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POR UMA LEITURA TRANSFORMADORA:

UM OLHAR SOBRE A TEORIA DA LEITURA DE ELIANA YUNES1

Valéria Moura Venturella2

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000),


documento que estabelece as principais diretrizes para o planejamento desse nível de
ensino no Brasil, define a linguagem, na seção dedicada às Linguagens, Códigos e sua
Tecnologia, como "a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los
[...]. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido" (p. 5). Assim,
segundo o documento, a linguagem – em todas as suas manifestações possíveis – é o mais
importante instrumento de atribuição de sentido, ou seja, de compreensão da realidade, por
parte de um indivíduo, e de negociação dessa compreensão com outros. No contexto
escolar, assim, o trabalho com os diferentes modos e formas de linguagem deve estar de
acordo com a definição proposta.
Sendo a linguagem um instrumento de apreensão da realidade, o desenvolvimento
das capacidades lingüísticas dos estudantes deve ocorrer simultaneamente ao crescimento
de sua habilidade para desvendar o mundo em que vive. De fato, segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (op. cit.), os estudantes deveriam, através do
progressivo domínio das linguagens, ser capazes de, entre outras aptidões: colocar-se como
protagonistas em processos de recepção e produção de sentido; compreender a realidade,
pela constituição de significados e também pela expressão dos mesmos; comunicar-se em
situações de intersubjetividade; usufruir do patrimônio cultural mundial e das diferentes
visões de mundo; exercer o distanciamento e a reflexão a respeito dos diferentes contextos;
e integrar a organização do mundo e da própria identidade.
Após a leitura do documento, podemos perceber a relevância conferida ao
desenvolvimento das linguagens no âmbito educacional. Se é através do aprendizado
contínuo das diferentes linguagens que cada pessoa pode construir sua identidade, estar no
mundo com os outros, compreender o que a cerca, e ter o distanciamento necessário para
realizar uma reflexão crítica a respeito dos eventos do mundo, então um dos objetivos
primeiros do processo educacional é promover experiências que possibilitem a cada
estudante a apropriação das linguagens e do que elas podem proporcionar.
A realidade de boa parte das escolas brasileiras, no entanto, contradiz o que prega o
documento. Pesquisas internacionais denunciam a incapacidade dos estudantes brasileiros
1
Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Por Uma Teoria da Literatura,
ministrada pela Profa. Dra. Eliana Yunes no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da
Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de 30 de maio a
1º de junho de 2007.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.
para compreenderem o que lêem e para se expressarem. Segundo pesquisa divulgada pelo
instituto Paulo Montenegro (2007), apenas 26% da população brasileira entre 15 e 64 anos
consegue ler e interpretar textos corretamente e fazer relações entre eles, e 70% desse
grupo é de pessoas de até 34 anos. Isso significa que essas pessoas, apesar de terem
passado pelas instituições escolares, não desenvolveram ao longo de sua experiência
estudantil o domínio da linguagem escrita.
Eliana Yunes, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, considera que o problema da leitura no
sistema educacional brasileiro é a incapacidade que os estudantes apresentam para atribuir
sentido aos textos que lêem3. Na escola, afirma a educadora, um grande erro é deixar o
aprendizado da leitura a cargo apenas do professor de língua portuguesa, uma vez que a
formação do leitor abrange muito mais do que o eixo língua-literatura. O desenvolvimento
das linguagens perpassa as diferentes áreas do conhecimento e o próprio processo de
aprendizagem das diferentes disciplinas depende do desenvolvimento das linguagens.
Assim, esse é um problema educacional global, cuja solução se torna mais urgente à
medida em que a quantidade de informações e conhecimentos se multiplica e a
necessidade de discernimento cresce.
Nessa perspectiva, dada a importância e a necessidade do domínio das diferentes
linguagens para a construção identitária e para a compreensão – requisito básico para a
participação – do mundo, e considerada a deficiência histórica no Brasil em relação às
linguagens, especialmente à linguagem verbal escrita, a educação deve assumir a formação
de leitores como uma de suas prioridades.
Essa formação de leitores deve ser um processo permanente – que se inicie nas
primeiras etapas da Educação Básica e se prolongue até o final do Ensino Médio – e
abrangente, no sentido de ser abraçado por todos os educadores, independentemente de
sua área de especialização. Esse processo deve se constituir, fundamentalmente, na
reconstrução da relação que as pessoas estabelecem com o mundo e com todo tipo de
objetos a serem lidos, de paisagens urbanas a poemas, de anúncios publicitários a ensaios
filosóficos.
É com vistas à realização de um projeto educacional desse tipo que Yunes apresenta
uma proposta de formação de leitores que inicia muito antes do aprendizado da leitura
propriamente dita. Este trabalho apresenta uma releitura dos ensinamentos e proposições
da professora4, a partir do ponto de vista de uma de suas “leitoras”. Inevitavelmente, e
coerentemente com a própria proposta, essa leitura é, em grande parte, reconstituição, mas
3
Informação verbal disponibilizada pela professora Eliana Yunes em exposição realizada no dia 30 de
junho de 2007 no curso Por uma Teoria da Leitura para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-
Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
4
A apresentação da proposta foi realizada durante o curso Por uma Teoria da Leitura para o
Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de 30 de maio a 1º de junho de 2007.
também é reconstrução e ficcionalização. Eliana Yunes acredita que os leitores têm o direito
de realizar suas próprias interpretações, e também de estabelecer relações singulares entre
as diferentes informações a que têm acesso e entre os diferentes estudos que realizam. Ela
também tem consciência de que, uma vez enunciada, cada palavra dita ou escrita escapa
ao controle de seu emissor, e entra em uma rede de relações que resultam em sentidos,
posicionamentos e transformação da realidade que o autor não previra inicialmente.
Assim, este trabalho é o resultado de uma produção pessoal feita a partir das
palavras e gestos de Yunes, e mostra um entendimento possível do processo de formação
de leitores que ela defende. A proposta aqui descrita inclui as seguintes etapas:
§ A tomada de consciência da linguagem – a leitura do mundo e a leitura da palavra – e a
apreensão do próprio discurso;
§ A constituição da subjetividade e da intersubjetividade, a recuperação da memória e a
leitura;
§ A percepção da diversidade de linguagens e da inter-relação das diferentes áreas do
conhecimento;
§ O protagonismo na recepção e na atribuição de sentido às leituras;
§ O domínio de recursos de expressão e de comunicação das leituras, e a reflexão a
respeito das repercussões da própria produção.
Cada um desses momentos do processo e seus possíveis desdobramentos no
contexto escolar são descritos abaixo.

