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José Luis Fiori Estados, moedas e desenvolvimento “Futuramente, é possivel que os nativos desses pafses se tornem mais fortes, ou os da Europa mais fracos, os habitantes de todas as diversas regides do mundo possam chegar iquela igualdade de coragem e for- ¢a, que, inspirando temor mtituo, constitui 0 tinico fator capaz de inti- midar a injustica das nagées independentes e transformd-la em certa espécie de respeito pelos direitos reciprocos”. (Adam Smith, A riqueza das nacées) 1. A visdo classica Ao defender a tese de que uma mudanga na correlacao de forgas entre os Estados era uma condi¢io indispensavel a uma maior equidade entre as nagdes, Adam Smith propés a economia politica classica uma questao ¢ um. caminho que ele mesmo, posteriormente, abortou. Quando Smith publi- cou, em 1776, sua Investigagdo sobre a natureza e as causas da riqueza das nagées, j fazia mais de dois séculos que os mercantilistas estavam conven- cidos de que o dinheiro e a riqueza eram dimensées inseparaveis do poder dos Estados. Entretanto, 0 viés politico-ideol6gico imposto pela luta do li- beralismo econémico contra o “sistema mercantil” impediu os economis- tas politicos ingleses de reconhecerem 0 que havia de verdade na politica mercantilista e acabou enviesando, de forma definitiva, todo o pensamento econédmico classico. O préprio Smith, depois de propor com absoluta pre- cisdo —a propésito dos paises atrasados ~ o que era, de fato, o enigma cen- tral de todo desenvolvimento capitalista, foi incapaz de analisd-lo e esclarecé-lo de forma objetiva e conseqiiente. Pelo contrario, acabou con- cluindo—submetido ao seu desideratum ideolégico — que “nada parecia ter mais probabilidades de criar tal igualdade de forga do que o intercambio miituo de conhecimentos e de todos os tipos de aprimoramentos que tra- zem consigo um amplo comércio entre si” (Smith, 1983, p. 101). Resposta perfeitamente circular, uma vez que para Smith fora o préprio “intercam- bio mtituo” que provocara os “infortinios horriveis” nos territérios colo- niais, exatamente porque a correlacao de “coragem e fora” entre os povos conquistadores ¢ conquistados era muito desigual. E, portanto, um con- ESTADOS, MOEDAS E DESENVOLVIMENTO mica capitalista. Nem sua teoria da acumulagio, nem seus esquemas de re- produgao ampliada, “endogenizam” o papel do poder politico na ruptuta da“reprodugao simples”. Marx reconheceu aenorme importancia das “ai vidas piblicas”, mas restringiu-a aos processos e momentos de “acumula- cao primitiva”, sem considerar o papel dos Estados nacionais na competigao, concentragao e centralizagao do capital, que viria a ser, exata- mente, o tema central da teoria marxista do imperialismo. Nesse campo, ‘foi Hilferding quem revolucionou o pensamento classico ao reenfocar, de maneira absolutamente original, as relagdes entre os Estados, as moedas eo desenvolvimento do capitalismo “organizado” num novo patamar do pro- cesso de concentragio e centralizagdo do capital, hegemonizado pelo “ca- pital financeiro”. Para Hilferding, como para Bukharin, o imperialismo foi a politica do capital financeiro em geral que visava “governar 0 mundo na forma de um império universal”. Entretanto, eles tinham consciéncia de que tal objetivo entrava em choque com os Estados nacionais associados 40s seus capitais financeiros individuais, os quais se propunham, em con- junto, a defesa dos seus territorios econdmicos, delimitados politicamente pelas fronteiras do protecionismo. Essa contradigdo reaparece a todo mo- mento no debate classico entre Kautsky e Lenin sobre a viabilidade ou nao de uma coordenagao pacffica entre as grandes poténcias, seus conglomera- dos financeiros e seus “territérios econédmicos”. Na contramio do liberalismo ¢ do marxismo, ainda no século XIX, a “verdade produtivista” do mercantilismo foi redescoberta pelo “protecio- nismo” industrializante de Alexander Hamilton, e pelo “nacionalismo eco- némico” de Friedrich List e Max Weber, todos movidos pelo mesmo objetivo politico: o fortalecimento dos seus Estados e capitalismos tardios frente ao capitalismo originario e imperial da Inglaterra de Smith, Ricardo Marx. No seu Report on Manufactures, publicado em 1791, Hamilton de- finiu o que viria a ser — nos séculos seguintes—o ponto central da disputa como livre-cambismo, ao sustentar que “a superioridade desfrutada inicial- mente pelas nagGes que monopolizaram e se aperfeigoaram em um ramo da indiistria, se constitui no mais formidavel obstaculo... 4 instalagio do mes- mo ramo em um pais onde este nao existisse anteriormente” (Hamilton, 1996, p. 80). Meio século depois, Friedrich List sintetizou essa critica e de- nunciou o que considerava a fragilidade central da economia politica ingle- sa: “ela nao reconhece nenhuma distingdo entre as nagGes que atingiram um est4gio superior de desenvolvimento econdmico eas que ainda estavam em estagio inferior de evolugao... [e por isto] em parte alguma, os defenso- res deste sistema se preocupam em explicar os meios pelos quais as nagdes hoje présperas chegaram a atingir esse poder e esta prosperidade que nelas observamos (...) fazendo-nos crer que a economia politica nao deve levar -senso supor que esse mesmo intercambio pudesse desfazer a correlagdo gindria e desigual de forgas entre as nagdes. Smith foge de sua propria itradigao, dissolvendo o problema no campo teérico, ao identificar 0 conceito de nagdo com o de mercado, e ao definir 0 seu conceito de ri- »za a partir da satisfagdo dos consumidores. Como resultado, reinventa anacdo sem Estado nem territério, feita apenas de mercadores e consu- lores. A mesma falacia se prolonga na teoria do cométcio internacional Ricardo, incompativel com o seu préprio modelo, baseado na relagao re dois paises que permaneceram desiguais através dos séculos. Essa mesma ambigitidade te6rica permeia a discussio de Smith e Ricar- sobre o valor da moeda. Ambos reconhecem a importancia universal (e asta) do poder politico dos Estados soberanos na determinacio do valor dinheiro, mas preocupam-se apenas com o controle do “Estado inglés”, ivés do seu parlamento e da criagdo do sistema de referéncia baseado no Irao-ouro. Nao discutem o problema, diretamente relacionado, da in- eréncia do Estado e do poder econdmico inglés na determinagao do va- das moedas dos outros povos, inferiores em “coragem e forga”, apesar Ricardo reconhecer que “o valor do dinheiro jamais €0 mesmo em dois ses quaisquer” (Ricardo, 