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abril de 2008
Jurandir Araguaia
Marcia Szajnbok
Textos de:
Dalton Trevisan
Imagem da capa:
Léon Tolstói
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Índice
Recomendações de Leitura
AS QUERIDAS DE LISPECTOR 3
MADAME BOVARY, DE GUSTAVE FLAUBERT 5
O Estripador 8
Dalton Trevisan
O Causo do Dilúvio 11
Volmar Camargo Junior
A Teoria do Humor 14
Volmar Camargo Junior e Henry Alfred Bugalho
Obra Incompleta 21
Henry Alfred Bugalho
Herói 23
Denis da Cruz
O Espelho 26
José Espírito Santo
A Frase 27
José Espírito Santo
Sou 29
José Espírito Santo
MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho 30
Coisas de Mulher 30
Marcia Szajnbok
Luxo 31
Jurandir Araguaia
TRADUÇÃO
O Longo Exílio 33
Léon Tolstói
CRÔNICA
De Puta a Pop 41
Continente 43
Marcia Szajnbok
Coleção de Botões 45
Giselle Natsu Sato
Sobre os Autores 47
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Samizdat 3 - março 2008
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Recomendações de Leitura
AS QUERIDAS DE LISPECTOR
Marcia Szajnbok
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A leitura dessa correspondência segue leve, solta, cada página nos convidando à
seguinte e á próxima. Um mundo sem síntese apresentado pela escrita única de quem
conseguiu ver, na relação de uma menina com um livro, o mesmo apaixonamento que
há entre uma mulher e seu amante.
Minhas Queridas
Clarice Lispector
Tereza Montero (org.)
Editora: Rocco
ISBN: 9788532522740
Ano: 2007
Edição: 1
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O que valia para mim, durante este período, era ser do contra.
Voltei a ter contato com a literatura francesa mais ou menos um ano depois, quando
li pela primeira vez Balzac, “O Pai Goriot”, e esta foi uma epifania.
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Samizdat 3 - março 2008
O alemão até pode ser uma língua poética, mas quando se trata de respeitar a
composição duma frase, a criação duma imagem, a descrição dum cenário, não há
o que se compare com as línguas latinas. E, nas mãos dos mestres franceses das
Letras, a escritura deixa de ser apenas um modo de comunicação, transcende a
instrumentalidade da língua.
Tanto Balzac quanto Flaubert observam suas épocas com olhar crítico. Balzac
abarca todas as instâncias sociais, do camponês rústico até a aristocracia decadente,
mas o foco é sempre a burguesia hipócrita. Flaubert é, por sua vez, mais incisivo; basta
uma única personagem para aglutinar tudo aquilo que está disperso nas dezenas de
obras de Balzac, esta personagem é Emma Bovary.
A jovem Emma era leitora de romances românticos. Tal formação a fez conceber
relacionamentos ideais, uma vida quimérica. O casamento com Charles Bovary é
uma frustração, a negação de tudo que ela havia imaginado na juventude. Charles
era um homem sereno, sem grandes arroubos de paixão, com um emprego estável,
porém medíocre - um médico provinciano sem grandes ambições.
Flaubert quer que odiemos Emma Bovary, tudo aquilo que ela representa, a
hipocrisia, a baixeza, a futilidade, e ele atinge seu objetivo. Nunca antes desejei tanto
que um personagem morresse num livro (nem mesmo Heathcliff de “O Morro dos
Ventos Uivantes”).
Todavia, nem mesmo este prazer Flaubert nos concede com plenitude. Emma
morrerá, sabemos disto, antevemo-lo, contemo-nos por páginas e páginas apenas
para presenciar sua agonia, porém a morte dela não é libertadora.
Grego e alemão podem até ser a língua da Filosofia, mas foi em francês que se criou
um dos maiores estudos da psiqué humana, das relações sociais, da mesquinharia,
mascarada de Literatura, ou tornado possível justamente por não ser teórico, por não
ser fatual, por ser mera ficção, e neste “mera” reside todo o segredo.
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O VAMPIRO DE CURITIBA
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O ESTRIPADOR
Dalton Trevisan
No sábado, pelas cinco da tarde, a tentou fazer um sinal. O cara percebeu, e
moça voltava da Igreja Adventista Filhos cutucando o punhal:
de Jesus. Pouco antes da casa da patroa,
viu o tipo mal-encarado. Correndinha - Olha pra cá.
atravessou a rua.
