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Nas dobras cotidianas, pistas da complexidade escolar*

Maria Teresa Esteban **

A missanga, todas a vêem. Ninguém nota o


fio que, em colar vistoso, vai compondo as
missangas. (Mia Couto)

A escola pública brasileira cada vez mais é exposta na mídia. Constantemente


nos deparamos com reportagens diversas em que se divulgam resultados bastante
insatisfatórios, onde se misturam condições estruturais insuficientes, aprendizagem dos
estudantes muito aquém do esperado e atuação docente desqualificada. A escola pública
apresentada nos meios de comunicação de massa expressa o fracasso e se mostra um
problema a ser solucionado.
Por outro lado, os materiais destinados ao espaço escolar ou a propagandas
institucionais apresentam experiências de diferentes escolas públicas com as soluções
que permitem criar ordem no caos reinante e produzir o sucesso: escolas perfeitamente
organizadas, professores e professoras que ensinam e estudantes que aprendem, sempre
com sorrisos, alegria, facilidade, sem tensões, contradições ou impossibilidades.
Como pano de fundo do problema e da solução, os resultados dos processos de
avaliação externa a que os estudantes são sistematicamente submetidos, que permitem,
através de procedimentos considerados neutros e objetivos, medir seu desempenho e,
assim, localizar, dar visibilidade e inserir os bons (estudantes, docentes, gestores,
escolas) e os maus numa hierarquia que indica espaços de inclusão e exclusão dos
sujeitos, das práticas e das instituições. A avaliação como medida, articulada pelo
sistema de exame, se fortalece também nas diversas práticas pedagógicas, enrijecendo
os processos de classificação tradicionalmente presentes no cotidiano escolar.
Estes parágrafos iniciais apresentam superficialmente alguns elementos centrais
do discurso hegemônico. Com estas pinceladas pretendo trazer para a discussão a
fragmentação que vem orientando o discurso hegemônico sobre a escola e leva a uma
compreensão simplificada dos cotidianos escolares, expostos por meio de imagens

*
Artigo produzido a partir de pesquisa A reconstrução do saber docente sobre avaliação: desafios e
possibilidades da escola organizada em ciclos, realizada com financiamento do CNPq e da FAPERJ.
**
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e Pesquisadora do Grupo
Alfabetização dos alunos e alunas das classes populares.

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padronizadas, descontextualizadas, imobilizadas e sem contradições – a boa escola, a
má escola – em que se opõem contextos, processos, ações, resultados e sujeitos.
A idéia do desempenho estudantil como expressão da qualidade da escola, aliada
à revitalização da perspectiva tecnicista de ensino, percorre o discurso que sustenta a
exposição de fragmentos do cotidiano escolar em bem editadas imagens que divulgam
visões opostas da escola. Nessa perspectiva, as dinâmicas que envolvem as práticas
pedagógicas fortalecem uma concepção padronizada de escola coerentes com a
consolidação do sistema de exame. Este é incorporado ao processo educacional como
sistema que ao verificar e atestar a qualidade através da mensuração do rendimento
estudantil funciona como indutor de qualidade, na medida em que gera dados que
permitem posicionar cada escola (ou de cada estudante, segundo o modelo em uso) em
um ranking que, tornado público, motivaria para a elevação dos índices, o que levaria a
melhorar o trabalho pedagógico realizado. Embora nesse discurso, expressão da visão
hegemônica, não se discuta a relação aprendizagem-ensino em sua complexidade, com
suas múltiplas faces, contradições e possibilidades, ao enaltecer o exame leva a pensar
que o que se apresenta como (bom ou mau) rendimento é conseqüência direta do ensino.
Nesse quadro se esboçam tanto os modos como o poder público se relaciona
com a escola como instituição social como as formas de desenvolvimento das práticas
cotidianas, dentre as quais destaco neste texto a apreensão do erro e do acerto no
processo ensino-aprendizagem. Na proposta pedagógica articulada pelo pensamento
hegemônico, a distinção entre erro e acerto, considerados opostos e excludentes, tem um
papel relevante nos processos classificatórios que constituem o sistema de exames e
também atravessam as práticas realizadas na sala de aula. Tais percepções, embora
estruturadas e consolidadas em processos extra-escolares, se encontram nos discursos,
olhares e práticas da escola e na escola, que muitas vezes são constituídos por uma
compreensão simplificada de seu próprio cotidiano. Porém, como o cotidiano é lugar e
tempo do fazer, a complexidade explode, envolvendo em uma grande instabilidade o
discurso hegemônico que vê a escola como um espaço homogêneo.

