma que 2 obra de arte representa, em relagio as imagens ¢ 20s sons banalizados, pré-igeridos, do con- sumo cotidiano, sio de fato formadores. O resto niio passa de desprezo pela arte e pela crianca. A arte €0 que resiste, 0 que é imprevisivel, o que desorienta aum pri- meiro momento. A arte tem que permanecer, mesmo na pedagogia, um encontro que desestabiliza o conjunto de ‘nossos habitos culturais. Qualquer um que pretenda in- toduzir leatamente produtos de consumo no mbito da arte acusa o seu desconhecimento € a sua traigo. Quan- 7 Ea eet eee eee a4 ou gece € porque se esta profundamente conven- cido de que ela é uma pilula amarga cujo gost a seriiedauhite, © sesedeinssones dane sinpesiomt ee alen tee eee oe alge eae ee eee ae cay Oh See eroues © Bee oae aqueles em que © cineasta tenta protegé-las do mundo, mas freqiientemente aqueles em que uma outra crianga ‘temo papel de mediador ou de intermedifio nessa expo- Sctiic eden sae pales a a es tees ee wap cc are ig a Sou Ree guacsen ta bea Foe Oe pain enter erna eee oat demos melhor do que ele o mal que o circunda (nesse protege das agressdes do mundo tal como elas sio apze- seatadas nos filmes, porém, sem oculté-las A exposicio Slee ro age ue) ad Pee cere ee ee defo co, deslgann forms, weap “onnoso gat Se ae ere eee recuo € de reserva. f melhor identificar-se com um per- ada ee oe se sentir excluido “dizetamente”, pessoalmente, daquilo aque ndo se compreende. Acontece o mesmo com 0 adul- to face a0 filme de suspense (filme ni): quando o deteti- vve particular atavessa virias cenas sem entendé-las de imediato, no nos incomodamos de fazez o mesmo € de assistir aquilo a que ele se expe sem tentat, de salda, es- jgotar seu seftido narrativo. Trata-se, para comecar, de urna pedagogia do olbar:aceitar ver as coists, com 2 sua parte de enigma, antes de sobrepor-Ihes palavras e sentidos. Nio existe caminho, nem reto nem sinuoto, que possa condugzir dos filmes americanos comuns a Onde fica a casa do meu amigo? de Kiarostami, a0 Evangéi seg ‘do So Mateus de Pasolini ou a Un été cbez grand.pire de Hou Hsiao-hsien. Nao hi que se “desculpar” a “lent: dio” do filme de Abbas Kiarostami ou de Hou Hsiao hnsien, é preciso que se exponha serenamente a estas obras as celangas habituadas a outros filmes, a outr>s ritmos, 2 utros roteiros. E preciso que se aceite também sererta- mente suas primeiras reagées, ainda que desagradéveis, provocadas pelo choque de serem confrontados com um cinema que eles nem imaginavam que exist. A Gnice cexperiéncia real do encontro com a obra de axte provocs o sentimento de sex expulso do conforto dos nossos.hi- bitos de consumidor e nossas idéias pré-concebidas. Ela se tradu2 espontaneament2 nas criancas ¢ sobretudo nos adolescentes em grupo, preocupados com sua imagem ce esperto, em reagdes iniiais de rejeigio ou de desafio ‘© que mais interessa, “diz alguma coisa” & erianca como a0 adulto, no & necessariamente aquilo que ele ter: fo habito de ouvir. A questio consiste em saber 0 que s¢ » cntende por “dizer alguma coisa”. Se nos atemos 3 banal comunicagio midiitica, € as criangas, como piiblico de massa, que 0s filmes “sob medida” dizem alguma coisa, ¢ es dizer todos a mesma coisa da mesma maneira. Mas se pensamos que a arte é antes de tudo um abalo pessoal, “dizer alguma coisa” € algo de muito mais intimo, des- confortivel, enigmitico. E este encontro que precisa ser visado, ainda que seus efeitos no sejam imediatamente visiveis nem quantificéveis. O verdadeiro encontro com a arte € aquele que deixa marcas duradouras. (cinema, pouco a pouco Para resistit, nem que seja um pouco, 20 atual consu- mismo amnésico do cinema, é preciso que se leve em conta © fator tempa. A voracidade provocada pelos filmes que socialmente € preciso ter visto tomou o lugar do gosto, que 86 se forma pela acumulacdo de cultura e requer tem po e memétia. O gosta, em todas as esfeias, s6 pode se formar entamente, pouco a pouco, passo apasso. Ele no se ensina como um dogma. No melhor dos casos, ele se transmit, se designa, mas s6 pode se constituir a partir de uma fieqientagio assidua de uma colesio de obras que precisam ser lentamente assimiladas, agindo por impteg. ‘ago muito mais do que por transmissio voluntarista. O papel da escola, hoje, num primeiro tempo, é-orgahizar 0 encontro com as obras, € mais do que nunca 0 rhelhor lugar para isso é a sala de cinema. Mas esse encontro pre- cisa ser prolongado por um acess duradouro 20s mes- mos filmes, em que cada um va aos poucos domando as 10 obras, incorporando-as a seu préprio imagindrio, Trate-se de [re]constinui nada menos do que um imaginirio, i onde subsiste apenas a superposisio de fies autistas. eencontzo com 0 filme no cinema, tal como garanti- do por dispositivos como “Escola ¢ cinema”, “Colégio no cinema” e “Secundaristas no cinema”, é indispensé- vel. Mas, se a Educacao nacional pretende realmente conduzir uma politica do cinema no sistema escolat, nio pode se contentar com isso. Que sentido faria uma edu- cagio musical que consistisse em levar os alunos 20 con- certo tés vezes por ano sem thes dar acesso a0 disco? (Ou uma educagio em attes plisticas que se limitasse as visitas de museu, sem a possibilidade de retrabalhar em aula com reprodugdes de quadros? Neahuma politica séria do cinema na escola teria chance de ser eficaz sem {que os filmes estejam permanentemente presentes na escola, como 0s livros € discos. ‘A outta razio imprescindivel a favor de uno colegio de filmes na escola concerne & progressiva concentragio das salas de cinema no tettit6rio nacional, que cria zones desérticas em que um nimeto crescente de criangas no temacesso a cinema algum na sua proximidade. Além dis- 50, se tais criangas ocasionalmente vio ver um filme com 0 pais no multiplex 20 lado do supermercado das “gran- des compras” dos sébados, existem poucas chances de que clas encontrem Onde fica a casa do men amigo? ou Os incom prendides (Les quatre cents coups, ‘Assegurar a presenga de uma colegio de filmes na sala de aula, ou na escola, para essas criancas, me parece ser quase um dever da Educacio nacional. Somente ela pode oferecer urna oportunidade de um contato que talvez se tome um encontro, mesmo que nfo se tenha garantias quanto a isto. O ideal seria que essa colegio acompa- thasse os alunos 20 longo de toda sua escolaridade, do ‘maternal 20 dltimo ano do ensino médio. A colesio “Eden cinéma” foi pensada com base neste