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O fenómeno da quiralidade
– bases de estereoquímica
Ana Paula Pa i va *
A quiralidade é uma designação associada à Química mas a quiralidade nunca surge de modo espontâneo. Após
simultaneamente é um fenómeno que se manifesta prin- uma explicação básica do fenómeno em termos gerais e
cipalmente em tudo o que é vivo. A questão base para a sob o ponto de vista da Química, são fornecidos exemplos
qual os cientistas ainda não encontraram uma resposta é a relevantes que permitirão reflectir um pouco acerca da
origem de tal ocorrência, ou seja, se a quiralidade é típica essência da quiralidade – será uma manifestação casual,
dos compostos químicos associados à Vida, ela deverá ter existirá quiralidade nos compostos químicos constituintes
acontecido antes da própria Vida, de modo a condicioná-la dos seres vivos terrestres por acaso? Ou a quiralidade
e a construí-la tal como hoje a conhecemos. No entanto, será antes uma predestinação nascida nos confins do
pelo menos à luz dos conhecimentos científicos actuais, Universo?
O que é a quiralidade? da mão direita mas, quando tentamos Na Figura 1 apresentam-se as fórmulas
sobrepô-las (a palma da mão esquerda estereoquímicas de dois aminoácidos
Acontece por vezes que a imagem no
sobre as costas da mão direita) é óbvio constituintes de proteínas, a glicina – A
espelho de um dado objecto não é so-
que não há sobreposição. Não é pos- – e a alanina – B.
breponível com ele próprio. Por exem-
sível, para as duas mãos, a ocupação
plo, suponhamos que uma dada pessoa A imagem especular da glicina é sobre-
exacta dos mesmos pontos no espaço,
tem um sinal na face, do lado direito. ponível com a molécula inicial, a glicina
e é este o motivo pelo qual não se con-
Quando se olha ao espelho, esse sinal é só uma molécula [(1) = (2)], enquanto
segue calçar uma luva da mão direita
irá aparecer colocado igualmente do que a imagem no espelho da molécula
na mão esquerda e vice-versa.
lado direito da cara. No entanto, se a de alanina (3), como se pode observar
imagem saísse do espelho e se se viesse Curiosamente, a palavra “quiral” deriva na Figura 1B, não é sobreponível com
colocar ao lado da pessoa, o que acon- do grego “khéir”, que significa “mão”. a mesma – [(4) é diferente de (3)], logo
teceria? Essa pessoa teria o sinal do A quiromância, que consiste na leitura a alanina pode aparecer sob a forma
lado esquerdo. Assim, o rosto da pessoa dos sinais das mãos, provém da junção de dois compostos diferentes. Há uma
e a sua imagem não são sobreponíveis, de “khéir” e de “mantéia”, que significa relação de isomeria muito estreita entre
o fenómeno da quiralidade manifesta-se adivinha. as duas moléculas de alanina, pois ape-
macroscopicamente. sar de ambas apresentarem as mesmas
ligações químicas, a relação espacial
Com base no mesmo procedimento,
Compostos químicos quirais entre os respectivos átomos ou grupos
poderá verificar-se que, na Natureza,
de átomos constituintes é que varia
muitos objectos não são sobreponíveis Alguns compostos orgânicos são exce-
– observa-se um tipo especial de este-
com a sua imagem especular. O que se lentes exemplos de manifestação de
reoisomeria. Quaisquer dois compostos
passa é que é necessário haver assime- quiralidade, devido a serem constituí-
com a relação objecto – imagem no es-
tria para tal propriedade se manifestar. dos de modo determinante por átomos
pelho (não sobreponível) chamam-se
Por exemplo, uma colher tem plano de de carbono. O carbono é o elemento da
enantiómeros.
simetria, logo há sobreposição com a Vida, e um dos motivos poderá ficar a
sua imagem no espelho, mas o mesmo dever-se às suas características únicas Conclui-se também que, para um com-
não acontece com as nossas mãos: a de poder formar quatro ligações cova- posto orgânico ser quiral, é necessário
mão esquerda é a imagem no espelho lentes simples de modo equivalente. As que tenha pelo menos um átomo de
teorias da ligação química explicam que carbono com quatro substituintes dife-
* Departamento de Química e Bioquímica, Fa- as quatro ligações que o carbono esta- rentes, pois só assim há possibilidade
culdade de Ciências da Universidade de Lis- belece se situam segundo os vértices de de assimetria na molécula; no entanto,
boa (DQB-FCUL), Rua Ernesto de Vasconcelos,
um tetraedro, sendo os ângulos de liga- o facto de ter dois ou mais átomos de
C8 Campo Grande, 1749-016 Lisboa (E-mail:
appaiva@fc.ul.pt) ção característicos de cerca de 109º. carbono com quatro substituintes di-
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que se tomam para aliviar ou curar sin- recentemente que quatro aminoácidos sobre si próprias, emitem radiação elec-
tomas de doença também o devam ser, presentes no meteorito apresentavam tromagnética dos seus pólos que roda
para exercerem o seu efeito curativo de um excesso enantiomérico, pois exibem num sentido específico (nomeadamente,
forma mais eficaz. O que aconteceu com uma predominância de 7 a 9% da confi- como o de um saca-rolhas a retirar a
a talidomida é um exemplo de excelên- guração enantiomérica igual à existente rolha de uma garrafa), e esta ocorrência
cia para ilustrar este ponto. A talidomida nos organismos vivos terrestres. Uma hi- poderá então levar à predominância de
foi uma droga usada nos anos 60 do pótese avançada pelos astrofísicos para um enantiómero sobre outro quando se
século passado, sob a forma de mistura tentar explicar o fenómeno refere que dá a formação de moléculas no espaço
racémica, para aliviar sintomas de en- as estrelas de neutrões, quando giram interestelar.
xaqueca. No entanto, quando mulheres
grávidas tomaram a droga, os recém-
nascidos revelaram deficiências graves.
Veio depois a descobrir-se que só um
dos enantiómeros tem efeito analgésico,
sendo o outro o responsável pelas defor-
mações encontradas nos bebés – Figura
7. Na mesma Figura aparece também a
estrutura do ibuprofeno, que é um prin-
cípio activo muito utilizado como analgé-
sico e anti-inflamatório. O que acontece
é que também só um dos enantiómeros
é fisiologicamente activo, sendo o outro
inactivo. Se o medicamento for tomado
sob a forma de mistura racémica, a
quantidade a ingerir terá que ser au-
mentada para surtir o efeito desejado.
Reflexão final