Disfarçando, ele acenou para o lixeiro,
A casa tem muros altos e um pequeno pendurado ali no estribo:
corredor na entrada. Com a chave na mão,
diante da porta, foi alcançada pelo cara,
- Oi, tudo bem?
que lhe encostou uma faca na cintura:
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no ônibus. Perna trêmula, abriu a boca - Pra mim, matar é fácil. Escolha.
para gritar... E tinha perdido a voz. Da
boca aberta nadinha de som. A moça tremia toda. Chorava muito.
De joelho e mão posta:
Mas o seu coração dava berros.
- Tenha dó. Em nome de Jesus
Ficaram de pé. Ela sentia a faca ali Cristinho. Leve a bolsa e a jaqueta. Por
furando a jaqueta nova de couro. No favor. Só me deixe ir.
terceiro ponto, ele tocou a campainha. Os
dois desceram. Pensa que teve dó, o bruto? Daí ela
foi obrigada. Tanta confusão, a pobre
Andaram duas quadras. Ele viu o tinha andado pra cá pra lá, sem parar.
terreno baldio. Lá nos fundos, uma e Assim cansada, onde as forças de lutar e
outra casa. Ainda era dia claro: se defender?
- Não. Aqui, não. E fez com ela o que bem quis. Fez
isso.
O tempo inteiro rezava muda. Todas
as preces numa só palavra - Jesus. - Os dentes, não. Sem os dentes,
Entregou a alma ao Filho e ao Pai. sua...
Lá adiante:
Estripou. A coitada que, virgem, se
guardava para o noivo, cuja vida era de
- É aqui. casa para a igreja e da igreja para casa.
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E espetando a maldita faca no peito Devia ficar contente por deixá-la viva.
nu: E agradecida ao Menino Jesus, podia ter
sido pior.- Não olhe pra trás.
- Quer ver sangue?
A pobrinha chegou em casa pelas
Sem ela esperar, começou tudo outra onze e meia da noite. Arrastava os pés,
vez. O tipo se serviu bem direitinho. Ainda toda torta e gemente. Sangrando pelos
mais ferida e machucada. nove orifícios do corpo.
- Agora vá.
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O Causo do Dilúvio
Volmar Camargo Junior
Quem não gostou nada dessas conversas foi o Dono da Querência. Mandou
chamar os linguarudos que passavam mais tempo proseando do que nas lides do
Universo. Já que a indiada terrena estava ficando sem-modos, o Altíssimo deu aos
anjos a incumbência de encontrar, no meio da criação, um bicho que fosse bom o
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suficiente para ajudar a endireitar a tribo dos filhos de Adão. Muito dotados nas artes da
conversa-fiada, a peonada não hesitou em pedir a Ele que elegesse o mais eloqüente
para ser o embaixador do céu entre a bicharada. A proposta pareceu justa, e de
pronto, escolheu-se um capataz mui conhecedor da Estância chamado Gabriel. Os
outros foram enviados para arrumar o alambrado da Via-Láctea que andava caótico
uma barbaridade.
Em pouco tempo, a parentada dos que gostam de comer maçã afeiçoou-se muito
aos animais. Os homens, porque eram úteis: o cachorro era companheiro pra caça,
o gato limpava a casa dos roedores e o cavalo, mesmo precisando domar antes,
virou instrumento de trabalho. As mulheres, porque os bichos eram fofinhos, dava
pra pentear, botar fita mimosa, vestir aquelas roupinhas e dar nomes para eles. A
coisa desembestou quando os “camaradas” se acostumaram com o jeito de viver
dos donos. O gato virou num inútil que só dormia e ainda se sentia o dono da casa.
O cachorro só fazia o que mandavam se lhe dessem comida ou brincassem com ele
(em geral as duas coisas). E o cavalo, bem, o cavalo continuou trabalhando; porém a
indiada se coçava e puxava o ferro branco, e descobriram que guerrear montado era
muito mais divertido.
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O resultado da empreitada foi que o Gabriel, além de tomar uma baita mijada,
deixou de ser capataz e virou estafeta. Ninguém mandou sair inventando história e
inundando mundo por conta. Depois disso, cada vez que tinha que mandar um recado
pra gauderiada cá na Terra, o Patrão Velho mandava o Gabriel falar timtim por timtim
o que Ele tinha dito.
