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A história de nossa Igreja

Por: Inês Castilho

Os Traços do Espírito

Conhecido como cartunista de humor, o criador do Geraldão, da Dona Marta,


do Zé do Apocalipse e do Casal Neuras aprendeu a sonhar com Castañeda e tornou-se
um líder espiritual do Santo Daime.

Ferve o caldeirão de raças e culturas brasileiras. De um lado, o culto do Santo


Daime, criado na Amazônia dos anos 30 pelo negro maranhense Raimundo Irineu
Serra. De outro, a febril atividade da imprensa alternativa do Rio de Janeiro e de
São Paulo, na luta contra a ditadura militar. Como imaginar que histórias tão
dessemelhantes viessem a se encontrar, miscigenar, dar frutos? Pois assim sucedeu.
E a costura foi feita por Glauco Vilas Boas, o Glauco.

Pouca gente sabe, mas o criador do Geraldão, do Geraldinho, do Casal Neuras,


da Dona Marta, do Zé do Apocalipse, do Doy Jorge, do Netão, da Picadinha,
d'Ozetês, o cartunista das charges políticas, publicado pela Folha de S.Paulo desde
1977-"são 26 anos, vixe!" - tornou-se um líder espiritual. Juntou um povo e ergueu
uma igreja do Santo Daime no Morro de Santa Fé, próximo do Pico do Jaraguá, na
Grande São Paulo, pela qual já passaram milhares de pessoas. "Muita gente se
conheceu dentro do salão e se casou - já são mais de 20 crianças exclusivas da igreja
Céu de Maria", diz, satisfeito. E resume, certeiro: "É uma faculdade da Nova Era."

As mãos de Deus estão tecendo a rede. Mexendo o doce. Desde quando a


história começou, em 1993 - numa casinha no bairro do Butantã, depois numa
maior, na entrada da Cidade Universitária, até chegar a esse morro -, o ponto foi se
firmando, virou igreja e, em 2000, acabou escolhida igreja oficial de São Paulo.
Uma irmandade está indo morar à sua volta. "É um condomínio de daimistas",
explica Glauco. "Batizado de Vila Astral pelo Padrinho Alfredo." Padrinho Alfredo,
filho do Padrinho Sebastião, comanda a doutrina desde a morte do pai, em 1990. "É
isso aí, não tem mistério", diz ele.

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Mistério tem. Porque a história começou muito antes, quando ele aprendeu a
sonhar. Glauco relata coincidências. Agradece a sorte (mas sorte é poder pessoal,
diz Carlos Castañeda). Sorte de ter encontrado, ainda em Jandaia do Sul, Paraná,
onde nasceu, um amigo que lhe apresentou o Pasquim e os Beatles, e com quem
criou seus primeiros quadrinhos. De ter topado com dois mestres do jornalismo logo
que chegou a Ribeirão Preto, interior de São Paulo. De ter sido premiado no Salão
Internacional de Humor de Piracicaba em 1977, justo quando todo seu panteão -
Henfil, Angeli, Jaguar, Millôr, Ziraldo, os Caruso - fazia parte do júri. De ter sido
hospedado pelo Henfil e adotado pelo Angeli ao chegar a São Paulo.

Em 1975, 18 anos, Glauco foi morar em Ribeirão e logo deu as caras no jornal
editado por José Hamilton Ribeiro. "A cidade tinha uma safra de feras - o Sérgio de
Souza, depois do Bondlinho, também foi para lá montar um jornal alternativo."
(Para quem não sabe, José Hamilton Ribeiro fez a cobertura, pela Realidade, da
Guerra do Vietnã. Sérgio de Souza, o Serjão, foi seu companheiro de Realidade e é
o criador da revista Caros Amigos.)

Zé Hamilton Ribeiro lhe ofereceu emprego. "Foi meu primeiro padrinho", diz
Glauco, que já tinha dois personagens, Rei Magro e Dragolino. "Eles passavam o
dia todo queimando um", lembra. Zé Hamilton também se recorda. "Percebi que
estava diante de alguém especial - o artista capta sinais que a gente, comum, não
percebe. Sua presença física já era de oposição." Sobre o Glauco e o amigo Sérgio
de Souza, diz: "Bom mesmo são as pessoas que conseguem fundar sua própria
igreja - não sobre pilares de ouro, pois essas podem ser roubadas, mas sobre os
pilares do espírito".

