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Debates GVsaúde - Primeiro Semestre de 2007 - Número 3

Cadeia de Valor na Saúde


Compras na Área da Saúde
Claude Machline

V
amos jogar um pouco mais de lenha na fogueira antes de passar aos
debates sobre cadeia de suprimentos na área hospitalar, na área de Saúde
em geral. Serão algumas palavras, para reforçar o que os conferencistas
mencionaram e vamos consagrar o maior tempo possível aos debates
propriamente ditos.
Convém enfatizar a relevância das compras na área perdas dos participantes e seu relativo poder. O grau de
da Saúde, expor algumas tendências do mercado e das cooperação entre os atores, o compartilhamento das
operadoras, efetuar recomendações e concluir. informações relativas à demanda e aos estoques, a
formação de parcerias e alianças estratégicas, têm sido
Apresento-me rapidamente. Sou um dos professores
tópicos pesquisados. Ouvimos, dos conferencistas
mais antigos da Escola de Administração de Empresas da
anteriores, que está se chegando a construir alianças na
Fundação Getulio Vargas. Sou um dos fundadores do
cadeia da Saúde, seja entre os vários elos, seja dentro
GVsaúde e do PROAHSA, criado em 1972, por
dos elos. O laço que une os componentes das cadeias
convênio da FGV com o Hospital das Clínicas da USP.
automobilística e supermercadista é mais forte do que na
Uma parte desses últimos anos foi por mim consagrada
cadeia da Saúde.
à área hospitalar, trabalhando em diversas instituições de
Saúde e estudando os problemas dos hospitais na gestão Pode-se ter uma idéia da complexidade desta
de compras, dos estoques e do patrimônio. cadeia examinando a Figura 1, que mostra o fluxo dos
materiais em um hospital típico de grande porte, desde o
No estudo das cadeias de suprimentos, os pontos
químico industrial, com mestrado fornecedor até o cliente final.
pela Michigan State University e
chaves são: a descrição completa da cadeia; a natureza
doutorado pela Stanford University; do relacionamento entre os elos; e o valor acrescentado Corroborando a posição dos nossos conferencistas,
professor emérito da FGV - EAESP. aos produtos ao longo da cadeia, que definirá ganhos e a torta de custos de um hospital, mostrada na Figura 2,

4 Gestão estratégica da cadeia de suprimentos: modelos e tendências


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revela que os itens de consumo principalmente, na compra dos insumos,