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A Teoria do Humor
Volmar Camargo Junior e Henry Alfred Bugalho
(imagem: http://www.nowgasm.com/laughing-buddha-maitreya-cybele-la.jpg)
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Bibliografia
ARISTÓTELES. Poética.
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Talento Dedicação
Uns nascem com uma habilidade Uma casa não se constrói num dia
extraordinária para cálculos, outros apenas; são necessários dias, semanas,
com mão cheia na cozinha, outros com meses, preparando o alicerce, pondo
a capacidade para falar em público, tijolo sobre tijolo, fazendo o acabamento;
outros para ajudar o próximo, outros uma colheita também não se faz num dia;
para a música, e assim por diante. Para é preciso arar a terra, semeá-la, proteger
cada ocupação, dentro dum rol quase a plantação das pestes.
infindo de possibilidades, há um talento
específico que faz com que seu possuidor Ninguém obtém bons resultados na
se destaque dos demais. Literatura se não dedica parte de seu dia
para se aperfeiçoar, estudar, escrever,
Com a Literatura não é diferente. revisar. Quem pensa que a escrita é
pura obra do acaso, mera conseqüência
dum arroubo de inspiração, está mal
Alguém que possui talento para a
influenciado. O Romantismo é responsável
escrita — aquele respeito essencial
por disseminar esta idéia, mesmo que,
pela palavra, aquela busca incansável
posteriormente, tenha se descoberto que
pela perfeita expressão, pela frase bem
os próprios autores românticos, como
construída, pelo signo que oculta, ao
Goethe, Schiller, Hoelderlin, ou Vitor
mesmo tempo em que revela, o sentido
Hugo trabalhavam arduamente sobre
do mundo — larga na frente dos demais,
seus textos, sem auxílio algum de musas
para quem a escrita é apenas uma
inspiradoras.
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O quarto elemento
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Obra Incompleta
Henry Alfred Bugalho
Diante de si, Hubrecht Van Dijk tinha
moinhos, tulipas, o vilarejo lá atrás, o
campanário da igreja e o mar.
Porém, o cinzento inverno, com neve, gelo e árvore secas, também adveio. E o
vermelho, ocre, marrom deram lugar ao branco e ao cinza.
Por trinta anos o artista lutou com sua obra, quando foi diagnosticado com câncer
terminal, seis meses de vida, Van Dijk queimou a pintura inacabada e inacabável.
Numa tela em branco, começou tudo de novo e pintou aquela primeira paisagem,
sem prédio moderno, sem moinho queimado, sem folhas vermelhas nem neve nas
árvores.
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Herói
Denis da Cruz
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- Qual é seu segredo? Como você subia numa veia, até perto da virilha –
conseguiu matar todos eles? – perguntou “Chupa minhas bolas.”
Joe.
Não contara para ninguém sobre
- Sorte – sorriu-lhe Marko. – Pura aquilo. Sabia muito bem o que fariam
sorte. com ele. Viraria cobaia em algum
laboratório com cientistas loucos. Tomou
medicamentos por conta própria. Nada
adiantou. A infecção subia num ritmo lento
– “em câmara lenta, como todo o mundo”
Estaria nos jornais de amanhã – “Mais
– mas ainda chegaria ao coração.
uma vez” –, como um herói – “De novo”.
Mas a noite era sempre solitária – “E
muito fria, não esqueça de contar isto. As
noites agora são mais frias.” – Ligou a tv
e jogou o controle no sofá. Há dois meses, recebera um chamado
na viatura. Duas garotas haviam sumido
Da geladeira, retirou um bife cru e num bairro pobre. Suspeitavam que
jogou para dentro do prato – “Carne!” Mandrax, um serial killer, estivesse
envolvido nos sumiços – “sim, neste
e em todos os outros que a polícia não
Sentou-se e sorriu para a tela. Uma
conseguia desvendar.”
mulher em látex negro pairava no ar
e golpeava com os pés – “Matrix, seu
porra. Diz logo que é a Trinity da Matrix e Marko – “o herói” – foi para o local e,
qualquer mané vai saber.” investigando, encontrou ao lado de um
poço uma tira de pano, na cor da roupa
descrita pela mãe da garota.
