Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Volume
A presente obra compõe-se de quatro volumes, a saber:
I. Introdução Evolucionista à Psicologia
II. Sensações e Percepção
ITI. Atenção e Memória
IV. Linguagem e Pensamento
A. R. Luria
Curso de Psicologia Geral
Volume IV
Lingnagem e Pensamento
Tradução de PAULO BEZERRA
Revisão técnica de
HELMUTH R. KRÜGER
Professor de Psicologia
da UFRJ e da UERJ
2º EDIÇÃO
Sociedade Unificada Paulista de Ensino rl9n?wfido Objetivo – SUPERO DATA 11/01/99 Nº DA CHAMADA 159.9 - 1967C –
2.ED.V.4.E.4 Nº DO VOLUME14.029/99 REGISTRADO POR: LILIANE.
civilização brasileira
Título do original em russo: RETCH I MISHLÊNIE
Capa: DOUNÊ
Revisão:
UMBERTO F. PINTO,
NILO FERNANDES
e MARIO ELBER CUNHA
1994
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Todos os direitos reservados pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA SA.
Av. Rio Branco, 99 - 202 andar - 20.040-004 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021) 263-2082 Telex: (21) 33 798 Fax: (021) 233-4257
Av. Paulista, 2079 - Conjunto Nacional
Horsa I - Grupos 1301 e 1302 - 01311 - São Paulo - SP
Tel.: (011) 285-4941 Telex: (11) 37209 Fax: (011) 285-5409/852-8904
Caixa Postal 2356 - CEP: 20010
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, seja de que forma for,
sem a prévia autorização por escrito dos editores.
Sumário
1-O COMPORTAMENTO INTELECTUAL 1
O ato intelectual e sua estrutura 1
A atividade intelectual direta 4
Patologia do pensamento direto 13
2-A PALAVRA E O CONCEITO 17
O significado da palavra 18
Métodos de pesquisa dos significados da palavra 24
Evolução do significado das palavras 28
A palavra e o conceito 35
Métodos de estudo dos conceitos 39
Patologia do significado das palavras e dos conceitos 48
3-ENUNCIADO E PENSAMENTO 53
Meios sintáticos de enunciação 54
Principais tipos de enunciados 56
Evolução das estruturas lógico-gramaticais do enunciado 58
Processo de codificação do enunciado verbal. Do pensamento à linguagem ampla 61
Tipos de enunciado verbal e sua estrutura 66
Patologia do enunciado verbal 72
Processo de decodificação do enunciado verbal.
O problema da interpretação 76
O problema da decodificação (interpretação) da comunicação 76
Decodificação (interpretação) do sentido das palavras 79
Decodificação (interpretação) dos significados da oração 82
Interpretação do sentido da comunicação 86
Patologia da interpretação da fala 93
I
O Comportamento Intelectual
ATÉ AGORA abordamos as condições básicas da atividade consciente do homem: a obtenção de
informação, a discriminação dos elementos essenciais e o registro da informação recebida na
memória.
Agora devemos passar ao exame do modo de construção da atividade consciente do homem nó
conjunto e, acima de tudo, abordaremos a estrutura das formas complexas de sua atividade
intelectual.
Examinaremos primeiramente a estrutura do ato intelectual nas formas mais aproximadas dos
atos de análise direta e síntese da informação que o homem recebe diretamente do mundo
circundante para, em seguida, abordar as leis básicas das formas mais complexas de pensamento
que o homem realiza com base em sua linguagem.
O ato intelectual e sua estrutura
Já vimos que existem três formas básicas de comportamento, já observadas nos animais, que
experimentaram um
1
desenvolvimento substancial na transição do macaco ao homem.
As de caráter mais elementar são as formas mais simples de comportamento motor-sensoríal.
Elas se manifestam no fato de surgirem imediatamente no animal formas congênitas simples de
comportamento, que aparecem sob a influência das inclinações congênitas básicas ou
necessidades (fome, necessidade sexual) ou no fato de que o animal responde com os
necessários movimentos reflexos a influências externas imediatas. Esse tipo de comportamento,
na forma mais complexa e ampla, assume o aspecto de comportamento instintivo, no qual a
percepção dos indícios de uma situação qualquer aciona programas congênitos de
comportamento que, em alguns casos, adquirem forma muito complexa.
Esses atos de comportamento motor-sensorial e instintivos mantêm-se no homem; neste, não
obstante, eles são relegados ao último plano e afastados pelas formas mais complexas de
atividade psíquica.
A segunda forma básica é constituída pelo comportamento perceptivo. Este surge com o
desenvolvimento dos órgãos complexos dos sentidos, com a dificultação da atividade de
pesquisa e orientação e com o surgimento dos níveis superiores do aparelho cerebral: o córtex
cerebral. Essa forma de comportamento se baseia na análise da situação direta em que se
encontra o animal, na discriminação dos elementos mais importantes dessa situação e na
adaptação do comportamento às condições da situação imediatamente perceptível.
Esse comportamento compreende operações de análise direta e síntese, a formação de certas
imagens motoras ou "cópias" do mundo exterior e a aquisição dos atos adaptativos que tornam o
animal apto para a situação em mudança.
Para esse comportamento perceptivo, o mais importante é que a aquisição de novas formas de
comportamento adaptativo ocorre em condições de testes ativos imediatos e, depois de inúmeras
repetições da mesma situação, as novas formas de atividade adaptativa se tornam automáticas, a
atividade adaptativa do animal se transforma em sistema de habilidades solidamente fixadas.
Essas formas de comportamento direto ou adaptativo, que se afirma com base na atividade
orientadora de pesquisa, começam a ocupar papel determinante entre os vertebrados superiores;
sem perder a ligação com as formas instinti-
2
vas de comportamento, elas se tornam forma básica de comportamento dos mamíferos
superiores e conservam posição considerável na atividade consciente do homem.
A terceira e mais complexa forma de comportamento é o comportamento intelectual, que existe
no animal apenas em formas embrionárias, tornando-se quase forma básica de atividade
consciente.
O traço característico do comportamento intelectual consiste em que a atividade orientador-
intelectual, que antes englobava todo comportamento, começa a destacar-se e se converte em
atividade independente e antecede ao comportamento, criando-lhe a base. Os mamíferos
superiores (primatas) se orientam no ambiente retendo as suas reações imediatas e formando um
prévio "modo de ação", que começa a servir de "base orientadora da ação" e a determinar as
posteriores formas complexas do ato motor.
.No processo da atividade de pesquisa e orientação forma-se uma tarefa concreta, cria-se uma
estratégia geral de atividade que deve levar à solução de tal tarefa, surge a tática de ação que
pode conduzir ao êxito e destaca os modos de solução ou operações que podem levar ao
cumprimento da tarefa. Por último, aqui mesmo surgem certos mecanismos de controle, através
dos quais o efeito da ação coincide com a intenção inicial caso esse efeito não conduza ao
resultado necessário e entre a intenção inicial e o efeito da ação continue a existir certa
"divergência", incorporando-se automaticamente novas buscas da solução necessária, que
continuam até que a solução seja encontrada.
O comportamento "intelectual" tem um expresso caráter direto, pois até as suas formas mais
elevadas continuam mantendo a mais estreita ligação com a percepção e ocorrem nos limites do
campo imediatamente perceptivo. Somente no homem, que inaugura a fase de transição para o
trabalho social, com o surgimento das ferramentas e da linguagem, esse caráter direto do
comportamento intelectual cede o lugar a novas formas. A assimilação de formas novas
historicamente surgidas de atividade material, o domínio da linguagem, que permite uma
codificação abstrata da informação, levam o homem a modalidades inteiramente novas de
atividade de pesquisa e orientação. Esta deixa de ocorrer no campo direto, separa-se da situação
imediatamente perceptível. O homem está em condições de formular em palavras a sua tarefa,
de
3
assimilar os princípios abstratos de sua solução; ele se torna capaz de transmitir a estratégia de sua
atividade, apoiando-se não em imagens diretas mas em esquemas abstratos de linguagem, e seus planos e
programas de ação assumem caráter livre, tornando-se independentes da situação imediata. Surgem-lhe
novas formas de comportamento autenticamente intelectual, no qual as tarefas complexas se resolvem
inicialmente no "plano mental", concretizando-se posteriormente em ações exteriores. Muda a correlação
dos processos psíquicos fundamentais. Se antes a atividade intelectual subordinava-se inteiramente à
percepção direta, agora a percepção muda sob a influência dos esquemas abstratos que se formam com
base na assimilação da experiência histórica e do domínio dos códigos abstratos da linguagem.
Produz-se um salto do sensorial ao racional, modificando de tal modo as leis básicas da atividade
psíquica, que os clássicos da filosofia materialista tiveram fundamento para considerá-lo um
acontecimento tão importante quanto o salto que ocorre na transição do inanimado para o animado ou na
passagem do mundo vegetal para o animal.
Agora passaremos à análise das formas básicas de atividade intelectual do homem, e começaremos pela
análise das formas mais simples de atividade intelectual direta.
A atividade intelectual direta
A atividade intelectual dos animais superiores, sobretudo dos macacos, estudados minuciosamente por
Kõhler, apresenta grande ligação com as condições do campo visual imediatamente perceptível. O
macaco relaciona os objetos no campo visual imediato com relativa facilidade e sente dificuldades se tiver
de operar com elementos de uma situação que não façam parte de um campo de visão, pois ele não tem
condições de ir além dos limites de uma situação direta e subordinar o seu comportamento a princípios
abstratos.
É totalmente diferente o caráter da atividade intelectual prática do homem. Vários estudiosos não-
soviéticos costumam separar a atividade intelectual prática da atividade intelectual teórica e considerar
que ela ocorre no plano intei-
4
ramente direto, sem qualquer participação considerável do discurso.
Esse ponto de vista revelou-se profundamente errôneo. Como mostraram as pesquisas, a
atividade prática concreta ocorre nos limites do campo direto e subordina-se inteiramente às leis
da percepção direta imediata da criança pequena. Nesta, não obstante, ela logo passa a ser
determinada pela comunicação com os adultos, assumindo posteriormente caráter complexo
especificamente humano, abrangendo novas formas de análise verbal e planejamento verbal da
atividade intelectual.
Somente na criança de 2-2,5 anos podemos observar a completa dependência do ato
"intelectual" em relação à percepção visual direta.
Se estendermos diante da criança três linhas, fixando a uma delas um objeto que lhe chame a
atenção, ela agarra facilmente a linha necessária e a puxa para si. Se afastarmos para um lado a
linha a que está fixado o objeto, a criança não tem condições de distinguir o devido extremo e
costuma puxar a linha situada num espaço mais próximo do objetivo.
O mesmo ocorre se apresentarmos à criança uma alavanca com um objeto que lhe chame a
atenção, fixado num extremo e, no outro, uma caneta. Neste caso a criança de 2-2,5 anos ou
começa a estender o braço diretamente para o objeto, ou a puxar a caneta em sua direção,
afastando, assim, o objeto que o atrai. A criança não pode reagir às "regras" da alavanca em vez
do campo diretamente perceptível e as inúmeras repetições do teste não surtem o efeito
necessário.
Com a evolução da criança, muda o caráter motor sensorial das ações, distingue-se uma fase
especial de orientação prévia numa situação. A criança começa a resolver a tarefa prática que»
lhe foi sugerida, examina inicialmente a situação para posteriormente subordinar suas ações a
um plano elaborado no processo de orientação prévia.
Essa distinção do estágio de orientação prévia na tarefa aumenta substancialmente a
possibilidade de êxito de sua solução.
5
Psicólogos soviéticos examinaram como se forma gradualmente na criança a solução organizada
da tarefa de encontrar o caminho necessário num labirinto muito simples. Com a transição da
idade pré-escolar inicial à final, um maior número de crianças começa a orientar-se previamente
nas condições do labirinto. Nos testes em que a criança recebe a tarefa de examinar previamente
o necessário caminho em um labirinto e apenas depois disto começar a agir, uma criança de 4-5
anos cumpre tal tarefa com bastante liberdade, a criança de 5-7 anos a resolve com absoluta
correção, ao passo que continua cometendo muitos erros nas tentativas de solução imediata da
tarefa (sem orientação prévia nas condições).
Por conseguinte, nas crianças de 4-5 anos forma-se um novo tipo de comportamento, no qual se
separa uma fase de orientação prévia nas condições da tarefa e do esquema de sua sucessiva
solução.
Estudos posteriores mostraram que a discriminação da orientação prévia nas condições da tarefa
ocorre paulatinamente, tendo inicialmente caráter de testes eficientes prévios e só mais tarde
esses testes eficientes são substituídos pela análise direta da situação que ocorre no processo de
exame das condições da tarefa. Esse processo se manifesta nitidamente nos testes especiais, nos
quais a criança deve resolver a tarefa manipulando corretamente a alavanca; em alguns casos,
dava-se-lhe oportunidade de fazer testes eficientes prévios, permitindo-lhe, noutros casos,
apenas examinar previamente o quadro que representasse o esquema desse teste.
A orientação por meio de testes eficientes produz um índice de soluções acertadas das tarefas
consideravelmente maior do que um simples exame direto do esquema da tarefa sugerida à
criança. '
Nas fases posteriores de desenvolvimento da criança (de 6-7 em diante), através dos testes
eficientes diretos, a orientação desenvolvida se torna acessível e o processo de orientação prévia
assume o caráter de ação intelectual interna. Mas seria errôneo pensar que o desenvolvimento
das formas complexas de comportamento intelectual da criança ocorre pela via simples de
transição paulatina de testes amplos diretos para a discriminação da fase de orientação prévia
nas condições da tarefa, graças à análise interna' desta. Em suas primeiras observações em torno
do comportamento do recém-
6
nascido, Kurt Lewin e seus colaboradores observaram o seguinte: ao tentar inutilmente alcançar
um objeto que lhe atrai a atenção, a criança, no segundo ano de vida, interrompe amiúde as suas
tentativas diretas e se volta para o adulto que presencia o teste, tentando atrair-lhe a atenção e
conseguir sua ajuda para obter o objeto que a atrai. Já muito cedo a ação da criança se converte
em ação social. Essa vida de domínio de uma situação através do contato com o adulto se torna
mais expressa e começa a predominar quando a criança passa a exercer o domínio da
linguagem.
Vigotsky já observara que, na criança de 3-4 anos, cada dificuldade na solução de uma tarefa
prática provocava uma explosão de reações verbais, que eram consideradas pelos psicólogos
(sobretudo por Piaget) como fala egocêntrica, que não tem importância prática e revela apenas
os desejos da criança. Vigotsky mostrou que essa fala egocêntrica (isto é, não dirigida a
ninguém) tem, desde o início, caráter realmente social. Ela está dirigida de fato ao adulto, nela a
criança formula inicialmente um pedido òu uma solicitação de ajuda na solução de uma tarefa e
em seguida seu discurso começa a refletir uma situação real, como se "tirasse uma cópia" dessa
situação, analisando-a e planejando uma possível solução. Deste modo, a linguagem da criança,
inicialmente dirigida ao adulto, converte-se paulatinamente em meio de orientação em -uma
situação (de traçar as vias de solução de uma tarefa, de criar um plano de atividade).
A evolução da fala foi estudada pelos pesquisadores alemães K. Bühler e Hetzer, que,
observando o desenvolvimento do processo de desenho na criança, mostraram que a fala da
criança reflete antes o desenho por ela já feito e o denomina; em seguida o discurso começa a
acompanhar o desenho, a anteceder-lhe e a participar ativamente da formação do plano da ação
seguinte.
O fato da participação da linguagem da criança em sua atividade prática e na solução de
complexas tarefas práticas é mostrado nitidamente nos testes realizados numa escola pelo
psicólogo soviético A. V. Zaporojets e sua colaboradora G. I. Minskaya. Nesses testes foram
incluídas crianças que antes não conseguiam resolver uma tarefa prática como o domínio de
uma simples alavanca; um grupo de crianças foi instruído para a solução dessa tarefa, com os
participantes separados uns dos outros; outro grupo resolveu a mesma ta-
7
refa em "teste de dupla", no qual a criança tinha oportunidade de comunicar-se ativamente com o seu
colega e coetâneo, com as duas resolvendo conjuntamente a tarefa. .-. observações mostraram que, entre
as crianças de 3-4 anos -situação do "teste em dupla" gerava nelas uma atividade '--. grande desempenho
da fala; as crianças começavam a formular perguntas umas às outras, a fazer tentativas de solução
impulsiva sem se basearem na orientação assimilada naquela situação e ficavam inibidas; ao dirigir-se ao
seu coetâneo. : criança se orientava inicialmente na situação, após o que planejava as suas ações. Em
semelhantes condições, entre ií crianças de 4-5 anos já se manifestava uma fala independer-te ativa, que
se incorporava à sua atividade, enquanto entre as crianças de 5-6 anos começavam a formar-se nessa
operação modalidades complexas de uma atividade intelectual autenticamente consciente.
As pesquisas nas condições do "teste em dupla", com atividades participação da linguagem, são muito
mais bem-sucedidas do que as pesquisas realizadas nas condições do "teste isolado", onde a linguagem da
criança não se manifesta em termos tão ativos.
Tudo isto mostra que o desenvolvimento da atividade intelectual prática da criança ocorre com a
participação da linguagem ativa da criança, que tem inicialmente o caráter de comunicação da criança
com as pessoas que a cercam, assumindo posteriormente o caráter de meio que a ajuda a orientar-se na
situação direta e planejar a sua atividade.
Participando da formação da atividade intelectual da criança, a linguagem tem inicialmente caráter
desdobrado externo, restringindo-se posteriormente, transformando-se em linguagem murmurada e, por
último, desaparece quase inteiramente entre os 7 e 8 anos, assumindo a forma de linguagem interna
inaudível, que constitui a base do ato intelectual interno.
Os fatos que citamos mostram que a atividade intelectual direta percorreu um complexo caminho de
desenvolvimento e incorporou aos seus componentes vários elementos, começando por amplos testes
motores e orientação visual na situação e terminando pela análise verbal das condições da tarefa sugerida.