Desdobramento de sentidos
Eu peguei um texto e fui tentar... Todos escrevem, mas eu tenho sinalizado uns
erros... Algumas crianças estão errando a mesma coisa, e está me desesperando!
Porque eu já falei várias vezes e eles continuam fazendo. Aí eu vou pegar um texto
deles para poder discutir com eles. Eu copiei do jeito que estava e pedi para eles me
ajudarem. Foi totalmente o contrário:

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-Tá muito horrível o texto, tia!
- Não dá para a gente entender nada!
E eu: - Gente, não foi essa a minha intenção. Eu trouxe para a gente poder
discutir os erros que estão acontecendo.
E eles ficavam: - Não dá para entender nada do que está aí!
E daqui a pouquinho: - Tia, quem foi que escreveu?
Eu falei assim: - Eu não vou contar quem foi que escreveu.
Começou uma competição dentro da minha sala! Quer dizer a minha intenção
foi uma e aconteceu totalmente diferente:
- Eu quero discutir o que vocês não estão prestando atenção. Eu sempre mando
um bilhetinho: olha essa letra aqui, vocês não estão usando direito.
Então, às vezes, por melhor intenção que a gente tenha o próprio grupo
reformula e...
Na narrativa da professora, observamos que a conversa com os estudantes e seus
próprios comentários sobre o fato não remetem ao conhecimento, mas ao antagonismo
erro e acerto. Encontramos um processo avaliativo que toma o acerto como sinônimo de
aprendizagem, servindo para confirmar os percursos assinalados pelo ensino e o erro
como indicação de ausência ou insuficiência de aprendizagem, de necessidade de
correção de alguma falha ou da presença de alguma deficiência. Tal compreensão se
articula a uma percepção do ensino e da aprendizagem como processos independentes e
superficialmente articulados entre si, principalmente através de uma relação
simplificada e causal. A idéia de que a valorização do acerto e a negação do erro
representam a busca do conhecimento parece estar implícita ao processo.
Encontramos no relato da professora um conjunto variado de informações
expressando a tensão que a presença do erro deixa emergir. A professora explicita sua
preocupação e surpresa com a “competição” que se estabelece na sala de aula enquanto
sua intenção era promover uma reflexão coletiva sobre os erros, já que “algumas
crianças estão errando a mesma coisa, e que está me desesperando porque eu já falei
várias vezes e eles continuam fazendo”. É importante notar que sua preocupação não era
com a reflexão coletiva sobre o conhecimento, mas sobre a persistência do erro. Por que
a surpresa da professora? Ela parece não perceber que o direcionamento do olhar para o
erro dificulta o envolvimento de todos em um processo cooperativo visando à
ampliação permanente do conhecimento; processo que demanda reflexão sobre sua
dinâmica e resultados, o que requer também – mas não prioritariamente – que se trate do
erro. Mantendo a dicotomia erro/acerto, mesmos sem querer e perceber, a professora
preserva as perspectivas classificatória e excludente e com elas a competição e a sanção
negativa, presentes na pergunta - “tia, quem foi que escreveu?” - e na constatação das
crianças: “tá muito horrível o texto, tia!”. Ambas, expressões da falta de qualidade.