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Marko não mudou o ritmo dos passos. lhe as pernas e cravou as mandíbulas,
A luz da lanterna na mira da arma – rasgando a calça e a carne. Por puro
“uma automática, naquela época não reflexo, Marko descarregou o que sobrara
gostava de ver miolos explodindo e carne no pente na cabeça do monstro.
dilacerando. Ou fingia não gostar.”
Sentou-se ao chão, puxando a calça
Ao fundo, pode distinguir a figura de e sentindo a dor lacerante na perna.
duas meninas abaixadas. Se abraçavam Arrastou-se até as vítimas.
uma à outra e, ao lado delas, uma estranha
figura se levantou. Lívida como um pilar de - Está tudo bem, não se preocupem.
mármore; olhos fundos e esbranquiçados Ele está morto agora – tentou acalmar as
em cima de narinas afundadas até o meninas.
osso. A boca sem lábios lhe conferia um
sorriso macabro, manchado de sangue
Voltou pelo túnel com as duas e, do
ressecado.
poço, chamou ao rádio. Foram resgatados,
mas algo dentro dele – “eu?” – dizia para
A criatura se levantou lentamente não comentar nada sobre a ferida. Seria
– “em câmara lenta, como o mundo”. seu – “nosso” – segredo.
Com passos trôpegos – “arrastados.
Diz arrastados que descreve melhor” –
caminhou em direção ao policial.
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O Espelho
José Espírito Santo
- Não é normal – disse eu ao meu primo.
- Anda cá, tens de ver o gajo. Anda antes que se vá embora – insisti. Não
respondeu.
- Anda Abel. Vem cá ver o “cara de parvo” – entretanto o “cara de parvo” estava aí
a uns dois metros de mim. Parado. Fitava-me.
Tínhamos saído do Bar há pouco mais de meia hora, vinte minutos antes das
três, horário de fecho costumeiro do mesmo. Talvez tivesse bebido um pouco mais
que ele, não sei… Noite óptima, céu limpo, era possível ver ao longe, por detrás
da parede mais próxima, o cintilar das estrelas. Meu primo não me ligava e então
descobri que motivo outro tinha para lá da descrença habitual: olhava para um alto
longínquo tentando (sem sucesso) descobrir a Constelação.
Não respondi. Agastado, pensei “Desta vez não te ficas a rir, indiferente”. Se tão
bem pensei, melhor o fiz: descalcei o sapato do pé esquerdo e, fazendo pontaria ao
meio da testa, lancei-o em arco. A coisa acertou em cheio, mesmo em cima do dedo
mindinho.
O resultado não foi exactamente o que esperava: Primeiro deu o berro. Depois
levantou-se e avançou na minha direcção com ar ameaçador. Tendo chegado, parou,
olhou para nós uma primeira e repetida vez e acalmou-se. Disse-me então para me
deixar de parvoíces e fazer o favor de sair de frente do espelho.
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A Frase
José Espírito Santo
Francisco chega a casa molhado e cansado. Como nos últimos dias, pouco depois
de entrar liga o “laptop” e fica à espera. Aguarda até que vê o aparelho encher-se de
cor, as letras pequenas comunicando necessidade de receber uma identificação e a
respectiva palavra passe. Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é
para menos!
Lá fora, a chuva bate com força na vidraça e o vento sopra forte, provocando
ruídos esquisitos. A água escorre veloz por calhas estreitas de eléctricos, incomodando
poucos, descendo desgovernada para os lados do Cais do Sodré. Há muito que o
cenário se despiu de artefactos humanos, estando agora recolhidos e aconchegados
quase todos os transeuntes.
A máquina fora dada assim de repente e por isso acha normal encontrar ainda
a conta antiga - alienígena, os “folders” com lixo e algumas, muitas manias. Mas
aquilo, aquela coisa não esperava. E não se dará a cuidados de informar ninguém
sobre o comportamento estranho. “Se o fizer que irão dizer? O mais provável será
o descrédito das suas afirmações. Chamá-lo-ão louco, considerá-lo-ão um chalado
e ele não quer que isso aconteça”. Tem medo porque sabe (considera) que a maior
parte das vezes os dementes dão-se mal.
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onde se alinham os símbolos (escritos a vermelho) de palavras das três linhas. Lê.
Como nos últimos dias, a face ganha um tom vermelho rubro, tenso e o coração
começa a bater descompassadamente e mais depressa. O juízo identifica rapidamente
a necessidade de acção. Como nas horas primas das noites dos três últimos dias, o
corpo ergue-se, curvando-se um pouco para a frente. Carrega no botão. A mão fecha
a tampa.