Isto permite analisar mais de perto a estrutura psicológica da atividade intelectual direta (prática) do
homem.
8
Durante muito tempo dominou na Psicologia a concepção segundo a qual a atividade intelectual
prática tem uma estrutura psicológica relativamente simples e se baseia em testes motores
imediatos, por um lado, e na noção visual direta, por outro. Essa concepção simplificava o
pensamento prático direto, opondo-o ao pensamento verbal abstrato. Tal concepção carece de
fundamento.
O pensamento prático direto não se realiza, absolutamente, através de simples testes motores e
imagens diretas; ele compreende também a análise da situação direta com o auxílio da
linguagem, que permite ao homem distinguir nessa situação os elos mais importantes, analisar
as condições da tarefa e compor um plano para resolvê-la. Neste sentido o pensamento direto
prático se aproxima do pensamento lógico-verbal abstrato, com a única diferença de que o
processo de solução das tarefas está aqui voltado para as correlações diretas dos objetos
perceptíveis. O pensamento de um construtor, que resolve uma tarefa prática de construção,
processa-se com a mesma orientação interna na condição da tarefa, com. a mesma
discriminação dos componentes mais importantes e construção do plano (estratégia) de ação que
o pensamento de um físico ou lógico que resolve uma complexa tarefa abstrata.
A participação da linguagem oculta (interna) no pensamento direto pode ser observada se
sugerirmos a um sujeito experimental resolver uma tarefa que pareceria puramente direta;*
registrando simultaneamente os movimentos sutis, torcidos do aparelho fonador, que são traços
de existência da linguagem interna.
Sugere-se ao sujeito um desenho com espaço em branco, que deve ser lembrado, escolhendo a
variante a ser inserida. Para resolver a tarefa é necessário discriminar os traços essenciais (linhas
ascendentes e descendentes, sua direção, a mudança da espessura, etc.) e, somente depois que
esses traços forem discriminados e o princípio de construção do desenho direto se tornar claro,
será selecionada entre as partes carentes aquela que corresponda ao esquema dó desenho. Basta
examinar o registro do eletromiograma da língua do sujeito que resolve essa tarefa para ver
como esse processo de análise do desenho, que, pareceria, devia ocorrer inteiramente no plano
diretamente figurativo, incorpora também a linguagem, participando intimamente da
orientação
9
numa situação espaço-vital complexa. Esse teste mostra que os componentes ocultos da linguagem,
presentes também no pensamento direto prático (construtivo), são um integrante importante.
Para ver qual o papel que a linguagem desempenha no pensamento prático (construtivo) complexo, é
necessário examinar os testes que se aplicam em Psicologia para o estudo da atividade intelectual
construtiva.
Um desses procedimentos é o experimento com o chamado "cubo de Linck". O sujeito recebe a tarefa de
construir um grande cubo verde de 27 cubos pequenos. Na coleção, proposta ao sujeito, uns cubos têm
três faces verdes (são oito cubos), outros, duas (estes são 12), terceiros, uma face pintada (estes são seis) e
um não é pintado. A distribuição incorreta dos cubos pequenos no cubo grande torna a tarefa insolúvel.
A observação mostra que só pouquíssimos sujeitos adultos normais começam a tentar imediatamente, sem
orientação prévia, armar o cubo grande. Via de regra, à solução prática da tarefa antecede uma fase de
orientação, que tem o caráter de cálculos prévios, a consideração do número de cubos pequenos com
números diferentes de faces pintadas; em seguida vem a construção do esquema geral de solução da
tarefa, na qual os cubos pequenos de três faces pintadas são naturalmente distribuídos pelos ângulos do
cubo grande; os cubos pequenos de duas faces pintadas e os cubos de uma face pintada são dispostos no
meio de cada superfície, colocando-se no centro o cubo não pintado. Assim, o processo de solução dessa
tarefa prática não é nada simples e evidente como se poderia supor. Ele inclui em sua composição
complexos cálculos prévios, realizados com a participação imediata da linguagem, e somente quando o
esquema geral de solução da tarefa está pronto, o sujeito começa a concretizá-lo e a concretização desse
esquema já não tem caráter criativo mas executivo.
Tem caráter semelhante a solução de outra tarefa com base na atividade intelectual prática direta,
conhecida em Psicologia pela denominação de "cubos de Kohs".
Nesta tarefa sugere-se ao sujeito construir um desenho geométrico com cubos de lados branco, amarelo,
azul e vermelho, sendo que os dois lados restantes são de duas cores (vermelho-branca ou azul-amarelo)
divididas em diagonais.
10
Em uns casos, figuram os desenhos que se supõem muito simples e são percebidos
imediatamente. Noutros casos, eles são construídos de tal modo que as suas partes diretamente
perceptíveis não correspondem aos elementos da construção (em um desenho o sujeito percebe
um triângulo azul em fundo amarelo ou uma faixa diagonal azul em fundo amarelo (ou um
losango azul em fundo amarelo ou uma faixa azul quebrada em fundo amarelo). Nestes casos o
sujeito deve desmembrar mentalmente o desenho imediatamente perceptível em suas partes
componentes e compreender que as figuras não são formadas por três partes imediatamente
perceptíveis mas por dois cubos pequenos de duas cores, ou que são constituídas de quatro
pequenos cubos, separados na diagonal dos cubos de duas cores.
Essa tarefa, naturalmente, exige que o sujeito se abstenha de tentativas imediatas de execução,
que se oriente nos modos de solução das tarefas e não subordine o seu programa de solução aos
contornos imediatamente perceptíveis do desenho mas a um esquema recodificado que ele deve
criar, fracionando mentalmente os contornos do desenho e substituindo os elementos da
impressão imediata pelos elementos da construção.
Compreende-se perfeitamente que também neste caso o programa de solução intelectual da
tarefa não surge sob a influência da percepção imediata direta mas como resultado da
superação da impressão imediata e subordinação da ação ao esquema que se cria como
produto da recodificação do campo perceptível.
O processo de superação da impressão imediata, que constitui a base do ato intelectual, só pode
ser realizado no processo de orientação prévia nas condições da tarefa, de cotejo do protótipo
direto com os meios dados para a sua realização; deste modo, a solução da tarefa construtiva
direta apresenta um complexo caráter mediato.
É natural que esse caráter complexo do pensamento prático, que acabamos de descrever, seja
produto de um longo desenvolvimento e se perturba facilmente nos estados patológicos do
cérebro.
O teste mostrou que tanto o retardamento intelectual, como a redução da atividade intelectual
nos estados patológicos do cérebro levam à desintegração dessa forma estruturalmente
complexa de atividade intelectual. Os doentes que
11
apresentam semelhante redução do intelecto são incapazes de reter as tentativas de solução da
tarefa construtiva que surgem imediatamente; desaparece a fase de orientação prévia nas
condições da tarefa, razão por que levam ao fracasso as tentativas de resolver imediatamente
uma tarefa complexa evitando a análise de suas condições.
Procurando resolver a tarefa do "cubo de Linck", os doentes começam logo a tentativa de
construir o cubo ignorando que a distribuição correta dos cubos pequenos só pode ser
assegurada por cálculos prévios e, via de regra, terminam rapidamente as suas tentativas
indicando que os "cubinhos são poucos" ou a "tarefa é irrealizável".
Começando a resolver a tarefa do "cubo de Kohs", os doentes não fazem uma análise prévia do
desenho proposto, não desmembram a estrutura imediatamente perceptível nem transformam as
"unidades da impressão" em "unidades da construção". Por isto esses doentes começam
imediatamente a fazer tentativas de representar cada elemento isolado do desenho perceptível
num cubo isolado e não se perturbam se a estrutura a ser construída conservar o número de
elementos imediatamente perceptíveis mas não tiver nenhuma identidade com o protótipo.
É natural que se eles conseguem construir sem grande dificuldades protótipos simples que não
requerem recodificação, resultem inacessíveis quaisquer tentativas de fazer de cubinhos isolados
protótipos complexos, nos quais a execução correta da tarefa só pode ser acessível como
resultado da análise do protótipo e transformação das "unidades da impressão" em "unidades da
construção".
Dados análogos podem ser obtidos mediante a aplicação do método de estudo do intelecto
prático (construtivo), conhecido pela denominação de "figura de Roop".
Neste teste sugere-se ao sujeito reproduzir um protótipo formado por hexágonos contíguos. Para
resolver corretamente a tarefa, é necessário levar em conta que as figuras contíguas têm paredes
comuns, razão pela qual se devem representar no desenho não tanto figuras isoladas quanto
correlações geométricas entre as linhas componentes.
Esta tarefa resulta inacessível para sujeitos com retardamento intelectual ou com perturbação da
atividade intelectual, que começam a cumprir a tarefa sem análise prévia e
12
substituem o desenho da correlação geométrica das linhas pela representação de figuras concretas
isoladas.
Em todos os casos citados, o mais importante é o fato de que a impossibilidade de cumprimento das
tarefas sugeridas ao sujeito não se manifesta como resultado de uma falha particular (por exemplo, a
orientação no espaço), mas da desintegração das formas complexas de atividade intelectual; tal
desintegração manifesta-se no fato de que desaparece a fase de orientação prévia nas condições da tarefa
com a "recodificação" das condições, substituindo-se a estrutura complexa da atividade intelectual pelas
tentativas de cumprimento da tarefa com base nas impressões imediatas.
Patologia do pensamento direto
O comportamento intelectual é produto de uma longa evolução e apresenta uma estrutura psicológica
muito complexa. É natural que qualquer retardamento intelectual, por um lado, e a mudança patológica da
atividade cerebral, por outro, provoquem fatalmente a desintegração da atividade intelectual de estrutura
complexa.
Isto pode ser observado em formas mais nítidas na criança mentalmente atrasada com retardamento
cerebral e na demência da velhice, relacionada com a atrofia da massa cerebral.
É sabido que a criança mentalmente retardada pode conservar todas as modalidades mais simples de
percepção direta e ação, mas é acentuadamente atrasada a sua estrutura de atividade intelectual. Isto se
manifesta no fato de que a criança, com formas profundas de retardamento mental, é incapaz de analisar
satisfatoriamente as situações, distinguir nestas as ligações e relações essenciais e substitui a atividade
intelectual de construção complexa por reações impulsivas imediatas, que são inteiramente determinadas
por impressões superficiais da situação.
Nas formas mais profundas de atraso mental, a criança não consegue estabelecer nem mesmo as relações
mais simples entre as partes de uma situação perceptível. Assim, se ela tem diante de si várias linhas, e
uma delas está amarrada
13
a um objeto que a atrai, ela continua a arrastar-se para esse objeto, ignorando que ele está longe
dela e sem ao menos tentar puxá-lo pela linha, ou puxa a linha que está visualmente mais
próxima do objeto atraente, ignorando a linha a que o objeto está amarrado, caso a ponta desta
esteja situada além dela.
As falhas do comportamento intelectual da criança mentalmente atrasada aparecem facilmente
nos testes em que, para estudar tal comportamento, aplicam-se alavancas, e para atingir o
objetivo é necessário não puxar o cabo da alavanca mas afastá-lo. A criança mentalmente
atrasada, que se mostrou incapaz de resolver essa tarefa, continua puxando o cabo da alavanca,
apesar de escapar-lhe o objetivo. Situação análoga se desenvolve no teste da caixa problemática,
proposto por Leôntyev. Diante da criança coloca-se um objetivo (por exemplo, um bombom) na
caixa, que é fechada a ferrolho; pode-se abri-la pressionando por um furo situado imediatamente
sobre o ferrolho (à direita) ou puxando o ferrolho por um furo situado do lado oposto (à
esquerda). As crianças com forma profunda de retardamento mental não conseguem fazê-lo, e
se o primeiro furo, situado imediatamente sobre o ferrolho, estiver fechado, elas são incapazes
de deixar de manipular numa proximidade imediata do ferrolho, tornando-se a tarefa inacessível
para elas.
Dados aproximados são obtidos também nos testes em que ? criança mentalmente retardada
deve desenhar uma figura complexa ou construí-la de cubinhos, após analisar previamente a sua
estrutura interna. Nestes casos, as crianças mentalmente atrasadas não são capazes de abstrair as
impressões imediatas e substituem o sistema complexo de operações, indispensáveis à solução
dessa tarefa, pela reprodução direta das impressões imediatas.
Fatos análogos de desintegração da atividade intelectual complexa, com supressão da análise da
situação e das operações auxiliares, são observados nos estados de senilidade, que resultam da
atrofia do cérebro (mal de Pick). Os tipos aqui descritos de perturbação da atividade intelectual
direta (prática) são de caráter geral e se traduzem na desintegração geral da estrutura complexa
dessa atividade e na substituição da atividade intelectual por formas imediatas de
comportamento, subordinadas à impressão direta.
14
Podem ter caráter diferente as perturbações da atividade intelectual nas afecções locais do cérebro. Aqui
a afecção limitada do cérebro suprime apenas uma das condições necessárias à realização da atividade
intelectual complexa, razão por que a perturbação do comportamento intelectual pode ter caráter parcial.
Podem servir de exemplo as perturbações da atividade intelectual, que surgem nas afecções das áreas
parietais inferiores (ou occipto-parietais) do córtex. Nestes casos, o doente conserva a tarefa que lhe foi
dada mas é incapaz de organizar corretamente a sua atividade no espaço; ele confunde os lados direito e
esquerdo, não consegue construir um sistema interno de coordenadas espaciais e suas operações no
espaço assumem caráter impotente. Esses doentes não podem desempenhar-se com êxito em nenhuma
tarefa que exija que se levem em conta as correlações espaciais e perturbam-se todas as suas operações
construtivas. Eles não conseguem fazer uma figura de fósforos, um desenho de cubos, construir um cubo
grande de cubos pequenos, etc. Todas essas tarefas se tornam acessíveis caso eles recebam esquemas
espaciais auxiliares, a partir dos quais podem realizar as respectivas operações.
É inteiramente distinto o caráter da perturbação do comportamento intelectual dos doentes com afecções
das áreas frontais do cérebro. Essas afecções levam a que a tarefa, dada a esses doentes, seja muito
instável, a intenção provocada desapareça rapidamente, os doentes caiam facilmente sob a influência das
impressões imediatas, não consigam elaborar ou reter programas complexos de atividade e substituam a
atividade intelectual organizada por atos impulsivos ou repetições inalteráveis de estereótipos uma vez
surgidos.
O estudo da perturbação do comportamento intelectual dos doentes com afecções maciças dos lobos
frontais do cérebro constitui um capítulo da neuropatologia, que é interessante para a" Psicologia.
15
A PÁGINA 16 ESTÁ VAZIA..
II
A Palavra e o Conceito
A SOLUÇÃO de tarefas construtivas práticas é uma das formas de atividade intelectual do homem.
A forma segunda e consideravelmente mais elevada é o pensamento verbal ou lógico-verbal,
através do qual o homem, baseando-se nos códigos da língua, está em condições de ultrapassar
os limites da percepção sensorial imediata do mundo exterior, refletir conexões e relações
complexas, formar conceitos, fazer conclusões e resolver complexas tarefas teóricas.
Essa forma de pensamento é especialmente importante; ela serve de base à assimilação e ao
emprego dos conhecimentos e se constitui no meio fundamental da complexa atividade
cognitiva do homem.
O pensamento que utiliza o sistema da língua, permite discriminar os elementos mais
importantes da realidade, relacionar a uma categoria os objetos e fenômenos que, na percepção
imediata, podem parecer diferentes, identificar aqueles fenômenos que, apesar da semelhança
exterior, pertencem a diversos campos da realidade; ele permite elabo-
17
rar conceitos abstratos e fazer conclusões lógicas, que ultrapassam os limites da percepção sensorial;
permite realizar os processos de raciocínio lógico e no processo deste raciocínio descobrir as leis dos
fenômenos que são inacessíveis à experiência imediata; permite refletir a realidade de maneira
imediatamente bem mais profunda que a percepção sensorial imediata e coloca a atividade consciente do
homem numa altura incomensurável com o comportamento do animal.
Para melhor conhecer as leis que servem de base ao pensamento lógico-verbal, é necessário conhecer
mais de perto como se constrói a língua em cuja base processa-se o pensamento, abordar a estrutura da
palavra que permite formar os conceitos, focalizar as leis básicas das ligações das palavras em sistemas
complexos, que possibilitam realizar juízos, e descrever os sistemas lógicos mais complexos que se
formaram na história da língua; dominando estes sistemas, o homem é capaz de executar operações de
conclusão lógica.
Somente depois deste exame podemos passar à parte mais complexa da Psicologia — à análise das
operações do pensamento discursivo e abordar a psicologia do pensamento produtivo do homem.
O significado da palavra
É com todo fundamento que se considera a palavra unidade fundamental da língua. No entanto seria um
grande erro pensar que ela é uma partícula elementar, indivisível, como se considerou durante muito
tempo, uma simples, ligação (associação) do som condicional com certo conceito.
A lingüística moderna sabe que a palavra tem uma estrutura complexa, podendo-se distinguir nela dois
componentes básicos, que se costumam definir com os termos representação material e significado.
Cada palavra da linguagem humana significa um objeto, indica-o, gera em nós a imagem de um objeto;
ao pronunciarmos a palavra "mesa", nós a relacionamos a um determinado objeto, à mesa; ao
pronunciarmos a palavra "pinheiro" temos em vista outro objeto, o mesmo ocorrendo com as palavras
"cão", "incêndio", "cidade", "tempo", que represen-
18
tam diferentes objetos ou fenômenos. Com isto a linguagem do homem se distingue da "linguagem" dos
animais, que, como vimos acima, expressa em sons apenas um estado emotivo mas nunca representa
objetos através de sons. Essa primeira função básica da palavra é denominada representação material ou,
como dizem alguns lingüistas, função representativa da palavra (do alemão Darstellende Funktiori).