principio, isto é,na recusa de ter por “alvo”, como dizem os publi cititios, uma determinade faixa etéri: cada DVD é 20 mesmo tempo composto e editado para que a mesma ctianga possa descobsir urna seqiéacia no maternal, txés visas na alfabetizagao, o filme inteiro no 4° ano, ¢ algu- mas andlises no ensino médio. Nao sio os filmes que tém que mudar nesse percurso, mas a abordagem que cada um pode fazer segundo seu grau de maturidade, de cultua, de capacidade de anilise ~embora, de fato, exis- tam obras-primas que exigem um espectador adulto ¢ que podetian concernir « uma ctianga do ensino- fundamental. O cinema tsmbém é feito de palavras, de diilogos, da lingua. Diante de um suporte como o DVD, 40 qual se pode facilmente multiplcar as vers6es, nfo ii mais razio pata que se rejite a versio dublada, que permitiré a uma crianga do maternal ou dos primeitos anos ter acesso a uima cena de filme americano ou itals- no, uma vez que ela poderi ver 0 mesmo filme mais ta- deta verso orignal egendada contd no mesmo di c. Blaerd acesso até mesmo i versio inglesa ou italiana edad ma ingun meson done (cada pana peo stunciada no filme aparecendo em inglés ov italiano na Jegenda) para se iniciar em uma lingua estrangeira. E pre- iso continuar lutando contra 0 desaparecimento das vversdes originais das emissoras de televisio francesas, ¢ inclusive daquelas com vocacio cultural, ¢ nas grandes redes de cinema, mas o problesna do acesso as diferen- tes verses tem que ser repensado diferentemente 1: escola, com 0 suporte do DVD, do qual é preciso otims zar o potencial pedagégico. (© DVD, entre a sala de cinema a internet Desde 0 aniincio do Plano de cinco anos, pouco mai: de um ano se passou, no decorrer do qual algo efediva ‘mente acorfteceu ~ no cruzamento da ideologi, da evolx ‘gio tecno:chmercial ¢ dos desafios pedagégicos — n0 qui diz respeito a introdugio de uma colegio de DVDs ni escola visando a abordagem do cinema como arte. Ur ano depois, wa bloqueio simbélico visivelmente havit cedido, ¢ as polémicas sobre 0 DVD se tornaram meno: acaloradas, ainda que isto tenha requetido muita paciénei: explicagdes. ‘O aniincio da produsio de DVDs paraa escola de ime into suscitou uma dupla reagio, que ew poderia resur Por parte das salas de cinema ¢ dos dispositivos fun dados nela, responideram-me que iio havia salvagit fora dos cinemas e que o DVD nas escolas iria acelera © abandono da pritica da sessio de cinema. E cert gue esse anancio ocorreu num contexto dificil para a salas mais independentes, cuja vocagio é difundit © filmes de criagio. De outra parteya da ideologia tecno-futurista, retor- quiram-me que ©’ DVD, enquanto objeto material, jé pertencia 20 passado e que era absurdo escolher alguns poucos tirulos de filmes (seis no primeiro ano) quando ‘em breve qualquer pessoa poderia acessar & vontade mi- hares de filmes na internet, Esta atitude tecno-fururista, ina maioria das vezes, esti ligada na realidade a um imo- bilismo confortivel, mascarado por uma pressa leviana c arfogante de se adiantar ao futuro, que nunca forneceu provas do que ela avanca: “O que vocés estio fizendo jé esti ultrapassado, prefiro esperar que o futuro que cu imagino chegue para comecar a fazer alguma coisa”. Como o horizonte tecnoligico no para de recuar, esta atitude permite manter-se no mesmo lugar proferindo profecias ¢ anétemas que nunca serio verificados por ninguém. As salas de cinema _Aqueles que teagiram com veeméncia ao antincio da pro- ducio de flmes em DVD para a escola, se fxaram num nico aspecto que serviu de bandeira: a possibilidade de ver, ov mesmo de “projetar” filmes em sala de aula,O te- mor era de que 2 sila de-aula-ou-2 escola se tornaste-um ‘espago de projesio que fatia concorréncia ds sas de cine- ‘ma. O argumento usado sempre foi o mesmo: a sala de cinema deveria pecmanecer 0 tnico e insubstituivel espaco ptivilegiado para o encontro coletivo com o filme. Fora do cinema ede seu pablico coletvo, sem a excursio do estabe- lecimento escolar, sem a “magia” da projecio no escuto, 104 no haveria salvagio. Poderios nos contentat em aceitar tudo isto como pura convicgio, uma “renga” indiseutvel Podemos também tentar compreender o que se entende por essa famosa “magia” da ptojecio no cinema, 4 qual, diga-se de passagem, pessoalmente eu sempre aderi ¢ que ‘nunca deixei de defender nessa disputa passageira No fim das contas, 0 argumento da visio coletiva no & de fato um argumento: em que sentido um coledvo que se refine num estabelecimento escolar seria menos coletivo {que 0 que se resine numa sala de cinema? Os cineclubes das escolas, na gloriosa época das projegdes em 16mm, indis- cctivelmente partcipavam dos valores da projesio coletiva ritualizada e de seus efeitos insubstituiveis na receprio do filme pelos espectadores. ‘A excutsio ao cinema é um argumento de dois gumes. iE yerdade que a atitude dos alunos —e talvez a capacidade aque cles tém de acolher uma obra — no é a mesma no ambiente institucional da escola, lugar das obrigagdes dos programas, do que num lugar piestigioso da cidade, cenvolvido por sedugdes comerciais. Mas sabemos tam- bém que a excitagio da saida is vezes provoca efeitos per- ‘versos de dispersio e de extravasamento que nem sempre favorecem a concentragio desejada para o filme. © conforto também é um argamento sujeto & contro- vvéxsia no que diz respeito ao ensaizamento do cinema na formacio intima de cada um. Quantas criangas nto se apai- xonaram pelo cinema assistindo no maior desconforto, se- ‘gurando a respiracio, ais de um sofa que os dissimulava, pedacos de filmes que seus pais, 20 mandi-los para a cama, 05 Jmplictamente haviam proibido ver? Os livros que contam ‘numa vida is vezes slo aqueles que lemos, também, no pior desconforto. Sempre gostei dessas pessoas que cruzamos na rua, 0 natiz colado nas paginas de um livzo,alheias 20 seu entotno, a caminho de nio sei qual ocupasio, rouban- do ao tempo social de um dia de trabalho essa urgéncia fatima de uma letura apaixonada. Teno certeza de que cles no experimentatiam 0 mesmo prazerroubado se est- vessem confortavelmenteinstalados em suas poltronas, 20 invés de se encontrarem em meio a citculagio barulhenta, dispondo de um tempo racionado: Seu nome ainda nio foi mencionado, mas a sombra de Waker Benjamin, a meu ver, para sobre toda essa hist6- tia. Afnal, mesmo que nio tena sido claramente enunci- ado 20 longo do debate, a tnica verdadeira diferenca en- {tea