A tomada de consciência da linguagem – a leitura do mundo e a leitura da palavra – e


a apreensão do próprio discurso
Vivemos imersos nas linguagens. Elas nos envolvem como o próprio ar que
respiramos, a ponto de, por vezes, chegarmos a nos tornar inconscientes de sua presença.
Muitos estudiosos consideram que a linguagem é uma propriedade humana natural
(CHOMSKY, 1997), mas nesse trabalho partimos do princípio de que, embora presente em
todas as civilizações, a linguagem, como instrumento de expressão e comunicação, é
também fruto da cultura (BROWN, 1994) e, portanto, não é simplesmente uma qualidade
natural dos seres humanos, o que significa que ela deve ser ensinada e aprendida.
Aprendemos a falar ao mergulharmos em um universo de sonoridade, em que cada
elemento assume um sentido através dos usos que presenciamos e experimentamos. A
linguagem é um complexo sistema binário (SAUSSURE, 1989) – entre um significante (a
imagem acústica ou escrita da linguagem, o que denota) e um significado (a face semântica,
a idéia ou o conceito que é representado pelo signo) – que tendemos a aprender de forma
quase automática, pela necessidade de compartilhar o mundo com outros. O resultado é
que tendemos a falar quase mecanicamente, como se os discursos se apossassem de nós,
em vez do contrário.
Sem termos consciência da linguagem, não falamos. Somos apenas porta-vozes de
discursos já prontos que se apropriam de nós (FOUCAULT, 1995). Do mesmo modo que
podemos possuir os enunciados, eles também podem nos usar como seu instrumento.
Considerando que a linguagem é um modo de ver e de construir a realidade, se quisermos
apreender e expressar o mundo a nosso próprio modo e não apenas reproduzir a visão de
mundo de outros, necessitamos nos apossar plenamente dos instrumentos de compreensão
e de comunicação que usamos. Ao nos tornarmos conscientes de nosso uso das linguagens
– e também do de outros – não apenas assumimos nossa própria fala, mas também
começamos a fazer leituras próprias de nosso entorno.
Quando perguntamos a uma criança se ela já aprendeu a ler, partimos do princípio
de que ler significa decifrar a palavra escrita, desvendar o conteúdo de um texto. Tendemos
a esquecer que existe uma forma de leitura que deve preceder a leitura do escrito. Paulo
Freire (1982), em uma afirmação hoje célebre, nos apresentou à necessidade de
aprendermos a ler o mundo antes de ler a palavra. Estabelecemos nossa relação com o
mundo através de uma primeira forma de leitura: observamos a realidade para coletar
dados, estabelecer relações entre eles, planejar nossa atuação. Não é possível, segundo
Freire, aprendermos a ler textos sem antes aprendermos a ler a realidade.
Se assumirmos que o texto é a tradução da oralidade em signos gráficos, isso tem
repercussões muito importantes em nossa concepção de leitura. Em primeiro lugar,
percebemos que, uma vez que a linguagem escrita se origina na oralidade, a leitura do texto
é uma segunda forma de leitura, cujo domínio depende do aprendizado da leitura primeira, a
da realidade. Em segundo lugar, embora oralidade seja a instância em que nós
primeiramente organizamos nossos pensamentos, compreendemos que ela não está
apenas na origem da escrita, mas a transpassa, acompanhando seu desenvolvimento.
Desse modo, compreendemos que nosso sucesso na compreensão e na
interpretação de textos depende tanto de nossa habilidade para ler o mundo quanto de
nossa capacidade para expressar nossas compreensões através da linguagem oral. Ambos
os processos permeiam nosso aprendizado da leitura da palavra escrita, e também de
nossa expressão através da escritura.
Nessa perspectiva, podemos compreender porque tantas crianças oriundas de
classes sociais menos favorecidas, ao chegarem à escola, não conseguem aprender a ler
ou escrever. Essas crianças, muitas vezes, crescem em um mundo em que há pouco
estímulo intencional para o desvendamento da realidade, e a linguagem oral que
experimentam se articula na forma de monossílabos e frases fragmentadas, um mundo em
poucos pensamentos completos e coerentes são articulados. Poucos são os ambientes
domésticos em que as pessoas conversam longamente, discutindo e compartilhando idéias.
Assim, essas crianças perdem a oportunidade de desfrutar da leitura do mundo e da
linguagem oral já em casa. E, ao chegarem à escola, devem permanecer silentes e atentas
ao discurso de seus professores. Na sala de aula, em geral, os estudantes falam apenas
quando o professor lhes faz uma pergunta e, assim mesmo, a resposta é previsível.
Segundo Yunes, a escola deveria ser, em primeiro lugar, um espaço privilegiado
para a compreensão do mundo, a leitura primeira. E também um local de fomento do
desenvolvimento da sensibilidade para as linguagens e de estímulo à oralidade dos
estudantes. Os jovens devem ser estimulados compreender e narrar suas experiências,
compartilhando-as com os colegas e professores.
Nesse processo – que deve preceder a formação do leitor de textos, a leitura
segunda – os estudantes ampliam seu uso das linguagens, e aprendem a escutar e
compreender os companheiros e a confiar em sua capacidade de expressar suas idéias com
clareza. E, quando entram em contato com a leitura da palavra escrita, devem ser
convidados a expressar – tanto oralmente quanto por escrito – sua compreensão dos textos
e as relações que estabelecem entre lido e o vivido, confrontando-as com as visões dos
professores e dos colegas. Nesse jogo, os estudantes encontram oportunidades para ir além
do mero reconhecimento da linguagem que os envolve, elaborando uma linguagem que lhes
é peculiar, própria, que expressa o que vivem, sabem e são. Assim, constróem aos poucos
uma subjetividade e uma intersubjetividade em que podem se reconhecer.