A existência da função representativa da palavra ou representação material é a função mais importante
das palavras, constituintes da linguagem. Essa função permite ao homem evocar arbitrariamente as
imagens dos objetos correspondentes, operar com objetos inclusive quando estes estão ausentes. Como
dizem alguns psicólogos, a palavra possibilita "multiplicar" o mundo, explorar não apenas imagens
diretamente perceptíveis dos objetos, mas também com imagens dos objetos, suscitadas na representação
interna por meio da palavra.
A capacidade da palavra para significar objetos correspondentes com um sinal convencional, de suscitar
as suas imagens não é, contudo, a sua única função.
A palavra tem outra função mais complexa: permite analisar os objetos, distinguir nestes as propriedades
essenciais e relacioná-los a determinada categoria. Ela é meio de abstração e generalização, reflete as
profundas ligações e relações que os objetos do mundo exterior encobrem. Essa segunda função da
palavra costuma ser designada pelo termo significado da palavra.
Analisemos minuciosamente o significado de uma palavra qualquer, por exemplo, da palavra russa
tchernünitsa (tinteiro). À primeira vista pode parecer que ela simplesmente designa um determinado
objeto e suscita a imagem de um tinteiro sobre a mesa. Mas tal coisa está longe da verdade, e a simples
evocação da imagem do objeto não esgota a função dessa palavra. Examinando atentamente essa palavra
descobre-se facilmente que ela tem uma estrutura complexa e é constituída por uma série de partes
componentes. A primeira parte da palavra — tchern (tint) — indica que o objeto por ela designado tem
alguma relação com tintas; indica um indício de cor, que por si mesma está relacionada com outras cores
(negro, vermelho, &2ul, etc). A segunda parte da palavra é o sufixo il: na língua russa, este designa uma
qualidade de instrumento, noutros termos, o objeto em ques-
19
tão pode ser usado como meio de um trabalho qualquer (tchemILa 'tinta', belILa 'branco', motovlLo
'torniquete', gruzILo 'cambulho'). O terceiro componente da palavra tchemílnitsa é o sufixo nits; na língua
russa, este significa que o objeto em questão serve de recipiente de alguma coisa, associando-a a palavras
como "sákharnzísa" 'açucarara', "gortchítchratea" 'mostarde/ra', péretchrczísa 'pimeníe/ra', etc. Assim,
uma palavra que pareceria muito simples revela-se um dispositivo complexo, que analisa a função de um
dado objeto e indica que temos diante de nós um objeto relacionado com tinta (tchern), que serve de meio
a alguma coisa 07) e tem propriedade de recipiente {nits). Um exame minucioso da morfologia da palavra
revela toda a complexidade de sua função. Mostra que temos diante de nós um complexo sistema de
códigos que se formou na história da humanidade e transmite à pessoa que usa a palavra uma complexa
informação acerca das propriedades essenciais para um dado. objeto, das suas funções básicas e das
relações que com outros objetos mantêm as categorias coexistentes que esse objeto possui objetivamente.
Ao dominar a palavra, o homem domina automaticamente um complexo sistema de associações e
relações em que um dado objeto se encontra e que se formaram na história mul-tissecular da
humanidade.
É a essa capacidade de analisar o objeto, distinguir nele as propriedades essenciais e relacioná-lo a
determinadas categorias que se chama significado da palavra.
Na estrutura de cada palavra é fácil observar as duas funções básicas da palavra, ou seja, discriminar o
traço essencial do objeto e relacionar este objeto a certa categoria ou, noutros termos, observar a função
de abstração e generalização.
A palavra stol —• 'mesa' — (radical stl — "posti/af " — 'estender, pôr' —, "nasfz7af " — 'cobrir') indica
uma qualidade essencial da mesa, a existência de "tablado"; a palavra tchasí (radical tchas) indica que a
função básica dos relógios é indicar o tempo (tchasa, em eslavo); a palavra sutki (radical stk — ligar)
mostra que a palavra significa a confluência entre o dia e a noite; a palavra korova — 'vaca' — (do latim
cornü) indica que estamos diante de um animal cornífero.
20
Em palavras relativamente novas, essa função de discriminação (abstração) dos traços essenciais aparece
com nitidez ainda maior: parovoz — 'locomotiva a vapor' — indica dois traços: par — 'vapor' — e voz do
verbo vozií' —■ 'levar', 'transportar': a palavra telefone também tem dois traços: (iele — 'distância' e fone
'voz'). O mesmo ocorre com a palavra televisor: tele — 'distância' e vídeo — 'ver'.
A abstração dos traços essenciais é, entretanto, apenas um aspecto do significado da palavra. O segundo
aspecto é a colocação do objeto em relação com certa categoria, noutros termos, com a função de
generalização.
A palavra "relógio" significa igualmente qualquer relógio, independentemente da sua forma ou do
tamanho; a palavra "mesa" significa mesa de qualquer forma, de qualquer tipo; a palavra "cão" designa
cão de qualquer raça. Cada palavra, inclusive a concreta, não representa sempre um objeto único mas toda
uma categoria de objetos e, nas pessoas que a usam, pode suscitar quaisquer imagens individuais, mas
apenas imagens de objetos pertencentes a essa categoria. É essencial que isto se refere igualmente a
palavras concretas (como "mesa", "relógio", "cão") bem como a palavras que designam conceitos gerais
("país", "cidade", "desenvolvimento", "substância").
A lingüística sabe perfeitamente que a correlação dos componentes figurados diretos da palavra com os
abstratos, generalizadores, não é sempre a mesma; cada grupo de palavras apresenta diferenças essenciais.
Assim, em uns substantivos ("pinheiro", "cão pastor", "samovar") os componentes figurados concretos
são muito fortes, ao passo que em outros ("animal", "país", "pensamento") eles são afastados pelo
significado abstrato generalizador. Sabe-se ainda que nos adjetivos ("amarelo", "seco", "alto") e nos
verbos ("andar", "pensar", "empenhar-se") que, como se sabe, surgiram muitos anos depois que os
substantivos, esses componentes materiais são colocados em segundo plano e a discriminação da
qualidade ou ação, abstraída do objeto lemanescente, constitui o significado básico dessas palavras.
Por último, nas línguas evoluídas existem "palavras acessórias" especiais (preposições, conjunções etc.)
sem qualquer significado material, que não expressam objetos concretos mas as relações entre eles ("sob",
"sobre", "com", "de", "conjuntamente",, "em conseqüência de").
21
Deste modo, cada palavra tem um significado complexo, formado tanto pelos componentes figurado-
diretos, quanto pelos abstratos e generalizadores; é justamente isto que permite a quem usa tais palavras
escolher um dos possíveis significados e em uns casos empregar uma dada palavra em seu sentido
concreto, figurado e, em outros, empregá-la em seu sentido abstrato e generalizado.
Tanto a análise da estrutura morfológica da palavra, como o seu emprego prático do cotidiano mostram
que a palavra não é, em hipótese alguma, uma associação simples e unívoca entre o sinal sonoro
condicional e a noção direta, bem como que ela tem uma infinidade de significados potenciais.
Assim, a palavra "carvão" pode designar um pedaço de carvão-de-lenha, carvão-de-pedra, um pertence de
um pintor que desenha com carvão, o mineral "C", etc. Por isto, em cada situação prática o homem
escolhe entre todos os possíveis significados dessa palavra aquele que mais se adequa a ela. É natural que,
para o pintor, o "carvão" é um instrumento para rascunhos, para a dona-de-casa, algo que serve para
ferver água, para o químico, o elemento "C", sendo a causa de problemas desagradáveis para a menina
que suja o vestido.
Vê-se facilmente que empregos diferentes dessa palavra empanam diferentes processos psíquicos: em uns
casos a palavra "carvão" suscita uma imagem concreta (material que serve para ferver água, para fazer
rascunhos), em outros, sistemas abstratos de ligações lógicas (carvão como elemento "C"), em terceiros,
aflições (o carvão que sujou o vestido).
Por isto o emprego real da palavra é sempre um processo de escolha do significado adequado entre todo
um sistema de alternativas que surgem, com a discriminação de uns sistemas adequados 'de relações e a
inibição de outros que não correspondem à tarefa dada dos sistemas de relações.
Esse sistema de relações, destacado entre muitos significados possíveis e correspondente à situação, é
chamado em Psicologia sentido da palavra.
O sentido da palavra, que depende da tarefa concreta que o sujeito tem diante de si e da situação concreta
em que se emprega a palavra, pode ser totalmente diferente embora exteriormente permaneça o mesmo.
Por exemplo, a palavra "dez" tem sentidos inteiramente distintos na boca de uma
22
pessoa que espera um ônibus e na boca do aluno que acaba de prestar exames; ela tem sentido diferente
para a pessoa que espera o ônibus N.° 3 e vê chegar à parada o N.° 10 e para a pessoa que vê chegar o
ônibus que tanto esperara. A palavra "tempo" tem sentidos inteiramente diferentes quando empregada
pelo serviço de meteorologia ou quando pronunciada por uma pessoa que, após longa conversa, levanta-
se e diz: "bem, o tempo!", querendo com isto dizer que a conversa está terminada; ela adquire um terceiro
sentido na boca de uma velha que olha com reprovação para os jovens e diz: "que tempos!", querendo
externar seu desacordo com as concepções e os costumes da nova geração.
Cabe observar que, além da estrutura morfológica da palavra, existe ainda um fator que pode contribuir
para a distinção do sentido adequado da palavra entre todos os seus possíveis significados. Esse fator é a
entonação que toma a pronúncia de uma palavra. Basta pronunciar a palavra besta, uma vez sem qualquer
entonação especial, e em outra com a entonação humilhante besta! para lhe dar o sentido de pessoa curta
de inteligência, tola, simplória, pedante, etc; a palavra pamonha, pronunciada sem entonação especial,
significa uma espécie de bolo de milho -verde condimentado; pronunciada com entonação especial, essa
mesma palavra adquire o sentido de pessoa tola.
É justamente por isto que a entonação, de importância tão grande no emprego vivo da língua, torna-se,
paralelamente ao contexto, um dos importantes fatores que permitem mudar o sentido da palavra,
escolhendo-o entre muitos significados possíveis.
O processo de emprego real da palavra é a escolha do sentido adequado entre todos os possíveis
significados da palavra e somente existindo um sistema de escolha que funcione com precisão, com o
realce do sentido adequado e a inibição de todas as outras alternativas, o processo de uso das palavras
pode desenvolver-se com êxito para a expressão do sentido e a comunicação.
Ainda examinaremos em caráter especial os desvios que podem surgir na comunicação e no pensamento
quando se perturba o emprego das palavras, baseado no processo de escolha plástica dos significados
possíveis, e quando a palavra continua conservando o mesmo significado rotineiro em todas as situações.
23
Métodos de pesquisa dos significados da palavra
O processo real de emprego da palavra, como a escolha em um^ sistema de múltiplos significados, é
fundamental para a psicologia da comunicação e do pensamento; por isto, uma das tarefas mais
importantes da Psicologia científica consiste em estabelecer a probabilidade com que aflui sempre um ou
outro significado da palavra, escolhido entre muitas alternativas, bem como no estabelecimento daqueles
fatores que determinam o processo de escolha de uma ou outra relação entre todas as relações possíveis.
Para estabelecer precisamente qual dos variados significados da palavra predomina no sujeito e como essa
relação predominante muda dependendo das peculiaridades do sujeito, da situação e da tarefa colocada
diante dele, existe em Psicologia uma série de procedimentos que permitem responder a essa questão
com graus variados de precisão.
O método mais simples de estudo das relações potenciais que a palavra esconde é o estudo das
associações suscitadas pela palavra apresentada. Para tal pesquisa dá-se ao sujeito uma palavra e ele deve
responder à pergunta relacionada com ela com qualquer palavra que lhe vier à mente. Analisando o
caráter da associação que se produz, pode-se ver que relações a apresentação de tal palavra suscita no
sujeito. Assim, se a palavra árvore suscita no sujeito uma associação com um vegetal e a palavra cereja
uma associação com amoras, pode-se pensar que o sujeito tende mais para a 'discriminação das relações
abstratas e generalizadores do que outro sujeito no qual a palavra árvore suscita imediatamente a
associação com amendoeira e a palavra cereja a associação com pomar ou doce.
O método de análise das "associações livres" foi aplicado com êxito em Psicologia ao estudo do caráter
das relações semânticas predominantes no sujeito e à caracterização das suas tendências para relações
predominantemente diretas ou predominantemente abstratas. Esse método se mostrou muito importante
tanto para a caracterização das peculiaridades individuais na atividade intelectual do sujeito, quanto para
o diagnóstico dos desvios que se podem observar no significado das palavras nos estados patológicos do
cérebro.
24
O segundo método de estudo das relações semânticas reais, que a palavra implica, é o método
psicofisiológico objetivo de estudo dos "campos semânticos", elaborado no último decênio por
estudiosos soviéticos e estrangeiros (americanos). Esse método aplica procedimentos da
pesquisa objetiva do reflexo orientado e consiste no seguinte.
Durante um período bastante longo, apresenta-se ao sujeito um grande número de palavras
diferentes e sem relação entre si; durante todo esse período, ele registra os componentes
involuntários do reflexo orientado (vasculares, contatos-galvânicos ou eletroencefalográficos).
Inicialmente cada palavra suscita no sujeito um reflexo orientado nítido, que se manifesta na
compreensão dos vasos do braço (e ampliação dos vasos da cabeça), o surgimento da reação
galvânica por contato ou depressão do alfa-ritmo. Após algum tempo, o sujeito se acostuma aos
estímulos verbais e estes deixam de provocar-lhe qualquer reação orientada. É nesse período
que começa o teste de análise objetiva das relações semânticas.
Para este fim, uma palavra (palavra-"teste") é acompanhada por um estímulo de dor ou para
responder a essa palavra o sujeito deve apertar uma chave com a mão direita, enquanto registra
a reação vascular com um dedo da mão esquerda. Essas duas condições levam a que, após
várias repetições do teste, a apresentação da palavra-"teste" começa a suscitar no sujeito uma
reação orientada estável, que serve de reação básica para o teste posterior.
Após obter uma nítida reação orientadora à apresentação de uma palavra-"teste" (por exemplo, a
palavra gato), o experimentador coloca diante de si uma questão básica: além da palavra
"gato", que palavras suscitam no sujeito sintomas análogos de reação orientada (compressão
dos vasos da mão, surgimento de reação galvânica por contato, depressão do alfa-ritmo, etc.)?
Se outras palavras que estão direta ou indiretamente relacionadas com a palavra gato começam
a suscitar no sujeito os mesmos sintomas de reflexo orientado, como a própria palavra-"teste",
isto é um sintoma objetivo de que tal palavra suscita todo um sistema de relações semânticas,
que suscitam igualmente uma reação orienta-
25
da; esse método será um procedimento para o estudo objetivo do sistema de relações semânticas (ou de
"campos semânticos"), que surgem no sujeito em cada apresentação da palavra correspondente.
O estudo dos sintomas objetivos das relações possibilitou a obtenção de resultados de grandiosa
importância para a Psicologia.
Esse estudo mostrou que, no adulto normal, um grupo de palavras semanticamente aproximadas da
palavra-"teste'\ começa a suscitar os mesmos sintomas de reações orientadas como a própria
palavra-"teste". Assim, se em resposta à palavra-"teste" gato o sujeito apresentava a reação motora
exigida, comprimindo a chave e localizando ao mesmo tempo os componentes, vegetativos e
eletrofisiológicos do reflexo orientado que surgem involuntariamente (compressão dos vasos da
mão, reação galvânica por contato, depressão do alfa-ritmo), com a apresentação de palavras
semanticamente semelhantes — gatinho, rato, cão, animal —, surgiam-lhe idênticas reações
involuntárias (vegetativas e eletrofisiológi-cas), embora em resposta a essas palavras ele não
apresentasse nenhuma reação motora arbitrária. Verificou-se que quanto maior é a semelhança
semântica da palavra apresentada com a palavra-"teste", tanto mais intensivos são os traços involuntários
da reação orientada (por isto essas reações são mais fortes diante das palavras gatinho ou rato do que
ante a palavra animal); em palavras indiferentes, desvinculadas da palavra-"teste" (por exemplo, em
palavras como vidro, tubo, céu, etc), geralmente não surgiam tais sintomas de reflexo orientado. O
resultado mais importante das observações foi o fato de que, se as palavras semanticamente aproximadas
da palavra-"teste" suscitavam a mesma reação orientada, como a própria palavra-"teste", todas as
palavras aproximadas, pelo som, da palavra-"teste", não provocavam nenhuma reação orientada.
Assim, reagindo com reações orientadas às palavras gatinho, rato, cão e animal, os sujeitos normais não
reagiam com reações orientadas a palavras próximas, pelo som como janela, panela, lixo, luxo, etc.
Isto mostra que por meio do método aqui descrito podemos realmente estabelecer um sistema
daquelas relações semânticas que cada palavra oculta e que, no sujeito nor
26
mal, essas relações têm caráter semântico e não caráter sonoro externo.
O estudo objetivo das relações semânticas pode aprofundar-se ainda mais. Mediante a aplicação
do referido método, podemos medir com certa precisão o grau de proximidade entre certos
grupos semânticos, estabelecer objetivamente os sistemas dos "campos semânticos" em que se
distribuem as palavras mais próximas e mais distantes entre si.
Para este fim aplica-se outra variante do método que descrevemos.
A palavra-"teste" é sempre acompanhada por uma estimulação de dor, que suscita não uma
reação orientada mas uma reação defensiva, que consiste na compressão dos vasos da mão e da
cabeça. Depois disto, as palavras que apresentam grau variado de semelhança com a
palavra-"teste" começam, durante certo tempo, a suscitar reações diferentes: as palavras mais
próximas da palavra-"teste" (por exemplo, na palavra-"teste" violino, a palavra arco) começam
a suscitar a mesma reação defensiva que a palavra-"teste" (compressão dos vasos da mão e da
cabeça); as palavras que pelo sentido são mais distantes da palavra-"teste" mas que, não
obstante, guardam certa semelhança com ela (por exemplo, as palavras guitarra, tambor),
começam a suscitar apenas uma reação orientada (compressão dos vasos da mão e ampliação
dos vasos da cabeça); por último, as palavras que não têm qualquer relação com a
palavra-"teste" (por exemplo, as palavras janela, nuvem, bosque) não suscitam nenhuma reação
orientada.