projeglo no cinema ea projego em DVD, em iima instincia no estaialigada 4 nocio benjaminiana de aura? Realmente, no encontro com filme projetado na sala de cinema, hi algo de Gnico e de insubstituivel: a presena (sormalmente ocults aos olhos do espectados) de uma Dobina de pelicula que’se desenrola, uma imagem fisica sucedendo-se 2 outra, numa méquina com mecanismos aparentes, dentes de metal para fazer avancar. Os donos de cinema tém razio de ficarem orgulhosos de sua inter- vengio pedagégica consistindo em deixar os alunos visi- tarem a famosa cabine misteriosa onde eles podem ver ¢ tocar pelicula fetiche, admirar a maquina que projeta suas imagens na tela € conhecer o homem que comanda tudo isso na sombra 106, ‘A inca diferenga radical que realmente faz sentido en- tte uma projegio em DVD na escols, com o aux de wm bom video-projetos, ea projecio numa sala de cinema é a presenga de “verdadeiras” imagens, analgicas,quimicamen- te insctita na pelicula, imagens que podem ser aranbadas, rasgadas, modificando de maneira singular dada versio matetal do filme, Entre uma c6pia fisica de flme (ainda «que srt enn se wate de uma reprodugio e que existam ‘ics outras c6pias)¢ 0 mesmo flme gravado em DVD, hi um salto qualitativo que permanece, mesmo que de modo bastante atenuado, da mesma ordem daquilo que Walter Benjamim teosizou entre a obra nica (ea aura que he cor responde) ¢ sua reprodugio téenica em miltiplos exempla- res tigorosamente idénticos. O digital twouxe o seguinte: todos os DYDs em que 0 mesmo filme esti gravado sio rigorosamerite idénticos, 0 que ainda nio era exatamente 0 ‘caso das eptodugdes em VHS, e nunca foi o caso das cOpi- as de filme, distingviveis em sua primeira passagem pelo projetor, tlvez até mesmo desde a stida dos banhos do laboratério, Segunda diferenca, ontoligia: numa cépia de filme, pode-serecortar um Fotograma,t-lo em mics ¢olhi- Jo diretamente como um slide. Retomando uma idéia de Roland Barthes, nfo hi nenhuma solugio de continuidade enure a imagem material de Charles Chaplin inscrta no fo- tograma e 0 negativo que estava na cimera no dia da lma- gem. O pedago de pelicula cuja imagem é projetada na tela 4 minha frente ssiu dzetamente, por contatos sucesivos, da pelicula que recebeu no dia da filmagem a luz reflesda pelo corpo de Chaplin e que penetou na objetiva para dei- ‘ar sua impressio diretamente no primeizo negativo. A fita de video jf no proporcionava mais visio de imagens que ro possuem a virtude migica do analégico, mas 0 suporte des- sas imagens ainda era uma fia linear desfilando entre o cabo distbuidor ¢ 0 cubo receptor. O DVD rompeu defintiva- mente alineaidade na restituigdo das imagens e, assim, com- preende-se melhor 0 temor que se apossou dos defensores aprojegio em sala de cinema. Nao resta radicalmente mais nada, numa projecio de DVD, das especificidades da pro- jesio de cinema, na qual se baseia ~ ainda que por um tem- po désde ji limitado ~a famosa “magia” que, em definitivo, provém da aura da presenga a0 mesmo tempo préxima e dlstante, na cabine, das longas fitas de celuldide. ‘Mas 0 principal mal entendido, nessa questio, concer- ne a0 fato de que os opositores do DVD na escola fize- ‘emalarde antes mesmo de conhecé-lo,imaginando-o com as caracteristcas que mais temiam: um suporte de difusio de filmes passivel de substituir « projecio na sala de cine- ‘ma, Ora, 2 itima coisa para a qual os DVDs dessg cole- so produaida para a escola foram concebidos e rgaliza- dos € justamente para que se assista um filme inteito na sua continuidade. Se tal houvesse sido nosso objetivo, alii, teriamos escolhido num primeiro momento a boa ¢ velha fita de video, dada a caréncia atual de equipaméntos de DYD no meio escolar. ‘Também nos foi teprovado fazer com os DVDs uma cscolha tecnicista “moderna” e arriscada, sem garantias para o futuro. Ninguém mais pode duvidar, hoje, que a Passagem da fita de video pata o DVD tornou-se irre- versivel e, para evitar um atraso pedagogicamente pre- judicial, a escola precisa levar isso em conta da melhor forma possivel para suas proprias necessidades e miss6es. 08 internet Encontra-se um pouco em toda patte, hoje, a rendé cia a pensar que 2s novas tecnologias, ¢ a internet em par- ticular, vio resolver em breve e definitivamente todos os problemas de acesso aos filmes. Nesse mundo de depois dde amanbé, cada um, onde quer que estcja, em casa, na sala de aula, no escrit6rio, poderia acessar instantinea ¢ precisamente a seqiéncia de Rio Bravo que comega no vi- gésimo sétimo minuto ou a cena final de Au ravers des olivrs. Imaginemos, mesmo se ainda estamos fecn0-co- ‘mercialmente distantes desse dia, como isso vai transfor ‘mar a transmissio do cinema. Os comportamentos, mui- to provavelmente, itio cada vez mais, a0 menos por al ‘gum tempo, no sentido do zapping generalizado. A DV- Deteca de sala de aula tem 0 mérito de fazer uma primeita ttidgem © uma primeira designasio; 0 catilogo completo desencorsja aquele que nio sabe de antemio o que procu- raali, O que sscolher diante de um campo infinito de pos- siveis aberto por um catilogo imenso onde nada (nenhum valor proveniente de um sistema identificado, qualquer que seja) vern distinguir um filme do outro? Tudo leva a emer que a impaciéncia continue a correr solta ¢ que circular livremente numa cinemateca virtual imitada se torne um livre exercicio de desatengio. Basta observar, num lugar ‘em que se encontram varias telas disponiveis, 0 Salo da Educagio, por exemplo, como as criangas se precipitam para esse acesso gratuito 4 internet para buscar o que lhes é designado pela publicidade do momento como sendo desejivel. A curiosidade se encontra ai mais freada do que 10 ‘nunca: ebnecta-se para ir de encontro 4 ao consensual, 20 {que jf foi aprovado pela maioria, agindo de forma um pouco parecida com os espectadores de uma grande rede de distibuicio de filmes que inscreve em alguns cartazes: “eleito pelos espectadores”, Dito de outra forma: nds 0 Tiberamos até mesmo de ter que escolher e desejar, jé que outros, que so como voeé, o fizeram por vocé Simone Weil escreveu que “‘o efsino deveria ter por finalidade ‘inica preparar a possibilidade de certa dedi- cagio ao objeto’ da plenitude da atensio.” A frase, mais, que nunca, é atual: tornou-se vitel colocar as criancas em situacio de dedicar a um filme, uma obra de arte, a plenitede de uma atengio, que, de resto, pouca coisa pa- rece merecer na civilizagio atval. Tal atencio, Simone Weil observa no mesmo capitulo, “estéligada ao desejo. Nao & vontade, mas a0 desejo. Ou mais exatamente 20 consentimento.”