1982, p. 108). Como o liberalismo inglés, ao contrario dos fisiocratas, jamais assumiu irania esclarecida” como condic&o do bom funcionamento dos merca- auto-regulados, acabou transformando o “poder politico” numa espé- de “complexo reprimido” ou “trauma origindrio” de todo o seu samento econémico. Essa idéia foi radicalizada pelo mainstream neo- sico, que elevou a categoria de axioma ntimero um dos seus modelos 0 fora apenas uma proposta politico-ideolégica do liberalismo ascen- te: a eliminagao ou neutralizag4o do poder politico na determina¢ao do ot do dinheiro e no funcionamento dos mercados capitalistas. Aprépria “critica da economia politica” de Marx manteve-se fiel ao an- ercantilismo de sua €poca. Sua teoria do Capital foi ainda mais radical srocesso analitico de “despolitizacdo” do sistema econdmico e da dina- 1A riqueza das nagdes, Adam Smith denuncia o fato de “que, em todos os paises do do, a avareza ea injustica dos nobres e dos Estados soberanos 0s levou, abusando da ianga dos seus siditos, a diminuir gradualmente a quantidade de metal que originaria- te existia nas suas moedas (...) conseguindo desse modo pagar as suas dividas ¢ compro- 0s com quantias de prata inferiores as que de outro modo seriam forgados a utilizar (1983, p. 23), Ricardo usa da mesma veeméncia, nos seus Principios, ao sustentar que uma reclamacio tem sido tao comum quanto em relacao aos aumentos dos precos de sas mercadorias, mas poucos sabem quo grande parte da inconveniéncia que sofrem & ser atribuida inteiramente ao uso impréprio que os diretores do Banco tém feito dos sres extraordinérios que a legislarura confiou a eles” (1983, p. 132). retorno Acompeticado monetaria do entre-guerras e também o retorno ao pa- drio-ouro, no qual os governos eram obrigados a subir automaticamente suas taxas de juros, contrair o crédito e criar desemprego toda vez que en- frentavam situagGes adversas no seu balango de pagamentos.’ Na sua Teoria ‘geral, assim como nasua diplomacia econémica, Keynes ensinava a mesma li- cdo: na auséncia de um sistema interno e organizado de crédito ou de em- préstimos e investimentos externos, seguia valida a politica mercantilista como a tinica forma de manter a autonomia nacional da gestio da politica monetiria, independente das flutuagées dos fluxos externos de capitais. Eo tinico caminho, talvez, para os paises atrasados realizarem o sonho de Adam Smith, equiparando-se em forga, coragem e riqueza as nagdes avangadas. Cada uma dessas teses foi proposta em momentos muito diferentes da formacdo e expansio do capitalismo comercial € industrial, mas deixou pelo menos trés pistas fundamentais a respeito do problema das relagées entre os Estados, as moedas e a riqueza desigual das nagoes. Ada escola liberal e cosmopolita, que prop6e, permanentemente, au- tonomizar 0 desenvolvimento capitalista das fronteiras e do poder dos Estados mas que reconhece, com Smith, a importancia da equiparacao dos poderes entre os Estados para esse desenvolvimento nas colénias, bem comoa importancia do poder politico na determinagao do valor da moeda, decisiva para a estabilizacao dos negécios. ‘A da “escola” marxista, que se debruga sobre as leis de movimento do capital e de sua “compulsdo” internacionalizante. Entretanto, é apenas quando teoriza 0 imperialismo que restabelecea importancia da associag¢ao entre o poder politico e o capital financeiro na competi¢ao imperialista en- tre os Estados nacionais e seus territérios econémicos supranacionais. Por fim, a da escola mercantilista, que se prolonga no nacionalismo econ6mico do século XIX ereconhece a relagio diretae insepardavel entre o poder politico, o manejo das moedase a expansio € distribuicao desigual da riqueza entre Estados territoriais orientados, em tltima instancia, pela idéia da inevitabilidade da guerra econdmica ou militar, e, portanto, da im- portancia do controle nacional do dinheiro e das armas. O debate entre essas trés vertentes do pensamento classico, entretanto, deixou sem resposta 0 enigma histérico proposto por Adam Smith. Se a equalizagao de poder é condicio indispensavel a equalizacao da riqueza en- F Como ele mesmo confessou em discurso de 1944 & mesma Camara dos Lordes: “nés te~ pudiamos os instrumentos de taxa de juros e contragao de crédito que operam no sentido He aumento do desemprego como um meio de forcar nossa economia a se alinhar a partir de fatores externos” (Keynes, 1944, apud Harris, 1947, p. 374). 53 consideracao as politicas e 0 poder politico (...) a influéncia recfproca 2a riqueza material e o poder politico exercem um sobre 0 outro (...)” st, 1986, p. 101, 119, 120 e 129). Quase meio século mais tarde, Max Weber voltaria ao mesmo argu- nto de List,’ mas foi na sua Hist6ria econédmica geral que ele substituiu o npo normativo do nacionalismo econémico pela andlise historica, con- indo que a competigao entre os Estados pelo poder e pela riqueza foi de- va para o desenvolvimento do préprio capitalismo.’ Uma tese que sontraria seu prolongamento analftico natural na teoria posterior de Fer- and Braudel sobre o papel da relagao — permanente e proficua~entre os ros do poder e do dinheiro na geragdo dos “grandes lucros extraordina- 3” que movem 0 capitalismo histérico. Jano século XX, e no coracéo do mundo liberal, Lord Keynes foi res- isavel pela redescoberta da “verdade monetaria” do mercantilismo, ex- ita no capitulo XXIII da sua Teoria geral: “num tempo em que as oridades nao podiam agir diretamente sobre a taxa dejuro interna, nem re os motivos que a governavam, as entradas de metais preciosos, resul- tes de uma balanga favordvel, eram os tinicos meios indiretos de baixar a a de juros interna, isto é, de aumentar a incitagao a realizar investimen- (...)” (Keynes, 1936 ). E entre 1943 e 1944, nas negociagdes de Bretton ods, Keynes péde explicitar melhor sua tese sobre a “verdade mercanti- 1”, ao definir o que seriam, para ele, as relagGes ideais entre um novo sis- ‘a monetério internacional e as moedas, as taxas de juros e o nivel de arego de cada uma das economias nacionais.” Seu objetivo era impedir o ama aula inaugural, na Universidade de Freiburg, Max Weber sustentou categorica- te que, “em tiltima anéllise os processos de desenvolvimento econémico também sao lu- e dominacao; ¢ os interesses de poténcia da nagao constituem, quando so postos em tao, os tiltimos e decisivos interesses a cujo servico deve estar sua politica econdmica. A sia da politica econdmica é uma ciéncia politica... e no que se refere ao problema de se ado deve intervir na vida econémica, a tiltima e decisiva palavra deve corresponder aos ‘esses econémicos e politicos de poréncia da nossa nac4o” (Weber, 1982, p. 18). 