Assim, podemos descrever objetivamente todo um campo semântico em cujo centro estão as
palavras mais próximas pelo sentido, encontrando-se na periferia as palavras de sentido comum
mais distante com a palavra-"teste", situando-se fora desse campo semântico todas as outras
palavras que não têm nenhuma afinidade com a palavra-"teste".
O método aqui descrito é de grande importância, permitindo estabelecer objetivamente o grau
de proximidade entre diversos sistemas semânticos, noutros termos, possibilitando estabelecer
objetivamente as estruturas dos campos semânticos. O estudo objetivo das relações semânticas é
de grande importância tanto para a psicologia dos sistemas semânticos e a lingüística,
quanto para a análise dos
27
desvios que se verificam nas relações semânticas nos estados patológicos.
Assim, foi estabelecido que se no sujeito normal os sintomas objetivos correspondentes são suscitados
por palavras próximas da palavra-"teste" no sentido semântico, mas não são provocados por palavras que
com esta guardam semelhança sonora externa, na criança com retardamento mental ocorre justamente o
contrário: as palavras próximas da palavra-"teste" podem, pelo sentido, não provocar reações
correspondentes, ao passo que as palavras a ela semelhantes pelo som provocam tais reações.
Usando-se a palavra gato como palavra-"teste", nesses sujeitos, palavras como rato, cão e animal podem
não suscitar reações correspondentes, ao passo quê as palavras crato, crista, custo suscitam reações
vasculares, análogas àquelas provocadas pela palavra-"teste".
É interessante que a estrutura dos campos semânticos não permanece a mesma mas pode variar
dependendo de diferentes condições.
Assim, entre os escolares com forma leve de retardamento mental, no estado descansado (no início do dia
de trabalho), reações idênticas podem ser provocadas predominantemente por palavras semanticamente
muito próximas da palavra-"teste", ao passo que, no estado de fadiga (após cinco aulas), reações análogas
começam a ser provocadas predominantemente por palavras semelhantes pelo som.
Vê-se facilmente que grande importância tem o estudo objetivo do sistema de relações semânticas tanto
para o diagnóstico da estrutura dos processos cognitivos nos estados de patologia cerebral, quanto para as
suas mudanças, dependendo da fadiga.
-5 Evolução do significado das palavras
Seria incorreto pensar que a estrutura complexa da palavra, que compreende tanto a significação do
objeto como o sistema de traços abstratos e generalizadores, teria surgido de um golpe e que a língua teria
possuído, desde os seus primórdios, um sistema de significados que podem ser observados nas formas
mais desenvolvidas da língua.
Durante muito tempo, quando a palavra era entendida como uma simples associação do sinal sonoro
condicional com a imagem direta, os estudiosos estiveram convencidos de que o significado continuava
imutável em todas as fases do desenvolvimento e que a evolução da língua reduzia-se ao simples
enriquecimento do vocabulário e à ampliação do círculo de noções designados por palavras isoladas.
Essa concepção é profundamente errônea.
Em realidade, o significado da palavra passa por uma complexa evolução, e se a representação material
da palavra continua a mesma, desenvolve-se o seu significado, ou seja, o sistema de relações e ligações
que ele implica, o sistema de generalizações realizado pela palavra. Por isto, a palavra não apenas muda
de estrutura em etapas diferentes da evolução, como passa a basear-se em novas correlações de processos
psicológicos.
Ainda sabemos muito pouco acerca das etapas da evolução histórica da palavra nas fases sucessivas de
desenvolvimento da sociedade. No entanto as poucas conjeturas dos historiadores das etapas mais antigas
da evolução da linguagem (a chamada paleontologia da fala) levam a pensar que a palavra nem sempre
teve as formas precisas que atualmente tem, nem dispôs do sistema preciso de significados que
caracterizam as palavras de uma língua desenvolvida.
As teorias modernas da linguagem aventam a hipótese de que esta surgiu no processo comunicativo do
trabalho, no qual "surgiu nas pessoas uma necessidade de dizer algo umas às outras". Nas primeiras
etapas, a linguagem se constituía antes de exclamações, entrelaçadas num sistema de gestos e atos de
trabalho, do que de palavras de significado rígido e permanente. Era justamente em decorrência dessa
ligação indissolúvel com a prática ou, como dizem os psicólogos, do caráter "simprático" da fala, que
essas exclamações, nas etapas iniciais da evolução histórica da linguagem, não tinham significado próprio
permanente e, dependendo da situação prática, do gesto ou da entonação, podiam significar a simples
indicação de um objeto ou sinal de que era necessária precaução ou um pedido para trazer alguma coisa.
Por isto podemos supor que as primeiras palavras-exclamações, que não tinham rígida referência material
nem significado permanente, expressavam antes uma situação efetiva e adquiriam sentido dependendo da
ação em que se entrelaçavam.
29
Somente como resultado de um longo processo de evolução, que durou vários milênios, as palavras
começaram : significar traços particulares e, mais tarde, objetos comple-xos que eram portadores desses
traços. Isto pode ser julgar: apenas pelas peculiaridades das línguas mais antigas, pouc: desenvolvidas,
que conservaram remanescentes das formai mais primitivas de estrutura da palavra. Numa língua de;
índios americanos, a palavra "lago" é designada pela palavra composta kech-kam-ui; cada parte dessa
palavra indica uma marca ainda não suficientemente definida (kech significa algo grande, kam, um espaço
qualquer, ui, alg: inerte). É natural que as palavras de semelhante líng"— só paulatinamente adquirem
nítida referência material e. r: primórdios, o estudo delas dependia altamente da situai! em que elas se
empregavam e dos atos, gestos e entonações; de que eram acompanhadas.
Somente depois de milênios as palavras começaram £ assumir significado preciso e estável, que adquiriu
a sua base na separação paulatina da base morfológica dos significado dos radicais, que codificam
determinadas marcas dos objete: e sufixos, que designam certas relações.
Dispomos de um número insuficiente de fatos, que indicam a transformação gradual da linguagem num
sistema objetivo e diferenciado de códigos, que representa não apenas os traços e objetos, mas também as
ligações e relações, só alguns fatos históricos (por exemplo, o fato já referido de as preposições e
conjunções complexas terem origem nas significações materiais) dão fundamentos para tirar concluso»
acerca das etapas percorridas pelo processo de formação dos complexos códigos lingüísticos.
Sabemos bem mais a respeito da evolução da palavra ontogênese, ou seja, das transformações que sofre a
pala à medida que a criança se desenvolve.
O processo de evolução do discurso infantil, particul mente o domínio do vocabulário que começa no
final do p?? meiro ano de vida da criança e começo do segundo, foi freqüentemente interpretado como
simples processo de assimilação das palavras de uma língua evoluída, empregada pej» adulto.
O fato de a formação das palavras surgir na criança z,r< processo de assimilação da linguagem do adulto,
não susc:..
dúvida; entretanto isto não significa, de maneira nenhuma, que a criança assimile de imediato as palavras
da língua na forma em que elas se apresentam no discurso do adulto.
Sabe-se que entre o fim do primeiro ano de vida e começo do segundo, a criança começa a assimilar as
palavras do adulto em resposta às palavras "onde está a xícara?", "onde está a boneca?", pronunciadas
pela mãe, vira a cabeça e olha para os objetos mencionados.
Mas isto está longe de significar que a criança da referida faixa etária domina de imediato a referência
material precisa de dada palavra.
Como mostraram as observações da pesquisadora soviética M. M. Koltsovaya, a criança reage à altura
ante a palavra pronunciada se ela a percebe, em certa atitude, de determinada pessoa, se a palavra do
adulto é pronunciada com certa entonação e é acompanhada de determinado gesto. Basta excluir um
desses componentes da situação para a •criança não mais reagir adequadamente à palavra. Isto significa
que, nas primeiras etapas, a palavra é percebida pela •criança como o componente de toda uma situação
que engloba uma série de influências extra discurso. Somente depois de certo período a palavra adquire
relativa independência e começa a significar o objeto mencionado independentemente de quem e com que
voz pronuncie a palavra, de que gestos a acompanhem e em que situação foi pronunciada.
Mas nessa etapa, que se forma na metade do segundo ano de vida, a palavra que a criança ouve ainda não
adquire nítida referência material e suscita antes uma ação que representa determinado objeto.
A psicóloga soviética Fradkina fez uma interessante observação. Uma criança no início do segundo ano
de vida aprendeu o seguinte: em resposta à pergunta "cadê a cabeci-nha?", mostrava a cabeça de uma
boneca, mas quando lhe mostravam uma boneca sem cabeça ela repetia o mesmo gesto indicador; o
mesmo ocorria quando lhe perguntavam "cadê o papai?" e ela mostrava o retrato, repetindo o mesmo
gesto quando se retirava o retrato.
As palavras percebidas pela criança de tenra idade não suscitam, absolutamente, uma referência material
precisa e ainda não têm uma sólida função significativa, provocando, antes, apenas gestos e atos da
criança que pouco se distinguem de outros sinais.
31
Esses sinais são conservados também na etapa subseqüente de desenvolvimento da criança, quando a
palavra já começa a adquirir alguns traços de autêntico sistema de sinais mas ainda não designa por si só
o objeto e sim traços deste, que são avaliados pela criança como portadores de mais informação. Em suas
pesquisas, os psicólogos soviéticos G. L. Rozengardt e N. H. Shvatchkin observaram o seguinte: à
solicitação "mostre o pato", a criança, no segundo ano de vida, responde mostrando esse objeto, e quando
ao seu redor não existe um pato ela pode apontar para uma louça arredondada com bico fino; em resposta
à solicitação "mostre o gato", ela pode apontar para qualquer pedaço de pele que sirva para luvas, etc.
Por conseguinte, também nessa fase a palavra ainda não tem referência material nítida, significando
apenas traços particulares mais informativos e nunca o objeto em sua totalidade.
Fatos análogos podem ser estabelecidos, observando o significado das primeiras palavras da criança.
Durante muito tempo os psicólogos observaram que as primeiras palavras que surgem na criança não
significam objetos precisos e, por conseguinte, ainda não têm nítida referência material. Segundo
observações do conhecido psicólogo alemão Karl Stumpf, seu filho empregava a palavra "êi-der" para
designar não apenas pato mas também água e a moeda em que aparecia a figura de uma águia. Nas
observações de outro psicólogo, a criança que começava a falar denominava gato com a palavra "gh" mas
aplicava esta, simultaneamente, ao barrete de pele e a um arranhão no dedo, etc. Conseqüentemente, a
"palavra" inicial não significava na criança pequena um objeto determinado mas um traço do objeto;
ademais, esse traço era instável e distinguia-se dependendo da situação (êider — pato — água — figura
da ave; gh — gato — maciez da pele — dor provocada pelo arranhão, etc). Segundo recordações do
conhecido mnemoni-zador S acerca da sua infância tenra, a palavra "besouro" significava para ele barata,
parte fraturada de um vaso, medo da escuridão, etc.
A referência material nítida da palavra não se manifesta nas etapas tenras de desenvolvimento da criança
mas é um produto do desenvolvimento.
32
Ha ainda menos fundamentos para considerar que as primeiras palavras da infância tenra têm
caráter diferenciado e designam o objeto, a ação ou a qualidade. Observações em gêmeos com
retardamento considerável da evolução da fala (Luria) mostraram que a palavra "ô!" significava
simultaneamente cavalo, vamos, pare, mudando de significado dependendo da situação em que
era empregada, do tom com qu& era pronunciada e do gesto que a acompanhava.
Apenas no final do segundo ano de desenvolvimento normal muda esse caráter difuso das
palavras, empregadas pela criança. As palavras adquirem uma estrutura diferenciada;, surgem
os sufixos, que dão à palavra significado preciso; a interjeição "ô!" adquire o caráter de "ô-
valo!" que indica concretamente o objeto (cavalo e deixa de significar ação (vamos, pare, etc).
Com o surgimento da palavra morfologicamente diferenciada, aumenta consideravelmente o
vocabulário da criança. Se as palavras assumem um significado estável mais determinado,
começando a designar objetos ou ações, a criança deixa de exprimir com uma só palavra as
situações mais diversas, necessitando de um número maior de palavras diferenciadas. Eis
porque ao desenvolvimento de uma estrutura morfoló^ica não estão relacionadas apenas a
libertação da palavra dos-fatores extradiscurso que a acompanhavam (situações, gestos,
entonação) e a transformação da linguagem da criança num sistema de códigos, onde cada
elemento tem nítida referência material, como também o enorme salto no volume de palavras
que os observadores situam entre o fim do segundo ano de vida e começo do terceiro.
A criança de 3-4 anos sente interesse pela forma da palavra: por isto é justamente a esse período
que pertence a "criação das palavras" da criança, bem conhecida na literatura. Assimilando as
peculiaridades morfológicas da palavra, a criança começa por si mesma a construir as palavras,
conservando os traços concretos do objeto e o sistema de sufixos que designam determinado
modo de ação do objeto. Ê justamente nesse período que surgem palavras infantis como
aviãodor (em vez de aviador), batelo (em vez de martelo), cachorrãozão (em vez de cachorro
grande), etc.
Vê-se facilmente que imenso trabalho faz a criança desse período na assimilação das partes
morfológicas (sufixos) da
33
palavra, permitindo analisar aspectos isolados do objeto, discriminar-lhe as funções os traços
funcionais e introduzi-la no sistema de outros objetos que apresentam os mesmos traços.
O processo de assimilação precisa da referência material da palavra e seu significado concreto,
que é questão central na criança de 3-5 anos, durante muito tempo apresenta como traço
característico o fato de as palavras continuarem tendo caráter concreto. A criança assimila
palavras que, para o adulto, já perderam o uso concreto e assumiram o caráter de significação de
conceitos gerais.
São bem conhecidos casos em que à pergunta: "esta aqui é uma menina, e você, quem é?, a
criança responde: "Eu sou Marina!" ou à pergunta "isto é um cão?" ela responde: "Não, esse é
Tomik!"
Situam-se nesse período os fatos de interpretação concreta das palavras, cujo efeito são os
divertidos equívocos de compreensão do sentido figurado das palavras (por exemplo, a
inesperada reação da criança à expressão "ele se deitou com as galinhas" através da réplica:
"não, elas beliscam").
O predomínio do significado figurado, concreto da palavra, que caracteriza esse período de
domínio da língua, foi estudado por S. N. Karpova: se dermos a uma criança de 5-6 anos a
tarefa de separar as palavras da frase e contá-las, ela, via de regra, começa a separar e contar as
palavras que designam objetos concretos, omitindo as palavras de significado não-concreto,
auxiliar. Assim, nas primeiras etapas a criança separa e conta apenas algumas unidades
semânticas substantivas ou concretas, omitindo os verbos e as palavras secundárias (por
exemplo, na frase "mamãe foi ao bosque" conta apenas duas palavras: mamãe e bosque); em
seguida separa as palavras que designam objetos e ações mas omite as palavras secundárias (por
exemplo, discriminando mamãe — foi — ao bosque) e somente dominando a arte de ler e
escrever, começa a discriminar todos os componentes do discurso, distinguindo incorretamente
os elementos que fazem parte da composição de uma palavra (mamãe — ao — tornou-se).
O processo de assimilação da composição morfológica da palavra mostra de modo patente o
caminho complexo e amplo que a criança percorre ao assimilar tanto a referência material da
palavra, quanto seu significado generalizado.
34
r
Nas crianças de idade pré-escolar e escolar, o processo <le assimilação da referência material e
do significado mais aproximado da palavra termina e começa um processo — mais complexo e
mais dificilmente acessível à observação — de desenvolvimento interno da estrutura semântica
da palavra.
A palavra e o conceito
Descrevemos acima o fato de que cada palavra de uma língua evoluída oculta um sistema de
ligações e relações nas ■quais está incluído o objeto designado pela palavra e de que "'cada
palavra generaliza" e é um meio de formação de conceitos, noutros termos, deduz esse objeto do
campo das imagens sensoriais e o inclui no sistema de categorias lógicas que permitem refletir o
mundo com mais profundidade do que o faz a nossa percepção. Ao dizermos jaca, introduzimos
■esse objeto na categoria de instrumentos; ao dizermos árvore, designamos um sistema de
ligações do qual esse objeto faz parte.
Eis porque a palavra não apenas significa uma imagem mas também inclui o objeto no
riquíssimo sistema de. ligações e relações em que ela se encontra.
Essa tese, conhecida na filosofia materialista como doutrina do "conceito concreto", indica que
a transição de significações mais diretas (como amendoeira, pinheiro) para ■conceitos mais
genéricos (como árvore, vegetal) não apenas não empobrece como enriquece substancialmente
as nossas concepções. Ao dizermos vegetal, incluímos nesse conceito ■uma rede de ligações
mais rica do que amendoeira ou álamo. Esse termo genérico encobre uma oposição entre
vegetal e ■animal, dele fazem parte as categorias de árvore e erva, nele ■existe em forma
latente toda a riqueza de variedades individuais de árvores (pinheiro, carvalho, álamo), ervas
(esparga-niâcio, urtiga), de gramíneas (centeio, trigo, aveia), etc. Por isto o conceito genérico,
representado pela palavra que pelo grau de concreticidade pode afigurar-se pobre, pelo sistema
de ligações que ela implica é incomparavelmente mais rico do que a representação concreta do
objeto individual. A filosofia marxista vê na transição da significação material do
35
objeto para a significação do conceito abstrato não um processo de empobrecimento ou
ascensão ao abstrato, mas um processo de enriquecimento ou ascensão autêntica ao concreto, se
por concreticidade entendermos a riqueza das ligações em cujo sistema o conceito inclui o
referido objeto.
Analisando a estrutura semântica da palavra que significa o conceito, vê-se facilmente que ela
implica uma série de imagens com ela coordenadas bem como várias imagens subordinadas, ou
seja, cada palavra generalizada tem, segundo expressão de Vigotsky, sua "amplitude" e sua
"longitude" (ou "profundidade").