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Nas entrelinhas da relação pedagógica que procura colocar em evidência o
estabelecimento de uma relação dialógica entre erro e aprendizagem, encontramos
indícios da permanência do discurso em que a ênfase no rendimento esconde o silêncio
sobre a aprendizagem e sobre o ensino e dificulta, como nos mostra a situação relatada,
a aproximação ao conhecimento. O potencial de diferenciação constituinte da avaliação
hegemônica, de natureza classificatória, se incrementa quando desempenho e
classificação passam a ser aspectos centrais no olhar lançado sobre a escola com a
ampliação e aperfeiçoamento do sistema de exames. Como o bom rendimento não tolera
o erro, a escola cada vez mais é levada a enfatizar o treinamento em detrimento da
relação aprendizagem-ensino e a colocar em segundo plano tudo o que pareça afastá-la
do padrão pré-determinado como válido.
Aprendizagem, ensino e conhecimento são retirados da centralidade do discurso
escolar e substituídos pela relação erro/acerto, vista de modo linear e reduzindo a
possibilidade de compreensão da escola como um lugar complexo. A ênfase no
desempenho faz da aprendizagem, do ensino e do conhecimento “acessórios”
necessários à realização do fim desejado: o mais alto rendimento possível, que passa a
ser confundido com sucesso escolar.
Considerando, com Ginzburg (1991), que é nos elementos tratados como
irrelevantes que podemos encontrar pistas significativas para uma melhor compreensão
dos fenômenos estudados, uma indagação cuidadosa da relação erro/acerto em sua
linearidade pode oferecer elementos que ajudem a compreender a complexidade que
nela está oculta. A percepção dos múltiplos fios que tecem o cotidiano escolar, ou seja,
a compreensão do complexus – o que se tece junto (Morin; 1999) -, contribui para a
desarticulação dos princípios e práticas que têm feito da escola uma experiência de
negação e segregação para muitas crianças, em especial as das classes populares em sua
histórica experiência de subalternização. Princípios e práticas que dificultam que
professoras comprometidas com uma escola democrática e vinculadas aos processos de
emancipação social rompam com o emaranhado que as coloca no lugar de produção de
exclusão, inscrevendo suas práticas na extensa rede que sustenta a colonialidade do
poder (Mignolo; 2006).
Volto à sala de aula, através do que nos contam a seu respeito professoras que a
vivenciam cotidianamente, para buscar pistas sobre a produção do sucesso/fracasso
escolar, na tensão acerto/aprendizagem/conhecimento/ensino/erro.

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Eu estava até falando com ela e em um trabalho que a gente estava fazendo a
gente colocou assim: o erro... Uma frase assim heróica: o erro como possibilidade de
construção! A gente queria colocar assim o erro não colocado como algo negativo, mas
sim como uma possibilidade. Só que aquilo como a gente escreveu dá margens para
pensar essa idéia como esse não saber como não sabe, portanto, mau: não sabe
escrever, não sabe fazer tal atividade e fica classificado como negativo. E aí você está
falando dessa questão, do seu desconhecimento. Promover esse processo de procura
também envolve qual é a concepção que envolve esse seu não saber. Porque talvez
quando as crianças apresentam essa escrita, que algumas pegam e ficam desesperadas:
- tadinhos, eles não sabem! Então, eu acho que envolve um pouco essa concepção que
nós temos sobre aprendizagem e ensino. (...) E o que eu achei interessante, que eu acho
bacana de estar destacando, é como é que a gente vai perceber. Porque poderia chegar
uma professora ali e dar um x de errado, destacando como não saber. Como é que a
gente pode buscar, a partir desse erro, como está estruturando o conhecimento da
criança.
O diálogo entre as declarações das duas professoras me permite encontrar
algumas pistas para discutir a ambivalência do erro no processo aprendizagem-ensino.
No primeiro momento, o erro é desconhecimento e expressa o que não se aprendeu,
embora já tenha sido exaustivamente ensinado – “eu já falei várias vezes e eles
continuam fazendo” – e quem não aprendeu – “Tá muito horrível o texto, tia! (...) Quem
foi que escreveu?”. A professora também não reconhece a atitude (errada?) das crianças
frente ao erro como resultado do processo (errado?) de ensino - a minha intenção foi
uma e aconteceu totalmente diferente.
No segundo momento, a outra professora, falando sobre o trabalho relatado pela
primeira, apresenta sua compreensão de que a percepção do erro no processo
pedagógico “envolve um pouco essa concepção que nós temos sobre aprendizagem e
ensino” e que se “pode buscar, a partir desse erro, como está estruturando o
conhecimento da criança”. Aqui, o erro aparece explicitamente relacionado aos saberes
docentes em conexão com a aprendizagem e o ensino, e vinculado à ação pedagógica.
Ao informar sobre a aprendizagem infantil, o erro pode não ser considerado negativo,
porém, a fala sobre o erro como resultado é mais reticente, se refere a possibilidades de
interpretação do não saber que o erro expressa, mas não faz referência ao erro como
conhecimento, como expressão de um saber. Mantém-se a lógica binária ancorada nas
dimensões positiva e negativa.
Podemos inferir desta ambigüidade da professora ao falar sobre o erro que ele
pode ser visto como útil na medida em que lhe oferece informações sobre o processo de
aprendizagem, mantendo sua negatividade quando é tomado como resultado? Esta
ambigüidade pode ser indício de que a busca do rendimento, considerado expressão da

