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MAGAZINE DE FICÇÃO CIENTÍFICA
N0 10 - JANEIRO DE 1971

CONTOS ESTRANGEIROS

A Garota com Olhos de 1000 - Ron Webb


Encontro em Lankhmar - Fritz Leiber
A Execução Fatal - Poul Anderson
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius - Jorge Luis Borges

CONTO BRASILEIRO

Alfredo - Luciano Rodrigues

CIÊNCIA

Preenchendo as Lacunas - Isaac Asimov

Capa de Jack Gaughan

José Bertaso Filho, DIRETOR


Flávio J. Cardozo, DIRETOR DE REDAÇÃO
João Freire, GERENTE

Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Sci-
ence Fiction” — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada mensalmente pela
Revista do Globo S. A.

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A GAROTA COM OLHOS DE 100°
Ron Webb

Trad. de Aydano Arruda

Encontrei-me com Jeannie, pela primeira vez, em meu apartamen-


to, diante de uma garrafa de fino Scotch. Antes disso, encontrei-a em um
bar. Mas talvez seja melhor eu explicar. Tudo começou no Five O’Clock
Club, à lh da madrugada — uma hora depois de iniciado o dia do meu
aniversário.
Eu estava sentado sozinho no bar, pois tivera uma briga com minha
garota e “mandava, umas e outras” com Al, o empregado do bar. Mencio-
nei que era o dia do meu aniversário e como era chato não ter gente com
quem comemorar e tudo o mais, quando Al disse:
— Que vergonha, Danny! — e dirigiu-se para a sala do fundo.
Voltou um minuto depois com uma velha e empoeirada garrafa de
Scotch que surripiara do estoque dos patrões.
— Para você — disse êle — e minhas felicitações. O velho não per-
ceberá a falta: encomenda essa marca às caixas, em uma firma estrangei-
ra, mas só abre uma, talvez duas, por ano.
Soprei a poeira para ler o rótulo, mas era uma língua que eu nunca
vira antes.
— Que é isto? — perguntei.
— Scotch. Pelo menos, é o que o velho diz. Êle nunca abriu uma
garrafa aqui. Leve-a para casa e esqueça-se da vida. Agora, preciso fechar.
Assim, fui para meu apartamento.
Depois de deixar cair alguns discos de blues na máquina, cortei
o selo da garrafa e quebrei uns pedaços de gelo. Embora alguma coisa
balançasse dentro da garrafa, a uca não saía. Estava quase a ponto de me
chamar de otário quando vi minúsculos dedos aparecendo na beirada do
gargalo. Depois, com uma nuvem de fumaça, a pequenina dama apareceu
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— uma dama pequenina, boa e nua.
— Sou Jeannie — disse a garota em miniatura.
— Estou maluco — respondi.
Ao que ela começou a crescer, à maneira de Alice no País das Ma-
ravilhas, até se transformar naquele suculento tipo à Las Vegas. Alta, de
pernas esbeltas e uma parte superior bem abastecida. Seus olhos eram
côr-de-âmbar, o que combinava com os cabelos.
Imaginei que o truque fora feito com espelhos ou coisa semelhan-
te. Quero dizer, quem ia esperar que uma suculenta boneca daquelas sa-
ísse de uma garrafa? Por um minuto, ela ficou parada em pé sobre a mesa
de café, com aquela expressão sonolenta nos olhos.
Parecia bem real. Tinha cheiro real, também... uma espécie de mis-
tura de almíscar e sexy, com um toque de vinho fino. Poderia ser mágica
de salão, mas quem estava se importando com isso?
— Vou ajudá-la a descer — disse eu, estendendo as mãos em sua
direção.
O olhar sonolento desapareceu e seus olhos arregalaram-se. En-
tão, ela deu um gritinho e saltou da mesa, derrubando, ao mesmo tempo,
a garrafa. Correu para o banheiro. Eu também corri, antes que ela tivesse
tempo para fechar a porta. Agarrou uma toalha e enrolou-se nela.
— Não me toque — disse, com os olhos muito grandes, saindo
depois correndo do banheiro.
A toalha balançava-se, abrindo-se atrás e expondo o substancioso
traseiro, que tinha uma covinha. A covinha afastou-se, oscilando torturan-
temente, quando ela entrou na sala de estar e sentou-se no sofá, enrolada
na toalha.
— Eu vou gritar — ameaçou.
Decidi que discrição era a melhor atitude a tomar. Sentei-me do
outro lado da sala. Afinal de contas, ainda nem sequer nos conhecíamos e