Ao pronunciarmos a palavra "cão", coordenamos essa imagem com imagens situadas numa
série como gato, cavalo, ovelha, coelho, raposa, lobo, e quanto mais amplo o conceito de que o
homem 'dispõe, tanto maior o número de concepções coordenadas (ou situadas numa série com
elas) que esse conceito incorpora.
Mas ao pronunciarmos a palavra "cão", incluímos essa imagem num sistema hierárquico de
categorias mais genéricas do qual tal imagem faz parte (um sistema de "medidas de
generalidade" de diferentes graus — cão — animal — vivo) e suscitamos ao mesmo tempo uma
série de imagens particulares subordinadas a esse conceito e situadas nos seus limites (cão,
ovelha, buldogue, etc).
Deste modo, ao mencionar determinada palavra, o homem não apenas reproduz certo conceito
direto mas suscita praticamente todo um sistema de ligações que vão muito além dos limites de
uma situação imediatamente perceptível e têm caráter de matriz complexa de significados,
situados num sistema lógico.
Ê natural que esse sistema de relações semânticas, implícito na palavra que expressa um
conceito, permita ao pensamento movimentar-se em muitos sentidos, que são determinados pela
"amplitude" e a "profundidade" desse sistema de relações. Por isto a palavra que forma
conceito pode se-considerada, com todo fundamento, o mais importante mecanismo que serve
de base ao movimento do pensamento.
O sistema de relações, latentes na palavra-conceito, não í o mesmo em pessoas diferentes.
Compreende-se perfeitamente que nas pessoas, que assimilaram um grande conjunto de
conhecimento fornecido pela escola e a ciência moderna, esse sistema de relações, tantj
36
pelo volume de conceitos coordenados, quanto pelo número de "medidas de generalidade"
hierarquicamente construídas, é incomparavelmente mais rico do que nas pessoas que têm experiência
apenas limitada e não assimilaram um rico sistema de conhecimentos. Seria incorreto pensar que essas
diferenças têm caráter apenas quantitativo. A pesquisa mostra que, em diferentes níveis de
desenvolvimento mental, a estrutura dos conceitos é profundamente diversa e nos níveis posteriores de
desenvolvimento o conceito oculta diferentes processos psíquicos.
Já dissemos que em toda palavra portadora de conceito podem-se discriminar facilmente tanto os
componentes figu-rado-emocionais diretos (na palavra cão, discriminamos a imagem latente do animal
correspondente, na palavra árvore^ a imagem da árvore correspondente), quanto o sistema de relações
lógicas, integrado tanto por conceitos com eles coordenados, quanto conceitos mutuamente subordinados
(mais particulares ou mais gerais — cão, animal doméstico, animal em geral, etc; cão, animal de caça,
animal doméstico, cão de caça, bassê, etc). É essencial o fato de que, em diferentes pessoas, sobretudo
naquelas que estão em diferentes níveis de desenvolvimento intelectual, a correlação das relações direto-
jiguradas não é a mesma. Se nas etapas inferiores de desenvolvimento predominam no homem as
relações direto-figura-das, nas etapas mais desenvolvidas de desenvolvimento cabe posição determinante
aos complexos sistemas de relações lógicas.
Eis porque nas crianças de idade pré-escolar predominam nitidamente as reações figurado-emocionais
latentes na palavra, predominando nos alunos do primário relações diretas concreto-figuradas e
circunstanciais, e relações lógicas complexas nos alunos do curso superior e nos adultos.
Assim, a palavra venda ou mercearia suscita na criança de idade pré-escolar várias emoções ("pão
quente", "bom-bons gostosos"), na criança de idade escolar, uma situação prática direta (tipo de casa
comercial, balconistas, prateleiras com mercadorias, estabelecimento, compradores que entram e saem),
provocando na pessoa adulta e bem-preparada os conceitos de "produção" e "distribuição", às vezes o
conceito de "sistema capitalista e socialista", etc. Esse fato sugere a profunda mudança da estrutura do
significado das palavras (conceitos), experimentada por elas nas etapas sucessivas da
37
evolução, e dá fundamento para formular uma das teses básicas da Psicologia moderna segundo
a qual o significado da palavra evolui e, apesar de não variar a referência material da palavra
nas diferentes fases de desenvolvimento, muda radicalmente o conteúdo dos conceitos
implicitamente representados pela palavra bem como a estrutura das relações, suscitadas pela
palavra.
Nas diferentes etapas de desenvolvimento, o sistema de processos psicológicos, latentes na
palavra, não é o mesmo e o conceito, suscitado pela palavra, é realizado por diferentes
processos psicológicos. É fácil nos convencermos disto. Na criança pequena a palavra suscita,
acima de tudo, reações emocionais e imagens diretas; na criança em idade escolar primária, a
palavra implica antes de tudo um sistema de recordações diretas e por isto ela pensa recordando;
no aluno do curso superior e na pessoa com alto nível de desenvolvimento intelectual, a palavra
evoca antes de tudo um sistema de operações lógicas, daí ele a memorizar pensando. Essa
mudança profunda da correlação dos processos psíquicos implícitos no conceito (e,
conseqüentemente, no pensamento), em etapas particulares da evolução intelectual, é um dos
mais importantes fatos descobertos pela Ciência Psicológica. É por isso mesmo que a Psicologia
afirma que o homem reflete e toma consciência do mundo de diferentes modos em cada etapa
do desenvolvimento, baseando-se em significados da palavra estruturalmente diferentes e numa
estrutura do conceito diferente pelos mecanismos psicológicos que apresenta. Essa tese foi
lançada em seu tempo por Vigotsky, que foi o primeiro a sugerir uma profunda relação entre a
estrutura do significado da palavra (conceito) e a estrutura da consciência, formulando a tese da
estrutura semântica e sistêmica da consciência, por outras palavras, a tese segundo a qual, nas
etapas sucessivas do desenvolvimento, a consciência do homem é realizada por conceitos que
têm estrutura semântica (direto-figurada ou lógico-verbal) e por uma correlação diferente de
processos psíquicos (percepções, memorizações, pensamento verbal abstrato), correlação essa
que muda nas diferentes etapas de desenvolvimento intelectual da criança.
É essencial, ainda, o fato de que a correlação de componentes direto-figurados (práticos) e
lógico-verbais, que muda nas etapas sucessivas do desenvolvimento, não permanece a mesma
em conceitos diferentes.
38
Em Psicologia costumam-se distinguir dois tipos de conceito, que são diferentes tanto pela
origem quanto pela estrutura psicológica. É comum designá-los com os termos conceitos
comuns e científicos.
Os conceitos comuns {cadeira, mesa, lavatório, pão, árvore, cão) são assimilados pela criança
no processo da experiência prática e, neles, as relações direto-figuradas ocupam posição
predominante. A criança tem uma noção prática do que significa cada um desses conceitos, e a
palavra correspondente evoca nela a imagem da situação prática em que ela esteve em contato
com o objeto. Por isto a criança conhece bem o conteúdo de todos esses conceitos mas, via de
regra, não consegue formular ou determinar verbalmente o conceito.
É inteiramente distinto o que ocorre com os conceitos "científicos", adquiridos pela criança no
processo de aprendizagem escolar (conceitos como estado, ilha, verbo, mamífero, etc). Esses
conceitos se incorporam à consciência da criança como resultado da aprendizagem. Inicialmente
eles são formulados pelo professor e só posteriormente completados com um conteúdo concreto.
Por isto o aluno pode, desde o início, formular verbalmente esses conceitos e só bem mais tarde
tem condições de completá-los com um conteúdo válido.
É natural que sejam totalmente distintos a estrutura dos dois tipos de conceito e o sistema dos
processos psicológicos que participam da formação deles: nos conceitos "comuns" predominam
as relações circunstanciais concretas, nos "científicos", as relações lógicas abstratas. Os
conceitos "comuns" se formam com a participação da atividade prática e da experiência
figurado-direta, os "científicos", com a participação determinante das operações lógico-verbais.
Os dois referidos tipos de conceito ocupam posição variada na vida intelectual do homem e
refletem diferentes formas de sua experiência.
Métodos de estudo dos conceitos
O estudo psicológico dos conceitos e sua estrutura interna tem uma importância tão grande tanto
para a teoria psicológica quanto para o diagnóstico prático das peculiaridades
39
do desenvolvimento intelectual e sua patologia, que se faz : necessária uma abordagem especial dos
métodos que se apli-r cam a tais fins.
O primeiro e mais difundido método de estudo psicológico dos conceitos é o método de definição dos
conceitos--. Cabe de imediato a ressalva de que não faz parte desse método o estudo do grau de precisão
ou plenitude lógica c^ definição dos conceitos (plenitude essa que é pouco acessível à criança no que
concerne aos conceitos com os quais ■ela efetivamente opera). O método de definição dos conceitos,
adotado em Psicologia, tem como tarefa fundamental explicar quais as correntes que tentam definir e,
acima de tudo, estabelecer se o sujeito inclui o conceito que lhe é ■dado num sistema de relações lógicas
ou se substitui esse processo pela simples descrição dos traços evidentes do objeto que é representado
pela palavra.
Para o pensamento lógico-verbal desenvolvido, é natural a definição do conceito através de sua
introdução no sistema de uma categoria lógica mais genérica. Por isto definições como "a mesa é um
móvel", o "martelo é uma ferramenta", "o cão é um animal" são o modo mais comum de definição de um
conceito, que indica que nessa operação cabe papel determinante aos processos de pensamento lógico-
verbal. Distinguem-se acentuadamente desse procedimento as de-
; íinições do conceito na criança pequena e na pessoa não habi-
,s tuada à atividade teórica lógico-verbal. A criança pequena costuma substituir o processo de definição
do conceito com
~ sua inclusão numa categoria lógica mais genérica, por outro processo psicológico — a definição do
objeto nomeado, a discriminação dos seus traços concretos, ou funções básicas. Por isto são mais
características das crianças definições como ""a cadeira serve para a gente se sentar nela!", "o martele
serve para pregar pregos!", "o cão ladra!", etc.
O caráter das operações psicológicas, empregadas para definir o conceito, distingue-se radicalmente
daquele que descrevemos; se o sujeito, apesar dos exemplos que lhe são dados e das tentativas de ensinar-
lhe a definir logicamente os conceitos, continua a substituir a definição dos conceitos pela descrição
direta do objeto ou pela discriminação do seu traço distintivo, o pesquisador pode indicar com suficiente
fundamento que as operações figurado-diretas predominam
-" lidamente nesse sujeito sobre as lógico-verbais abstratas.
40
O segundo método de estudo psicológico dos conceitos é o método de comparação dos conceitos. O
sujeito recebe duas palavras, que significam objetos de uma categoria e deve compará-los, encontrar o
denominador comum que os une.
Em um teste mais simples, esses dois objetos pertencem evidentemente a uma categoria (por exemplo,
"cão" e "gato", "xícara" e "prato", "pistola" e "fuzil"). Em outro teste mais complexo, os dois traços, ao
pertencerem à mesma categoria, são variedades que se distinguem não acentuadamente e a descoberta de
uma categoria comum constitui grandes dificuldades (podem servir de exemplo os termos "cão" e
"esquilo", "árvore" e "peixe"). Por último, na terceira variante, a mais difícil, mencionam-se ao sujeito
dois objetos que, embora pertençam à mesma categoria (abstrata), assim mesmo contraem relações
mútuas concretas tão nítidas que o sujeito deve ser capaz de descrever essa evidente interação para
encontrar a categoria geral a que pertencem os dois objetos (podem servir de exemplo pares como um
"garoto" e um "cão", um "homem" e um "cavalo", etc).
Os sujeitos adultos, que estão num nível elevado de desenvolvimento intelectual, resolvem facilmente
essa tarefa encontrando uma categoria geral à qual pertencem ambos os objetos e dizem: "o cão e o gato
são animais", "a xícara e o prato são louças", etc. Essa definição dos objetos mediante sua inserção numa
categoria geral é possível inclusive se ambos os objetos pertencerem a situações nitidamente diversas ("o
cão e o lobo", "o corvo e o peixe") ou se o primeiro que vier naturalmente à cabeça do sujeito indicar uma
interação concreta de tais objetos ("o cão morde o garoto", "o homem anda a cavalo", etc).
É inteiramente diverso o que ocorre no estudo de uma criança pequena e um homem situado num nível,
bastante baixo de desenvolvimento intelectual. Nestes casos não tentam, de maneira alguma, encontrar
uma categoria lógica geral em que seja possível inserir ambos os mencionados objetos. Ao invés disto
começam a descrever cada objeto, discriminan-do-lhe os traços evidentes ("o cão ladra e o gato arranha",
■"na xícara bebe-se chá, no prato põe-se o pão") ou tentam encontrar a interação entre eles ("o cão pode
morder o garoto", "o homem anda a cavalo", etc). A operação de pensamento lógico ou referência a uma
categoria lógica geral 6 substituída pela operação de descrição de indícios particula-
41
res; por isto, as referências às diferenças concretas entre ambos os objetos costumam anteceder a
operações de descoberta de afinidade lógica entre eles, enquanto as operações de descrição da interação
prática direta entre eles antecedem à operação de generalização lógica.
Se esse caráter das operações permanece apesar da longa aprendizagem da criança, o psicólogo pode
afirmar que o sistema de relações figurado-diretas predomina nitidamente no sujeito sobre o sistema de
operações lógico-verbais abstratas.
O terceiro procedimento, mais difundido, de estudo psicológico dos conceitos é o método de
classificação.
Em sua forma mais simples, esse método consiste no seguinte. Sugerem-se ao sujeito quatro palavras (ou
quatro quadros), três das quais pertencem a uma categoria geral (por exemplo: instrumentos, louça,
animais) e o quarto não pertence a esse grupo; o sujeito deve responder quais as trè* palavras
(objetos) que pertencem a mais um grupo ou qu;.-: os três objetos que podem ser unificados por uma
palavn comum, devendo ainda mencionar o quarto objeto que pertence a esse grupo e é supérfluo.
O,presente procedimer.:: pode ter diversas variantes. Na variante mais simpes, o qus:-to objeto — o
"supérfluo" — se distingue acentuadamen:: quer pela categoria a que ele pertence, quer pela forma; ~:
variante mais complexa, os objetos pertencentes a uma ca:;-goria geral têm forma variada, o objeto
"supérfluo" mantém a semelhança externa com um dos objetos pertencente? i categoria geral. Por último,
na variante de teste mais cc~-plexa, porém ao mesmo tempo mais informativa, o suje::: recebe
quatro objetos três dos quais podem participar de ur. situação eficaz-direta sem pertencerem à
mesma catego: -enquanto o quarto objeto, pertencente à mesma categoria c_t pertencem os outros
dois, às vezes não se encontra n situação prática com eles.
A forma mais complexa desse método é o método classificação livre.
Propõe-se ao sujeito um grande número (20-30) de catões com figuras de diversos objetos e dividi-los em
grapr nos quais se situem os cartões pertencentes à mesma cate?: ria. Divididos os cartões em grande
número de grupos ÍTÍ cionados, propõe-se ao sujeito ampliar esses grupos, unificando alguns grupos
pequenos. Sugere-se em seguida denomi-_r" cada um dos grupos discriminados com uma palavra comi^x.
Um adulto suficientemente preparado resolve facilmente ambas as variantes dessa tarefa, unificando os
objetos pertencentes à mesma categoria ("móvel", "animais", "vegetais", "ferramentas", etc), apesar da
diferença do tipo externo dos elementos integrantes dessa categoria, e recusa (ou insere em outro grupo)
os objetos exteriormente semelhantes porém pertencentes a diferentes grupos.
Resultados diferentes são apresentados por crianças pequenas ou sujeitos situados num baixo nível de
desenvolvimento intelectual.
Via de regra, a unificação dos quadros diretos em grupos abstratos (categorias) é uma operação
inacessível a esses sujeitos. As crianças pequenas (pré-escolares) não iniciam o cumprimento dessa tarefa
ou reúnem os objetos segundo a sua semelhança externa (cor, forma). Às vezes tentam reuni-los pelo
sentido mas, nestes casos, ao invés de reuni-los numa categoria geral (abstrata), unificam-nos numa
situação direto-efetiva concreta. Assim, prato, faca, garfo, pão, mesa podem ser reunidos em um grupo;
em outro grupo podem inserir-se cão, casinha onde o cão vive, tigela para a comida do cão, etc.
Grupamento efetivo-concreto análogo, que não é tanto uma classificação quanto uma inserção numa
situação direta geral, continua característico das crianças de tenra idade escolar, especialmente para as
crianças que apresentam retardamento mental. É típico destas o fato de que nenhuma tentativa de ensinar-
lhes a classificação abstrata ("categorial") autêntica é bem-sucedida e, concordando com a possibilidade
de semelhante classificação, os sujeitos fogem rapidamente desta para o grupamento circunstancial-direto
dos objetos e sob nenhuma condição passam ao nível de operações lógicas abstratas.
Vê-se facilmente a grande importância dos resultados do teste para a avaliação das formas reais de
generalização próprias dos sujeitos, bem como para a caracterização das correlações típicas dos elementos
figurado-diretos e lógico-verbais do conceito.
A metodologia descrita incorpora-se mais uma tarefa especial de estudo do modo pelo qual foram
construídos os sistemas de coordenação e subordinação dos conceitos, denominados por Vigotsky de
medidas de generalidade.
43
O sujeito recebe um grupo de 20-30 palavras escritas em cartões isolados, que significam diferentes
conceitos coordenados e subordinados que ele deve dividir em certos sistemas lógicos, por exemplo:
animais domésticos cão(pastor,buldogue, bassê) gato e vaca. selvagens: lobo, raposa e lince. Vegetais; árvore
(pinheiro abeto bétula) grama ], espargânio.