* Este desejo, sinico motor possivel da” tengo — como todo professor pode constatar diaria- mente, pot vezes de forma dolorosa — s6 poders se fixar duravelmente num objeto, na espiral sem fim dos poss! veis, a partir de uma designacio forte HE incontestavelmente desejo na circulacio nas telas de computador, telas de jogos ou de internet, mas desejo de movimento, de velocidade, de mudanca perpécua e no desejo de objeto. Nio compete 4 escola amplificar esse movimento jf ireversivel. Nao existe abordagern da atte sem aprendizagem da atencio. Em se tratando realmente de tansmitir a arte, isso deve ser feito na contra-mio des- sa aprendizagem selvagem e generalizada da dispersio, ¢ 10 se aplicar a filmes singulares, designados, fisicamente pre- sentes em sala de aula, que st procuraré em seguida~ mas isso ji € uma outra questio, mais deticada, menos institu- cionalizivel - de tornar “desejiveis”. Nao existe amor da arte sem escolha de objeto. A DVDedeteca de sala de aula, modestamente, pode ajudar nessa escolha Em matétia de transmissio, s6 conta realmente, sim- bolicamente, o que foi designado. E a presenca de objetos que se pode olhar, tocar, manipula, faz parte dessa desig- nnasio. Importa mais do que nunca, em tempos de virtual, que existam objetos materiais na sala de aula. Acessar fl- ‘mes na internet no mudard nada quanto i questdo essen: cial da designagio. Sé desejamos aquilo que nos € desig- nado: isto é para vocé! ‘A iniciaglo artistica pode comecar is vezes simplesmente por: colocar © bom objeto no momento certo ao lado da pessoa cert. Walter Benjamin fla desses colecionadotes que, “recebendo-nos em sua casa, nfo exibem seus tesouros. Di- slamos que os mostram muito discretamente. Apenas dei xxam que sejam vistos.” Notas, "he reco aqui Esk etGindma, Clg ti Lys ame favem bi ans ese tabalho de aculapiocncrntogriea sez PINT] Boris Vian, A apne ah dir, ed. Relopio D'sgua, Lisboa, 2001 » [NT] Toda este paseagem & constraids em torno de ua expressic ddo francés que no encontra um equivlente dzeto em porrogués “padler "Maes" 0 sentido de chamare eter aatengéo, sos “umintererseA tndagio por “dizer alguma cosa” permite manter wm ‘ceitasimetcia com 0 ongial, indicando o conteino digulo que “nis ‘hos diz nada” quando nso nos interessa “Lieut gar 3 Tépoque de sa reproduction mécanisée” in Walter Bena, Etro, NRF, Galan, 997 {Sigene Wel "Latenion tl vlont in La Puonertlr, Pln, ua Vi Para uma pedagogia da articulacao e da combinacao de fragmentos (A. A-escolha do suporte DVD para uma colesio de ci- nema na escola fo! inicialmente uma escolha de pensa- mento pedagégico, « nio uma opsio modernista ou tec- nicista. O progresso tecnclégico decisivo representado pela passagem da fita de video para o DVD € evidente- mente um beneficio significativo, mas eu dira que é quase uum beneficio secundatio. Mesmo se até hoje nao dispi- hamos de uma aparelhagem de leitura/difusio dessa qualidade (tanto para a imagem quanto para o som), s0- bretudo numa sala com as janelas mal vedadas, como -ocorre freqiientemente-na escola, em que é quase sem- pre impossivel obter uma obscuridade perfeita. Mas esse progresso louvavel é apenas o termo provisério de uma ‘evolugio tecno-comercial, que tornow a projesio coletiva de alta qualidade ~ em situagio escolar ~ dez ou vinte vvezes mais barata que hi dez anos, mesmo se 0 custo per- ‘manece alto para o orgamento de uma escola, que neces- sita ainda de financiamento excepcional us. Nig duvido que um “segundo quaéro” ée projesio digital se torne rapidamente indispensavel, independente- mente do ensino especifico do cinema, para tudo que de- riva das pesquisas de documentos ¢ de informacées, as- sim como para os intercimbios em rede entre as turmas. Ele apresenta uma vantagem pedagégica decisiva com re- lacio is teas individuais: todos podem seguir 20 mesmo tempo uma busca pela internet, xelizada pelo professor (0 por um aluno, e aprender coletivamente a superar a diffculdade de nao se perder pelo caminho ¢ atingir 0 ob- jetivo pretendido. Noentanto, é num outro nivel que se situa a verdadeira inovario do DVD para o ensino de cinema: esse novo supocte permite pensar e realizar novas formas de peda- gogia que eram até entio impraticiveis, devido & lineati- ade constitutiva da fita de video. Uma inovacio tecnolé .gica no abre necessariamente novos horizontes pedags= C05. Algumas participam simplesmente de uma melho- rageral das condigdes de exercicio da pedagogia, sem com isso transformé-. No que diz respeito & iniiasio ao cine- ‘ma, podemnos aproveitar as possibilidades oferecidas pelo DVD para repensar novas formas pedagégicas que esca- pam aos limites da fita de video. Durante muito tempo, a8 ferramentas pedagégicas para o dinate funds mun modo disco dor rante © muito antigo, o da voz que sabe, que decodifica, que aralise ecomenta planos ou seqbncas de filmes. Quan- do um professor de cinema veiculana sala de aula urna fita esse tipo, de anslise de filme, dé a palavra a um especialista ua consagrado que domina 0 contesdo especifico (al ou qual filme, tal ou qual autor) e conhece bem todos os procedl- ‘mentos de anilise flmica. Esse vor do “suposto saber” co- unica 0 resoltado de um pensamento ¢ de uma anilise ceajos pressupostos, cuja génese ¢ cajos mecanismos nos cescapam. Na maioria dos casos, esse discurso se apéia na convocagio de “provas” visuais ¢ sonoras sob a forma de planos, de imagens em pausa, de trechos de filmes cuida- dosamente montados. Sempre pensei que devernos des- confiar dessas provas na medida em que elas sio convocs- das por uma pessoa hibil que podeti igualmente persuadix os auditores com um discurso falacioso. Nao seria muito Gif, escolhendo astuciosamente certos planos € certos ‘racords de Aavsado, por exemplo, demonstrat uma absolura inverdade, como a de que se trata de um filme que respeita cescrupulosamente as regras da montagem clissica forne- cer provas visiveis disso. Esta forma de didatismo (6 discurso analitico ov de- monstrativo sobrepondo-se as imagens) procede de um modo de transmissio do saber cujos métitos e cua efici- cia petmanecem indiscutiveis, e do qual seria vio e absur- do nos privarmos. Ha ainda belos filmes de andlise a se- rem realizados para atender a certas necessidades na area de