Jeannie era evidentemente do tipo tímido.
— Alô — comecei, em tom casual.
— Alô — respondeu ela, desconfiada.
Pude ver que aquilo não nos levaria a lugar algum.
— Você fica sempre dentro de uma garrafa de Scotch?
— Quase sempre — respondeu, começando a tranqüilizar-se um
pouco. — Preciso ficar lá até que tirem a rolha.
— Já haviam tirado a rolha alguma vez, antes?
Seus olhos adquiriram uma expressão sonhadora.
— Sim.
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Eu também estava começando a ficar um pouco sonhador:
— Que aconteceu?
Ela franziu um pouco a testa e respondeu:
— Não me lembro.
Tive a impressão de que estava mentindo. Tentei um gambito di-
ferente:
— Já viveu dentro de uma lâmpada?
Ela se ofendeu:
— Eu? Dentro de uma lâmpada velha e mal-cheirosa? Nunca! Mi-
nha família é das mais finas garrafas. Naturalmente... bem, houve o tio
Charles. Êle vivia numá horrível lâmpada à querosene — corou, depois
acrescentou: — Mas nunca nos demos com êle.
Tive uma repentina inspiração.
— Então, se você é um gênio verdadeiro, uma vez que fui eu quem
tirou a rolha da garrafa, é minha escrava. Tem de fazer tudo que eu orde-
nar.
— Não é assim.
— Que quer dizer quando fala que não é assim? É o que dizem
todos os livros.
— Bem — disse ela, pensando. — Não é exatamente assim.
— Ah! — falei, exultante. — Então, estou certo!
Pensei nas possibilidades e acho que deve ter aparecido um brilho
em meus olhos, pois ela começou, rapidamente:
— Você só pode dar três.
— Três ordens?
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
Com apenas três iguarias místicas com que brincar, acho que devia
ter pensado melhor, mas ela parecia tão apetitosa, ali sentada com a toa-
lha, que eu disse, sem mais aquela:
— Entregue-se.
— Agora? — perguntou ela e seus olhos tornaram a arregalar-se.
— Agora.
— Você precisa dizer as palavras mágicas.
— Quais seriam?
— Mogen David.
— Hem?
— O engarrafador tinha senso de humor.
— Oh — disse eu, com um sorriso estúpido. — Um palhaço.
Ela também sorriu, mas nela o sorriso não era estúpido e a toalha
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escorregou um pouco para baixo.
— Mogen David — disse eu, respirando fundo. — Entregue-se.
Então, aqueles seus olhos de 100° de teor alcoólico adquiriram
uma divertida e encantadora tonalidade de âmbar enfumaçado. Ela sorriu
um pouco mais e quase ficou reclinada no sofá. Os cabelos espalharam-se
pelos ombros e ela soltou a toalha.
Estendi as mãos para ela e beijei-a. Os lábios eram quentes e ma-
cios. As coisas estavam indo muito .bem, “quando, de repente, ela come-
çou a encolher.
— Que diabo é isso? — gritei.
Mas lá estava ela, toda nua no sofá, com apenas vinte ou vinte e
cinco centímetros de altura.
Ela sorriu de novo — era, decididamente, um sorriso maldoso — e
voltou ao tamanho normal.
— Onde você pretende chegar — perguntei — fazendo isso?
Ela ergueu novamente a toalha.
— Eu me entrego — disse, inteiramente inocente outra vez.
Depois, começou à chorar. Quero dizer, ela começou a chorar. São
capazes de entender uma coisa dessas? E disse, derramando lágrimas:
— É uma espécie de mecanismo de defesa, sabe?
Eu não sabia de nada, mas fiquei abalado vendo-a chorar. Ela en-
xugou os olhos com a ponta da toalha e, fungando, disse:
— Não posso evitar. Quando me dão ordens, funciona para prote-
ger-me.
Fez um beicinho adorável, e continuou:
— Gosto de você, Danny, gosto mesmo. Mas, simplesmente, não
posso entregar-me antes que... — começou a chorar de novo. — Antes de
ter vovó aqui comigo.
Eu não disse nada. Quero dizer, que poderia falar?
Jeannie enxugou de novo os olhos e disse:
— A pobrezinha. Está sozinha. Foi despejada de sua encantadora
garraifa de Draumbuie e agora está vivendo numa botija de vinho barato,
na mercearia Shoermer — bateu os cílios para mim e acrescentou: — Sei
que tudo correrá bem quando vovó estiver fora de lá. Você não quer aju-
dar?
Eu não tinha muito que escolher. Por isso, fui à mercearia Shoer-
mer e comprei a botija. Reconheci-a pela rolha azul que Jeannie dissera
