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Os Traços do Espírito
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Mistério tem. Porque a história começou muito antes, quando ele aprendeu a
sonhar. Glauco relata coincidências. Agradece a sorte (mas sorte é poder pessoal,
diz Carlos Castañeda). Sorte de ter encontrado, ainda em Jandaia do Sul, Paraná,
onde nasceu, um amigo que lhe apresentou o Pasquim e os Beatles, e com quem
criou seus primeiros quadrinhos. De ter topado com dois mestres do jornalismo logo
que chegou a Ribeirão Preto, interior de São Paulo. De ter sido premiado no Salão
Internacional de Humor de Piracicaba em 1977, justo quando todo seu panteão -
Henfil, Angeli, Jaguar, Millôr, Ziraldo, os Caruso - fazia parte do júri. De ter sido
hospedado pelo Henfil e adotado pelo Angeli ao chegar a São Paulo.
Em 1975, 18 anos, Glauco foi morar em Ribeirão e logo deu as caras no jornal
editado por José Hamilton Ribeiro. "A cidade tinha uma safra de feras - o Sérgio de
Souza, depois do Bondlinho, também foi para lá montar um jornal alternativo."
(Para quem não sabe, José Hamilton Ribeiro fez a cobertura, pela Realidade, da
Guerra do Vietnã. Sérgio de Souza, o Serjão, foi seu companheiro de Realidade e é
o criador da revista Caros Amigos.)
Zé Hamilton Ribeiro lhe ofereceu emprego. "Foi meu primeiro padrinho", diz
Glauco, que já tinha dois personagens, Rei Magro e Dragolino. "Eles passavam o
dia todo queimando um", lembra. Zé Hamilton também se recorda. "Percebi que
estava diante de alguém especial - o artista capta sinais que a gente, comum, não
percebe. Sua presença física já era de oposição." Sobre o Glauco e o amigo Sérgio
de Souza, diz: "Bom mesmo são as pessoas que conseguem fundar sua própria
igreja - não sobre pilares de ouro, pois essas podem ser roubadas, mas sobre os
pilares do espírito".
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Na sombra do cartunista, contudo, nascia o sonhador. Glauco aprendeu a
sonhar consciente com o livro A Erva do Diabo, de Carlos Castañeda. "Através das
instruções dele passei a sair do corpo e a comprovar que estive em certos lugares -
perdi muito tempo com isso. Eu ia lá na frente da redação do jornal, sonhando, ia lá
e decorava o número do poste, numa plaquinha. Acordava e ia correndo ver - estava
lá! Passei uma época obcecado em convencer minha razão."
Foi quando sonhou com o Padrinho Eduardo, que ainda não conhecia. No
sonho um índio dizia, dirigindo-se a uma multidão diante dos dois - olha, é ele quem
vai levar vocês. Acordou achando que tinha sonhado com Dom Juan Matus, o
feiticeiro yaqui de quem Castañeda foi aprendiz. "Parecia um inca - um narigão,
baixinho, atarracadinho... nunca esqueci aquele véinho." Foi a sinalização do
caminho para o Santo Daime.
Com The Teachings of Don Juan (título original e mais sensato de A Erva do
Diabo), o antropólogo Carlos Castañeda abria, em 1968, uma corrente de atenção
para as plantas de poder dos índios americanos. "Ele devolveu um valor que estava
sendo deixado de lado, que é prestar atenção nas plantas professoras dos nossos
caboclos." Muita gente considerava aquilo alienante. Mas Glauco, cartunista de
esquerda, convivia também com o Budismo, com Osho... "A antropofagia me
ensinava a possibilidade de freqüentar todas essas linhas."
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pelo escritor, poeta e ex-guerrilheiro Alex Polari de Alverga. Com ele foi ao Céu do
Mapiá, a comunidade-mãe do Santo Daime, na Amazônia. E foi lá, no primeiro
trabalho de que participou, que viu Padrinho Eduardo, o véinho do sonho. "Entendi
que aquilo de ele dizer, no sonho, para a multidão – “é ele quem vai levar vocês...”
— significava que eu ia levar um povo para o Mapiá. E criei coragem para abrir um
ponto do Daime."
"Mas tinha uma luz que transcende essa trevinha", diz Glauco. "Era o amor do
Cristo, mesmo, que eu sentia. Quando abri o portão daquela casa tinha dez meninos
de rua ali no fundo, numa fuinha, atocaiada. Um pacotinho, de presente, pronto para
começar o trabalho. Lembrei-me do banquete do Cristo, quando Ele convidou todo
mundo, mas estavam todos ocupados com seus negócios. E aí Ele chamou o povão,
os simples, os desvalidos. Quando o Céu de Maria abriu ali, senti que tinha a força
da caridade contra a miséria humana. Dois daqueles meninos estão comigo até
hoje."
Na FM do astral:
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Com a união entre Bia e Glauco, firmava-se
a igreja. "A Bia me ajudou muito a chegar a esse
grau do Céu de Maria", diz Glauco. "A Juliana
também, ela segurou o canto, junto com a Gercila,
do Mapiá." O Céu de Maria cresceu e se mudou
para o Pico do Jaraguá. Glauco e Bia construíram
ao lado da igreja
uma casa que está
sempre cheia de
mapienses.
Padrinho Eduardo,
que já ficava muito em São Paulo, veio morar no
condomínio com Tonho, o filho dele.
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O chá, feito das plantas professoras Banisteriopsis caapi (cipó) e Psychotria
viridis (folha rainha), tem reconhecido poder de cura, particularmente da dependência
de drogas, álcool, nicotina. "É um dos poucos lugares onde o pessoal consegue se
recuperar do crack, uma droga devastadora. Já existem muitos depoimentos de
pessoas que se curaram aqui", afirma Glauco. Há também relatos de estabilização de
casos de Aids e câncer. "A cura todos vivem, seja ela física, mental ou espiritual. Se
você está harmonizado, o Daime lhe mostra realidades muito finas, superiores. Mas
enquanto não arruma a casa não dá para sintonizar naquela FM do astral", diz.