A constituição da subjetividade e da intersubjetividade, a recuperação da memória e a


leitura
No raiar da era moderna, a questão principal das investigações filosóficas deixou de
ser “o que é o real e como ele chega até nós?” – como era na Antiguidade – para ser “como
é possível conhecer o real?”, ou “quem é o sujeito que se dispõe a conhecer?” Essa
mudança de foco inaugurou a metafísica da subjetividade e iniciou o esforço para enunciar
uma noção de sujeito que desse conta da compreensão e da representação da realidade.
Descartes (2001) pode ser considerado como o filósofo que deu o primeiro passo
nessa trajetória, concebendo o sujeito como o ser pensante e consciente que, através da
desconfiança dos sentidos, atinge a única certeza possível, que é a do pensamento. Esse
modelo racional foi revisto e revisitado por uma longa linhagem de filósofos que
consolidaram a noção de sujeito consciente, congnoscente e absoluto.
No final do século XIX, essa idéia de sujeito começou a sofrer duros ataques,
desferidos por pensadores que questionavam a consciência e o conhecimento do sujeito
sobre si mesmo. Freud (1987) parece ter lhe dado o golpe de misericórdia, ao afirmar que
há uma parte de nós mesmos da qual não temos conhecimento ou controle. Para o pai da
psicanálise, cada sujeito porta uma parte consciente, iluminada, e uma parte inconsciente,
que fica em um canto escuro de nosso conhecimento sobre nós mesmos. E é essa parte
inconsciente, ao contrário do que a tradição tentou estabelecer, governa nossos atos.
Por outro lado, segundo Martin Buber (2003), somos sujeitos entre sujeitos, temos a
capacidade de nos relacionar com os outros e de nos modificar permanentemente nessas
interações. Nessa relação que, segundo o autor, envolve o encontro, o diálogo e a
responsabilidade, nos abrimos para influenciar e sermos influenciados, nos deixamos
transformar à medida que contribuímos na mudança do que nos rodeia, e esse intercâmbio
nos flexibiliza, nos desendurece e nos modifica.
O sujeito é concebido hoje, então, como um constructo em modificação permanente,
um resultado sempre parcial, construído a cada momento, a partir de nossas experiências
de leitura do mundo e de partilha da realidade com outros sujeitos. A subjetividade é, desse
modo, uma busca constante, um caminho de experiências, vivências e relações, em que a
intersubjetividade é construída concomitantemente, pois através da consolidação do “eu”
cada pessoa pode estabelecer ligações com os demais. E esse é um percurso sobre o qual
– é importante lembrar – não temos controle completo, uma vez que há sempre uma porção
desse constructo que nos escapa, que nos é obscura.
A constituição do “eu”, ou seja, da própria subjetividade, passa pela permanente
recuperação da memória pessoal (BENJAMIN, 2006), um elemento essencial na
organização de nossa identidade pessoal por formar nosso horizonte de percepção de nós
mesmos e do mundo. A memória é, assim, uma espécie de pano de fundo para nossas
novas vivências, o panorama ao qual opomos nossas impressões, modificando o velho e o
novo nessa permanente contraposição.
Freud (1996) comparou a memória a uma “lousa mágica”. O que experienciamos,
nossas leituras de mundo e de textos, nossas interações e interlocuções vão sendo escritas
sobre a folha transparente da lousa mágica. A cada novo dia, levantamos a folha
transparente, apagando o que foi escrito no dia anterior, e começamos uma nova escrita.
Mas tudo o que registramos, mesmo depois de levantarmos a folha transparente, fica
impresso na superfície negra da lousa mágica. Nos primeiros dias após terem sido escritas,
nossas memórias ainda permanecem distinguíveis na superfície escura, mas aos poucos
elas vão se sobrepondo, se confundindo, se transformando num emaranhado de marcas,
traços e palavras desconexas. Se quisermos restaurar essas memórias, um traço não se