que ela tinha.
Entreguei a botija a Jeannie e desviei o olhar, enquanto ela a abria,
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imaginando que seria falta de respeito observar a avó sair nua e tudo o
mais.
Escutei a rolha saltar com um pequeno, “ploc” e o que. ouvi logo
em seguida foi aquela, grossa voz masculina dizendo:
— Menina!
E Jeannie respondendo:
— Harold, querido!.
E não havia avó alguma.
Apenas aquele sujeito grandalhão e nu andando pelo meu aparta-
mento e Jeannie pendurada em seu braço, com uma expressão amorosa
nos olhos.
Então, ela olhou para mim e disse, com ar de simpatia:
— Sinto muito, Danny, foi um golpe bajxo. Mas sei que você com-
preenderá. Harold e eu nos amamos.
E o sujeito grandalhão, Harold, ria. Pude ver que o amor era unila-
teral, pois Harold transpirava lascívia e avareza. O que procurava não era
puro e saudável.
— Jeannie — gritei, — você se deixou cegar por essa criatura! Êle
não é para você.
Harold serviu-se de meu uísque e acendeu um de meus cigarros.
— Não adianta — disse Jeannie, anelante. — Harold e eu somos almas
gêmeas.
Quase perdi as estribeiras — sabem? — vendo Jeannie tão caída
por aquele paspalhão que bebia minha uca.
— Mogen David — disse eu a Harold. — Suma.
Harold serviu outra dose e Jeannie explicou:
— Não funciona. Não foi você quem tirou a rolha da garrafa dele.
Fui eu e as ordens são instransferíveis.
— Dois podem jogar juntos este jogo , estúpido — disse-lhe, seve-
ramente. — Mogen David. Faça Harold entrar de novo na botija.
— Oh... Oh! — gemeu ela e começou a chorar de novo.
Mas fêz o que mandei e Harold ficou com uma aparência toda va-
porosa e voltou a entrar na botija. Jeannie chorou mais um pouco, en-
quanto tapava a botija com a rôlha.
— Jeannie, querida — disse, tentando consolá-la, — não chore.
Ela tremeu um pouco e, ao fazê-lo, a garrafa de Harold começou
a vibrar sobre a mesa. Depois, começou a sacudir-se e dançar em roda
até partir-se — exatamente em dois pedaços. E ali estava aquele sujeito
grandalhão e nu, andando de novo pelo apartamento e Jeannie com ar
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de quem pede desculpas, falando sobre mecanismos de defesa e almas
gêmeas.
Aquilo era intolerável. Quero dizer, fiquei como que estraçalhado.
Aquele paspalhão do Harold quebrara a sua garrafa e eu estava olhando
lubricamente para a covinha de Jeannie. Eu olhava para Jeannie que olha-
va para Harold.
— Quem precisa disso? —perguntei, em tom escarninho; mas não
me adiantou nada, porque eu sabia que precisava, por isso usei minha
última ordem, — Mogen David, ama-me.
Jeannie ainda olhava para Harold, como se êle tivesse saído de bai-
xo de uma pedra ou coisa semelhante. Depois, olhou para mim, com os
olhos se tornando sonolentos, e disse:
— Danny, querido. Harold precisa ir embora.
— Você é quem sabe — disse eu, no tom mais casual que pude.
Mas e a garrafa dele?
— Êle pode usar a minha — respondeu ela. — Não vou mais pre-
cisar dela.
Depois, aproximou-se de Harold e segredou-lhe alguma coisa. Êle
fitou-a com ar feroz, mas, em seguida, sua carranca se desfez e êle escor-
regou para dentro da garrafa de Scotch.
— Pobrezinho! — disse Jeannie, pondo a rolha. — Sei que êle vai
ficar terrivelmente apertado aí dentro.
— Não se incomode. Êle se ajustará — afirmei, pensando em como
o dono do Five O’Ciock Club ficaria abalado se eu devolvesse a garrafa às
escondidas, ao seu estoque particular e um dia êle desanimasse Harold
em lugar de uma garota.
Depois, esqueci-me da peça que pensara pregar, pois Jeannie esta-
va me fitando adoràvelmente com aqueles olhos côr-de-âmbar e comecei
a me sentir quente por dentro. Ela disse, em tom macio:
— Eu o amo, Danny.
E eu disse, todo sentimental:
— Eu também a amo.
— Meu mecanismo de defesa — falou ela, com uma risadinha.
— Era preciso que você me amasse.
Mas isso pouco me importava.
Segurei-a com um braço e beijei-a, enquanto que com a outra mão
jogava Harold no cesto de lixo.
Jeannie sorriu, com o olhar todo sonolento, e deixou cair a toalha.