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efetiva aprendizagem e finalidade do ensino, permanece como principal articuladora da
relação pedagógica? O vínculo do erro com o não saber e a falta de referência ao saber
pode ser uma pista da manutenção de uma relação hierarquizada em que o acerto, como
sinônimo de aprendizagem, ocupa um lugar mais valorizado do que o erro, evidência da
inexistência ou insuficiência da aprendizagem? Como o erro, nessa perspectiva, se
relaciona ao ensino?
O erro se mantém como não saber e sua persistência como um indício de
fracasso. Em torno do erro, concebido desta forma, se trava um debate sobre seu papel
no processo de aprendizagem, levando a uma percepção de sua inevitabilidade e à
indagação sobre como utilizá-lo para a “produção” do acerto, resultado efetivamente
valorizado por ser percebido como conseqüência da aprendizagem, e esta como
decorrência de um bom ensino. Assim, o erro não pode ser descartado por informar
sobre possíveis “falhas” no ensino e/ou na aprendizagem. Encontrar tais “falhas” é
importante para corrigi-las o mais breve possível a fim de recolocar o processo ensino-
aprendizagem no percurso adequado, produzindo o sucesso, verificado através dos
acertos dos estudantes, que são interpretados como confirmação dos acertos docentes.
Estas relações lineares encadeadas permitem a conexão também linear e simplificada da
avaliação classificatória à produção da qualidade, aqui vinculada a alto desempenho.
Nas narrativas de ambas as professoras nota-se a percepção das respostas
incorretas como inerentes à dinâmica de produção do conhecimento e como portadoras
de informações necessária a um melhor conhecimento do processo de aprendizagem
infantil; também se evidenciam movimentos com a finalidade de transformar suas
práticas em decorrência da incorporação do erro ao processo pedagógico. As
declarações afirmam a aceitação do erro desde que seja passageiro, pois, como o erro
não é reconhecido como expressão de conhecimento, não tem valor em si,
representando um problema que precisa ser superado.
Embora essa percepção matizada do erro no processo aprendizagem-ensino seja
importante para a transformação dos sentidos da prática da avaliação, não é suficiente.
Com essa mudança no discurso as professoras não demonstram conseguir tocar no fio
da missanga1: a concepção de erro e acerto como opostos e antagônicos no processo
aprendizagem/ensino, com valores diferenciados que permitem a classificação dos
sujeitos e funcionam como indícios de fracasso ou sucesso do estudante.

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- Tomo emprestada a expressão de Mia Couto, que dá título a um de seus livros, mantendo a grafia
utilizada no livro.