separa mais dos outros, e sua reabilitação exige um trabalho de re-elaboração. Desse
modo, ao lembrarmos, o que estamos realmente fazendo é uma recriação, uma
ficcionalização a partir de um arranjo pessoal dos traços desconexos da memória, um
processo que á atravessado por nossas disposições e afetos.
Quando conversamos com alguém, esse é um exercício em que cada palavra de
nosso interlocutor desencadeia um processo de recuperação de nossas memórias pessoais
– e também da memória coletiva, da qual nos apossamos ao vivermos no seio de uma
cultura. Para compreendermos o que nos dizem, devemos “recordar” – trazer de volta ao
coração – uma cadeia de conexões estabelecidas ao redor das palavras proferidas. Essas
conexões que estabelecemos não são apenas intelectuais, mas são, acima de tudo,
afetivas, e a recordação não é um ato voluntário e consciente. Para dialogar, precisamos
reorganizar toda nossa história de vida, e fazemos isso naturalmente.
O mesmo deve ocorrer no processo de leitura, que é um colóquio entre o leitor e o
texto – seja ele escrito ou não. Para compreendermos o que lemos é necessário recuperar
nossas vivências e conhecimentos prévios, reunindo-os de modo a conseguir atribuir um
sentido à leitura.
Podemos nos perguntar, neste momento, por que o processo de reorganizar
lembranças não é tão natural na leitura quanto o é em uma conversa com outra pessoa.
Uma resposta plausível para essa pergunta é que não somos estimulados a abordar o texto
com esse objetivo. A tradição escolar, em geral, nos ensina a realizar um processo
diferente, que é o de decifrar o texto apenas através do texto, procurando descobrir o que o
escrito e o autor querem expressar, e não tentando buscar em nossas memórias conexões a
serem estabelecidas com o conteúdo do texto.
Partindo dos princípios expostos acima, Yunes propõe que os educadores iniciem o
processo de formação de leitores oferecendo aos estudantes a oportunidade de entrarem
em contato com quem são. Para conhecer seus estudantes, e para lhes dar a oportunidade
do auto-conhecimento, o professor deve fazer uso de textos dos mais diversos tipos –
anúncios, contos, poemas, filmes, entre outros – e de atividades de sensibilização, de
compreensão e de interpretação preparadas a partir desses textos. No entanto, a escolha de
um conjunto de textos para um programa de leituras não pode ser aleatória, mas informada.
Os textos devem poder ser relacionados com a realidade do grupo de leitores, devem
dialogar entre si e devem ser unidos por um fio de sentido.
Por outro lado, ao contrário do que geralmente ocorre no ambiente escolar, o critério
de ordenação dos textos não deve ser necessariamente temporal. Yunes sugere, ao
contrário, iniciar com textos contemporâneos e traçar um caminho rumo ao passado. Esse
procedimento faz com que os estudantes percebam a história que existe por trás das
leituras que hoje realizam, uma história não apenas literária, mas também cultural. Nesse
processo, as experiências contemporâneas se agregam à herança e à tradição já
acumuladas pela humanidade.
Além disso, a leitura não é uma vivência realizada em isolamento. Não lemos
sozinhos; não estabelecemos uma relação exclusiva com o texto – ou com o mundo.
Quando nos dispusemos a ler, mobilizamos toda nossa experiência, que compartilhamos
com outros. Desse modo, sempre que lemos, trazemos para esta relação as influências que
recebemos. Também, após a leitura, o compartilhamento permite que nossas compreensões
e interpretações se aprofundem e ampliem.
Assim, a leitura de uma reunião intencional de textos, especialmente se seguida de
um compartilhamento de impressões, oferece aos estudantes, além do conhecimento de si,
a oportunidade de construir um repertório de reflexões e de leituras realizadas, um acervo
que permitirá que os estudantes ampliem seus horizontes e sejam capazes de intelecções
mais abrangentes. Quanto mais vasto for esse acervo, mais rica é a interpretação.