“Dona Hermínia, vou sair. Não se preocupe comigo. Devo voltar tarde”
Volta a casa molhado e cansado. Como nos últimos tempos, pouco depois de
entrar liga o “laptop” e fica à espera até que vê o aparelho encher-se de cor, as letras
pequenas comunicando necessidade de receber a identificação e a palavra passe.
Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é para menos!
(Quase) toda a gente sabe que as mercearias estão fechadas à noite. Mas aquela,
nas próximas semanas, nem de dia dará as caras. Porque (como práticamente todos
sabem no bairro) os donos estão de férias e partiram outro dia para uma aldeola
longínqua que fica lá para os lados de Trás-os-Montes.
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Sou
José Espírito Santo
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MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho
Eternidade
O vampiro viveu para todo o sempre.
Que tédio!
A Passageira Alegre
Tinha orgasmo duas vezes ao dia. Tremelique do ônibus indo e voltando do
trabalho.
Coisas de Mulher
Marcia Szajnbok
I.
Dez dias de atraso e um desejo imenso. Entrou no laboratório com o coração aos
pulos.
Abriu o exame: NEGATIVO
O peito doeu. Num choro, o atraso acabou.
II.
Dias e dias pensando no que vestir na festa e, ao entrar, lá estava ela, a garota
mais chata da turma, com uma roupa idêntica!
Por dentro: gasolina e fósforos, o vestido e a chatice transformados em carvão em
segundos.
Por fora: sorriso amarelo, três beijinhos, veja só como temos bom gosto!
III.
Namorico de infância. Não se viam há décadas.
- Calor hoje, não?
- Sim... capaz de chover mais tarde...
E, da previsão do tempo ao beijo-nostalgia bastaram três segundos.
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Luxo
Jurandir Araguaia
- E essa agora!
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Ficou em pé sobre o carrinho. Ele temeu que ela caísse ou que o veículo se
movesse. Somente então notou que estava firme, apoiado entre duas poltronas.
- O cavalheiro se interessa?
- O que foi, querido? Não gostou da surpresa? O monstro crava-lhe a outra mão
rasgando-lhe o peito. Aproxima-o de sua boca e lhe dá um beijo. O corpo treme, sente
uma aflição, falta de ar, uma profunda dor a contrair-lhe as entranhas.
Vendo-o tombar ela desce do carrinho e tenta, sem sucesso, reanimá-lo. Muito
tarde. O monstro, a essa altura, carregava-o em seus braços fortes levando-o para
uma viagem sem volta...
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TRADUÇÃO
(fonte: Wikipédia)
O Longo Exílio
Léon Tolstói
trad.: Henry Alfred Bugalho
A esposa respondeu:
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— Não sei do que tenho medo; tudo quilômetros, ele parou para alimentar os
que sei é que tive um pesadelo. Sonhei cavalos. Aksionov descansou um pouco
que você retornava para a cidade e, ao na entrada duma estalagem, depois
tirar seu chapéu, vi que seu cabelo estava adentrou a varanda e, ordenando que
grisalho. aquececem o samovar, tirou seu violão e
começou a tocá-lo.
Aksionov riu.
De repente, uma troika apareceu,
— Este é um sinal de boa sorte, ele sinos tilitando, e um oficial desembarcou,
disse. Aposto que venderei todas minhas seguido por dois soldados. Ele se
mercadores, e trarei alguns presentes aproximou de Aksionov e começou
para você da feira. a questioná-lo, perguntou com quem
ele esteve e de onde ele estava vindo.
Aksionov respondeu tudo, e perguntou:
Ele disse adeus à família e partiu.
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o oficial da polícia abriram as bagagens de que ele não tinha dinheiro, com exceção
Aksionov e as reviraram. Repentinamente, de oito mil rublos que lhe pertencia, e que
o oficial retirou, dum saco, uma mala, a faca não era dele. Mas sua voz estava
gritando: trêmula, o rosto, pálido, e ele tremia de
medo, como se ele fosse culpado.
— De quem é esta faca?