1 sua Historia geral da economia, Weber afirma que “esta luta competitiva criou as mais las oportunidades para o moderno capitalismo ocidental. Os estados, separadamente, am que competi pelo capital circulante, que hes ditow as condigbes mediante as quais sria auxilié-los a tet poder (...) portanto, foi o estado nacional bem delimitado que pro- ionou ao capitalismo a sua oportunidade de desenvolvimento (...)” (1968, p. 291). # hoje ecoam de forma premonitéria suas palavras no discurso 4 Camara dos Lordes de de 1943: “nés precisamos de um instrumento como meio de pagamento internacional enhaaceitacao entre as nacées [...] nés precisamos de determinagao das taxas de cambio -das as moedas conforme regras estabelecidas e acordadas tal, que as aces unilaterais e alorizagdes competitivas das taxas de cambio sejam evitadas [...] em um sentido mais 0, precisamos garantit, para um mundo conturbado, que os pafses cujas préprias ques- forem conduzidas com a devida prudéncia terdo aliviada sua aflicao por uma situagao qual nao sao responsaveis” (Keynes, 1943, apud Harrod, 1951, p. 326 e 527). Ad tribuicdes que mantém sua validez tedrica e metodolégica quando aplica- das a diferentes situacdes histricas e que definem um novo ponto de partida para a discussao mais geral sobre as relagées entre os Estados ea ri- queza capitalista. Em primeiro lugar, porque seu argumento histérico coloca, exatamen- te, como ponto de partida da discussao te6rica, o enigma deixado pelos cldssicos quanto 4 relag4o entre a geopolitica, a gestao da moeda interna- cional ¢ o desenvolvimento contraditério das economias de mercado. Em “segundo lugar, porque reintroduz.a idéia de contradig4o, no seu velho sen- tido dialético, ao sugerir a existéncia simultanea, e endégena ao sistema ca- pitalista, de um “duplo movimento” provocado pela agao de dois principios de organizacao da sociedade: “um, o principio do liberalismo econémico, que objetiva estabelecer um mercad auto-regulado, € 0 outro, o principio da protegao social, cuja finalidade é pteservar o homem ea na- tureza, além da organizagao produtiva” (Polanyi, 1980, p. 139). Em tercei- ro lugar, porque Polanyi reconhece que este “duplo movimento”, ou contradicdo, adquiriu uma nova naturezaa partir dadécada de 1870, quan- do se generaliza a ades4o dos paises a0 padrao-ouro, no mesmo momento em que “o episddio do livre-comércio estava no final”, com barreiras prote- cionistas comegando a ser levantadas, dando a partida para a competigao colonial entre os Estados nacionais europeus. Como diz Polanyi, a partir daquele momento decisivo, “o mundo continuoua acreditar no internacio- nalismo e na interdependéncia, mas agiu cada vez mais sob os impulsos do nacionalismo e da auto-suficiéncia, [por isso] na verdade 0 novo naciona- lismo foi 0 corolario do novo jnternacionalismo” (id.). nesta nova conjuntura também que comega a bifurcar-se o “principio de autoprotegao” das sociedades européias: por um lado, avangou a luta politica das classes pela autoprotecao social, e por outro, separadamente, a luta dos Estados pela apropriacio da riqueza mundial, movidos pelo que poderfamos chamar com Polanyi de “princfpio da nacionalidade ou da ter- ritorialidade”. E, finalmente, em quarto lugar, anova economia politica internacional de Polanyi reconhece a existéncia e a importéncia da hierarquia de poder existente entre os Estados, para o funcionamento do mundo liberal e do sis- tema capitalista, o qual, “na verdade, contava com um ntimero limitado de paises, dividido em paises que emprestavam e paises que pediam emprestado, pafses exportadores ¢ pai- ses praticamente auto-suficientes, paises com exportag4o variada e paises que 55 sé Luts Fiori eas nac6es ese acompeti¢ao interestatal, como sintetiza Weber, é um ele- ento essencial da acumulacao capitalista, como € possfvel alterar uma otrelagdo de poder desfavoravel entre as nagGes, a partir de uma situagdo i qual os Estados j4 aparecem hierarquizados historicamente, do ponto de sta de sua “coragem, forga e riqueza”, e competem dentro de uma mesma sonomia capitalista global? I Uma leitura histérica Foi Karl Polanyi quem retomou esse problema, de uma perspectiva his- rica, no seu trabalho classico, publicado em 1944, A grande transforma- ‘o. Uma interpretagéo absolutamente original sobre a natureza e as rafzes tcrise que destruiu a “civilizacgdo liberal” do século XIX, entre as duas andes guerras mundiais do século XX. Masao discutir 0 “século liberal” e sua crise dos anos 1930, Polanyi, de fato, transcendeu 0 seu préprio tema ancou as bases e a agenda de uma nova economia polftica internacional, 1e se propunha o estudo simultaneo e hist6rico das relag6es entre os Esta- »s, as moedas, os mercados e a luta pela riqueza capitalista. Sua tese sobre stise dos anos 1930 é bem conhecida. Polanyi nao se restringe ao campo onémico e recua no tempo hist6rico para encontrar as rafzes Ultimas da ise na mercantilizacao do trabalho, da terra e do dinheiro, e no conflito \tre as tendéncias expansivas dos mercados auto-regulados e as medidas liticas defensivas, de resisténcia e contengao, tomadas pelas sociedades wa nao serem aniquiladas pelas forcas entrdpicas geradas pelo funciona- ento dos préprios mercados. Contradigao que se aprofunda a partir da gunda metade do século XIX e acaba atingindo e destruindo, nas primei- sdécadas do século XX, as quatro grandes instituigdesem que se apoiou o cesso liberal: seu sistema de “equilibrio de poder” europeu, seu “sistema onetario internacional” baseado no padrao-ouro, seus “Estados e crengas verais”, e, finalmente, os seus préprios “mercados auto-regulados”. A forga do argumento hist6rico de Polanyi esta na sua tese sobre a simul- aeidade dos dois processos: o da expans4o e complementaridade das qua- > ordens institucionais que permitiu 4 Europa viver um século de paz € osperidade e o da autodestruigao dessas mesmas instituigdes, que culmina maruptura do padrao-ouro, levando a crise dos anos 30 e ao inicio de uma »va era, quando os mercados vieram a ser transitoriamente contidos e disciplinados pela press4o social e pela vontade politica dos Estados. Essa tese hist6rica, entretanto, inaugura ao mesmo tempo uma nova conomia politica internacional”, que contém algumas hipéteses e con- BD LADUS, MUBUAS © DEOEIN VULV LACAN bilidade do modelo de Polanyi estimula uma releitura de suas teses teéricas, na perspectiva de interesse deste trabalho.