A percepção da diversidade de linguagens e da inter-relação das diferentes áreas do


conhecimento
Basarab Nicolescu (2002) estabelece uma diferença importante entre os conceitos
de realidade e real. Enquanto o real é aquilo que é, a realidade se caracteriza como o que
resiste à nossa experiência, ou seja, o modo como nós traduzimos o real em
representações, descrições, imagens ou formulações. Devido às limitações insuperáveis de
nossa capacidade cognitiva, o real não se nos desvela por inteiro. O que temos são
aproximações, traduções e interpretações do real. Nosso aparato cognitivo se apodera de
certos elementos da realidade, estabelece relações entre eles, atribui-lhes um significado e
traduz essas relações em algum tipo de linguagem, que podemos partilhar com outros.
Em A Ficção Tematizada no Discurso Filosófico, Wolfgang Iser (1996) lembra que,
desde os tempos mais remotos, os seres humanos sempre procuraram compreender,
explicar e expressar seu entendimento a respeito dos fenômenos interiores e exteriores –
para o que ocorre dentro de si e na natureza. E essas compreensões sempre foram
expressas de diferentes modos, dos mitos mais ancestrais até as teorias científicas de ponta
da atualidade, além, é claro, das artes e do conhecimento religioso. Nesse mesmo trabalho,
Iser define como ficção toda e qualquer produção da mente humana, toda e qualquer
formulação do ser humano a respeito de sua percepção da realidade. Com isso, o autor
coloca a ciência, a filosofia, a religião e a arte na mesma categoria e no mesmo patamar,
uma vez que todas elas são tentativas humanas de compreender e explicar seu mundo.
Essas formulações são complementares e – na perspectiva apontada pelo autor – não
existe uma que seja a mais legítima.
As ficções, portanto, descrevem nossas experiências e revelam nossas verdades.
Ciência, filosofia, religião e arte não são o real, mas elas são as aproximações que podemos
fazer ao real. A realidade que podemos acessar é, assim, um referente. E a referência
desse mundo são as diferentes ficções – ou linguagens – humanas. O sentido que
atribuímos ao mundo se expressa através dessas diferentes linguagens, que ora se
aproximam do concreto, ora do simbólico, ora da ciência, ora da arte.
Mas essa é uma visão que ainda está para ser consolidada na comunidade científica.
No final do século XIX, os cientistas chegaram a pensar que a ciência havia descoberto tudo
o que havia para saber, e que a tarefa da humanidade seria apenas a de se dedicar a
aprender a viver com aqueles conhecimentos que pareciam dar conta do mundo como um
todo. A comunidade científica e a sociedade em geral viviam sob o paradigma cartesiano
para o conhecimento, a ciência, e a educação, e sob a égide da mecânica clássica –
objetivista, determinista, linear. A especialização – a divisão da realidade em partes cada
vez menores para permitir um estudo cada vez mais aprofundado – havia tomado conta da
prática científica e educacional, e foi como se as diferentes áreas do conhecimento tivessem
deixado de se comunicar.
Nessa perspectiva, a arte, a filosofia e a religião passavam por uma crise de sentido,
de valores e de métodos, sendo forçadas a se aproximar do paradigma científico vigente,
sob pena de perderem o estatuto de linguagens através das quais o real pudesse ser
traduzido. Foi um momento de busca de “cientificismo”, em que o positivismo lógico parecia
dar conta dessa necessidade de uma abordagem científica para as manifestações humanas.
Na Teoria da Literatura, o apogeu dessa concepção foi o Estruturalismo. Essa abordagem,
que tem suas bases nas noções de estrutura e de sistema de Saussure, parte do princípio
de que o valor de um texto literário reside não em especificidades, tais como a construção
de personagens, mas em sua estrutura (EAGLETON, 1997). Essa é uma abordagem que,
para evitar o relativismo, mergulhou na estrutura invariante subjacente ao texto, tentando
desvendar sua “mecânica”.
Isso foi às vésperas da descoberta da microfísica, que não apenas abriu todo um
novo campo – quase inesgotável – de pesquisas e estudos, como também abalou as
concepções de mundo, de natureza e de ciência que estavam estabelecidas na época.
Repentinamente, a realidade recobrou todo seu mistério e sua imprevisibilidade, e os
cientistas passaram a admitir que a ciência, por si só, não poderia dar conta da realidade. A
ultra-especialização também passou a dar mostras de suas deficiências, e o diálogo entre
os diferentes campos científicos, e também entre as diferentes formas de linguagem foi
reiniciado.
Estamos hoje vivendo essa retomada, buscando a integração do conhecimento que
foi perdida ao longo do desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos séculos.
Temos, no entanto, a consciência de que linguagem alguma, manifestação alguma, poderá
abarcar a realidade como um todo, tamanha sua complexidade. O que buscamos é uma
complementaridade entre ciência, filosofia, arte e religião, de modo que, solidariamente,
talvez possam nos auxiliar a compreender o mundo e nós mesmos.
Somos, porém, incapazes de abarcar, em nossa compreensão, a complexidade da
realidade. Para acessá-la, necessitamos circunscrever e realçar âmbitos a serem abordados
de forma interdisciplinar. As narrativas, de globais, passam a ser locais. E temos que
aprender a lidar com essas verdades parciais que são as únicas que poderemos acessar.
A literatura, como uma das múltiplas linguagens humanas, em intenso diálogo com
diferentes áreas do conhecimento – história, psicanálise, antropologia, economia –
reassume sua posição de representação e passa a ser um instrumento de estudo e reflexão
a respeito de temas diversos. Concomitantemente, o declínio dos grandes épicos, que
abarcavam toda a história de uma civilização, abre espaço para a emergência de histórias
locais e específicas. Assim, embora não existam grandes obras literárias capazes de
representar todo um povo, há lugar para manifestações de vozes diversas.
Na experiência educacional, é necessário que os estudantes tenham consciência da
complexidade da realidade, dos rumos do conhecimento, das diferentes linguagens e da
possibilidade de diálogo entre elas.
Uma vez que não há uma ciência que possa dar conta da realidade, é importante
que os estudantes tenham a oportunidade de conhecer e experienciar as diversas maneiras
de acessá-la. É fundamental também que possam experienciar diferentes modalidades de
expressão do conhecimento, sempre em uma perspectiva interacional e dialógica. Isso se
torna possível através da leitura dos diferentes “textos” do mundo, e dos diversos suportes
de leitura possíveis, em que as aproximações e as reflexões não passem por separações
artificiais e especificidades forçadas que acabam por reduzir e simplificar o mundo. As
delimitações de âmbitos particulares podem, e necessitam, ser feitas, porém o modo como
eles são abordados não pode ser fracionado, mas integrado.
E, considerando que não há uma realidade global, mas diversas realidades locais
que convivem e se comunicam, é importante oferecermos aos nossos estudantes a
oportunidade de experienciar as múltiplas visões de realidade, ou culturas, mesmo que em
justaposições improváveis entre o próximo e o distante, entre o tradicional e o
contemporâneo. Uma perspectiva multicultural não significa a homogeneização das
diferentes manifestações humanas, mas, ao contrário, um resgate das memórias
particulares e uma reafirmação das identidades locais, através da aproximação e da
interação com o diferente.