O oficial da polícia deu ordem aos
Aksionov olhou, e, diante da visão da soldados para prendê-lo e pô-lo na
faca enangüentada encontrada em sua carroça. Enquanto eles amarravam-no
mala, ele se assustou: os pés e o arremessavam para dentro da
carroça, Aksionov fazia o sinal da cruz e
se lamentava. Seu dinheiro e mercadorias
— E por que há sangue nesta faca?
foram confiscadas, e ele foi enviado
para a cidade mais perto e aprisionado.
Investigações sobre seu caráter foram
feitas em Vladimir. Os mercadores e
outros habitantes da cidade disseram
que, no passado, ele costumava beber e
vagabundear, mas que ele era um bom
homem. Chegou o dia do julgamento:
ele foi acusado de ter assassinado um
mercador de Ryazan e roubado dele vinte
mil rublos.
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Sua esposa lhe disse que haviam os ferimentos feitos pelo chicote foram
enviado uma petição ao Czar, mas que curados, ele foi mandado para a Sibéria
não havia sido aceita. com outros condenados.
Aksionov não respondeu, apenas Por vinte e seis anos, Aksionov viveu
baixou o olhar. como um prisioneiro na Sibéria. Seu
cabelo ficou branco como a neve, e sua
Então sua esposa disse: barba cresceu longa, fina e cinza. Toda
sua alegria se esvaiu; ele se acorcundou;
caminhava vagarosamente, falava pouco,
— Não foi em vão eu ter sonhado que
nunca ria, mas orava constantemente.
seu cabelo tinha ficado grisalho. Você
se lembra? Você não devia ter viajado
naquele dia. Na prisão, Aksionov aprendeu a fazer
botas, o que lhe rendia algum dinheiro,
com o qual ele comprou A Vida dos
E deslizando os dedos pelos cabelos
Santos. Ele lia este livro enquanto havia
dele, ela perguntou:
luz suficiente na prisão; e, aos domingos,
na capela da prisão, ele lia as lições
— Vanya, querido, diga a verdade e cantava no coro; pois sua voz ainda
para sua esposa; não foi você quem fez estava boa.
isto?
As autoridades da prisão gostavam
— Até você suspeita de mim também! de Aksionov por sua submissão, e seus
disse Aksionov e, escondendo o rosto colegas de cárcere o respeitavam:
com as mãos, começou a chorar. Então chamavam-no “padrinho”, ou “o Santo”.
um soldado veio e disse que a esposa e Quando eles queriam pedir algo para
as crianças tinham de ir embora; Aksionov as autoridades da prisão sobre qualquer
se despediu da sua família pela última assunto, eles sempre faziam de Aksionov
vez. seu porta-voz, e quando havia disputas
entre os prisioneiros, eles vinham a ele
Quando eles haviam partido, Aksionov como conciliador, para julgar a questão.
se recordou do que tinha sido dito, e se
lembrou que sua esposa também havia Aksionov não recebia notícias de casa
suspeitado dele, e falou para si mesmo: e não sabia até mesmo se sua esposa e
filhos estavam vivos.
— Parece que só Deus sabe a verdade;
é para Ele apenas que devemos recorrer, Um dia, uma nova leva de condenados
e Dele apenas que devemos esperar chegou à prisão. À noite, os antigos
misericórdia. prisioneiros reuniram os novos e os
perguntaram de quais cidades ou vilas
E Aksionov não escreveu mais eles tinham vindo, e quais eram suas
petições; perdeu toda a esperança e condenações. Aksionov se sentou no
apenas rezava para Deus. meio deles, perto dos recém-chegados,
e ouviu, com ar pesaroso, ao que eles
Akvionov foi condenado a ser diziam.
chibatado e enviado para as minas. Ele
foi açoitado com um chicote, e quando Um dos novos condenados, um
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homem alto, por volta dos sessenta anos, pelo que tudo indica! E você, vovô, como
barba grisalha bem aparada, contava aos veio parar aqui?
outros porque ele foi preso.
Aksionov não gostava de falar sobre
— Bem, amigos, ele disse, eu apenas sua desgraça. Ele apenas suspirou e
peguei um cavalo que estava atado a disse:
um trenó, fui preso e acusado de roubo.
Aleguei que eu o havia pegado apenas — Por meus pecados, estou na prisão
para chegar em casa mais rápido e que há vinte e seis anos.
depois eu o devolveria; além disto, o
condutor era um amigo pessoal meu. Eu
— Quais pecados? — indagou Makar
disse, então:
Semyonich.