representam tipicamente 25% dos na aquisição eficiente. O preço de venda
custos totais. O pessoal, incluindo ostenta um teto, fixado pelo mercado, o
os encargos, responde por 50% plano de Saúde ou o governo. Ao
dos custos. Ouvimos que, na Santa contrário, o preço de compra não
Casa de São Paulo, esse item chega registra um máximo. A negociação com
a 65% dos custos totais e 23% é a o fornecedor assume a maior
fatia dos materiais de consumo. importância. Essa situação não é
Serviços de terceiros constitui uma específica da cadeia de suprimentos da
rubrica em crescimento, por força Saúde. Todas as cadeias sofrem do
dos avanços da terceirização, e já mesmo problema: a concorrência
alcança 20%. Os outros custos, acirrada não permite alcançar o preço
perfazendo 5%, são: energia sonhado; ou algum órgão público vigia e
elétrica, água, gás, depreciação do Figura 1 – Fluxo Físico de Materiais em um Hospital regulamenta o preço. O espaço para o
equipamento, despesas financeiras lucro, bloqueado na direção da venda,
e alguns impostos e taxas. Dentro dos materiais de consumo, os abre-se do lado da compra.
medicamentos amontam a menos da metade dos 25%, ou seja, a cerca de
Uma lista das principais técnicas recomendadas para efetuar compras
10%. Os materiais médico-hospitalares, incluindo próteses, chegam também
eficazes é mostrada a seguir:
a 10%. Os restantes 5% são alimentos, roupas, material de limpeza,
reagentes, impressos, papel, peças de reposição e material administrativo e de Hospitais públicos
informática. Ao todo, gerenciam-se cerca de 2500 a 5000 itens diversos, Centralização de compras (União, Estados, Prefeituras)
conforme o tamanho do hospital. Licitações com registro de preço
Licitações com modalidade de pregão eletrônico ou presencial
Considerando-se que indústrias automobilísticas e hipermercados
Terceirização das operações logísticas (por exemplo, farmácia popular)
trabalham com dezenas de milhares de itens, parece mais fácil gerir um
Hospitais privados
sistema de compras e estoques num hospital do que em muitos outros ramos.
Melhores negociações de preço e condições de pagamento (compra
Mas os medicamentos e materiais médico-hospitalares possuem uma série de
“técnica”)
peculiaridades que outros insumos não têm: um prazo de validade exíguo, em
Redução de prazo de entrega do fornecedor
média de dois anos; a exigência de rastreabilidade, o que obriga a controlar
Aumento da freqüência de entregas (JIT-JUST IN TIME)
cada lote separadamente e a geri-lo da forma: “primeiro que entra – primeiro
Centralização de compras nas redes hospitalares (economia de escala,
que sai”; a necessidade de conversão de unidades, por exemplo,
poder de barganha)
comprimidos, em cartelas, caixas, engradados, paletes; e a obrigação de ter
Compras conjuntas (grupos de hospitais)
todos os produtos homologados pela ANVISA – AGÊNCIA NACIONAL DE
Terceirização das operações logísticas e, mesmo, das próprias compras
VIGILÂNCIA SANITÁRIA.
Compras antecipadas (antes do aumento anunciado de preço), compras
Essas especificidades tornam complexa a gestão dos materiais nos de oportunidade
hospitais, que, por sua vez, são das organizações mais complexas criadas pelo Redução de desperdícios de materiais
ser humano. Muitos hospitais adotam uma ou mais dessas técnicas. Licitações
baseadas na modalidade de pregão eletrônico têm sido muito usadas por
Nos hospitais privados, a torta de lucros, ao contrário da torta de custos,
alguns governos estaduais, reduzindo até 30% os custos dos itens adquiridos.
põe em relevo a predominância dos materiais cobrados dos pacientes.
A centralização de compras aufere economia de escala na negociação e
A Figura 3 indica que os materiais de consumo contribuem para a metade conseqüente redução potencial de custo. Concorrências com registro de
dos lucros. A diferença existente entre o custo e o preço de venda do preços foram outra modalidade utilizada durante anos para reprimir os
medicamento e do material hospitalar proporciona a maior fonte de lucros do aumentos. Se a União, os Estados e os Municípios centralizassem suas
hospital. As taxas de sala cirúrgica e de UTI, bem como as diárias, compras, poderiam auferir consideráveis descontos de quantidade. Mas cada
representam um quarto dos unidade resiste à centralização e quer
lucros; e as aplicações preservar sua autonomia nas compras.
financeiras, outro quarto.
Somente os itens mais significativos
Muitos gestores
economicamente (chamados itens A)
hospitalares constatam que
devem ser comprados centralmente, os
o hospital moderno se
demais (itens B e C) podem ser comprados
transformou num varejo de
localmente.
venda de materiais, num
conjunto de “lojinhas”, às A terceirização das operações
quais, aliás, um dos nossos logísticas chegou à área pública. Como
conferencistas se referiu. exemplo, cite-se a Farmácia Popular,
programa recém-criado, que consiste em
O lucro não se obtém
entregar às farmácias particulares a gestão
mais na venda, mas, Figura 2 – Pie Chart de custos (hospital privado ou público)