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A ambigüidade do discurso escolar a respeito do erro expõe certa confusão a
respeito de seu significado em um contexto que exige uma classificação clara e objetiva
dos resultados aferidos pelos procedimentos de mensuração: o erro em alguns
momentos é anunciado como positivo, mas está permanentemente atravessado pela
negação, devendo ser enquadrado em um pólo ou noutro em que se reconheça sua
“identidade” positiva ou negativa. Tal imprecisão interroga as pretensões de totalidade e
de coerência constituintes do discurso hegemônico, explicitando elementos que
permitem interpretá-lo como um discurso cindido, configurado por verdades parciais,
não mais o portador da verdade, única, inquestionável e indissolúvel.
Entendo ser importante sublinhar a diferença entre ambigüidade e ambivalência
neste artigo. Tomo ambivalência na perspectiva apresentada por Bhabha, em que os
opostos não se colocam em posições antagônicas, pelo contrário, há criação de formas
plurais de elaboração das diferenças que se encontram e confrontam nas múltiplas ações
e enunciações cotidianas. A ambivalência se inscreve claramente nos jogos de poder,
tomando a confusão discursiva, a cisão das identidades, os deslizamentos de sentidos, os
excessos expressivos como “figuras duplamente inscritas” (Bhabha;1998:144) que
interpelam, rasuram, fraturam, repelem, agregam, reinscrevem, desejam,
potencializando os espaços de ruptura com os discursos hegemônicos. A ambivalência
proporciona um caminho para uma leitura mais complexa do erro no processo
aprendizagem-ensino, em que se entrelaçam saber e não saber, limites e possibilidades,
incompreensão e criação, dúvida e certeza, sem o predomínio da dimensão positiva ou
negativa de cada um dos elementos que compõem os pares, já que eles se apresentam
em oposição e complementaridade.
Nesta perspectiva, a ambigüidade do discurso sobre o erro pode refletir uma
compreensão fraturada e simplificada da ambivalência do erro na relação aprendizagem-
ensino. As relações cotidianas evidenciam contradições que não permitem a
manutenção da integridade do discurso polarizado que sustenta o projeto de avaliação
fundado sobre as idéias de precisão da medida, neutralidade da classificação, justiça da
seleção e padronização da qualidade. No entanto, também não é possível assumir o erro
como ambivalente, pois a fluidez e a incompletude que caracterizam a ambivalência não
são compatíveis com o enquadramento proposto por esse projeto de avaliação. A
ambigüidade permite criar um discurso capaz de compatibilizar a instabilidade que
caracteriza o erro com a rigidez estrutural da lógica vigente, interpretando a
ambivalência do erro por intermédio de uma lógica linear e simplificada que volta à

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hierarquia e, portanto, à oposição. A exposição do erro através de um discurso ambíguo
reduz a potência da ambivalência do erro na articulação de possibilidades de ruptura
com as relações de avaliação hegemônicas, já que não evidencia os princípios em que se
sustentam suas múltiplas possibilidades.
O erro como elemento ambivalente no processo pedagógico, lança fios que
permitem a atribuição de novos sentidos para as relações:
conhecimento/desconhecimento, saberes válidos/não válidos, aprendizagem/ensino.
Especialmente quando os resultados - das tarefas escolares cotidianas ou dos exames
estandardizados - são descontextualizados, rasurando as dimensões sócio-culturais de
sua produção e da classificação que reduz avaliação a aferição de desempenho e
incrementa seus vínculos com uma idéia de qualidade uniforme e excludente. A
ambivalência do erro manifesta as relações de poder que fazem da diferença cultural um
processo de significação apoiado em afirmação da cultura ou sobre a cultura que
constrói justificativa para a discriminação, produção de hierarquia e para a exclusão
escolar e social.

Fraturas, silêncios e possibilidades emancipatórias


Os erros, das crianças e das professoras, e os discursos a eles relacionados
deixam entrever entrelugares (Bhabha: 1998), espaços para novas configurações criados
por confrontos e entrecruzamentos, que enunciam possibilidades de atribuição de
sentidos diferentes para o processo de avaliação e outros modos de incorporação do
conhecimento, o que se entretece à incorporação do erro e do acerto à relação
pedagógica. A principal transformação nos significados que o erro adquire não está na
reorganização do enunciado que, nas palavras de uma das professoras, se apresenta em
“uma frase assim heróica: o erro como possibilidade de construção!”. Elas próprias
intuem que a mudança não atende suas expectativas, pois “às vezes, por melhor
intenção que a gente tenha o próprio grupo reformula e...”, do mesmo modo que “dá
margens para pensar essa idéia, como esse não saber como não sabe, portanto, mau,
(...) fica classificado como negativo”.
Não se trata de desqualificar os discursos docentes, nem de minimizar a
relevância das transformações em suas próprias convicções sobre as ações escolares
cotidianas. Porém, é preciso ir além e tomar as lacunas do próprio discurso como pistas
de sua incompletude, ouvir nas reticências as indicações do silenciamento, ler as
rupturas no relato como presença de dúvidas. O erro vem se mostrando uma boa “porta