° 3. O projeto tedrico Em clave arquitetonica, a civilizacdo liberal de Polanyi teria a forma de uma catedral com duas naves, os mercados ¢ os Estados, e duas ciipulas, si- tuadas a igual nivel de altura e entrélacadas entre si, uma, com a forma do poder internacional e a outra, com:a do padrao-ouro. Mas, a partir de 1870, a consolidagao internacional do sistema monetério baseado no pa- drao-ouro transformou-o na sintese de toda a obra liberal. Por isso, ao ruir definitivamente na década de 30, levou consigo uma épocae uma utopia. O essencial, entretanto, é que para Polanyi a crise do padrao-ouro no se gera endogenamente, por um mau funcionamento dos séus mecanismos auto- miticos. Foi produzida pelas modificagdes que ocorreram dentro das de- mais ordens institucionais em que se sustentava, e que acabaram incompatibilizando-as com as regras e mecanismos do padrao monetério. Nesse sentido, o fato de ter sido 0 padrao-ouro uma sintese da arquite- tura liberal acabou transformando-o no “ponto de condensagao” de todas as demais contradic6es que se acumulavam dentro do sistema, na forma de “desemprego”, “tensao de classes”, “pressio sobre o cambio”, e das “rivali- dades imperialistas” de que nos fala Polanyi:” “OQ mercado se expandia continuamente, mas esse movimento era enfrentado por um contramovimento que cerceava essa expansao em direc6es definidas. Embora tal contramovimento fosse vital para aprotegao da sociedade, ele era, em tiltima anélise, incompativel com a auto-regulagao do mercado e, portan- to, com o proprio sistema de mercado” (id., p. 137). = Como dizo proprio Polanyi, refletindo sobre a originalidade dos acontecimentos hist6ri- cos: “Num certo sentido, esta é uma tarefa impossivel, pois a histéria ndo € modelada por qualquer fator Gnico. Entretanto, a despeito de toda a sua riqueza ¢ variedade, 0 fluxo da histéria tem suas situagoes e alternativas periédicas, que respondem pela ampla similarida- de na tessitura dos acontecimentos de uma época. Nao precisamos nos preocupar com as fimbrias dos torvelinhos imprevisiveis, se podemos dar conta, até certo ponto, das regulari- dades que governam as correntes ¢ contracorrentes sob condicdes tipicas” (fd, p. 217). 7 A moeda internacional transformara-se no pivé das politicas nacionais ¢ a “essencialidade do padréo-ouro para 0 funcionamento do sistema econémico internacional da época era 0 dogma primeiro e Gnico comum aos homens de todas as nagGes, de todas as classes, de todas as religides e filosofias sociais (...) mas a quebra do padrac-ouro nada mais fez do que estabe- lecera data de um acontecimento demasiado grande para ser causado por ele” (p. 43 € 45). dependiam de uma tinica mercadoria para suas importagbes empréstimos es- trangeiros” (id., p. 206). Realidade que era desconhecida pelos “mecanismos automaticos” do adrao-ouro, que supunha “que os pafses envolvidos fossem participantes ais ou menos igualitarios num sistema de divisao internacional do traba- 0, 0 que nao era 0 caso, enfaticamente” (id., p. 206). Mas que era perfeita- ente identificada na agao da haute finance, que se fortaleceu na segunda etade do século XIX, e que, embora fosse independente de qualquer go- tno, sabia distinguir perfeitamente dois casos: o das grandes poténcias, > qual reconhecia a precedéncia do poder sobre o lucro ¢ em que, em tilti- ainstancia, era “a guerra que estabeleciaas leis dos negécios”, eo caso dos fses mais fracos e periféricos, no qual atuava como emprestador e gestor a Ultima instancia da sua politica econémica. “Nesses casos os empréstimos e a renovacao dos empréstimos se articulavam com 0 crédito e este dependia do bom comportamento (...) que se refletia no orgamento e no valor externo da moeda. Ali, o pagamento dos empréstimos externos € 0 retorno as moedas estdveis eram reconhecidos como as pedras de toque da racionalidade politica (...) e até mesmo 0 abandono dos direitos na- cionais ¢ a perda das liberdades constitucionais eram considerados um prego justo a pagar pelo cumprimento da exigéncia de orcamentos estdveis e moedas s6lidas” (id., p. 32, 43 e 147). Todos esses elementos e passos sao essenciais na explicagao de Polanyi dre “o fracasso hist6rico da utopia do mercado”, que culmina coma Pri- tira Guerra ea crise econdmica dos anos 30. Entretanto, ao darem conta um perfodo de apogeu liberal, parecem de utilidade imediata para pen- “anova era liberal, que se inaugura a partir de 1970, ¢ que relembra em suns dos seus aspectos mais essenciais 0 final do século XIX. Sobretudo, ando olhamos para o lado dos pafses que na periferia do sistema aderi- n, de novo, a crenga religiosa nos mercados auto-regulados, submeten- -se, muitas vezes, a um subsistema cambial regional que é uma espécie de ‘icatura do padrao-ouro. Nesses paises, seus governantes voltaram a se 2ocupar obsessivamente: “com a seguranga da moeda, protestando tanto contra os déficits orgamenté- tios ameacadores como contra as politicas do dinheiro berato, opondo-se as- sim tanto a ‘inflago do tesouro’ quanto A ‘inflagdo do crédito’, e denunciando sistematicamente os encargos sociais ¢ os altos saldrios, os sindicatos € os parti- dos trabalhistas” (id., p. 224), Exatamente da mesma forma como fizeram as elites internacionalizan- do capitalismo liberal do século XIX. Trata-se de um exercicio de nparacao ¢ replicagao de hipéteses repleto de riscos, mas a propria flexi- BD LAUD, IMUEUAD & UEOEINVULY EVAN mentando o controle do movimento de capitais.’ De fato, a estabilidade assegurada pela administragao inglesa da moeda internacional nao foi per- manente, e quando ocorreu esteve confinada ao nucleo central das nagées européias —_ao que se juntaram mais tarde os Estados Unidos e 0 Japao~cu- jas elites politicas e econdmicas tinham no padrao-ouro uma verdadeira re- ligiZo. Mas atengSo: foi af também que ocorreram os mais freqiientes, sistematicos e bem-sucedidos desrespeitos as regras, infringidas pelos Esta- dos e “capitalismos tardios” que souberam aproveitar e desrespeitar as van- tagens do padrao-ouro e do “déficit de atengao” da hegemonia inglesa. Sublinhe-se, entretanto, que o sistema-ouro nao era apenas incompativel com a expans4o das pressdes democraticas, também era inconciliével com qualquer projeto nacional de expansao da capacidade militar que implicasse aumento dos gastos ptiblicos, o que significava um veto implicito &mudanga da hierarquia-geopolitica. Esta foi, alias, uma das razées do relativo despre- paro militar inglés no infcio das duas grandes guerras, quando comparado com o poder militar alemdo construfdo na contramao do sistema. Por isso pode-se falar de uma segunda grande inconsisténcia do siste- ma, porque supunha que existisse igualdade entre os seus participantes. De fato 0 sistema nao sé nao era homogéneo, como sua heterogeneidade era reforcada e ampliada pelo seu préprio funcionamento.’ O sistema-ouro nao era neutro, mesmo com relacio aos paises do “niicleo central”, que competiam entre si nos campos econdmico e colonial, favorecendo, em iil- tima instancia, o poder financeiro da City, a pega essencial da supremacia ou hegemonia britanica. Esta caracteristica foi uma outra fonte geradora de instabilidade do padrao-ouro, nao tendo relagao direta com a desigualdade entre as classes, e sim com a distribuig&o desigual da riqueza entre as nacées.'° Nesse ponto, encontra-se o elo mais fragil da teoria de Polanyi: a passagem do contflito social e de classes para o plano da desestabilizagao e ruptura da ordem politica internacional associada ao funcionamento do padrao-ouro. O que Polanyi n4o viu, foi o “duplo movimento” interno es- pecifico da esfera geopolitica, que atuou de forma igualmente desestabili- Por isto, Andrew Walter sustenta, no seu World Money and World Power, que “apesar das dificuldades de comparacdo deve ser enfatizado que a ‘estabilidade’ freqiientemente associ- ada com o padrao-ouro classico tinha um caréter muito limitado [...] tal estabilidade, como ocorreu, deve ser cteditada principalmente aos grandes paises industrializados da Europa, em ver. dos paises periféricos” (Walter, 1993, p. 95). ® Como diz Robert Gilpin: “(...) no mundo moderno, as normas e convengées que gover- nam os sistemas monetérios tém efeitos distributivos importantes sobre o poder dos esta- dose o bem-estar de grupos dentro destes estados [...] cada regime monetario imp6e custos ebeneficios diferenciados sobre os grupos ¢ estados [...] cada regime monetario internacio- nal reflete uma ordem politica (Gilpin, 1987, p. 118- 119). se Luis tort Nesse sentido, pode-se dizer que a crise se condensava no padrao-ouro as era determinada em ultima instancia pelo funcionamento dos mercados 1to-regulados e seus impactos destrutivos sobre a totalidade do sistema. Para Polanyi foi a generalizagao das relagGes mercantis que levou 4 poli- raga das relagées sociais e econémicas, pressionando o alargamento de- ocratico dos sistemas politicos e o aumento do intervencionismo estatal, im lento processo de mutacao do Estado liberal e crescente descrédito na icdcia dos préprios mercados auto-regulados. O mesmo argumento pode r formulado de um ponto de vista mais amplo e genético. Na verdade, a produgdo estavel das varias instituicdes em que se sustentava a “civiliza- oliberal”, sapunha a imutabilidade do poder interno e externo dos Esta- os nacionais. E o questionamento social deste poder nao levou apenas a na revers4o autodefensiva das sociedades e dos governos, levou também varias formas de expans4o do préprio poder do Estado sobre a sociedade -ontra o poder dos demais Estados, num processo continuo de superacdo lesestabilizacéo das contradicées originarias. O sistema supunha homo- neidade e estabilidade, mas de fato nao eranem homogéneo nem estavel. Em primeiro lugar, a estabilidade do poder interno dos Estados supu- \auma capacidade de contengao permanente dos gastos sociais e dos sal4- os, e de manutengao do equilibrio orcamentario contra qualquer atagao de politicas ativas de emprego ou desenvolvimento. Em condigées paridade cambial fixa e livre circulagao de capitais, que caracterizava o drao-ouro, como diz Barry Eichengreen, na mesma linha de Polany’ “havia apenas consciéncia limitada que as politicas do banco central poderiam estar voltadas para metas como o desemprego. E qualquer que fosse esta cons- ciéncia teria pequeno impacto na politica adotada, dado o escopo limitado dos direitos politicos e sociais, a fraqueza dos sindicatos, e a auséncia de partidos trabalhistas no parlamento “ (Eichengreen, 1996, p. 191). Qualquer descumprimento desse compromisso iiplicito, ou qualquer itativa de os governos implementarem politicas macroeconémicas inde- ndentes, em condigdes de mercados abertos e desregulados, sobretudo caso dos paises com Estados e moedas fracas, seriam imediatamente cas- ados pela fuga de capitais. Por isso também, o funcionamento regular do tema supunha a capacidade dos governos nacionais de isolar 0 comando suas politicas monetarias com relacao as press6es internas do mercado e mundo do trabalho. Razao por que, conclui Eichengreen -prolongando rgumento de Polanyi — neste tipo de regime cambial, ou qualquer outro sivalente, nao ha como fugir a seguinte disjuntiva: ou se contém a parti- ‘agao democratica ou se rompe comas regras ea paridade do sistema, au- ¥ b> LADUS, MUBDAD & DESEINVULYIMENN LU, ca uma espiral competitiva, ou uma “ascensao aos extremos” — na lingua- gem de Von Clausewitz — que mantém a guerra como uma situagdo limite ou virtual, mas permanente. Uma armadilha ou lei que s6 poderia ser desa- tivada, teoricamente, se fosse possivel tomar e sustentar a decisao univer- sal, e simultanea, de abdicagao do princfpio da autodesfesa. Nesse sentido é legitimo falar também da existéncia de um “duplo mo- yvimento”, proprio do Sistema de Westphalia, e responsavel pela expansio contraditéria e conflitiva da ordem politica internacional responsdvel pela gest&o politica do sistema capitalista. Também aqui atua, por um lado, 0 principio ¢ a utopia liberal de um mundo sem fronteiras e sem poderes poli- ticos competitivos. O sonho cosmopolita de Kant, presente em todos os pensadores liberais, e que reaparece periodicamente associado aos grande surtos de internacionalizagao ou globalizagao do capital. Mas esse princi- pio é permanentemente negado esuperado pelo princfpio da territorialida- de, que alimenta a Realpolitik, defendida por Maquiavel e por todos os pensadores mercantilistas ou nacionalistas. O principio liberal objetivavaa construgdo de uma ordem transnacional baseada na existéncia de regimes € instituicdes legitimadas coletivamente.” J4 o principio da territorialidade _vé o fortalecimento do poder dos Estados como tinica forma de manuten- gio da paz, baseada em um equilfbrio instavel de poder. Um segundo aspecto do mesmo problema, que escapou 2 observacao de Polanyi, mas também dos