transmissio do cinema. Ninguém duvida que ainda re- correremos por muito tempo a essa diditica vertical (da- quele que sabe aqueles que aprendem) ¢ linear (0 discurso que se desdobra como num curso ou numa aula) que tem sido a da fita de video. Mas podemos agora inventar n0- vas didaticas. (© que 0 DVD, esti trazendo para a abordagem do cinema é a possibilidade inédita de uma pedagogia da articulagio de filmes ou fragmentos, que se caracteriza pot um didatismo leve, em que ji nfo € o discurso que ddetém o saber, mas em que’o pensamento surge da sim- ples observacio dessas relagdes, miltiplas, e da prOpria cieculagio, A novidade do DVD — com relagio aos suportes an- teriores de difusio de files- reside exclusivamente nis- ‘0: poder acessarimediatamente (sem a necessidade can- sativa e aleatéria de rebobinat) tal fragmento preciso do filme, colocando-o em telagio, de modo igualmente ime- lato, com outrasimagens e outros sons: outro fragmento do mesmo filme, um trecho de outro filme, a reprodu- io de uma pintats, o comentirio em audio do dizetor, um documento de arquivo, ctc. E, verdade que os CD- Rom permitiam, ja ha bastante tempo, esse tipo de cir- culagio e de articulagio ultra velozes mas, no que diz espeito especificamente a0 cinema, com uma capacida- de de armazenamento, um formato € uma qualidade de reprodugio claramente insuficientes para um uso peda- osico coietivo, Evesta capacidade —a facilidade de reunir e de relack- conar fragmentos ~que faz do DVD uma ferramenta pre- ciosa em possbilidades de inovagdes pedagdgicas. Ele ‘nos permite de fat, como Nabokov desejava para oletor de romance, atingi instantaneamente © conjunto € v d- talhe, comparar dois deralhes distantes, passear livremente pelo filme "como em um quadeo” ~ enim, ter um acesso “abular”¢ no mais exclusivamente linear 20 filme 16 Ele nos permite armazenar um grande miimero de ima- gens ¢ sons e programar séries miltiplas que sio algumas formas de associar esses fragmentos de cinema em rela~ es “que pensam” e que nos permitem pensar o cinema. {A Gita de video jé permitia gravar numerosas seqiién- cias, mat auma ordem bloqueada e com relagées de pro- ximidade obrigatérias. Em um DVD convencional, pode-se por em relagio trinta trechos segundo séries pté-programadas em que cada um remete a miltiplas relagdes € encadeamentos. E preciso hoje, com essa nova ferramenta, ter um pensamento preciso, rigoro- so, dessa articulagio de fragmentos de filmes. Essa po- deria ser uma das pecas-chave (é preciso outras, evi- dentemente) de uma pedagogia que faca apelo ao ima- gindsio e a inteligéncia do utilizador, seja aluno ou pro- fessor. A forma curta, que é a do trecho ou da seqién- cia, combina os méritos da velocidade do pensamento (algumas vezes, 0 ato de por em relacio trés trechos nos permite compreender mais coisas do que um lon- go discurso) e da transversalidade (pode-se estabelecet relagées imprevistas, esclarecedoras ¢ excitantes entre cinemas, filmes ¢ autores que uma abordagem mais li- near separaria em categorias estanques).—_ [Neste ponto, insisto que na articulacio instantinea de trechos de filmes, a velocidade de acesso ¢ de circulagio ‘do remetc timpacifucia generalized, que # Soqfertemente do xeppinge a do suing. Nao hi nenhum motivo para que a velocidade do digital nfo seja utilizada, mas para ‘por em telagio”, ctiar pensamento. Sobretudo porque o DVD per- uw mite fazer também, com alta qualidade visual, o movimen- to inverso,indispensivel na pedagogia, de desacelerar € pa- ralsaras imagens. Nessas condigdes, 0 professor ¢ os alunos podem ob- servar, refletir € destacar juntos a idéia, 0 conceito que cada encadeamento implicitamente engendra. A inteligén- cia jf mio compete necessariamente a uma voz ou a um {esto suposto saber, nem constitu a exclusividade de um ‘mesure, mas se dé na prépria circulagio entre os trechos, que em algumas condigdes de observacio € de atencio basta para fazer pensar. E sem divida uma abertura pos- sivel para escapar 20 pedagogismo. Podemos imaginar di- ferentes esteatégias de utilizacio dessa A.C - “articula- io ¢ combinagio de fragmentos” ~ de acordo com 0 pablico em questo, das mais Kidicas is mais conceituais, das mais poéticas 4s mais linguageiras. Esse persamento inscrito nos encadeamentos milti- plos de trechos nao obedece necessariamente & légica ar- borescente que predomina no pensamento informatico. Eh pode preferis vias mais rizomaticas,em que as seqiién- cias propostas nio se enquadram necessariamente em es- colhas bindnas ou verticalmente hierarquizadas. Em uma colegio de techos, podemos imaginar miltiplas cizcula- ‘goes que convoquem diferentes formas de inteligéncia, Abrem-se entio numerosos caminhos livres, no hierar quizados, que produzem entre os techos relagGes de todo tipo (analitcas, poéticas, de contesdo, formais). A ferramenta pedagégica DVD permanece um artefa- to, concebido por alguém que sabe e que designou esses caminhos. No entanto, ele ests bem mais préximo da nara- 8 reza de seu objeto (o cinema como arte) ¢ de seu funciona mento (aquilo que traca miltiplos caminhos na mente do cespectador durante a travessia de um filme) que a maior parte das ferramentas que o precederam. Hlogio do trecho Deparei-me com uma menininha que aos cinco anos conhecia de cor O deminio das ong horas (Pirro ke fou), ni0 pelo fato de seus pais a terem feito assistir, num tipo de proselitismo absurdo, mas por té-lo visto aos pedacos, diversas vezes, de viés, quando seu pai o assistia por sua peépria conta; ela voltara 20 filme dezenas de vezes, por partes, como uma crianga retorna a um livro “de cabecei- 1” até conhecé-lo de cor. Nao foi absolutamente por aca- so que esse filme, que ninguém pensaria em mostrar a uma crianca, acapturou, Ble se presta perfetamentea uma abordagem “aos pedacos”, pedacos que se inscrevem fa- cilmente na meméria, Pedacos de didlogos: “minha linha da sorte; sitae insélita; o que posso fazer nio sei o que fazer, voc® me ama?” e pedagos de cinema: 0 carto que se precipita para 0 mar com seus dois passageiros; 0 casal que sai da ardia; Belmondo que espera o iltimo momento pata sair do ttlho em que esté sentado, logo antes da pas- sagem do trem no plano; @ piada no posto de gasolina, copiada de Laurel ¢ Hardy; as ctages dos Pieds Nickels, 0 incéndio do automével; etc. Todas as criancas tém a capa- cidade ea vontade de s¢ ligar a“pedacos” e de memorizé- los, € no vejo por que privi-ls