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de entrada” para o aprofundamento necessário. Por trazer simultaneamente valores
opostos que se complementam na realização cotidiana do processo aprendizagem-
ensino, dá visibilidade a indicadores opostos que, não sendo excludentes, precisam ser
considerados simultaneamente para direcionar adequadamente a relação pedagógica.
Tomando como referência os estudos de Bhabha (1998) e Mignolo (2006) sobre
o discurso pós-colonial, encontramos a relevância da articulação dos sujeitos a partir de
novos lugares de enunciação, que prevalecem ética e politicamente à reorganização do
enunciado por criarem lugares onde ocorrem rupturas, intervenções e interrupções no
discurso da modernidade. Esses novos lugares de enunciação captam as novas formas
de articulação do discurso colonial e deixam em evidência a presença da colonialidade
do poder, sempre ancorada na desqualificação do outro. A fissura se apresenta como um
lugar privilegiado para a teorização pós-colonial, enunciada por um sujeito igualmente
fraturado pelas oposições que estruturam o pensamento moderno.
Lacunas, reticências, dúvidas despontam como lugares de enunciação. Neles, a
instabilidade do discurso é exposta pelas próprias professoras como sujeitos fraturados
que expressam a percepção de que o que já foi modificado deve e pode sofrer
transformações mais profundas. Esses novos lugares de enunciação, presentes no
discurso das professoras, convidam a revisitar o processo aprendizagem-ensino, tendo o
erro como um de seus componentes.
Os discursos lacunares das professoras exprimem os seus movimentos em busca
da transformação dos procedimentos que lhes parecem insuficientes para a realização
satisfatória do processo aprendizagem-ensino; marcam também a insuficiência dos
balizadores oferecidos pelo pensamento moderno, em que é preciso colocar em
oposição, classificar e hierarquizar a fim de ordenar o pensamento. A ordenação se
mostra central na produção do conhecimento, porém, na experiência escolar cotidiana,
as ações, as reflexões e as enunciações não conseguem se conformar aos limites
impostos pelas oposições e hierarquias estabelecidas. Essa experiência de incompletude
permite uma reorganização da percepção docente das relações e não só do discurso
sobre elas.
O discurso esgarçado, quando assumido pelo sujeito que o enuncia como
legítimo, expõe a ambivalência do erro no processo aprendizagem-ensino:
simultaneamente limite e possibilidade, saber e não saber, processo e resultado,
enunciação e silêncio. Portanto, resposta que não pode ser invalidada ou classificada