Outros padrinhos se seguiram. O cartunista Angeli, que editava o Vira Lata no


folhetim dos tempos do Tarso de Castro, começou a publicar seu trabalho. O Henfil,
sua maior influência desde que conheceu o Pasquim, o hospedou durante nove
meses. "Estou falando com Deus, pensava, quando conheci o Henfil. Os Fradinhos,
aquele traço todo solto, o uso do palavrão - o trabalho dele era um avanço muito
grande."

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Na sombra do cartunista, contudo, nascia o sonhador. Glauco aprendeu a
sonhar consciente com o livro A Erva do Diabo, de Carlos Castañeda. "Através das
instruções dele passei a sair do corpo e a comprovar que estive em certos lugares -
perdi muito tempo com isso. Eu ia lá na frente da redação do jornal, sonhando, ia lá
e decorava o número do poste, numa plaquinha. Acordava e ia correndo ver - estava
lá! Passei uma época obcecado em convencer minha razão."

Foi quando sonhou com o Padrinho Eduardo, que ainda não conhecia. No
sonho um índio dizia, dirigindo-se a uma multidão diante dos dois - olha, é ele quem
vai levar vocês. Acordou achando que tinha sonhado com Dom Juan Matus, o
feiticeiro yaqui de quem Castañeda foi aprendiz. "Parecia um inca - um narigão,
baixinho, atarracadinho... nunca esqueci aquele véinho." Foi a sinalização do
caminho para o Santo Daime.

Com The Teachings of Don Juan (título original e mais sensato de A Erva do
Diabo), o antropólogo Carlos Castañeda abria, em 1968, uma corrente de atenção
para as plantas de poder dos índios americanos. "Ele devolveu um valor que estava
sendo deixado de lado, que é prestar atenção nas plantas professoras dos nossos
caboclos." Muita gente considerava aquilo alienante. Mas Glauco, cartunista de
esquerda, convivia também com o Budismo, com Osho... "A antropofagia me
ensinava a possibilidade de freqüentar todas essas linhas."

A oportunidade de conhecer o Daime sempre lhe escapava. Até que um dia...


"baixou o Zé do Apocalipse numa roda de bar e comecei a alugar o povo com disco
voador, Eubiose, Dorn Bosco, Smetack, Madame Blavatsky, Rudolf Steiner, o
Brasil sendo a pátria da Nova Era pela mistura das raças. A moçada pensando: esse
cara é doido! Fiquei meio puto e intimei meus guias - vocês têm dez minutos para
mandar um veio de luz para me ajudar, falei com meus botões. E fiquei olhando o
relógio." No final do tempo chegou Leo Christo, psicólogo mineiro, irmão do Frei
Betto." Estava te esperando desde a índia, veio", o Glauco disse para ele - que só
relaxou quando soube que se tratava do criador do Geraldão.

Era 1989 e o Leo lhe apresentou o Daime. Glauco começou a freqüentar a


comunidade de Visconde de Mauá, na fronteira do Rio com Minas Gerais, liderada

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pelo escritor, poeta e ex-guerrilheiro Alex Polari de Alverga. Com ele foi ao Céu do
Mapiá, a comunidade-mãe do Santo Daime, na Amazônia. E foi lá, no primeiro
trabalho de que participou, que viu Padrinho Eduardo, o véinho do sonho. "Entendi
que aquilo de ele dizer, no sonho, para a multidão – “é ele quem vai levar vocês...”
— significava que eu ia levar um povo para o Mapiá. E criei coragem para abrir um
ponto do Daime."

Glauco inaugurou um grupo de estudos, o que causou certo incômodo nos


daimistas de São Paulo." Mas devagarinho o pessoal entendeu que vinha chegando
uma moçada com o meu jeitão - estudantes, o pessoal da night, os viciados, toda a
fauna paulista. O sonho era a procuração para me dar coragem." O ponto em frente à
USP exigiu mesmo muita coragem. Quando foi alugada, a casa estava ocupada por
meninos de rua. Na frente dela trabalhavam prostitutas e travestis. A cada trabalho
os vizinhos chamavam a polícia. Um clima meio dark, digamos.