realistas, a mudanga que sofreramas relagdes internacionais ¢ o préprio funcionamento do “direito de autodefesa” com © aparecimento e posterior supremacia do capital financeiro desde o final do século XIX. Nesse ponto, foi Hilferding e os demais tedricos marxistas 1 A verso mais recente dessa tese, no campo da teoria das relagdes internacionais, foi apresentada por Robert Keohane e Joseph Nye (1972) num trabalho em que propdem um novo patadigma politico mundial, baseado numna “complexa interdependéncia” entre ato- res transacionais cada vez mais auténomos com relacio ao poder dos estados tertitoriais. Uma nova ordem politica e econémica mundial estabil:zada por “regimes institucionais” legitimos, capazes de interconectar e sustentar as relacdes entre as sociedades, mesmo na auséncia da poténcia hegeménica que tenha contribufdo para sua construgio e aceitagao mundial. Um conjunto de “redes de regras, normas e cordutas que regularizam os compor- tamentos controlam efeitos [...] que, uma vez estabelecidas, sero dificeis tanto de erradi- car quanto de rearrumar dramaticamente” (1977, p. 19 ¢ 55). Keohane e Nye reconhecem aexisténcia de situacdes em que “nao existam normas e procedimentos acordados ou quan- do as excegées as regras forem mais importantes do que os graus de adesao” (id., p. 20). [esses casos seguiria vigorando a lei imposta pelo “dilema da seguranga”, em que os Esta- dos ainda seriam os atores mais importantes ¢ a forca seguiria tendo um papel decisivo na hierarquizagao da agenda e nas solugdes impostas 4 comunidade internacional. Mas essa solugo conceitual mantém as mesmas dificuldades que jd estavam presentes nos conceitos de Raymond Aron e Henry Kissinger sobre a existéncia de ordens “homogéneas” e “hete- rogeneas”, “legitimas” e “revolucionérias”. Luis riott dora e que mudou de natureza, e qualidade, a partir da consolidacao e gemonia do capital financeiro na competigao capitalista internacional. x isso ele atribui o fim da’ “paz dos cem anos” ao acordo, em 1904, da zlaterra com a Franga, € um pouco mais tarde coma Rassia, responsavel la bipolarizagao geopolitica da Europa, mas ndo se questiona, como faz mo fim do padrao-ouro, sobre as causas dessa deciséo, que vém de antes, que derivam, em parte, da natureza instavel de qualquer “equilibrio de der” internacional. Tal “equilfbrio” ficou ainda mais dificil com 0 forta- simento dos capitais financeiros alemao e€ norte-americano. Muito antes do Congresso de Viena, a Paz de Westphalia havia estabele- lo 0 “direito de autodefesa” como fundamento de uma ordem politica in- snacional baseada nos principios da soberania, independéncia e taldade entre os Estados. Entretanto, o realismo, no campo internacio- |, sempre defendeu a tese de que um sistema interestatal baseado no di- to de autodefesa tendia a ser anarquico e todo “equilfbrio de poder” que ise alcancado, jamais seria estdvel, “devido ao sistema de auto-ajuda ge- ‘uma espiral de competi¢&o, visando tornar cada ator individual mais se- to, produzindo no entanto uma inseguranca geral” (Guzzini, 1998, p. ). O classico “dilema da seguranga”,"' de que falaram, de forma implicita explicita, os realistas de todos os tempos: o direito de autodefesa provo- ‘olanyi faz uma radiografia correta, ainda que estatica, dessa nova realidade, enfocando apel cumprido na estabilizacao européia pelas redes transnacionais e as conexdes da :te finance: “uma instituigao sui generis, peculiar ao Gltimo tergo do século XIX e ao pri- ro tergo do século XX, e que funcionou nesse periodo como o elo principal entre a or- izagao politica e econdmica do mundo (...) As vezes a Pax Britannica mantinha esse ilibrio através dos canhées dos seus navios; mais freqiientemente, entretanto, ela preva- a puxando os cordéis da rede monetéria internacional [uma vez que] orgamentos e ar- nentos, comércio exterior e matérias-primas, independéncia nacional e soberania a, agora, fungdes da moeda e do crédito” (id., p. 29, 32 ¢ 35). la mesma €poca em que foi publicada A grande transformagdo, Edward Carr (1946) ¢ as Morgenthau (1948) propuseram uma explicagao teérica distinta do funcionamento e -uptura do sistema de equilibrio de poder europeu do século XIX. Para eles, num siste- internacional anarquico, formado por Estados com o mesmo direito de autodefesa, 0 uilibrio de poder” sera sempre um ideal politico e uma lei universal que nao podem rea- r-se plenamente. Mais tarde, a escola realista qualificou seu préprio axioma da anarquia irestatal, Henry Kissinger (1957) falou da existéncia de duas ordens internacionais, uma sitima” ea outra “revolucionaria”, dependendo se suas principais poténcias comparti- nou nao um cédigo de conduta comum; e Raymond Aron (1962), da existéncia de sub- 2mas internacionais “homogeneos” e “heterogéneos”, dependendo do grau em que os ados envolvidos compartam ou nao as mesmas concep¢oes politics internacionais. Mas s qualificagées néo resolveram o problema de que as grandes guerras tenham se dado tamente dentro dos sistemas “legitimos” ou “homogéneos”, o que reforga, em vez de tradizer, a tese original de que, apesar da existéncia de mecanismos normativos ou de mes institucionais, permanece vigorando a lei que rege a competicao politica interesta- provocada pelo dilema da seguranca. ESTADOS, MOEDAS E DESENVOLVIMENTO O debate inconclusivo entre Lenin e Kautsky sobre a inevitabilidade ou nao da guerra imperialista aponta exatamente para a acgio contraditéria dos dois principios que movem a politica internacional: 0 novo contexto em que a competic4o intercapitalista foi redefinida pelo estreitamento da relacdo entre os Estados e seus capitais financeiros, e 0 conceito de sobera- nia, que se estendeu ao espago dos territérios econédmicos recortados pela luta entre estes varios “trustes nacionais de Estados”. Na verdade, ambos os princfpios, ou tendéncias, convivem apontando todo o tempo, e contradi- toriamente, para uma dupla diregdo ou situag4o-limite. Num extremo, a re- alizacio ideal do primeiro princfpio, ou “movimento” ~ na linguagem de Polanyi — aponta para a criago financeira de um império universal. O que se poderia chamar de “lei de Bukharin”. Enquanto que o segundo princi- pio, ou movimento, aponta para a guerra econdmica ou militar, que esti- mula o refortalecimento constante e crescente dos Estados que se propd6em acompetir no jogo financeiro e geopolitico. O que se poderia chamar, tam- bém, de “lei de Weber”, para quem a substituigdo dos Estados nacionais por um império