O protagonismo na recepção e na atribuição de sentido às leituras


Na passagem do século XIX para o XX, a Teoria da Literatura se encontrava em um
limbo, pois, como foi mencionado acima, no paradigma científico em vigor na época, não era
considerada uma ciência. O Formalismo veio a atender as exigências de um modelo
“científico” que exigia a neutralidade e a objetividade, excluindo as abordagens psicológica e
histórico-cultural e focando a forma do texto (EAGLETON, 1997). Os formalistas afirmavam
que a natureza autônoma da linguagem poética consistia na especificidade do estudo da
literatura, e se empenharam em definir um conjunto de propriedades características da
linguagem literária que tornavam redundante a noção de autoria.
O formalismo teve conseqüências importantes para a leitura e para o sentido na
literatura. Dado o risco sempre presente do impressionismo, o sentido passou a ser visto
como imanente, como contido na própria estrutura do escrito, e o leitor foi destituído do
poder de interpretar o texto com seus próprios recursos.
Sartre (1989), porém, se encarregou de devolver ao escritor o poder da expressão e
ao leitor o poder da interpretação. Em Que é a Literatura?, de 1948, ele afirma que, ao
escrever, o autor se revela e revela o mundo a outros seres humanos. A escrita, um ato
estético intencional, é um processo de tradução e de recriação da realidade, com o qual o
leitor pactua. O leitor, no ato da leitura, colabora com o escritor nessa recriação, assumindo
a responsabilidade por sua parte no processo.
Há autores, no entanto, que discordam de Sartre. Stanley Fish (1980) concebeu a
noção de “comunidade interpretativa”, que designa um grupo integrado de sujeitos que tem
o poder de produzir consenso a respeito do sentido atribuído a um texto. A partir dessa
noção, tanto o autor quanto o leitor são privados da faculdade de interpretação, que passa a
pertencer a uma compreensão compartilhada. Isso ocorre não porque o sentido emana do
texto, como sugeria o formalismo, mas porque há um conjunto finito de regras e estratégias
de interpretação aceitas e compartidas em uma comunidade. Para Fish, a interpretação é
um jogo, cujo resultado é uma estabilidade de significados, e que permite a
comunicabilidade, a reciprocidade e a simultaneidade de interpretações.
Para o autor, então, uma comunidade interpretativa aborda um texto conforme a
história, os valores e as normas daquela comunidade. Os significados atribuídos ao texto
são acordados, e os posicionamentos dissonantes tendem a ser exceções. Isso significa
que o fato de pertencermos a uma comunidade faz com que realizemos leituras e reflexões
mais como parte desse grupo do que como indivíduos.
Nesse jogo de relações que estabelecemos com os outros sujeitos, há um processo
permanente de construção e de dissolução da subjetividade, e corremos sempre, mais do
que imaginamos, o risco de ficarmos muito semelhantes a todos os de nosso grupo. Por
outro lado, nossa capacidade de tomarmos ciência de quem somos, de nossa subjetividade
e de nossa identidade, depende, em grande parte, de estarmos cônscios dos grupos por
onde transitamos.
Mas, como podemos, no seio de uma comunidade, ultrapassar a barreira do que já
foi ou do que é repetidamente dito, para chegarmos a compreensões novas, nossas? Nossa
busca é pela singularidade, ou seja, por um fio interpretativo que não seja totalmente
compartilhado com nosso grupo. A singularidade não significa a diferença total e absoluta,
mas um traço que nos distingue em nossa busca de sentido, em nossa interpretação de
enunciados e em nossa elaboração a partir deles. A singularidade é um olhar particular e
original, a possibilidade de um insight pessoal, mesmo que dentro das regras e das
estratégias interpretativas da comunidade.
A atribuição pessoal de sentido a uma leitura ocorre através de uma eleição feita
dentre uma certa gama de possibilidades. Quando começamos a realizar leituras singulares
e a delimitar, em nosso acervo de leituras, um âmbito de sentidos que é nosso,
estabelecemos uma teia pessoal de acepções através da qual começamos a filtrar nossos
novos conhecimentos, modificando tanto a teia quanto o modo como vemos a realidade. O
objetivo da leitura não é, como afirmava o formalismo, encontrar o sentido implícito no texto,
mas perceber os sentidos que ele pode assumir para nós e para nossa comunidade.
Embora alguns críticos (PERRONE-MOISÉS, 1998) temam o relativismo de uma
abordagem tão pessoal e parcial, é possível aliarmos a singularidade à consistência na
argumentação e mesmo à solidez teórica.
Holliday (2002), ao responder as críticas a respeito da carência de exatidão científica
e da impossibilidade de generalização na pesquisa qualitativa – um tipo de investigação
essencialmente personalista – afirma que, mesmo que levemos em conta a natureza aberta
e subjetiva desse tipo de estudo, é possível alcançar o rigor que é essencial à cientificidade.
O autor afirma que esse rigor reside, em grande parte, no modo como o estudo é relatado.
Ele recomenda, então, que a narrativa de um estudo qualitativo explicite de modo detalhado
seu passo-a-passo, as estratégias selecionadas e as justificativas para cada escolha.
O mesmo pode ser afirmado a respeito da leitura. Os significados atribuídos a um
texto são fundamentalmente pessoais e não podem ser generalizados. Não poderíamos
exigir da leitura qualquer tipo de rigor científico stricto sensu. Mas, ao estimularmos que os
estudantes expressem suas compreensões, identifiquem e justifiquem suas eleições e, por
fim, busquem apoio para elas em obras já consagradas, estamos nos aproximando do que
Holliday define como cientificidade.
No ambiente escolar, portanto, podemos oferecer a nossos estudantes a
oportunidade de interpretações próprias e compartilhadas a partir da leitura de diferences
tipos de textos, estimulando-os a realizar elaborações pessoais, desde que lhes exijamos
que legitimem suas eleições e posicionamentos, e que produzam argumentos substanciais
que fundamentem sua atribuição de sentido.