O adulto com nível bem elevado de desenvolvimento intelectual e suficientemente preparado resolve
facilmente essa tarefa, distinguindo nitidamente tanto os conceitos coordenados quanto os subordinados,
colocando os cartões num determinado sistema lógico. Via de regra, a criança não tem condições de fazê-
lo e sua classificação carece inteiramente de caráter de sistema lógico hierarquicamente organizado, que
na melhor das hipóteses assume a forma:
cão — bassê — buldogue......
lobo — raposa — animal.....
árvore — abeto — pinheiro___
grama — espargânio — urtiga..
• Se esse caráter da classificação permanece inalterado mesmo depois que o experimentador mostra à
criança um exemplo de estrutura válida logicamente organizada, há todos os fundamentos para afirmar
que a criança ainda não domina as relações das medidas de generalidade lógicas, embora tenha dominado
a classificação simples.
Vê-se facilmente que a comparação de todos os dados, obtidos com o auxílio dos métodos descritos,
possibilita uma
44
informação bastante completa que caracteriza tanto a estrutura lógica dos conceitos de um dado
objeto, quanto os processos psicológicos que lhe servem de base.
Nos métodos descritos, entretanto, verifica-se uma falha: constatando bem o nível dos conceitos
característicos do sujeito, tais métodos ainda não refletem à altura todo o processo de formação
do conceito. Por outro lado, eles operam com sistemas já conhecidos de conceitos e por isto
refletem não só as habilidades como a própria existência do conhecimento do sujeito.
Para evitar tais falhas, aplica-se com êxito, em Psicologia, o método de formação de conceitos
artificiais, proposto em seu tempo pelo psicólogo alemão N. Ach e modificado por Vigotsky e
seus colaboradores (L. S. Sakharov). Esse método se propõe observar como se formam
paulatinamente no sujeito os novos conceitos artificiais, as fases que o sujeito percorre no
processo de assimilação dos novos significados das palavras artificialmente criados e como
ocorre na realidade o processo de assimilação de tais significados.
Sugerem-se ao sujeito várias figuras geométricas de madeira, de tamanho, forma e altura
variados, pintadas com diferentes cores (branco, azul, verde, amarelo, vermelho). Cada uma
dessas figuras é representada por uma das quatro "palavras" condicionais ("ras" — "hasum"
— — -—), que significam respectivamente: figuras grandes e altas, grandes e baixas, pequenas
e altas, pequenas e baixas. Todas as figuras se distribuem em ordem na mesa; as "palavras"
escritas em cada figura são distribuídas no lado onde estão situadas as figuras.
O sujeito, que não domina esses novos "conceitos" artificiais, inicialmente faz conjeturas acerca
da importância de uma dada "palavra" e escolhe uma figura pela cor, a forma ou o tamanho,
semelhante à que lhe foi sugerida. O experimentador descobre a "palavra" representada em uma
das figuras escolhidas e mostra que ela não pertence ao grupo representado pela palavra "ras";
ocorre que na figura há outra palavra escrita, por exemplo, "hasum". Isto coloca o sujeito diante
da tarefa de lançar uma nova hipótese e se antes ele escolhera um grupo de figuras semelhantes
à primeira pela forma, agora ele seleciona um grupo de outras figuras, semelhan-
45
tes pela cor ou pelo tamanho. É natural que ele torne a errar. Mas agora, ao prosseguir o teste,
ele já dispõe de duas ou três "palavras" que representam diferentes figu-
ras e lhe surge a possibilidade de fazer novas "partidas"
com base num grande volume de informação.
Acompanhando o contínuo desenrolar do teste, o experimentador tem condições de observar
as conjeturas que o sujeito faz, o princípio pelo qual se constroem as figuras que ele seleciona
e, por conseguinte, o significado que ele atribui à respectiva "palavra" artificial.
Um experimento realizado por Vigotsky permitiu descrever várias classificações formadas em
série e discriminar várias formas de "conceitos" empregados pela criança em diferentes etapas
do desenvolvimento. Citaremos apenas os mais importantes.
1. A modalidade mais elementar de unificação das figuras é a sua unificação pelo tipo de
"acumulado". As crianças de tenra idade se negam inteiramente a classificar as figuras à base de
qualquer princípio hipotético. Elas acumulam em um grupo as figuras casualmente reunidas ou
começam a fazer desenhos delas; a "palavra" e o "princípio" que ela oculta não desempenham,
aqui, nenhum papel.
2. A segunda modalidade de unificação das figuras é a sua unificação pelo tipo de conjunto
simultâneo ou sucessivo, no qual cada figura se insere conforme a base que apresenta. Assim
sendo, para uma pequena pirâmide verde com 2 inscrição "ras", o sujeito escolhe um pequeno
círculo verde (pelo traço de cor), escolhe uma grande pirâmide amarela (pelo traço de forma) e
um pequeno cilindro vermelhe (pelo traço de tamanho), etc. Resulta daí a formação de algo
como uma "família", na qual cada figura tem posição determinada pelo seu fundamento (assim
como um integra a família como irmão, outra como irmã e um terceiro come pai, etc).
Às vezes essa modalidade de unificação assume outra forma, designada pelo termo conjunto
seriado. Para uma pequena pirâmide verde escolhe-se uma grande pirâmide azul (pelo traço de
forma), para esta, um grande cilindro azul (pelo traço de cor), escolhendo-se para o cilindro azul
um pequeno cilindro amarelo (pelo traço de forma), etc. Vê-se facilmente
46
que, neste caso, a permanência do traço não é observada e a unificação se faz segundo o traço
que sempre muda.
3. A terceira forma transitória é aquela na qual o sujeito, comparando um número sempre
crescente de "palavras" condicionais que representam diferentes figuras, já constrói as hipóteses
do significado dessas palavras e discrimina os grupos adequados de objetos, que se distinguem
pela mesma combinação de traços, embora cometa deslizes incluindo nesse grupo figuras que
apresentam traços secundários. Essa fase de desenvolvimento das generalizações é designada
como fase de pseudoconceitos.
4. Por último, o derradeiro estágio ao qual nem de longe chegam todos os sujeitos, é o estágio
de formação do conceito autêntico; este conceito é solidamente retido pelo sujeito e a ele se
contrapõem outros grupos em que a palavra condicional designa outra combinação de traços.
Como mostraram as observações de Vigotsky, a possibilidade de abstrair vários traços evidentes
e captar que o significado da "palavra" artificial reúne um grupo de traços •que até então não
constituíam um conceito, surge no desenvolvimento num período relativamente tardio e começa
a se manifestar solidamente entre os 12 e os 14 anos de idade.
Esse fato não significa, absolutamente, que as crianças não operam com conceitos; em dadas
condições especiais, entretanto, os novos conceitos artificiais podem surgir em um nível
relativamente alto de desenvolvimento dos significados "verbais.
O experimento de Vigotsky desempenhou importante papel na Psicologia. Mostrou de maneira
patente que, em diferentes etapas, o significado da palavra encobre diferentes formas de
generalização e diferentes processos psicológicos e, conseqüentemente, evolui.
Esse experimento mostrou, simultaneamente, que o estudo experimental da formação dos
conceitos pode ter grande importância diagnostica, estabelecendo o nível que a criança pode
atingir, estando numa fase inferior de desenvolvimento intelectual, e as peculiaridades do
processo de formação dos conceitos que caracterizam determinados estados patológicos da
atividade cerebral. É nisto que consiste a grande importância do método de estudo experimental
da formação dos conceitos.
47
Patologia do significado das palavras e dos conceitos
*' Os métodos experimentais de estudo do significado das palavras e assimilação dos conceitos
abrem novas possibilidades para a descrição das peculiaridades dos processos cognitivos que se
manifestam nos estados patológicos do cérebro. A aplicação desses métodos tem grande
importância diagnostica, possibilitando uma informação nova e rica, que pode ser necessária
tanto para uma melhor compreensão da estrutura dos processos cognitivos, quanto para a
precisão do diagnóstico de diversos tipos de patologia dos processos psíquicos.
Tornaremos a abordar as mudanças do significado das palavras nos estados patológicos do
cérebro, para passar posteriormente à descrição das formas básicas de patologia do processo de
formação (assimilação) dos conceitos.
A manutenção do significado pleno das palavras requer» como já foi indicado, uma sólida
referência da palavra a determinados objetos (referência material) bem como a existência de um
sistema de relações diferenciado e móvel, que constituem a base dos significados verbais: as
duas podem perturbar-se nos estados patológicos do cérebro.
É sabido que a função do córtex do lobo temporal esquerdo — aparelho central de análise e
síntese dos sons da fala — consiste em discriminar na cadeia de sons os fonemas nítidos e
assegurar a permanência dos complexos sonoros que representam certas palavras.
Por isto é absolutamente natural que o estado patológico do córtex do lobo temporal esquerdo,
que provoca perturbação da discriminação de fonemas isolados, leve fatalmente a que as
palavras da linguagem falada, percebidas pelo doente, percam o caráter nítido e a referência
material precisa. Se a palavra voz começa a soar como foz, pós ou nós, ela perde naturalmente
seu significado mais próximo e o homem experimenta consideráveis dificuldades em relacioná-
la a determinado objeto. É característico que os doentes com afec-ção do córtex da região
temporal esquerda e com manifestação da chamada "afasia sensorial" costumem manter o
significado difuso da palavra, compreendam que a palavra modismo significa um conceito geral
(correspondente ao sufixo
48
ismo) mas percam a capacidade de relacionar essa palavra difusa pelo som a uma imagem
precisa.
E inteiramente distinto o caráter da perturbação ao significado das palavras, que surge na
afecção das áreas mais complexas (terciárias) da região temporo-parieto-occipital.
Nestes casos, a estrutura sonora da palavra consérva-se plenamente e a referência material da
palavra não se perturba. Mas por força do estado patológico do córtex dessa região (que
assegura o funcionamento conjunto das áreas temporais, parietais e occipitais), perturba-se o
processo de discriminação normal do sistema determinante, essencial de ligações latentes na
palavra e o doente, ao tentar recordar a palavra adequada, não consegue distingui-la entre todas
as alternativas que surgem, confundindo a palavra autêntica com palavras de sentido
aproximado, pelo som e a estrutura gramatical; nestes casos, na tentativa de chamar o objeto
pelo nome, surge algo semelhante àquilo que nós experimentamos ao tentarmos recordar um
sobrenome pouco conhecido, que se complica por causa de diferentes associações correlatas (a
"família cavalar"* de Tchekhov pode servir de ilustração de semelhantes dificuldades).
Perturbações mais grosseiras do significado das palavras ocorrem nos casos de retardamento
geral do cérebro, que serve de base ao retardamento mental, ou nos casos de afec-ções
orgânicas gerais, que levam a perturbações tróficas do cérebro e servem de base à demência
orgânica. Nestes casos, a variedade das possíveis ligações latentes na palavra diminui
acentuadamente, os componentes figurado-diretos imediatos da palavra começam a predominar
sobre os componentes lógico-verbais abstratos e o significado da palavra come-Ç4 a ter caráter
elementar unificado. Relacionam-se com este mesmo caso as ocorrências de predomínio das
relações sonoras externas sobre as internas, semânticas, a que já nos referimos ao descrevermos
os métodos objetivos de estudo dos campos semânticos.
Ocorre processo inverso nos casos de doenças psíquicas, que são designadas na clínica pela
palavra esquizofrenia. Nes-
* Trata-se de uma história em que todos os personagens têm os nomes derivados dos nomes dos arreios
de cavalo. (N. do T.)
49
íes casos a referência material imediata da palavra é deixada para último plano, o significado
costumeiro da palavra, adquirido na experiência prática do sujeito, deixa de aparecer com
grande probabilidade, tornando-se igualmente provável o surgimento de diferentes relações
sonoras e semânticas, que costumam ser reprimidas pela consciência normal. Por isto a
■estrutura do significado das palavras assume caráter profundamente patológico, que leva à
eclosão de associações colaterais inesperadas.
São igualmente nítidas as mudanças que ocorrem no •estados patológicos do cérebro no
processo psicológico de formação (assimilação) dos conceitos.
Os doentes com afecções locais limitadas da região temporal e occipito-temporal do hemisfério
esquerdo podem não apresentar perturbações consideráveis na estrutura dos conceitos; aqui a
afecção só perturba as correlações normais do aspecto sonoro e semântico da fala, mas conserva
a estrutura dos conceitos já assimilados anteriormente.
Mudanças consideráveis da estrutura dos conceitos observam-se nos casos de retardamento
mental e demência orgânica, bem como numa série de doenças psíquicas específica-(por
exemplo, na esquizofrenia).
Nos casos de retardamento mental e demência orgânica o complexo sistema de relações, que
serve de base aos conceitos, fica seriamente perturbado, desintegram-se as ligações lógico-
verbais abstratas e a posição determinante é ocupado pelas ligações figurado-diretas concretas.
Nos doentes desse grupo surge a possibilidade de realizar operações de inserção dos conceitos
em determinadas categorias lógicas, o processo de classificação lógica dos objetos é substituído
pela descrição direta destes e o papel determinante no pensamento passa das operações lógico-
verbais abstratas para a reprodução da experiência ativa direta, substituindo a classificação
"categorial" abstrata pela inserção do objeto numa situação ativa direta.
Ocorre o inverso na esquizofrenia, onde as ligações direto-eficazes são colocadas em último
plano e a posição determinante é ocupada pelas relações lógico-verbais que perdem seu caráter
seletivo, o que cria a impressão de um pensamento dos doentes inadequado, demasiadamente
abstrato e desordenado.
50
105
São justamente esses processos que constituem a necessária condição psicológica do pensamento teórico
ou dedutivo (possibilidade de tirar conclusões de uma regra geral por meio de operações lógicas teóricas);
como mostraram as observações, eles são resultado de um complexo desenvolvimento histórico. Eles
ainda não existem em forma idêntica nas pessoas daquelas formações históricas nas quais predominam as
formas imediatas de prática e o pensamento teórico ainda não atingiu o suficiente desenvolvimento;
formam-se apenas no processo de assimilação dos tipos básicos de atividade teórica (na aprendizagem
escolar e nas formas complexas de comunicação pelo trabalho).
As teses que acabamos de formular podem ser ilustradas com uma série de observações.
Se sugerirmos a um sujeito, que se criou numa formação histórico-social na qual predominam formas
visi velmente eficazes de prática, e ainda não passou pela . aprendizagem escolar, o par "cão-animal", isto
ainda não quer dizer que se lhe sugerirmos a palavra "espargânio" esta lhe evoque o par lógico "vegetal".
A prática de pensamento teórico nesses sujeitos ainda é insuficiente, a relação lógica gênero-espécie não
será aqui assimilada como dominante e a palavra "espargânio" terá grande probabilidade de evocar as
imagens diretas de "pântano", "corte" ou imagens diretas de situações práticas.
" como "alimentar o gado", "preparar para o inverno", etc. Como resultado da assimilação deficiente das
matrizes lógicas, o pensamento das pessoas que vivem nas condições da experiência prática elementar
processar-se-á antes no plano da reprodução de situações evidentes-eficazes que no plano do
estabelecimento de relações lógicas abstratas e as leis do pensamento serão aqui essencialmente
distintas.
Se, dando continuidade ao teste, sugerirmos aos sujeitos ambas as premissas do silogismo acima
formulado, poderemos ver facilmente que elas se repetem não tanto como duas teses relacionadas entre si
por diferente medida de generalidade, quanto como duas afirmações correlatas ou duas perguntas
isoladas, que não refletem a relação lógica e não criam uma estrutura lógica única.
106
Por isto a repetição das duas premissas pode assumir o caráter:
— os metais preciosos não enferrujam;
— e o ouro, metal precioso, não enferruja; ou
— os metais preciosos enferrujam ou não?
— o ouro, metal precioso, enferruja ou não?
As observações posteriores mostram que as duas teses examinadas, que não se correlacionam
em um sistema lógico único, naturalmente não dão fundamento para se tirar automaticamente
delas uma conclusão lógica como se tira facilmente com base na experiência prática ou no
conhecimento existente, mas ainda não pode surgir por meio da conclusão lógica.
É por isso mesmo que os sujeitos desse grupo podem fazer facilmente uma conclusão dos dados
que se apóiam na sua experiência prática imediata, mas se negam a tirar conclusão desse mesmo
silogismo se este não compreende a experiência própria deles.
Assim, os sujeitos desse grupo tiram facilmente "conclusão" do silogismo:
"Em toda parte onde é quente e úmido nasce algodão".
"Na aldeia X é quente e úmido".
"Será que lá nasce algodão?" declarando: "É claro, lá ele deve nascer. Sendo quente e úmido,
ele nascerá fatalmente, isto eu sei..."
No entanto eles não podem tirar conclusão do silogismo que não lhe reflita a experiência
pessoal e quando se lhe sugere o silogismo
"No Extremo Norte, onde há neve o ano inteiro, todos os ursos são brancos".
"O lugar X se encontra no Extremo Norte".
"Será que os ursos de lá são brancos?" eles respondem
"Não posso afirmar! Não estive no Norte e não sei. É melhor você perguntar ao vovô M., ele
esteve no Norte e lhe dirá..."
Vê-se facilmente que, neste caso, o sujeito se nega praticamente a tirar conclusão de uma
premissa que não se baseia na sua experiência prática individual e o pro-
107
cesso de conclusão é aqui não tanto uma operação do pensamento dedutivo lógico, quanto uma
operação de reprodução dos próprios conhecimentos, dos resultados de sua própria
experiência prática.
Como mostraram observações especiais, semelhante recusa a tirar conclusões lógicas de uma
tese que não se baseia na experiência prática pessoal caracteriza a grande maioria de sujeitos
que vivem em formações econômicas atrasadas e não passaram por aprendizagem escolar.
Mas é bastante uma aprendizagem escolar relativamente breve ou a sua inclusão na faina
coletiva, que requer discussão conjunta e planificação do processo de trabalho, para o problema
mudar radicalmente e o homem começar a incorporar-se facilmente à operação de conclusão
lógica, dedutiva.
Desenvolvimento da conclusão lógica na criança
O domínio da operação de conclusão lógica passa por várias fases sucessivas, que podem ser
claramente observadas no processo de desenvolvimento da criança.