mundial representaria, simultaneamente, o perecimento do capitalismo. Um s6 império seria sinénimo de um sé territério econémico, com uma s6 moeda. Isto suporia a eliminacdo simultanea das soberanias politicas e das moedas nacionais dissolvidas no comando unico, politico e monetario, do império que passaria a ser responsdvel pela politica moneta- ria e orgamentéria de todas as suas provincias. Nesse caso, se eliminaria também o proprio habitat do capital financeiro, que se alimenta da compe- tigdo interestatal. O cendério mais provavel para este império pés-capitalista seria uma tendéncia ao estado de estagnaco ou a uma grande reversao his- torica, em direc4o ao que foi, durante séculos, 0 império chinés. Esta é uma contradigo que esté na origem e na esséncia do sistema inte- restatal de gestao do capitalismo, e que se mantém ainda quando mude sua forma e intensidade. Para o liberalismo, trata-se de uma espécie de defeito de fabricago incorrigivel, mas, na hist6ria real, nao sé esteve na origem de todas as guerras, mas também, como nos ensinou Braudel, foi a fonte “de grandes e sistematicos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar e se expandir indefinidamente nos tiltimos quinhentos ou seiscentos anos”. Como efeito desse “duplo movimento” internacional, o poder dentro do sistema capitalista ora assume a sua forma mais abstrata, o dinheiro, ora re- tomaa face mais dura e visivel das armas, sem que seja possfvel jamais alcan- car uma estabilidade econédmica ou equilfbrio politico de longo prazo. Nesse contexto, o projeto smithiano de uma “equivaléncia geral de cora- gem, forca e riqueza” entre todas as nagées € téo utépico quanto a idéia de um s6 império financeiro e politico universal. A propria desigualdade de forgae riqueza é que move o sistema, em tiltimainstancia, a favor dos “terri- imperialismo que perceberama radicalidade dessa transformagao. Estes ores, analisando as mudangas econémicas do capitalismo na virada do ulo XX, a partir do “domicflio oculto da produgdo” eno apenas das re- 5es mercantis, sustentaram que, no movimento da acumulagao, os pro- sos de concentragao e centralizagao do capital haviam alcangado uma vaetapae gerado um novo poder de expansio e conflito internacional: “(...) 0 capital financeiro para manter e ampliar sua superioridade precisa de um Estado politicamente poderoso (...), um Estado forte que faca valer seus interes- ses no exterior (...) € que possa intervir em toda parte do mundo para converter omundo inteiro em 4rea de investimento” (Hilferding, 1985, p. 303 e314). A rede de poder da haute finance, identificada por Polanyi, adquire lugar completamente diferente como instrumento do novo capital fi- \ceiro, que, segundo Hilferding, aprofunda a “compulsdo” expansiva ourguesia € aumenta o seu cardter agressivo ao envolver o poder dos ados numa competig&o por novos “territérios econémicos”, que iscendem as fronteiras nacionais, sem jamais se transformar “num im- io universal, [apesar de ser este] o ideal sonhado do capital financei- , segundo Bukharin.” Nem Polanyi nem os realistas percebem que essa nova forma de associa- entre o capital e o poder politico transformou a competicao intercapi- sta também numa competi¢ao politica entre Estados esimultaneamente isformou o sistema interestatal numa espécie de mercado ou espaco ferencial da competigdo capitalista entre os grandes conglomerados némicos. Como conseqiiéncia, para as grandes poténcias, alarga-se o ceito de soberania, incluindo também 0 direito de autodefesa dos seus os territérios econémicos. Nikolai Bukharin radicalizou um pouco s tarde o mesmo argumento, ao afirmar que “cada uma das ‘economias nacionais’ desenvolvidas, no sentido capitalista da palavra, transformou-se em uma espécie de truste nacional de Estado (...) por- que esses grupos vao buscar seu tiltimo argumento na forcae na poténcia da or- ganizagio do Estado (...) porque sua capacidade de combate no mercado mundial depende da forga e da coesao da nagao, de seus recursos financeiros e militares” (Bukharin, 1984, p. 99). mo dizia Lenin, no seu Imperialismo, fase superior do capitalismo, “o imperialismo é 0 alismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominacao dos monopé- do capital financeiro, adquiriu marcada importancia a exportacio de capitais, come- ‘ partilha do mundo pelos trustes internacionais ¢ terminou a partilha de toda terra os paises capitalistas mais importantes” (Lenin, 1979, p. 642). Em primeiro lugar, a ordem econémica ¢ politica liberal nao foi, evi- dentemente, homogénea, nem tampouco se manteve estatica. Sustentou-se numa dupla hierarquizagao do poder econ6mico ¢ politico internacionais, dentro do “nticleo organico” e da sua petiferia colonial ou dependente. No - correr do periodo, estas hierarquias foram alteradas pela redistribuigao da riqueza e do poder a favor de alguns Estados que lograram rapidos proces- sos de desenvolvimento econémico, que escaparam do processo de perife- rizagéo a que foi submetida, inclusive, uma parte significativa da Europa. Esta reorganizac4o criou um conjunto de Estados de segunda linha que pas- sam a disputar diretamente a supremacia inglesa. Ao mesmo tempo, 0 equi- librio de poder desenhado pelo Congresso de Viena e administrado pela Santa Alianca foi sendo substituido por uma hegemonia mais explicita da Inglaterra e de suas “altas finangas”. No nticleo organico dessa ordem mundial, a complementaridade foi -companheira inseparavel da competigao tanto no campo econémico como no politico, enquanto dentro dos espagos inferiores do imperium europeu houve apenas casos de complementaridade econémica ou de submissao e extracdo pura e simples da riqueza disponivel. Foi nesse espago-tempo que se dew a experiéncia, bem-sucedida, de alguns Estados e capitalismos tar- dios que se propuseram 0 catch-up tecnoldgicoe militar com a Inglaterra e contaram, a um s6 tempo, com o “déficit de atengao” inglés (que Ihes per- mitiu usufruir do seu mercado desprotegido) e com 0 apoio do Banco da Inglaterra e de seus capitais. A Inglaterra, secundada por este niicleo orga- nico, determinou os ritmos ciclicos da economia ¢ as ondas de expansao territorial ou de influéncia econ6mico/financeira. Suas conseqiiéncias, en- tretanto, variaram enormemente, dependendo nao apenas das condig6es naturais e demograficas, mas também das relacées politicas que se estabe- leceram com os trés estamentos basicos da periferia: as colénias, os domi- nions os paises dependentes. A partir de entaoestabeleceu-se ¢ funcionou durante a maior parte do tempo uma hierarquia “virtuosa” no centro do sistema, de apoio miituo em situagdes de crise. No seu centro encontrava-se o Banco da Inglaterra, numa segunda fila os bancos da Frangae da Alema- nhae numa terceira os da Holanda, Austria, Bélgica etc.'