O domínio de recursos de expressão e de comunicação das leituras, e a reflexão a


respeito das repercussões da própria produção
Em O Prazer do Texto (1977) Roland Barthes afirma que há livros legíveis e livros
escrevíveis. Enquanto há textos que lemos e esquecemos (os que são meramente legíveis),
há os que nos provocam a refletir, falar, escrever, produzir (esses são os escrevíveis). Um
texto assume por completo seu papel no mundo quando, diante dele, o leitor se sente
compelido a se posicionar, a realizar elaborações próprias e, especialmente, a comunicá-
las.
Um leitor maduro – aquele que é seguro de seu domínio sobre as linguagens, de
posse de seu próprio discurso, de sua subjetividade, de sua memória e de um acervo de
leituras que lhe permite dialogar com um novo texto – que atingiu uma interpretação singular
se sente impulsionado a comunicar sua leitura. Para que ele seja capaz disso, deve dominar
também os diferentes recursos de expressão.
Embora essa manifestação seja possível através da oralidade, a escrita é uma
prática de concretização dos pensamentos, que permite o ordenamento da linguagem e a
permanência da comunicação. Registramos para organizar e para preservar nossas
reflexões A escrita permite que nossas elaborações nos transcendam espacial e
temporalmente. Segundo Bárbara Tuchman (1991), o ato da escritura é acompanhado do
desejo de ser lido. Nenhum texto vive, diz a autora, a não ser que seu autor vislumbre o
leitor. No entanto, no momento em que cometemos o ato da escrita, perdemos a autoridade
sobre nosso texto. As palavras detêm certa autonomia, um poder de evocar no leitor
imagens e sentidos sobre o qual o escritor não tem domínio. O texto parece rígido e fixo,
mas o é apenas aparentemente. Ele apresenta aberturas de diferentes naturezas que dão
espaço para as mais impensadas interpretações.
Desse modo, tanto a produção de um autor – que é, primordialmente, um leitor –
quanto a resposta de um leitor demandam responsabilidade, e a responsabilidade de um se
imbrica na do outro. A palavra “responsabilidade”, aqui, assume o significado de “obrigação
de responder pelas próprias ações”, o que tem consideráveis implicações. No momento em
que o leitor assume essa responsabilidade, ou seja, passa a responder por suas leituras, ele
passa de observador a construtor da realidade.
O construtivismo radical, uma perspectiva essencialmente pragmática para a
compreensão da realidade, propõe uma concepção de conhecimento cujo objeto e
fundamento não é a verdade metafísica – pré-existente e exterior ao sujeito cognoscente –
mas a construção subjetiva que fazemos a partir de nossa experiência. Ernst von
Glasersfeld (1996), o principal estudioso dessa teoria do conhecimento, propõe que nada
podemos saber ou afirmar a respeito de uma realidade que se estrutura independentemente
de nós. A única realidade que podemos conhecer é aquela que nós próprios concebemos, a
que nós construímos ao tentarmos atribuir sentido para nossas experiências. Se, portanto,
assumimos que construímos a realidade em nosso esforço por compreendê-la, é importante
que pensemos nas repercussões éticas dessa abordagem.
Não somos observadores da realidade. Ela não está fora de nós. Somos
responsáveis por sua própria existência. As leituras – do mundo e de todos os tipos de
textos que nele estão – que realizamos, as escolhas que fazemos, nosso modo de atuar e
de interferir no modo como os outros atuam é a única realidade que existe para nós, a única
a respeito da qual podemos refletir, teorizar, imaginar, criar. Somos, desse modo, seus
únicos agentes. Em última instância, nossas leituras constróem a realidade.
Ler é fazer. Ler é ser, é ser com outros, é conhecer, é integrar, é participar, é mudar.
Só podemos assumir nosso papel de agentes quando aprendemos a ler o mundo, quando
passamos a atribuir sentido a ele, quando começamos a construí-lo no próprio processo de
apreendê-lo. Cada um de nós que deixa de ler a realidade delega a outro que o faz – de seu
modo – a responsabilidade por essa construção. Estar no mundo plenamente pressupõe a
disposição para essa leitura compreensiva, reflexiva, transformadora, a leitura que faz o
mundo no gesto de contemplá-lo.
A releitura da proposta para um programa continuado de formação de leitores da
professora Eliana Yunes apresentada neste trabalho não aponta para soluções globais, ou
mesmo regionais, para o problema da leitura no contexto escolar. Temos consciência da
complexidade de nossa realidade e da especificidade de cada contexto, e sabemos hoje que
não há uma verdade a ser buscada. O que existem são validades locais, que são
adequadas para comunidades interpretativas e subjetividades peculiares. Cada educador,
assim, deverá buscar essas validades. Apesar disso, há algumas proposições que podem
ser assumidas por cada um de nós.
A primeira delas é a necessidade de romper com a tradição escolar da leitura
mecânica, sem uma significação que vá além do ato de ler em si, sem vínculos com a
realidade ou com o leitor. A leitura de textos de todos os tipos deve ser um processo de
descoberta de si e de desvendamento do mundo, deve ser uma aventura, deve significar
ludicidade, comprometimento e transformação. O que deve ser fomentado na escola não é o