disso em nome da inte- _grilidade do filme. O tempo da integralidade chegard mais 9 tarde, bem mais tee no caso de alguns filmes. Foi por esse motivo que decidimos apresentar por exemplo, des- de 0 maternal, uma cena’ de simplicidade sublime de A grande tesemunba (Aut basard Balthasar) ern que 0 a8n0, te- ‘cém-capturado por um citco, é exposto a0 olhar de ou- twos animais que jamais encontrou em sua vida de asno: um urso, um macaco, um elefante, um tigte. Uma crianca dde quatro anos pode ser tocada por esta cena ~€ poderia ter muito a dizer sobre ela—em que 0 cinema nos dé uma idéia poramente sensivel do que poderia ser um olhar de animal exonerado de toda presensa humana. Por que pri- vila disso a pretexto de que o filme, em sua integra exige um espectador adulto? Se ela pode desfrutar desde ja, ple- rnamente, de tés minutos, nio & preciso esperar que ela tenha dezoito anos para ver e compreender o filme todo. Principalmente se esta cena nio the foi oferecida isolada- ments, mas posta numa zelagio esclarecedora com outras cenas de outros filmes. No caso de uma ctianga que tenka prazere interesse na dria de Papageno na Flawta Magia de Mozart, por que the propor em ver. disso, uma musiqui- ha “infantil”, apretexto que ela deve esperar quinze anos ainda para aceder& integra da Opera? Hii dois modos de escolher e de pensar um trecho de filme. Como um extrato autSnomo, que pode ser apreen- dlido “em si” como uma pequena totalidade, sem experi- ‘mentat falta daquilo que o rodeia; ou, a0 contritio, como uum pedaco arbitraiamente destacado de um filme, em que se sente o gesto de extragio como um corte, inter- upto, igeitafrustragio. Ambos tém uma vistude peda- 20 ‘g6gica. Os primeizos como “modelos reduzidos”, mais faccis de visuaizar integralmente que um filme inteiro. Os seguados, como provocagio (teasing) do desejo de ver 6 filme inteiro. Quem se lembra de um velho programa de televisio, “A seqiéncia do espectador’, entende do que «estou falando. Esse programa apresentava, se bem me lem- bro, a0 meio-dia de domingo, uma simples juxtaposicio, sem comentirios, de quatro ou cinco trechos de filmes, sem qualquer ligagio, no necessariamente atuais ¢ nem ‘mesmo recentes. Era como uma sondagem da meméria andnima do cinema. Esse programa, extremamente sim- piles, fez mais pelo desejo de filmes de varias geragdes do {que os demais aperitivos padrio: fails, cartaz, imptensa Os filmes apresentados, na maior parte das vezes, tinham obtido sucesso de piblico, mas numa época em que os diretores de pequenos filmes franceses ainda nio se con- sideravam como autores nem como homens de negécio. © programa suscitava uma deliciosa decepgao a cada vez ‘que caia a guilhotina para cortar o treche, ¢ uma vontade furiosa de assistiro filme inteixo. Ele produzia um efeito de montagem absolutamente aleatério, ¢ sem divida nao s0u 0 tinico 2 lembrar da emogio muito particular que seatia, no momento do corte, por ser retirado do univer- sodo filme que terminava ¢ entrar imediatamente em ou- tuo clima, em outra atmosfera, os do filme seguinte. (© impacto do trecho (endlise de uma cena ou plano) na abordagem de filmes no contesto escolar sempre me Sur pteendeu. A pedagogia do fragmento combina frequente- ‘mente 08 métitos da condensagio, da renovagio e de via inseigfo mais duradoura das imagens na meméria. Entrar no meio de um filme que jé vimos, ou mesmo que conhe- ccemos de cor, sempre provoca surpresas € ¢spanto: como ‘munca tinha reparado nesse plano, na estranheza desse ges- todoator ou nessa luz sem equivalente no restante da obra? Quando o file esté preso no fluxo de imagens j& acu- rmuladas em minha meméria do seu petcurso, suas aspe- rezas, sua singularidade ficam de certa forma apagadas, neutralizadas pela visio de conjunto. Ver um fragmento de filme, destacado do flux narrativo ¢ do hibito visual que provoca, 0 torna novamente visivel. Podemos ima- ginar, contratiamente aos habitos da pedagogia clissica, comecar pelo estudo de fragmentos antes de ver os fil- ‘mes inteitos. Podemos nos apaixonar por um filme a partic de um fragmento vislumbrado, ¢ 0 desejo pode sermais forte se 0 objeto-filme nfo éimediatamente dado como totalidade a ser percorrida. A visi enviesada, em anamorfose, freqiientemente é a mais capaz de suscitar © desejo. Abordar um filme por um fragmento € uma das formas possiveis dessa anamortfose. Pasolini se recorda do encontro fulgurante com um Mestre, ninguém menos que Roberto Longhi. Foi por volta de 1939 na Universidade de Bolonha, “uma pe- dquena sala afastada e quase escondida” que o jovem Pa- solini,recém-chegado de sua regio natal, o Frioul, entra fem seu curso de Historia da Arte que the parece, “na infinita timidez dos [seus] dezessete anos” como “uma itha deserta, em meio a uma noite escura”. Longhi pro- jetava slides com detalhes de obras para confrontar suas i formas: “(..) um ‘plano’ representando uma amostra do mundo de Masolini (..) se ‘opunha’ dramaticamente a outro que representava uma amostra do mundo de Ma- saccio. O manto de uma virgem se contrapunha a0 man~ to de outra Virgem... O close de um santo ou de um personage contemplativo 20 close de um outro santo ‘ou personagem contemplativo... Uma parte de um mun- do formal opunha-se assim, fisicamente, materialmente, uma parte de outro mundo formal: uma ‘forma’ a ou- tsa “forma”? Em outro texto magnifico, certamente um dos mais belos jé escritos sobre a fungio de revelacio ‘que um professor geniel pode ter sobre 0 destino de um jovem, Pasolini escreve: “Para um jovem oprimido, hu- milhado pela cultura académica ¢ pelo conformismo da sociedade fascista, era a revolucio. Ele comecava a ba buciar seguindo os passos do mestre. A cultura que o mestre revelava e simbolizava propunha uma nove via diante da realidade até entio conhecida”.