* Estas relages de 4 Keynes, ao analisar em 1913 — no seu Indian Currency and Finance — as relac6es hierar- quicas entre o Banco da Inglaterra com outros bancos centrais, jé identificava 0 mecanismo basico que operava as finarigas a favor dos interesses ingleses: “Nés vimos acima que a polf- tica de taxa de juros do Banco da Inglaterra é exitosa porque de forma indireta leva o mer- cado monetério a reduzir seus empréstimos de curto prazo para os demais paises, ¢ assim reverter o imediato balanco de endividamento a seu favor. A politica indireta é menos facti- vel em paises onde o mercado monetario jé seja tomador de empréstimo ¢ néo credor no mercado internacional”, 6s fe Luis riort rios econdmicos” que lograram associar 0 poder das armas ao poder do pital financeiro, mantendo assim 0 seu controle interno do crédito e dos vestimentos. Por fim, dessa perspectiva, o “duplo movimento” de Polanyi adquire 8s novas dimensoes: a da permanéncia através da histéria capitalista; ada a miltipla determinacao, a partir dos mercados e das relagées de produ- 0 capitalistas, mas também da geopolitica e da geoeconomia internacio- - tis; e a da progressividade, e nao apenas da autoprotecdo, porque a luta .cial e de classes no foi apenas uma forma de sobreviver, foi uma forma de sropriar-se de uma riqueza que lhes era negada pelo mercado. Da mesma aneira o protecionismo e a competicao imperialista nao foram apenas uma rma de preservar uma mesma posicao relativa dentro da hierarquia mun- al, foram uma forma de lutar pela sua modificagao e pela redistribuigao > poder e da riqueza mundiais. Nesse sentido, o ensinamento teérico da his- ria real do século XIX respondeu A questo proposta por Smith, dando 740, em tiltima instancia, a leitura de Keynes da verdade mercantilista, e 4 mviccdo de Max Weber de que “em tltima anilise os processos de desen- slvimento econémico sao lutas de dominagéo” (Weber, 1982, p. 18). A ligdo liberal Entre 1860 e 1870, formou-se o nticleo do sistema interestatal que mstituiu os impérios coloniais e depois assumiu a responsabilidad, em tima instancia, pela gest4o politica e militar do capitalismo mundial, antendo-se quase intocado, imutdvel, até o final do século XX. A partir 2 1870, consolida-se também 0 padro-ouro, vigente na Inglaterra desde 321, mas que se transforma num sistema monetario internacional, com a lesao dos paises que passaram a compor, até o final do século XIX, o ni- eo organico do sistema econémico capitalista mundial: Alemanha, em 371, Franca, em 1873, Estados Unidos, em 1879, ¢ Japao, em 1895 — esse stema que se estende a periferia colonial ou dependente com a adesao da dia, em 1893, Argentina, em 1899, Brasil, em 1906, e Coréia, em 1910. iciava-se ali uma nova conjuntura politica e econdmica mundial, que bali- va. um processo de redistribuigdo mundial da riqueza viabilizado pelo su- sso econémico de alguns “capitalismos tardios” e de algumas economias oriféricas. Quais as principais licdes histéricas deste perfodo quanto a relagao en- ea geopolitica, a geoeconomia monetaria e o desenvolvimento econémi- » das nagGes, que possam ser projetadas para além desse momento de rogeu da “civilizagao liberal” de que nos fala Polanyi? rolarios da nova relag4o entre os Estados e seus espagos econémico-finan- ceiros. E se as elites orientadas pelo principio do nacionalismo e do militarismo foram aparecendo e se destacando através de todos os Estados europeus ~€ no final do século, também no Jap4o e nos Estados Unidos — nao ha duvida de que seu poder e influéncia cresceram mais rapidamente nos paises de “segunda linha” que se propuseram desafiar o poder financei- ro ea posicao hegeménica da Inglaterra. Como também n4o ha duvida de que sua influéncia foi decisivana reorientac4o do protecionismo na diregio de uma estratégia de industrializacéo de guerra. Como metéfora, pode-se dizer que 0 “principio do liberalismo” e da in- ternacionalizagao foi “encarnado” pela poténcia hegemGnica, a Inglaterra, esua rede de aliangas com as elites globalizantes do mundo capitalista. Ja o “principio da nacionalidade” foi “encarnado” pelos Estados tardios que disputaram diretamente a supremacia econémica e a lideranca financeira inglesa: em particular, Alemanhae Estados Unidos, e mais tarde, em menor escala, também Japao e Russia. Pafses que abandonaram e voltaram ao pa- -drao-ouro, sempre que foi necessério atender a seus interesses nacionais, sem enfrentar os mesmos efeitos catastréficos que essas “Stiradas” provo- caram nos paises periféricos e com dependéncia cambial de suas exporta- gdes, geralmente especializadas. Ainda que parega surpreendente, € interessante constatar que foi na Rtissia onde se assistiu 4 mais clara ascen- s4o aos extremos do “duplo movimento” de que fala Polanyi, abrindo as portas ao que talvez se possa considerar como 0 tinico e verdadeiro milagre econémico nacional do século XX. Ali, o aumento dos conflitos e reivindi- cag6es sociais culminou na Revolugao Soviética e se somou a um projeto nacional e militar que permitiu a Russia percorrer o ciclo completo, passan- do, num curto espago, da foice e do martelo 4 condig4o de superpoténcia vitoriosa no campo industrial, tecnolégico e militar. Isso nao foi suficiente, entretanto, para resolver o problema da sua inclusdo no capital financeiro internacional. Em terceiro lugar, foi nesse perfodo que se inicia (em torno de 1860/70) ese consolida o que Prebisch chamou, de forma conceitualmente mais rigo- rosa, de periferia do sistema econémico capitalista, articulada a partir do seu “centro ciclico principal”, a Inglaterra. Dentro desse espago econémi- co, que cumpriu o papel simultaneo de supridor de matérias-primas e ali- mentos para 0 centro, e de “variavel de ajuste” dos paises centrais, nas crises periddicas do sistema, é possivel constatar que houve, durante 0 perfodo que vai de 1870 até 1914, casos de paises que alcancaram altas taxas de crescimento econémico, sem se transformarem em poténcias nem serem incorporados ao niicleo central do sistema. Seu sucesso dependeu do grau de integracdo e complementaridade do seu setor exportador com a econo- «7

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