hábito de ler. Isso não é o suficiente, isso não muda a realidade. O que deve ser gerado é o
prazer de ler, o deleite de compreender, o desejo de comunicar e, não podemos esquecer, a
consciência do poder de transformar que emana do ato de ler.
A segunda proposição é o reconhecimento da importância e da necessidade do
posicionamento, da responsabilidade e da crítica diante dos textos e da realidade. Um texto
jamais é uma manifestação neutra ou ingênua. Quem escreve, o faz a partir de um lugar,
defendendo uma posição e uma visão, esperando que elas sejam aceitas e difundidas. A
leitura crítica exige o distanciamento que permite reconhecer o agente que se coloca através
do texto, de onde ele fala, o que ele prega, e porque o faz. Conscientes disso, podemos nos
posicionar criticamente em relação à sua mensagem.
O papel da crítica não é a censura ou a depreciação, mas o discernimento. Um
posicionamento crítico é necessário para que alcancemos patamares de compreensão para
além do que é dado em nossa comunidade interpretativa. A crítica é necessária para a
desmistificação do que parece inabalável, desmistificação sem a qual a transformação não
pode ocorrer.
Vivemos hoje uma grande crise de paradigmas. Os valores burgueses que vêm nos
regendo desde o final do século XIX parecem estar se esgotando, sem que saibamos ao
certo como substituí-los. Sabemos que a própria civilização necessita ser repensada, com
urgência (BOFF, 2001). Para que possamos dar saltos qualitativos em relação à realidade
presente, precisamos conhecê-la e lê-la criticamente. E nesse processo, o papel do
professor como mediador da leitura se torna essencial.
Neste ponto, podemos trazer a terceira proposição, que é o reconhecimento do papel
e da responsabilidade dos professores – e não apenas de língua portuguesa e de literatura
– na formação de leitores maduros, críticos e atuantes. Para que a leitura assuma um papel
verdadeiramente transformador na escola, o professor deve se tornar um leitor-mediador,
fazendo uma seleção de textos que seja adequada à realidade de seus leitores,
sensibilizando os estudantes para a abordagem do texto, mediando as discussões e
sistematizando as compreensões alcançadas.
E, para que isso ocorra, o educador, ele mesmo, deve ser um leitor, capaz de
estabelecer suas próprias relações e realizar suas elaborações a partir da leitura, e também
de entender como esses processos ocorrem, para poder assim compreender o que se
passa com os educandos em seu momento de leitura. Se o professor não for um leitor, não
realizará um trabalho transformador mesmo que receba um roteiro de trabalho detalhada e
cuidadosamente planejado para seguir. Por outro lado, se o educador for um leitor
apaixonado, ele comunicará a seus estudantes seu amor e entusiasmo pelos textos e pela
leitura, contaminando-os através do exemplo.
Piaget (2000) considera que, embora a motivação seja um fator essencial no
processo de aprendizagem, não é possível motivarmos os outros, pois essa é uma
construção pessoal e interior. Assim, por mais arrebatado que um educador seja a respeito
da leitura, ele não pode motivar seus estudantes a gostar de ler. Ele pode, no entanto,
demonstrar sua motivação e seu entusiasmo, contaminar seus jovens pupilos através do
exemplo.
O professor, segundo Eliana Yunes, faz mais do que divulgar conceitos, idéias e
conhecimentos já consagrados pela história da humanidade. Através de suas palavras e de
seus gestos, ele professa, mesmo sem querer, suas próprias crenças em um modo de vida 5.
Esses ensinamentos, que são mais sutis, são internalizados quase inconscientemente pelos
estudantes. Ser educador é uma atividade comprometedora, pois esse é um trabalho que
não termina ao final de cada período, de cada semestre ou de cada ano. A influência de
seus ensinamentos, assim como os efeitos de um texto, pode perdurar nos corações e
mentes de seus estudantes por toda a vida. Desse modo, cada professor deve procurar
estar consciente de seus valores e convicções, e do poder que detém sobre seus
educandos, para que seu trabalho tenha a intencionalidade que é tão necessária em um
processo educacional transformador.
Por último, é importante ressaltar que os educadores que trabalham com leitura e
formação de leitores devem ter o direito e devem ser capazes de buscar práticas
inovadoras, e também de defender sua atuação, com base em suas leituras da realidade e
dos conhecimentos já consolidados. E têm também o dever de registrar suas reflexões,
contribuindo para a memória e para o conhecimento de sua comunidade. A teoria não é um
conjunto de dogmas e de doutrinas que deve nos guiar a cada passo, mas a sistematização
do olhar reflexivo lançado sobre a realidade. E a teoria necessita ser gestada no interior de

5
Informação verbal disponibilizada pela professora Eliana Yunes em exposição realizada no dia 31 de
junho de 2007 no curso Por uma Teoria da Leitura para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-
Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
cada educador. Lembremos que esse é o objetivo último da leitura: nos permitir
compreender, repensar e recriar nosso mundo, a cada dia.
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