Já indicamos que, no início da idade pré-escolar, tanto a referência material quanto o significado
mais aproximado das palavras estão suficientemente constituídos e a simples comunicação dos
acontecimentos se torna plenamente acessível.
Isto ainda não significa que até esse momento a criança domina perfeitamente as formas
complexas de "comunicação de relações".
Já dissemos que conceitos relativos como "irmão" e "irmã" ainda não estão suficientemente
constituídos até esse momento, e a criança que diz ter um irmão Carlos, cai em impasse se lhe
pedem para dizer como se chama o irmão Carlos por não ter condições de relacionar esse
conceito consigo mesma.
É ainda mais complexo o processo por que passa a assimilação dos códigos lógicos da língua,
que estão presentes nas palavras acessórias "porque", "embora", "apesar de...", etc. As
observações do notável psicólogo suíço Jean Piaget mostram que, na criança de 5-6 anos, as
referidas palavras
108
não ocultam o significado lógico que adquirem no aluno de curso superior ou no adulto.
Piaget sugeriu a crianças frases interrompidas pelas palavras "porque" ou "embora", pedindo-
lhes para concluí-las. Os dados aí obtidos mostraram que essas palavras não tinham atrás de si
as relações lógicas que lhes são próprias quando empregadas por pessoas adultas; a criança que
concluía semelhantes orações representava antes a ordem ou a continuidade dos
acontecimentos, que a sua dependência causai. Justamente pelo fato de que a assimilação
externa das palavras acessórias ainda não redunda na assimilação do seu significado lógico
interno, a criança de 5-6 anos não podia apresentar protótipos de acabamento das orações como
"o menino caiu porque... foi levado para o hospital" ou "está chovendo porque..1, as árvores
estão molhadas". Aqui a busca da causalidade era freqüentemente substituída pela simples
constatação de traços diretamente perceptíveis, levando a juízos do tipo: "o barco rema e não
afunda porque... é vermelho" ou "porque é grande" ou "porque... ele é pequeno".
É natural que essa substituição do conceito de causalidade pela percepção imediata e pela
descrição externa do fato não podia levar à formação de um autêntico "sentido lógico"; daí
surgirem todos os fundamentos para se supor que "sentidos lógicos" como o "sentido do
porque" ou o "sentido do embora" surgem na criança bem mais tarde do que o uso externo
desses termos, e a assimilação autêntica desses conceitos passa por uma longa e complexa via
de desenvolvimento.
As observações de Piaget mostraram que não apenas a assimilação do pleno significado das
palavras acessórias lógicas, como também do significado dos juízos como sua universalidade
surge bem mais tarde do que se poderia imaginar. Assim, entre um grande número de
"comunicações de acontecimentos" ou de juízos particulares, reunidos em crianças de 5-6 anos,
Piaget não encontrou nenhum que tivesse caráter de juízo geral; por isto um processo lógico
como a conclusão de uma premissa geral ou dedução resultou inteiramente estranho para as
crianças dessa idade cujos juízos eram antes um reflexo do acontecimento concreto
imediatamente perceptível que a formulação de uma regra de significado universal.
109
Eis por que os testes de Piaget, cuja tarefa era observar na criança dessa idade uma autêntica
operação de conclusão lógica, terminavam fatalmente em fracasso, assim como os testes que
tentavam obter conclusões das sentenças
— Todos os habitantes da cidade N. são bretões. '"'"' — Todos os bretões da cidade N.
morreram na guerra. '; — Há sobreviventes da cidade N.?
não tinham caráter de conclusão lógica de premissas e provocavam invariavelmente respostas
do tipo "não sei... não estive lá", "não me disseram nada sobre isso", etc.
Essas peculiaridades do pensamento infantil, que não opera com conceitos genéricos mas com
impressões concretas e juízos diretos ^ únicos, tornam impossíveis para a criança as operações
de conclusão a partir de um silogismo ou os processos de dedução, e levam a considerar que o
processo de pensamento infantil não tem caráter de dedução (conclusão lógica de uma sentença
geral) nem caráter de indução (passagem do juízo único para a sentença geral) mas caráter de
transição do singular ao singular, que o psicólogo alemão W. Stern designou com o termo
transducção. É justamente em virtude desse caráter dos juízos que o pensamento da criança
dessa idade é insensível às contradições lógicas. Se a criança que observa um objeto que flutua
diz que "ele flutua porque é grande" e, em outra ocasião, "porque ele é pequeno", em ambos os
casos ela apresenta apenas juízos concretos, não surgindo nenhum sentido de contradição lógica
entre tais juízos.
Segundo Piaget, a assimilação das verdadeiras operações de conclusão lógica surge na criança
quando ela começa a dominar operações inversas, por outras palavras, no período em que cada
operação lógica corresponde a uma operação dupla inversa (por exemplo, 3 + 2 = 5, 5 — 2 = 3),
quando a criança assimila não juízos isolados mas sistemas de juízos, que servem de base a todo
conhecimento científico.
Os fatos descritos por Piaget são de grande importância para a compreensão das peculiaridades
do pensamento infantil; no entanto a sua hipótese, segundo a qual as autênticas operações
lógicas se desenvolvem apenas muito tarde e em certo sentido são produtos do amadurecimento
natural, provocou várias objeções sérias entre os psicólogos soviéticos. Lançou-se entre estes a
hipótese de que a total impossibilida-
110
de de levar a criança de 6-7 anos a fazer as operações lógicas, observadas por Piaget, é resultado do fato
de se terem sugerido à criança tarefas lógicas estranhas a ela, limitando-se aqui ao campo puramente
verbal as possibilidades de orientação nos meios de solução dessas tarefas.
Outros resultados poderão ser obtidos se na orientação de uma dada tarefa for incluída a experiência
direta-eficaz da criança. Nestes casos, como mostraram as observações do conhecido psicólogo soviético
A. V. Zaporojets, a criança que recebe a sugestão de tirar uma conclusão de um silogismo com análise
eficiente-direta prévia do conteúdo da premissa maior e, em seguida, da menor, tem condições de
dominar tanto o juízo genérico quanto a correlação das premissas maior e menor bem antes da criança a
quem esse silogismo é sugerido em forma puramente verbal. Os experimentos com a orientação prévia
racionalmente organizada da atividade da criança, com verificação eficiente, por etapas, do juízo geral e
sua transferência posterior do plano eficaz-direto para o plano lógico-verbal, permitiram mostrar que a
criança de 5-6 anos pode chegar ao pleno domínio de operações lógicas e que as normas etárias,
determinadas por Piaget, não são, em hipótese alguma, limites absolutos que não podem ser ultrapassados
nas condições de uma aprendizagem cientificamente organizada da criança.
Processo de solução das tarefas
Nos casos que acabamos de examinar, a operação de pensamento consiste em atingir o domínio de um
sistema lógico que estava implícito numa comunicação verbal ou num silogismo, e tirar uma conclusão
científica lógica a partir das relações formuladas no silogismo. A única condição de cumprimento da
respectiva operação lógica consistia em assimilar uma dada estrutura de relações lógicas e jazer uma
certa conclusão ou inferência, que é determinada de maneira unívoca pelo algoritmo {sistema de
operações) encerrado no silogismo.
Nem de longe o processo de pensamento é determinado em todos os casos por um algoritmo acabado,
encerrado na condição lógica.
111
A maioria esmagadora das operações de pensamento não é determinada por um algoritmo
unívoco, e o homem que se ache diante de uma tarefa complexa deve encontrar sozinho o
caminho de sua solução, abandonando os procedimentos lógicos incorretos e discriminando os
corretos. Ê esse o caráter do pensamento criativo; no processo de solução de qualquer tarefa
complexa surge a necessidade desse pensamento criativo.
O exemplo mais patente de semelhante pensamento produtivo pode ser visto na solução dos
habituais problemas de aritmética, que, com pleno fundamento, podem ser considerados
modelo de ação intelectual lógico-verbal.
O problema sempre coloca diante do sujeito um fim, que está formulado na pergunta que
encerra cada tarefa. O fim é dado em determinadas condições e o sujeito que resolve a tarefa
deve, antes de tudo, orientar-se em suas condições, discriminando do conteúdo o mais
importante, comparando as partes componentes. Somente esse trabalho, que serve de base
orientadora à ação intelectual, permite criar a hipótese da via pela qual deve seguir a solução,
por outras palavras, a estratégia da solução, seu esquema geral. Após determinar a estratégia,
aquele que resolve a tarefa pode passar à discriminação das operações particulares que sempre
devem manter-se nos limites da estratégia geral, devendo observar rigorosamente a ordem de
tais operações. Estas podem, às vezes, permanecer relativamente simples e, às vezes, adquirem
caráter complexo e são constituídas de toda uma cadeia de elos ordenados (que o sujeito deve
conservar em sua "memória operativa"), levam a determinado resultado; quem resolve a tarefa
deve cotejar esse resultado com a condição inicial, só concluindo a ação se o resultado
corresponder à condição; caso não haja essa correspondência, deve reiniciar a ação até atingir a
necessária combinação do resultado com a condição inicial.
É natural que todo o processo que descrevemos deva ser sempre determinado pela tarefa básica
e não ir além dos limites de sua condição; qualquer perda do nexo de operações isoladas com a
condição inicial redunda fatalmente na impossibilidade da tarefa e transforma o ato intelectual
numa cadeia de associações carentes de sentido.
Tudo isto cria exigências especiais sob as quais o processo de solução da tarefa pode conservar
o caráter válido.
112
'' Quem resolve uma tarefa deve lembrá-la e não perder o nexo da pergunta com a condição da
tarefa; deve orientar-se ( nas condições da tarefa e inibir qualquer tentativa de operações
imediatas que surgem impulsivamente, não subordinadas ao esquema semântico geral da tarefa.
Ele deve criar certo "campo interno" em cujos limites devem processar-se todas as suas Buscas
e operações, não ultrapassando, em hipótese alguma, os limites do campo lógico interno; deve
executar as necessárias operações de cálculo, sem esquecer o lugar que cada operação ocupa na
estratégia geral da solução da tarefa. Por último, ele deve, como já dissemos, comparar o
resultado obtido com a condição inicial.
O descumprimento de cada uma dessas exigências leva fatalmente à desintegração do ato
intelectual.
A complexidade do processo intelectual exigido é diferente em casos distintos e varia
dependendo da estrutura da tarefa.
Em tarefas simples (do tipo: "Catarina tinha três maçãs e Sônia duas. Quantas maçãs as duas
meninas tinham?"), o desenvolvimento das operações (algoritmo de solução da tarefa) é
determinado de maneira unívoca por sua condição; não pode vir à cabeça nenhuma operação
estranha e a solução da tarefa não costuma provocar quaisquer dificuldades.
A grande complexidade do processo surge em outra variante dessa tarefa. "Olga tinha três
maçãs, Sônia tinha duas a mais; quantas maçãs as duas meninas tinham?". Aqui o algoritmo da
solução da tarefa (a -f- (a+b) = X) é de caráter consideravelmente mais complexo e a adição
direta dos dois números referidos na condição leva a resultado falso. Quem resolve a tarefa deve
impedir a' solução direta e formular uma pergunta complementar, não indicada na condição
("Quantas maçãs Sônia tinha?"), somente realizando uma operação intermediária (3 + 2 = 5) e
aproveitando os seus resultados como uma das parcelas (3 + 5 = 8), pode obter o resultado
necessário.
Apresentam solução ainda mais complexa as tarefas que requerem a formulação de perguntas
suplementares e o cumprimento de várias operações intermediárias; entre estas, algumas têm
caráter específico e adquirem sentido próprio quando quem resolve tais tarefas retém
sòlidamente na memória o objetivo final e o sistema de procedimentos que levam à realização
das mesmas. Pode servir de exemplo
113
típico uma tarefa complexa como: o filho tem cinco anos, daqui a quinze anos o pai será três vezes mais
velho do que o filho. Quantos anos o pai tem agora?
Vê-se facilmente que a condição dessa tarefa cria desde o início a impressão de insuficiência lógica; não
fixa a idade do pai, e somente depois que o sujeito formula a pergunta intermediária ("quantos anos terá o
filho daqui a quinze anos?) e, por último ("quantos anos tem o pai agora?"), desaparece essa aparente
insuficiência lógica, obtendo-se a resposta cujo algoritmo se torna complexo: (a -J- 15 = = n; X 3 = m; m
— 15 = X).
É complexo o processo de solução da tarefa se esta compreende atos acessórios que não fazem parte de
sua condição concreta e são de caráter puramente auxiliar. São as "tarefas padronizadas" como: "em duas
estantes havia 18 livros, tendo uma 2 vezes mais do que a outra; quantos livros havia em cada estante?"
Neste caso quem a resolve deve inibir os atos diretos que decorrem dos fragmentos da condição (por
exemplo, 18:2 = 9 ou 18 X 2 = 36) e antes de passar às operações com os livros referidos na tarefa deve
fazer as operações com as seções não mencionadas no problema, perguntando-se inicialmente quantas
seções havia em cada estante e unicamente após uma operação abstrata complementar (2 seções + 1 seção
= 3 seções) passar à solução do problema (18 : 3 = 6; 6 X 2 = 12), através da qual obtém a resposta
incógnita.
Vê-se facilmente que as tarefas descritas pressupõem processos lógico-verbais de dificuldade crescente e
se a tarefa básica de não sair do contexto da condição em todas as operações permanece a mesma, então a
complexidade da análise das condições e da "estratégia" que 'deve servir de base à solução será cada vez
maior.
A análise psicológica pode discriminar facilmente os fatores que foram inseridos no processo de solução
das tarefas, por serem as condições fundamentais de uma atividade intelectual plenamente válida e cuja
exclusão levaria à perturbação do seu desenrolar normal.
O primeiro desses fatores é o estabelecimento de uma sólida relação lógica entre a condição e a
pergunta final, que conservam o significado dominante da pergunta no problema; sem essa condição, o
lugar do sistema seletivo de operações, subordinadas à pergunta, pode ser ocupado pelas associações
114
•seletivas, a escolha entre muitas alternativas possíveis torna-se impossível e a atividade intelectual,
perdendo o sentido, desintegra-se.
O segundo fator que determina a conservação da atividade intelectual é a orientação prévia nas
condições da tarefa, que prevê a possibilidade de observação simultânea de todos os elementos
constituintes da condição e permite criar um esquema geral de solução da tarefa. A eliminação desse fator
leva inevitavelmente a que todo o sistema lógico, incluído na condição da tarefa, se desintegre em
fragmentos isolados e o sujeito seja influenciado pelos nexos que surgem impulsivamente desses
fragmentos.
O terceiro fator, que pode ser condicionalmente chamado "fator dinâmico", consiste na inibição das
operações prematuras que surgem impulsivamente; essa inibição é absolutamente necessária à
concretização bem-sucedida de toda a estratégia de solução da tarefa.
Por último, o derradeiro fator é o mecanismo de comparação dos resultados da ação com a condição
inicial, mecanismo esse que pode ser considerado^ como equilíbrio do mecanismo do "aceptor da ação" a
que já nos referimos.
O processo de solução das tarefas é indiscutivelmente um modelo que reflete com a maior plenitude a
estrutura da atividade intelectual, podendo o estudo das peculiaridades desse processo fornecer material
importante para a Psicologia dos processos cognitivos do homem.
Métodos de estudo do pensamento produtivo
Os métodos de estudo do pensamento verbal produtivo dividem-se em dois grupos. O primeiro visa ao
estudo das premissas ão complexo pensamento verbal discursivo e tem como tarefa estabelecer em que
medida o sujeito domina as principais relações lógico-verbais e até que ponto ele pode partir justamente
delas em seus raciocínios e não dos nexos circunstanciais figurado-diretas. O segundo está voltado para as
operações propriamente ditas do pensamento produtivo discursivo.
Ao primeiro grupo pertencem antes de tudo todos os métodos que já mencionamos quando
descrevemos as vias
115
de estudo do processo de assimilação dos conceitos e os processos de decodificação
(interpretação) das complexas estruturas verbais.
Juntam-se a eles mais dois grupos de procedimentos, nos quais nos :deteremos em termos
apenas muito breves.
Os primeiros deles são constituídos pelos procedimentos pelos quais se estuda até que ponto o
sujeito domina o sistema de conexões lógicas que surgem no enunciado e o grau de clareza com
que nele se formam as "conclusões lógicas" a que antes já nos referimos.
Para esclarecer este ponto, aplica-se com ótimos resultados o procedimento de complementação
da frase até atingir o todo, proposto por Ebbinghaus. Esse procedimento consiste em sugerir ao
sujeito frases ou textos isolados, omitindo-se em cada frase uma palavra que o sujeito deve
completar.
Em uns casos a palavra em falta eclode com grande probabilidade, em outros, como alternativa
única. Por exemplo, em frases como: "Chegou o inverno e as ruas ficaram cobertas de densa...
(neve)" ou "Soou o apito do maquinista e o trem lentamente... (partiu)" naturalmente não se
pode falar de nenhum processo de escolha entre várias alternativas. Em outros casos, a palavra
que prenche a lacuna não surge como única e o sujeito pode escolher uma das várias
alternativas, às vezes comparando uma frase com o contexto anterior. Pode servir de exemplo o
seguinte texto: "O homem voltou para casa e notou que havia perdido o boné. Na manhã
seguinte saiu de casa e como estivesse chovendo não tinha com que cobrir... (a cabeça)" ou "Um
homem, encomendou a uma fiandeira ... fina (linha). Ela fiou linha fina mas o homem disse que
a linha era... (grossa) e ele precisava de linha fina", etc. Neste caso, naturalmente, o processo de
escolha de alternativas é mais complexo e só pode ser assegurado por uma orientação prévia no
contexto. Vê-se facilmente que a falta dessa orientação prévia pode levar a lacuna a ser
preenchida apenas com base em conjetura surgida durante a leitura da última palavra, sendo a
tarefa resolvida de maneira incorreta.