® Ainda com relacio & visio caviesada ¢ parcial, Pasolini entende que a poténcia evocative dos cuadtos, nos textos de Roberto’ Longhi, vem precisamente do fato dele con- templar as obras que descreve “por um atalho”, anamor- foseadas pelo ponto de vista invsitado que as torna vist veis como se.nunca as tivéssemos visto. "Todas as descri- des de Longhi sobre 0s quadros examinados (que naturalmente os momentos mais importantes de sua‘pro- sa) slo feitas por atalho. Até mesmo o quadro mais sim- ples, mais direto e frontal, uma ver. ‘traduzido’ na prosa de Longhi,é visto de modo obliquo, a partir de pontos de 1% vista inusitados edificeis” Gosto desta tiltima palavra: ver “de fato” & freqientemente ver de viés, mas esta visio deve inicialmente ser “dificil”, ou seja: deslocit © ponto de vista habitual, resistir, para ser realmente proveitosa, Um dos modos de “deslocar o ponto de vista” pode ser, com um DVD (cuja técnica permitiu enfim realizar ins- tantaneamente essa operario!), por lado a lado uma se- aiéncia de filme e uma seqiéncia de outro filme, sobreru- do'se ambos slo distantes do ponto de vista estético ¢ hist6rico. A gindstica perceptiva e mental produzida pela ‘mudanga de perspectivas, de um plano de Chaplin a um de Pelechian, por exemplo, faz com que cada plano tena um efeito de anamorfose sobre o outto, tornando-o mais “visive” do que ele seria na continuidade e na légica do ponto de vista dominante de seu prdprio filme. Ha muito rempo defendo uma abordagem do cinema a partir do plano, considerado como a menor célula viva, animada, dotada de temporalidade, de devir, de ritmo, gozando de uma sutonomia relativa, constitutiva do gran- de corpo-cinema. No que diz respeito 20 ato cinematogrifico, 0 plano envolve, de modo magnifico ¢ inextringivel, a maior parte das escolhas que intervém realmente ¢ simultaneamente 1a criagdo: onde comecar ¢ onde terminar um plano, onde colocar a cimera, como organizar e enquadrar os fluxos que vio atravessé-lo? Que limites impor a seu poder de manipular as coisas e o mundo? O que temos o direito de capturar ou encenar através dele? Como incluir 0 ator? Como the dar um ritmo proprio? nae No que diz respeito ao espectador, a observagio minu- ciosa¢ especulativa de um plano permite colocar algurnas ‘questées bisicas do cinema: 0 que € um plano? De que modo este ou aquele grande cineasta faz dele um uso pes- soal? De que modo a concepcio do plano evoluiu ao lon- go do tempo e das grandes cotrentes que renovam perio- dicamente o cineria? O que esses planos nos dizem hoje? ‘Como sio habitados pelos atores? O que eles nos dizem sobre 0 mundo ¢ o cinema de tal pais, em tal: momento? ‘Um plano bem escolhido pode ser suficiente para tes- temunhar simultaneamente a arte de um cineaste ¢ um ‘momento da histésia do cinema, na medida em que impli- caao mesmo tempo um estado da linguagem, uma estét- a (necessariamenteinscrita numa época) mas também um estilo, a marca singular de seu autor. O plano, por fir, como a unidade mais concreta do filme, é a interface ideal centre uma abordagem analitica (podemos observar, numa superficie minima, muitos parimetros ¢ elementos lingua _geiros do cinema) e uma iniciaglo @ criagdo (a partir da conscientizacio de todas as escolhas implicadas em um “fazer um plano”). Notas “Basu pont no DVD Pi ti nn em compu de uechos to datantes daqulo que se acredia serum cera para ‘anya quanto News o dana de Jonas Meas ov Ar Esti (at Sion de Arava Peecian 2 ee BeoloPacling Ent tur prin, col Arts et sthétique ed. Cat e197 Sem Vil. Para uma “andlise de criacao” A pedagogia do cinema freqientemente esbatra no modo como se apropria de seu objeto. Ora, importa mui- to mais, diante desse objeto complexo, vivo ¢ indécil, ter tema atinade justa do que se agarrar a um saber trangiili- zadoz. Sempre valeré mais um professor que sabe pouco, ‘mas aborda o cinema de modo aberto, sem trair sua naru- zeza, que um professor que se agarra a uns figpos de saber sigidos e comeca dendo definicoes de movimentos de ci- mera e de escala dos planos, como se o cineasta, num pri- meio momento, pensasse com palavras as escolhas que faz. Estas escolhas, na realidade, as palavras «6 serve para traduzir, nfo tendo estritamente nenhura serventia no ato da criaglo. "Vos Janel tegar aga sige plas quesnoslleven a0 essencial, isto é, a realidade do ato de criacio no cine: ‘ma, extzsindo dele alguns pontos decisivos, alguns dos wr quais sio raramente ou mal interrogados e, muitas ve- es, esifo na onigem das dificuldades encontradas na pedagogia: os componentes fundamentais do gesto de ctingio cinematogrifico (a eleicao, a disposicio, 0 ata- que), as condigdes reais da tomada de decisio pelo cine- asta, a questio nodal da totalidade e do fragmento, a Pasolini, igualmente convencido de que os primeiros dias de flmagem langam 1s bases do estilo do filme ¢ estringem o campo dos possi- vei, conta como percebeu, numa noite de angistia depois de unna semana de tomadas, que tinha se enganado de esti- lo desde 0 inicio [do filme] ¢ que estaria se precipitando ‘numa catistrofe estética caso teimasse em filmar O Enange ‘ho segundo Sao Matus como havia comegado a fazer, isto é, resacralzando com sua cimera o jé-sagrado. 12 Fragmentoe totaidade No ato de criagio no cinema, uma das maiores dificul- dades, ea causa de muitos fracassos, reside no fato de que, apesar das aparéncias de trabalho coletivo, uma s¢ pessoa rem em mente, mesmo que de forma imprecisa ¢ ‘com zonas mal definidas, o filme como totalidade furura Niio importa que a filmagem seja 0 resultado de um tra balho de equipe:o micleo de criaslo no cinema permane ce um individve. Frank Capra, apesar de trabalhar no sistema dos esti dios hollywoodianos, em que um esquadrio de técnicos« de equipes especializadas desencarregavs 0 direror de ind mers decisdes e responsabilidades, escrevia na sua auto biografia: “Todos os diretores se confrontam com ess ‘mesmo problema: precisam cuidar para que o trabalho de cada dia esteja em harmonia com v conjunto do filme. A: cenas rodadas fora do seu contexto, isoladamente, tér {que se adaptar perfeitamente ao lugar que Ihes € reserva do no mosaico do filme firalizado, com suas nvances exa tas de atmosfera, de suspense e suas proporcées exatas d amor ¢ conflito. Esta é, como se pode imaginar, a parcel mais importante e dificil da direglo, ¢ a principal razic pela qual, por conseguinte, os filmes pertencem ao dire tor em primeiro logae™ problema, para 0 cineasta, consiste em tomar tod: dia, para cada plano, decisdes iremediiveis; nesse mo mento, o filme como totalidade s6 existe na sua cabes (pois 0 roteiro € apenas um magro esqueleto descarna do), € a validade dessas decisdes somemte se dari muit mais tarde, as vezgs varios meses depois. O pintor tam- bém aplica suas pinceladas urna a uma, mas basta que ele recue para ver o efeito da pincelada no conjunto da tela, que ele pode abarcar com o olhar. O cineasta aplica suas pinceladas “cegamente”, ¢ pode apenas antecipar sua articulagio do ponto de vista do ritmo, da harmonia ou