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Samizdat 3 - março 2008
tentasse, Aksionov não disse mais nada, Aksionov, mas eu sofri por sua causa
e tiveram de abandonar a questão. durante estes vinte e seis anos. Para
onde eu iria agora? Minha esposa está
Naquela noite, quando Aksionov morta, e meus filhos se esqueceram de
estava deitado em seu leito e quase mim. Não tenho para onde ir...
começando a adormecer, alguém veio,
em silêncio, e se sentou na cama dele. Makar Semyonich não se levantou,
Ele perscrutou a escuridão e reconheceu mas batia com a cabeça no chão.
Makar.
— Ivan Dmitrich, perdoa-me! — ele
— O que mais você quer de mim? — gritava — Quando eles me açoitaram com
perguntou Aksionov — Por que veio até o chicote, não foi tão difícil de suportar
aqui? quanto é agora olhar para você... Mesmo
assim você teve pena de mim e não me
Makar Semyonich permaneceu em entregou. Por Cristo, perdoa-me, eu sou
silêncio. Então Aksionov se sentou e um desgraçado!
perguntou:
E ele começou a soluçar.
— O que você quer? Vá embora, ou
eu chamarei a guarda! Quando Aksionov o ouviu soluçando,
ele também desatou a chorar.
Makar Semyonich se inclinou em
direção a Aksionov e sussurrou: — Deus o perdoará! — ele disse —
Talvez eu seja cem vezes pior do que
— Ivan Dmitrich, perdoa-me! você.
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CRÔNICA
De Puta a Pop
Henry Alfred Bugalho
A cabeça do governador Eliot Spitzer rolou por causa dum escândalo sexual e, em
seu lugar, assumiu Patterson - o primeiro governador negro no estado e, ao mesmo,
o primeiro governador cego da nação.
O que surpreende não é o escândalo sexual, não é o fato dum político estar
envolvido numa rede de prostituição, ter gasto uns 80 mil dólares para satisfazer seu
apetite sexual. Outros políticos norte-americanos já passaram pelo constrangimento
de ter sua vida íntima escandarada, inclusive o ocupante do cargo máximo, o notório
caso Bill Clinton-Monica Lewinsky. O próprio governador substituto se adiantou e, no
segundo dia no cargo, já abriu a intimidade e revelou que ele e a esposa cometeram
adultério anteriormente.
Este tipo de puladas de cerca não surpreendem, aliás, numa cultura patriarcal, muita
gente acha o máximo - e de direito - que o homem dê suas escapadas. Encontram
argumentos na genética, nas sociedades primitivas, na religião, ou em qualquer
outra fonte duvidosa, mas sempre apresentam algum argumento “irrefutável” para a
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instituição do adultério.
Um dos aspectos curiosos do caso Spitzer é que, como dizem, o pobre coitado
“cavou a própria sepultura”. É dele a lei que torna o cliente de prostituição também
um criminoso, passível de ir para a cadeia. E poucos duvidam de que Spitzer também
verá o sol nascer quadrado.
Spitzer foi demonizado, capa de todos os jornais, execrado pela opinião pública,
motivo de chacota, mas a singela e inocente Kirsten atingiu o estrelato em menos de
48 horas.
Descobriram que o grande sonho da moça era se tornar cantora, que teve uma
infância difícil, e que fazia bico de garota de programa enquanto tentava lançar sua
carreira artística, ou seja, um caminho percorrido por muitos que estão sob os holofotes
hoje em dia.
“Eu devia ter nascido na Holanda”, é que deve se passar na mente do ex-governador
de NY, neste exato instante.
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Continente
Marcia Szajnbok
Romantismo feijão-com-arroz
Vende-se barato em qualquer parte:
Todos se amam muito!
Se estão tristes, é por falta de amor...
Se são mimados, é porque houve amor demais...
Amor de novela, com violinos ao fundo
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E pôr-do-sol de cenário
E juras, e lágrimas, e suspiros, e ais...
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Coleção de Botões
Giselle Natsu Sato
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Giselle Sato
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/
http://www.riodeescrita.blogspot.com/
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Jurandir Araguaia
Escritor goiano, nascido em Brasília aos 8/11/65.
http://www.jurandiraraguaia.com/
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever de
vez em quando. Paulistana convicta, vive desde sempre
em São Paulo.
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
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