No terceiro caso, a lacuna pode não recair sobre palavras concretas omitidas (substantivos,
verbos), mas sobre palavras acessórias omitidas e para a correta solução da tarefa é necessário
tomar consciência da relação lógica em que se en-
116
contram alguns componentes da frase. Tomemos como exemplo as frases: "Fui ao cinema... (embora)
estivesse chovendo torrencialmente" ou "Consegui chegar a tempo ao trabalho... (apesar de que) o
percurso era muito longo", etc. Vemos facilmente que, no último caso, o objeto de estudo consiste em
estabelecer se o sujeito é capaz de operar conscientemente não com a conexão dos acontecimentos, mas
com o caráter das relações lógicas; nessas possibilidades, toda falha refletir-se-á na tarefa sugerida.
Uma variante desse método é o conhecido método de extrapolação no qual o sujeito recebe vários
números com um grupo de números omitido; ele deve inseri-los, após tomar consciência da base da série.
Em alguns casos essa tarefa não apresenta dificuldades e tem solução única; podemos tomar como
exemplo a série
1 2 3 4 5 6 ... 9 10 etc.
Em outros casos essa tarefa é resolvida de maneira bem mais complexa e o sujeito deve analisar a lógica
da construção da série, lógica essa que sempre é fácil de descobrir. Podemos tomar como exemplo a série
1 2 4 5 6 8 ... 13 14 16 etc, ou 1 2 4 7 ... 21 28 etc.
A orientação insuficiente nas condições de composição da série, bem como a impossibilidade de assimilar
a lógica de sua construção refletem-se seriamente na solução dessa tarefa.
Um método amplamente difundido de estudo é a análise da execução de várias operações lógicas pelo
sujeito, por exemplo, a localização das relações espécie-gênero ou gênero-espé-cie, a descoberta de
relações análogas. Para esse fim, sugere-se ao sujeito o protótipo de uma relação que ele deve transferir
para outra relação dupla. Pode servir de exemplo:
cão — animal; rouxinol......? pinheiro......?
louça — prato; arma......? verdura......?
ou relações mais complexas e mutáveis:
regimento — soldados; biblioteca — ......?
rua — praça; rio —......?
117
O procedimento aqui descrito pode ser aplicado em duas variantes. Numa delas, dá-se ao sujeito a
oportunidade d& escolher por si mesmo a resposta incógnita; em outra, sugere-se-lhe escolher a resposta
necessária entre três alternativas-possíveis, sendo que uma das palavras sugeridas encontra-se com a
incógnita nas relações necessárias (correspondentes à tarefa), enquanto as outras duas se encontram em
outras-relações. Se a relação lógica básica não for assimilada, a escolha correta será substituída pela
escolha de outra palavra que esteja em qualquer tipo de relação com a incógnita.
Pode parecer à primeira vista que a variante, na qual o próprio sujeito deve escolher a resposta necessária,
requer grandes esforços criativos e é mais difícil do que a segunda, quando lhe é proposto escolher a
solução entre várias alternativas. Mas, em realidade, a última variante pode apresentar dificuldades
especiais porque nela o sujeito deve superar outras alternativas às vezes mais comuns e a relação lógica
por ele discriminada deve determinar com solidez especial toda a busca posterior.
Podemos tomar como exemplo o processo de escolha requerido pelas seguintes tarefas:
filho — pai; mãe (filha, irmã, avó)? peixe — escama; gato (rato, dentes, lã)? óculos — peixe; telefone
(fone, voz, disco)?
Vê-se facilmente que a escolha de uma combinação mais comum (por exemplo, "mãe-filha", "gato-rato",
"telefone-fone") será um obstáculo para a correta solução da tarefa; somente a superação desse nexo que
eclode com maior probabilidade e a total subordinação da procura à relação encontrada nas duas
primeiras palavras podem assegurar a solução correta da tarefa colocada.
Aproxima-se dessa metodologia a metodologia da avaliação do sentido dos provérbios, que permite
verificar até que ponto o sujeito tem condições de abstrair o significado circunstancial imediato de um
provérbio e discriminar seu sentido interno.
Para este fim sugere-se ao sujeito um provérbio acompanhado por três frases, duas das quais reproduzem
palavras do provérbio enquanto a terceira opera com um conteúdo externo inteiramente distinto mas
mantém o sentido interno
118
afim com o provérbio. O sujeito deve dizer qual das frases tem o mesmo sentido que o
provérbio. Podem servir de exemplo tarefas como:
O ferreiro forjou do ferro quen-Malhe o ferro enquanto te excelentes ferraduras, está
quente Na cooperativa agrícola resolve-
ram convidar um agrônomo experiente.
Não se deve resolver uma tarefa quando se perde o interesse por ela.
Vê-se facilmente que a impossibilidade de abstrair a situação direta referida no provérbio ou
impossibilidade de conservar o significado lógico dominante do provérbio e o leve deslizamento
para a proximidade circunstancial externa leva à seleção de uma frase falsa e à solução
inadequada da tarefa.
Os procedimentos descritos permitem estabelecer algumas premissas indispensáveis ao
pensamento produtivo e podem servir de bom método prévio para estudá-lo.
O estudo do próprio processo de pensamento produtivo constitui dificuldades consideráveis
justamente por apresentar como mais típicos os casos em que se coloca diante do sujeito uma
tarefa cuja solução não se dá segundo algoritmo previamente dado, mas requer procura
independente das necessárias hipóteses e de métodos adequados de solução.
A forma mais conveniente de estudo desse processo é a minuciosa análise psicológica da
solução de questões de aritmética, que podem servir de modelo adequado de pensamento
discursivo.
Dá-se ao sujeito uma série de tarefas segundo um grau crescente de complexidade, começando
por aquelas que têm um único algoritmo de solução e terminando na solução de tarefas que
requerem uma minuciosa análise prévia da condição, formulação de questões intermediárias,
formação de um esquema geral (estratégia) de solução e seleção das necessárias operações
(meios) de solução. É condição da aplicação produtiva desse método a minuciosa análise
psicológica do processo de solução da tarefa com a descrição do caráter dos erros cometidos e
a discriminação dos fatores que dificultam a solução correta.
119
Já citamos exemplos dos principais tipos de tarefas cuja aplicação pode dar a maior informação
para caracterizar o processo de pensamento dos sujeitos, encerrando assim o assunto.
Patologia do pensamento produtivo
As perturbações do processo de pensamento nos estados de patologia cerebral podem ser
resultado de um dos dois fatores: falha da abstração e generalização e da mudança da própria
estrutura dos processos de pensamento (a esse tipo de perturbação chamaremos
convencionalmente de perturbação estrutural) ou perturbação da orientação do pensamento,
pela dificuldade de reter a tarefa e inibir as operações prematuras ou inadequadas que resultam
da redução do controle (a esse tipo de perturbação do pensamento chamaremos
convencionalmente de perturbação dinâmica).
Nos casos de retardamento mental ou demência orgânica, ambos os fatores podem unificar-se;
nos casos de afecção local do cérebro, eles podem manifestar-se isoladamente.
As perturbações do pensamento, que surgem nos casos de atraso geral ou demência orgânica,
manifestam-se acima de tudo no fato de os doentes não poderem criar um sistema complexo de
nexos lógico-verbais abstratos, que nesses doentes são substituídos pelos nexos circunstanciais
eficazes-diretos.
Os doentes foram incapazes de executar operações de classificação abstrata ("categórica") dos
objetos, substituindo a referência dos objetos a uma categoria abstrata por uma operação mais
direta de inserção destes numa situação concreta geral; foram igualmente incapazes de realizar
operações lógicas que deles se exigiam nos testes com análise das relações lógicas ou análise
do sentido dos provérbios.
Esses doentes substituem de fato os testes de localização de analogias por operações de
restabelecimento da situação direta, na qual estão presentes os respectivos conceitos; por isto os
doentes sempre substituem a tarefa que exige deles encontrar relações análogas no sistema: vaca
— animal; capim — ... ? por um raciocínio concreto do tipo: "a vaca, animal que come capim,
feno..."; a tarefa de encontrar rela-
120
ção análoga no sistema: **filho-pai"; mãe (filha, irmã, avó) eles substituem pelo raciocínio
concreto análogo: "bem, o pai tem um filho e este naturalmente deve ter mãe, pode nem ter
irmã... quanto à avó, já está velhinha...", etc. Dificuldades análogas também surgem no teste de
interpretação do sentido latente dos provérbios. A discriminação da frase que tem o mesmo
sentido latente é facilmente substituída pela discriminação da frase na qual figuram as mesmas
palavras ou n.a qual se manifesta uma situação externa próxima (por exemplo, para o provérbio
malhe o ferro enquanto está quente escolhe-se sem hesitação a frase: "o ferreiro forjou do ferro
quente excelentes ferraduras", ignorando-se a frase de sentido aproximado porém diferente pelo
conteúdo externo concreto).
Outras peculiaridades distinguem as perturbações do pensamento produtivo nos casos de
esquizofrenia. O material das tarefas propostas, que normalmente tem significado determinado
e evoca com a máxima probabilidade nexos perfeitamente determinados, estabelecidos
pela experiência anterior do sujeito, nestes casos pode suscitar os nexos acessórios
mais imprevisíveis e a solução da tarefa lógica se torna inacessível devido à igual probabilidade
com que surgem quaisquer nexos, assumindo o processo de associações o caráter mais
extravagante e freqüentemente inesperado. Assim, por exemplo, o doente que recebe o
provérbio "nem tudo o que reluz é ouro" começa a "definir" o sentido da seguinte maneira.
"Aqui ocorre a desvalorização do ouro enquanto metal, de um ponto de vista filosófico. Talvez
outro metal, não tão desprezível quanto o ouro, reluz e traz maior proveito ao homem. O raio
de luz brilha ao cair sobre o vidro e isto pode trazer proveito... E assim todos os feixes de
ondas dirigidas...", etc. É natural que todas essas multifacéticas associações, que eclodem
com igual probabilidade, tornem o processo de discriminação dos nexos seletivos e a
solução lógica do problema totalmente inacessíveis.
Entre os psicólogos soviéticos, B. V. Zeygarnik e Yu. F. Polyakov estudaram minuciosamente
as formas de perturbação do pensamento nos doentes mentais, razão pela qual não nos
deteremos pormenorizadamente nelas.
Para o estudo da estrutura do pensamento produtivo e dos fatores que lhe servem de base
reveste-se de grande e especial importância a análise das perturbações desse pensa-
121
mento, que podem manifestar-se nos casos de afecção local do cérebro. Isto se deve ao fato de
que as afecções locais do cérebro, nas quais se destrói ora uma, ora outra parte do aparelho
cerebral, levam à eliminação de diversos fatores indispensáveis ao pensamento e o processo de
pensamento produtivo começa a sofrer de diversos modos.
Via de regra, as afecções locais do cérebro nunca levam à redução geral do nível de
pensamento, que é observada nos casos de atraso mental ou de formas grosseiras de demência
orgânica; nesses doentes não se pode observar nem a concreticidade do pensamento, que
distingue os retardados mentais ou doentes com demência orgânica, nem aquela eclosão de
nexos "sem sentido", aparentemente casuais, que é observada nos esquizofrênicos. Apesar da
conservação das premissas básicas, necessárias à atividade de pensar, nesses doentes perturba-se
de maneira patente o caráter do pensamento produtivo, ocorrendo variação do tipo de
perturbações em casos diferentes.
Detenhamo-nos em algumas formas de perturbação do pensamento produtivo nos casos de
afecção local do cérebro, discriminando os fatores que permitem melhor entender os
mecanismos do pensamento normal.
As afecções do lobo temporal esquerdo do cérebro não provocam nem perturbações primárias
da estrutura do pensamento, nem defeitos evidentes no seu caráter seletivo e orientado a um fim.
No entanto o desenvolvimento pleno dos processos produtivos do pensamento sai
acentuadamente perturbado nesses casos, devido principalmente às perturbações da memória
auditivo-verbal. O doente se orienta atentamente nas condições da tarefa, pode discriminar
facilmente a necessária relação lógica mas quando a tarefa é constituída de várias fases começa
a experimentar dificuldades ditadas pela sua incapacidade de reter na memória operativa as
fases passadas; rompe-se facilmente o fio de operações lógicas e o doente, que conservara
plenamente uma atitude crítica face à sua própria atividade intelectual, nega-se a resolver a
tarefa, embora conserve o sentido geral de toda a tarefa e as operações particulares.
Diferente é o caráter da perturbação do pensamento produtivo nas afecções da região temporo-
occipital esquerda. O quadro que acabamos de descrever encontra afinidade no fato de que, em
tais afecções, a atividade intelectual não perde
122
o seu caráter consciente e as falhas se manifestam não tanto na estratégia dos processos
intelectuais, quanto na sua execução, por outras palavras, naquelas operações que foram
incluídas no ato de pensar.
Os doentes desse grupo retêm solidamente a tarefa e tentam, de maneira orientada para o fim,
resolvê-la sem se desviarem nem se abstraírem como influências secundárias. No entanto a
execução da tarefa encontra imediatamente visíveis dificuldades. Os doentes sentem
dificuldades em assimilar a estrutura lógico-gramatical da condição, não conseguem apreender
de imediato a necessária relação lógica, caem em impasse ante a formulação gramatical do tipo
"Sônia tem duas vezes mais do que Kátia", tentam angustiados confrontar, os elementos
isolados da condição e encontrar o esquema semântico geral de solução. O perceptível se torna
"fragmentário" para ele e o "discernimento das relações", o surgimento do "esquema de
solução", que na pessoa normal ocorre imediatamente e se desenvolve sucessivamente numa
série de operações encadeadas, ora não lhe vem à mente, ora surge, na forma mais confusa e
leva a novas dificuldades quando o doente apela para a fase executiva do ato intelectual e tenta
incluir as operações auxiliares. Resulta dessas dificuldades que todo o processo de solução das
tarefas não vai além de tentativas angustiantes de assimilar o processo de solução e executar as
necessárias operações e, apesar da completa conscientização das dificuldades, não consegue
concluir-se.
É inteiramente distinto o caráter das perturbações da atividade intelectual nos casos de afecção
dos lobos frontais do cérebro.
Nestes casos, a execução de certas operações não encontra quaisquer dificuldades. Os doentes
conservam inteiramente a capacidade de captar imediatamente o significado das relações lógico-
gramaticais e não sentem qualquer dificuldade para executar certas operações lógicas ou
aritméticas. Sem qualquer dificuldade eles podem discernir relações análogas e não cometem
nenhum erro na rápida avaliação de relações como gênero-espécie, espécie-gênero, etc.
No entanto, apesar da total integridade de certas operações lógicas, perturba-se profundamente
toda a atividade intelectual desses doentes.
A causa fundamental consiste em que, nesses doentes, a questão básica colocada pela tarefa
não é dominante nem
123
determina a ocorrência de todos os processos posteriores. Por isto, após ler a condição da
tarefa, os doentes que apresentam afecção maciça dos lobos frontais do cérebro "esquecem"
mais amiúde, de imediato, a pergunta a que deve submeter-se todo o processo de solução da
tarefa, não raro repetem como pergunta um dos componentes dados na condição (por exemplo,
"Em duas estantes havia 18 livros, numa delas havia duas vezes mais do que a outra. Quantos
livros havia em cada estante?" eles respondem: "Em duas estantes havia 18 livros; numa delas
havia duas vezes mais do que na outra. Quantos livros havia em cada estante?") sem perceber
que a resposta a essa pergunta está na condição. Mesmo nos casos em que a condição da tarefa é
repetida pelo doente, ela não o leva a um trabalho sistemático e orientado nas condições da
tarefa e a tentar encontrar a "estratégia" adequada de sua solução. É comum a base orientadora
da atividade intelectual desaparecer nesses doentes e eles começarem imediatamente a executar
operações fragmentárias, não incluídas na condição da tarefa e, por isto, carentes de sentido.
Tais doentes começam a "resolver" a tarefa que acabamos de formular executando atos
fragmentários do tipo "Em duas estantes 18 livros... logo, 2X18 = 36... duas vezes mais do que
na outra... logo, 18 + 36 = 54... etc; via de regra, não respondem para que executam tais
operações.
Em casos mais grosseiramente manifestos de afecção dos lobos frontais do cérebro, o doente
não consegue sequer reter a condição da tarefa que lhe foi dada e a simples repetição dessa
condição começa a levá-lo a cair num emaranhado de associações que eclodem
desordenadamente, como, por exemplo: "Em duas estantes havia 18 livros... e em mais uma
havia mais 18 livros... os livros foram levados para encadernação... e já não restaram tantos
livros...", esquecendo completamente a questão fundamental que constituía a essência da tarefa.
Semelhantes perturbações da dinâmica do processo intelectual, que perde facilmente seu caráter
consciente, permanecem em outras afecções menos manifestas dos lobos fron-' tais do cérebro;
nestes casos, a separação de operações isoladas da "estratégia" geral de solução da tarefa pode
manifestar-se em formas mais obliteradas e os doentes, após a solução de uma tarefa, começam
a reproduzir de maneira estereotipada todo o processo da solução já encontrada nos'
124
•casos em que a tarefa muda. Assim, depois da explicação de «que a tarefa acima apresentada é
"dividida em partes" e que a via de sua solução requer a localização das partes, os doentes
continuam aplicando o mesmo método de "divisão em partes" quando a tarefa é substituída por
outra, como, por exemplo: "Em duas estantes havia 18 livros mas em uma delas havia dois
livros a menos do que na outra". Essa substituição fácil da solução planejada da tarefa pela
repetição de um estereótipo, que surge de modo apático, leva à desintegração de fato da
atividade intelectual, caracteriza os doentes desse grupo e mostra claramente o papel que os
lobos frontais do cérebro desempenham no desenrolar das formas complexas de pensamento.
A análise neuropsicológica da mudança do pensamento nos casos de afecções locais do cérebro,
realizada pelos psicólogos soviéticos A. R. Luria, L. S. Tsvetkova e outros, revela perspectivas
novas e importantes para o estudo dos mecanismos cerebrais dos complexos processos
intelectuais.
125