desarmonia, A questi do conjunto do fragmento esti no cerne do sto de ctiagio ciematogrifica. Eisenstein a colocava as- sim: “O processo criador se desenrola da seguinte maneirs: co ctiador percebe confusamente uma imagem fem] que [se] ‘encicna emocionalmente o seu tema, antes mesmo que te- nha dela urna visio itima, O que ele tem a fazer, ¢ traduzic ssa imagem em algumas representagdes detalhadas que, combinadis, evocario no espirito ¢ nos sentidos do espec- tador, do letor ou do ouvinte, a mesma imagem que ele havia percebido inicialmente?” © cineasta tem em mente uma imagem global qual ele vai dar corpo erealidade através das “representages deta- lhadas” que slo 0s planos. Percebe-se claramente a aposta cenvolvida nessa operagio, que s6 pode funciona, essen- cialmente, com 2 intuigio e a “pré-visio”. A aposta é a de que 0s fragmentos postos lado a lado acabem recompondo um objeto (muito complexo) em que 0 espectador reen- contri a emogioinicial que desencadeou o desejo de cri- Gio, a vontade de fazer um filme Fernando Pessoa o diz de outra forma, mas a idéin é a mesma: na arte, “nossas sensages devem ser expressas de tal modo que ctiem um ‘objeto que seja uma sensacio para os outros” M4 AAs escolhas parcizis, que contribuitio para a criagio esse objeto composto, sio de natureza completamente heterogénea: uma escolha de cor, de entonacio, de tal peca de vestuaio age tanto na formacio da imagem mental final (aque o espectador reconstituiré no decorrer do fil- ‘me e carregaté consigo apés 2 projecio) quanto escolhs ais “inguageiras” ~ que so muitas vezes as tnicas de que a pedagogia se ocupa — como 08 didlogos ou os movi- mentos de cimera. O equilibrio artisticoy que confere 20 filme sua singularidade de obra, depende de mil fatores, impossiveis de serem controlados de modo estritamente racional. Jean Renoir fala disso, como sempte, com muita simplicidade e acuidade: O que é grave e dificil, ¢ 0 equilibrio artistico ser dife- rente para cada um, e, pessoalmente, nunca pude me con- vencer de que esse equilibtio deveria ser unicamente um cequilbtio de histria. Passo meu tempo Testabelecendo 0 ‘equilbzio num filme, mas no me passa pela cabega crex que devo fazé-lo somente com elementos de ‘asic’. Pode- se restabelecer 0 equibtio com um objeto sobre a mesa, com uma cor em se tratando de um filme colorido, com uma frase que nio quer dizer absolutamente nada, mas que term mais ou mengs peso que a frase dita anteriormente.” Desde. fase da anilise de seqiéncia de filmes, pode-se sensibilizar 08 alunos para o fato de que os cineastas, em. sua grande maioria, no pensam suas cenas tum plano de- pois do outro, em fila, mas, em geral, se esforcam para ter ‘uma idéia do conjunto que se traduz na escolha dos prin- cipais eixos de aio, por exemplo. Um cineasta raramente avanga com a cena se colocando, a cada vez, 0 problema 5 ‘ma-sendo-feito como fragmentagiio recompondo uma imns- _gem inicial plobal que pertence apenas 20 cineasts, imagem ‘mental que ele aio pode “mostrar” a ninguém: “E: preciso sex muitos para fazer um filme, mas um s6 para fazer, des- fazer, refazer suas imagens é sons, retornando, « cada se- sgundo, a impressio ou & sensagio inicial, incompreensivel para 0s outros, que lhes deu origem”" ‘Atomada de decsao Existe um tempo da criagio proprio do cinema, deter- rminado por uma ecoromia que dita as condigdes de to- mada de decisio inclusive no amago do ato de ctiagio. A anilise dispée de um tempo livre e futwante em relagio a uum objeto acabado e estivel. A partir do momento em que o filme exist, que se pode dispor dele, pode-se passar uma tarde analisando um plano de Passio no camto®, ¢ até ‘mesmo anos analsindo o filme inteiro como objeto de estudo universtitio. Eo privilégio legitimo do analista (ou simplesmente do amador) levar o tempo que julgar preciso para tatar um filme. Importa, sobretudo, nio so- brepor os resultados dessa anilise ~ todas as coeréncias lgicas e estéticas que ela traz a tona—ao que presidi &s tomadas de decisio de Jean Renoir, confinado no cenitio pela chuva, com uma data Emite que era a da préxima filmagem, cujo inicio jé estava programado e pela qual acaba abancionando a primeira. H4 neste ponto também uma diferenga absolutamente fundamental entre 0 cine- rma ¢ outras formas de arte. O escritor ~ a nio ser um autor de éestselrs que prometeu o manuscrito a0 editor ‘num prazo curto demais ~ tem um tempo relatvamente rmaledvel a sua frente, € 0 conduz a seu ritmo, em todo caso com certa margem de manobra. Ele pode remeter a decisio para mais tarde, levar tempo pata amadurecé-la: ele tem direito as corredes ¢ a0s artependimentos. Pode dizer: “Hoje nfo estou em condigdes de escrever, ndo ¢s- tou com vontade, escreverei amanha”, ou ainda: “Vou pular ssa parte que ‘caiu mal’, voltae a ela na semana que vern”. E mesmo depois de ter terminado, ainda pode decidir jo- ‘gar seu manuscrito no lixo € reescrever. O escritor tem. iante de si uma temporalidade muito mais flexivel que 0 cineasta. Nas condigdes socizis habituais do exercicio da cciagio no cinema, 2s coisas quase nunca se passam as- sim, com algumas poucas excegdes de cineastas ~ como Chaplin ow Godard — que obtiveram os meios (em ter- ‘mos de relagées de produgio) de administrar de forma diferente o tempo de filmagem, de no filmar nos dias, sein inspiragio, de recomecar uma cena que no copiio nao agradou, de submeter 0 tempo de filmagem ao ritmo de cxiagio pessoal. Chaplin podia rodar o mesmo filme darante dois ou txés anos porque tinha se tornado senhor de seus meios de produgio, e porque era o inico a decidir ‘quando o filme estava acabado, pronto para o piblico. Se, ‘num dado momento, ele implicava com uma cena, podia suspender as flmagens por dois, urés meses para procurar ‘0 que nao estava bom e dar um jeito. Se percebia, apds vvirias semanas de filmagem, que havia feito um erro de casting, jogava fors 0 filme rodado € recomesava do zer0 com uma nova atiz. Godard, em alguns filmes, também pode rodar meses, num ritmo todo seu ¢ ito segundo as 9 ‘exigincias de producto, mais ou menos como um escti- tor. Mas isso permanece excepcional no cinema, pois « rmaiotia dos cineastes ¢ obrigada a jogar segundo as regras de produgio industrial se dar por satisfeit, inclusive na ordem da criagio, onde a obtigacio de terminar tem seu valor, como todo limite. Os cineastas arnadores ¢ os

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