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dos medicamentos fornecidos quase gratuitamente à população. Os poderes Ativar as Comissões de Compra, de Farmácia e de Padronização.
públicos enfrentam dificuldade para gerir as extensas cadeias de Utilizar sistemas ABC de Gestão de Estoques.
medicamentos que se estendem aos postos de Saúde dos mais remotos Convidar usuário à “mesa” de negociação de compra.
municípios, uma tarefa que as farmácias privadas, a exemplo do que ocorre Usar sistema de alçadas nas compras.
em países europeus, podem executar com eficiência. É responsabilidade intransferível da Diretoria do hospital estabelecer uma
diretriz para seus níveis de estoque. Por exemplo, um estoque mínimo de 15
A compra técnica consiste em conhecer a fundo todos os elementos de
dias e máximo de 45 dias para os insumos básicos. Ou definir claramente
a missão do hospital em relação ao nível de serviço desejado: “Não pode
faltar remédio na farmácia do nosso hospital, assim como não pode faltar
pão na padaria”.
O hospital tem que estabelecer indicadores de gestão, como
nível de serviço, giro do estoque, prazo de entrega dos
fornecimentos, confiabilidade do sistema de estoque. Administrar é
usar indicadores.
Tempos virão em que nossos hospitais descobrirão os ganhos a ser
obtidos com o treinamento intensivo do pessoal operacional, de
transporte e suporte, hoje esquecido.
É importante efetuar freqüentes inventários físicos, por causa dos
Figura 3 – Pie Chart dos lucros (hospital privado) furtos, erros, quebras e perdas, que as contagens ajudam a reprimir.
custo dos materiais a ser adquiridos, medicamentos, suprimentos hospitalares, Convém nomear e ativar comissões de compra, de farmácia, de
ou gases medicinais. O comprador técnico sabe que o oxigênio liquefeito, por padronização, de custos. As comissões são essenciais. É necessário incentivá-
exemplo, vendido até R$ 5,00 por metro cúbico, custa apenas R$ 0,20 para las e facilitar seu trabalho.
ser produzido, oferecendo, pois, vasta margem para negociação, sendo que
alguns hospitais pagam por ele menos de R$ 1,00. O custo variável dos Uma melhoria na técnica de negociação consiste em convidar o usuário
insumos médicos não passa freqüentemente de 20% do preço de venda, – médico, enfermeira, farmacêutico, nutricionista - a participar da compra
sendo a rigor este o piso pelo qual é possível negociá-los. sentado à mesa de negociação com o fornecedor. Ao invés de o comprador
negociar sozinho, ele recebe o suporte do usuário.
Convém elencar uma vasta gama de técnicas de suporte destinadas a
melhorar os resultados na gestão dos materiais usados na Saúde. Um sistema de alçadas deve ser implantado nas compras, a fim de não se
gastar tempo, papel e assinaturas na aquisição de itens de pouca relevância.
Técnicas de suporte para melhoria de resultados O tempo ainda é o insumo mais valioso do administrador.
Simplificação do mix de insumos. Padronização. Especificações técnicas. Os progressos administrativos realizados pelas instituições de Saúde
Uso de tecnologia de informação. Web. Softwares sofisticados. Código de nesses dez últimos anos têm sido expressivos. Tudo indica que esses avanços
barras. vão continuar.
Análise de valor.
Desenvolvimento de novos fornecedores. Uma cadeia de valor é mais que uma cadeia de suprimentos. Agrega
Estabelecimento de parcerias com fornecedores. também os valores trazidos por bens não materiais, a saber, no caso da cadeia
Esforços colaborativos para resultados (ECR - Efficient Consumer aqui focalizada, a habilidade do cirurgião, a perícia do clínico, a dedicação
Response) ao longo da cadeia de suprimentos. da equipe de Saúde. Alguns dados quantitativos, cuja apresentação encerrará
Compras conjuntas de insumos comuns vêm sendo praticadas sob a égide esta palestra, provam que é de magnitude impar o valor adicionado pela mão
da Associação Nacional de Hospitais Privados e outros grupos que congregam invisível da atenção à Saúde.
estabelecimentos de Saúde. Para essas compras serem bem sucedidas, é A área de Saúde perfaz milagres no Brasil. Gastam-se cerca de R$ 150
indispensável elaborar especificações técnicas minuciosas dos materiais e bilhões por ano em Saúde no país, ou seja, cerca de R$ 800 per capita, isto é,
simplificar sua variedade. É necessário obter o consenso dos diversos hospitais uns US$ 365 per capita anual.
que se agregam nas compras conjuntas quanto aos medicamentos e outros
insumos aos quais se deve dar preferência na padronização. Os países desenvolvidos gastam de US$ 3 000 a US$ 5 000 per capita por
ano em Saúde. E nossos índices de mortalidade infantil (33 em mil) e
Comentemos algumas recomendações listadas a seguir: longevidade (expectativa de vida de 70,3 anos), embora ruins em relação aos
A Diretoria do hospital deve estabelecer diretrizes . dos países mais desenvolvidos, não estão piores na mesma proporção que a
Centralizar as compras dos itens A e B, descentralizar as compras dos diferença de gastos faria supor.
itens C. Ainda que as despesas de Saúde do país dobrassem, ou mesmo
Utilizar métodos quantitativos de previsão da demanda, gestão de triplicassem (usando o conceito de paridade de poder aquisitivo entre países),
estoque e tomada de decisão. esse argumento permaneceria válido.
Administrar por meio de indicadores (como giro do estoque, nível do
serviço). Parabéns, pessoal da Saúde. Uns poucos, com muito pouco, fazem muito
Treinar de verdade o pessoal operacional. por muitos. Agregam imenso valor a essa mais valiosa de todas as cadeias de
Efetuar inventários freqüentes. valor: a da Saúde e da vida.

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