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como positiva ou negativa e só pode ser percebida como oposta ao acerto quando
analisada do lugar da certeza, fundado em padrões rigidamente estruturados.
Nos lugares constituídos pela instabilidade, pelo movimento permanente, pela
turbulência, como a sala de aula e as relações pedagógicas, a classificação perde o
sentido. Assim, o erro desliza da polarização que mesmo nos momentos em que o
apresenta como positivo deixa nas entrelinhas a necessidade de sua negação, ganhando
um novo sentido que permite interpretá-lo como conhecimento. O que denominamos
erro – denominação sempre circunstancial, é preciso lembrar – é a expressão do
conhecimento que o sujeito – estudante ou professora – tem no momento em que dá sua
resposta, no momento em que age. Portanto, simultaneamente saber e não saber,
resultado de aprendizagens e demanda de novas aprendizagens, confirmação do ensino e
desafio ao ensino; não é a mera incapacidade de saber, mas o ponto de partida para
aprofundar os saberes já disponíveis e negar alguns saberes consolidados, é a
capacidade de criar com os recursos disponíveis, é a ruptura que desestabiliza as
certezas e abre espaço para o novo.
As experiências da professora como sujeito que erra na organização do ensino e
nas ações com os estudantes, cujos percursos escolares também estão pontuados pelos
erros, dão visibilidade à complexidade da relação entre erro e acerto, que não pode ser
reduzida a um vínculo linear com desconhecimento e conhecimento ou com fracasso e
sucesso escolar. Nos lugares de enunciação marcados pelas dúvidas, o que emerge no
lugar da exclusão dos opostos é o diálogo, que demanda negociação e
complementaridade sem eliminar, desqualificar ou desconsiderar a diferença.
A incompletude como lugar de enunciação permite uma reconfiguração do erro,
como expressão da incompletude do conhecimento. A consciência da incompletude não
apaga o reconhecimento dos saberes que constituem os diferentes processos e
resultados. A incompletude não impede o saber, ela anuncia o desejo e a possibilidade
de se ampliar o infindável universo de conhecimento, ressaltando a relação dialógica
entre os conhecimentos consolidados, os conhecimentos em elaboração e os
desconhecimentos, produzindo algumas indagações à vinculação linear entre acerto e
saber como negação do erro e não saber, também linearmente articulados. A oposição
entre saber e não saber não responde adequadamente às dinâmicas instauradas no
cotidiano escolar.
Na busca de proposições mais compatíveis com as experiências no cotidiano
escolar, focalizando as crianças que parecem não aprender e as professoras que parecem

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não ensinar, o ainda não saber (Esteban: 2001 ) emerge como indicador de uma relação
dialógica. Ainda nos remete ao devir, anuncia possibilidades instauradas, mas não
completamente realizadas, amplia os campos de enunciação, o que dificulta a
classificação que vem atuando no sentido de congelar os processos e hierarquizar os
resultados. O ainda expõe a liminaridade dos processos aprendizagem-ensino: sempre
constituídos nas fronteiras produzidas no encontro dos conhecimentos com os
desconhecimentos, sempre complementares, sempre provisórios e sempre parciais. Mais
uma vez se confirma para nós a imagem de fronteira apresentada por Bhabha (1998):
lugar onde algo começa a se fazer presente.
Pensar as respostas dos estudantes e das professoras pela ótica do ainda não
saber mostra-se mais produtivo para a articulação dos diferentes elementos que
produzem as turbulências características dos processos de aprendizagem, ensino e
desenvolvimento. Não trata das questões classificando-as em positivas ou negativas,
procura identificar os conhecimentos e desconhecimentos individuais e coletivos que se
revelam ou apenas dão algumas pistas de sua existência. Sem a caracterização negativa
do erro, carece de sentido classificar as respostas em acertos ou erros e hierarquizá-las,
já que acertando ou errando, em comparação com o padrão utilizado, o sujeito expressa
seu ainda não saber, ou seja, os conhecimentos de que dispõe e os que se fazem
necessários, indícios de novos percursos de aprendizagem e de ensino. Todas as
respostas e todos os processos são produtivos, porque podem levar a novos saberes.
O ainda nos vincula à esperança (Bloch; 2005) de ser mais (Freire; 1981).
O reconhecimento da ambivalência do erro nas relações pedagógicas cotidianas
e seu entrelaçamento ao ainda não saber como emergência e renovação das
possibilidades de ampliação dos conhecimentos atuam na desarticulação dos sentidos
excludentes que demarcam os pares que constituem as experiências de avaliação
educacional, em suas versões escolar e institucional. Retomando os discursos docentes
que costuram as reflexões apresentadas neste artigo, encontramos pistas tanto do
esgotamento do paradigma de avaliação hegemônico quanto da enunciação de novas
possibilidades, mais coerentes com a produção da escola pública de qualidade, que
entendemos como um espaço de produção e socialização dos conhecimentos, vinculado
aos processos de emancipação social. Uma escola pública comprometida com o
fortalecimento das classes populares em sua luta contra a subalternização e contra o
exercício da colonialidade do poder.