"Mas tinha uma luz que transcende essa trevinha", diz Glauco. "Era o amor do
Cristo, mesmo, que eu sentia. Quando abri o portão daquela casa tinha dez meninos
de rua ali no fundo, numa fuinha, atocaiada. Um pacotinho, de presente, pronto para
começar o trabalho. Lembrei-me do banquete do Cristo, quando Ele convidou todo
mundo, mas estavam todos ocupados com seus negócios. E aí Ele chamou o povão,
os simples, os desvalidos. Quando o Céu de Maria abriu ali, senti que tinha a força
da caridade contra a miséria humana. Dois daqueles meninos estão comigo até
hoje."

Glauco colheu ali o seu povo. "Chegaram os artistas, a turma da Vila


Madalena." E as mulheres. Primeiro a Kiki, madrinha da Flor das Águas, igreja
pioeira de São Paulo. Em seguida, as irmãs Paula e Bia, que se tornaram o esteio da
casa. Depois as irmãs Silvia e Lu, filhas do Serjão de Souza.

Na FM do astral:

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Com a união entre Bia e Glauco, firmava-se
a igreja. "A Bia me ajudou muito a chegar a esse
grau do Céu de Maria", diz Glauco. "A Juliana
também, ela segurou o canto, junto com a Gercila,
do Mapiá." O Céu de Maria cresceu e se mudou
para o Pico do Jaraguá. Glauco e Bia construíram
ao lado da igreja
uma casa que está
sempre cheia de
mapienses.
Padrinho Eduardo,
que já ficava muito em São Paulo, veio morar no
condomínio com Tonho, o filho dele.

A energia que rege o Céu de Maria é feminina, diz


Glauco. "Mestre Irineu recebeu a doutrina da Virgem Mãe, o
Padrinho Sebastião falava da força e da firmeza das mulheres. A
música aqui é firmada nas mulheres." A música é o elemento
ritual que lhe é mais caro. O canto e os instrumentos - violão,
flauta, percussão, o Glauco sempre na sanfona -são a base de um
bom trabalho. "Se estiver desafinado.o couro come." Ele
considera os hinos do Daime um tesouro musical. Seu hinário, o Chaveirinho, traz os
hinos ofertados pêlos padrinhos e os 37 que recebeu até agora (no Daime, hinos não
são compostos, mas "recebidos").

O culto do Santo Daime, que consagra o uso da ayahuasca, tem raízes na


imemorial utilização de plantas de poder pelas tribos indígenas da América, nos
rituais de xamanismo, nos movimentos messiânicos do Brasil e nas formas de
produção não-capitalista incrustadas no sistema. Há vários livros publicados sobre o
assunto. Podem também ser encontrados os relatórios do Conselho Federal de
Entorpecentes, elaborados nas ocasiões em que foi chamado a deliberar, e sempre
liberou, o uso dessa substância psicoativa em rituais coletivos.

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O chá, feito das plantas professoras Banisteriopsis caapi (cipó) e Psychotria
viridis (folha rainha), tem reconhecido poder de cura, particularmente da dependência
de drogas, álcool, nicotina. "É um dos poucos lugares onde o pessoal consegue se
recuperar do crack, uma droga devastadora. Já existem muitos depoimentos de
pessoas que se curaram aqui", afirma Glauco. Há também relatos de estabilização de
casos de Aids e câncer. "A cura todos vivem, seja ela física, mental ou espiritual. Se
você está harmonizado, o Daime lhe mostra realidades muito finas, superiores. Mas
enquanto não arruma a casa não dá para sintonizar naquela FM do astral", diz.

Glauco considera que estamos vivendo, há tempos, um apocalipse ambiental.


Mas tem esperança na consciência que vê despertar no mundo. "Vai que, de repente,
vira e o povo começa a dar valor a essa cultura que sempre negou, acho que dá tempo
de mudar." Sua ligação com os índios é forte. Os dois filhos, ambos com 18 anos, têm
nomes indígenas - Ipojucam e Raoni, este já iniciado na doutrina. "O Daime é uma
floresta concentrada. Quando entrei na mata pela primeira vez senti que era habitada,
cheia de seres espirituais. Cada árvore derrubada tinha uma energia espiritual que não
vai mais poder ser aparelhada. Mas acho que o Brasil ainda tem muita mata, dá para a
gente acordar, para segurar esse povo".

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