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A avaliação classificatória, conduzida pela busca dos altos níveis de
desempenho, freqüentemente inatingíveis para grande parte dos estudantes, tem
contribuído pouco para uma efetiva ampliação dos conhecimentos das crianças que
diariamente freqüentam a escola. A relação pedagógica, nessa perspectiva, distancia a
professora de seus alunos e alunas, por ter como referência não os sujeitos e
conhecimentos presentes na sala de aula, mas um padrão de excelência externamente
construído e procedimentos de avaliação que procuram romper o diálogo para encontrar
a exata medida de cada um. Porém, as medidas, por muito exatas que sejam, têm sido
insuficientes para informar sobre as práticas escolares cotidianas e sobre os
encaminhamentos da aprendizagem e do ensino. Os dados produzidos em um processo
que visa ao desempenho e à classificação não podem dar visibilidade aos aspectos mais
complexos e menos evidentes da vida escolar.
O diálogo e a negociação emergem como elementos centrais para a redefinição
dos sentidos da avaliação. A complexidade do erro que gera turbulências nas práticas
cotidianas traz indícios de outras relações que também percorrem o cotidiano escolar e
são silenciadas ou postas na sombra pelas práticas hegemônicas. Vai se desenhando
outra possibilidade para o processo de avaliação, destituído dos instrumentos que forjam
a classificação. Faz-se necessário buscar outro conjunto de instrumentos e
procedimentos de avaliação, que favoreça a interação na sala de aula, que amplifique as
vozes dos diferentes sujeitos, estimulando a expressão dos diferentes conhecimentos
que possuem e dos que se fazem necessários, criando condições para o diálogo, a troca,
o estar junto. Uma dinâmica baseada na reflexão sobre o conhecimento, anunciada pela
professora como importante para o trabalho pedagógico.
A escola pública, especialmente a que atende as crianças das classes populares,
vem enfrentando múltiplos problemas. A sua solução não é simples, mas também não é
impossível encontrar caminhos para a reversão do fracasso escolar, que aqui não é
entendido como resultado do baixo desempenho dos estudantes nos exames
estandardizados, mas como a impossibilidade da instituição desenvolver práticas
efetivamente democráticas que criem condições para que todos tenham acesso aos
conhecimentos.
Diferente do que sugerem algumas imagens difundidas, não há escolas que
fracassam e outras que obtêm sucesso. O que se divide em sucesso de alguns estudantes
e escolas e fracasso de muitos é expressão de uma dinâmica social excludente que
utiliza a diferença, neste caso, traduzida em hierarquia escolar, como parte dos

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processos de subalternização dos sujeitos e grupos sociais que vão sendo postos nas
margens. As escolas cotidianamente vivem experiências de fracasso e de sucesso, por
isso é preciso vê-las de perto, bem de perto, em diálogo com os sujeitos que as
produzem a cada dia. A avaliação é um dos processos indispensáveis ao diálogo e à
reflexão, necessários para se fortaleçam os movimentos em que as escolas se
democratizam e coloquem em discussão aqueles que as afastam da luta pela
emancipação.
A compreensão da parcialidade e provisoriedade de todo conhecimento conduz
os processos de re-significação da avaliação, e tem como uma de suas principais
expressões os valores atribuídos ao acerto e principalmente ao erro. O erro entendido
como conhecimento, e não como falta de, expõe o já consolidado e o que está em
desenvolvimento, indicando possibilidades de aprendizagem e de ensino. Mais do que
tudo, esta transformação incide sobre as pequenas ações cotidianas que articulam as
práticas escolares aos processos de subalternização e de exclusão social.
O processo pedagógico se tece com muitos fios, e sua complexidade pode ser
compreendida a partir de qualquer um deles. A avaliação mostra-se especialmente
relevante por se entrelaçar a todas as outras atividades escolares, nela, o erro se destaca
por agregar um vasto conjunto de elementos que atuam nos processos de
inclusão/exclusão escolar, que participam da dinâmica de produção de subalternidade. O
erro se destaca na reflexão por estar presente em todas as salas de aula. Compreender
sua complexidade pode ser mais um passo no sentido de fazer da escola pública um
espaço efetivamente democrático.

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Companhia das Letras.

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MIGNOLO, W. (2003) Histórias locais/Projetos globais. Belo Horizonte, UFMG.
MORIN, E. (1999) Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil.

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