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ENCONTRO EM LANKHMAR
Fritz Leiber

Trad. de Maria Léa Eichenberg

Silenciosos como espectros, o alto e o gordo ladrões ladearam o


vigia feroz estrangulado mortalmente, atravessaram a espessa porta ar-
rombada de Jengao, o Mercador de Jóias, e dobraram a leste, na Rua da
Moeda, através da fina e negra neblina noturna de Lankhmar.
Teria que ser a leste na Moeda, pois a oeste, no cruzamento com a
Rua da Prata, havia um posto policial onde guardas insubornáveis, impa-
ciente e estridentemente, batiam suas lanças no chão.
Mas o alto e calado Slevyas, candidato a ladrão-mestre, e o gordo
Fissif de olhos dardejantes, ladrão de segunda classe, hábil em dissimula-
ção, não tinham a menor preocupação. Tudo estava saindo de acordo com
o plano. Cada um levava amarrada na sacola, uma bolsinha menor com
jóias de primeira categoria, em razão do que Jengao, agora respirando
com estertor e inconsciente com o golpe que sofreram, deveria ser não
somente preservado, mas também fomentado e encorajado para recons-
truir seus negócios e amadurecê-los para outro roubo. A primeira lei da
Sociedade dos Ladrões era nunca matar a galinha de ovos de ouro.
Os dois ladrões sentiam-se aliviados em saber que agora iam dire-
tamente para suas casas, não para uma esposa, Arath proibia! — ou para
pais ou filhos. Deus nos livre! — mas para a Casa dos Ladrões, quartel-
general e casernas da toda poderosa Sociedade que era pai e mãe para
ambos, pois que nunca tinha sido permitida a entrada a nenhuma mulher
através de seus sempre abertos portais, na Rua das Pechinchas.
Além do mais, havia o conhecimento reconfortante de que, em-
bora cada um estivesse armado somente com o costumeiro punhal de
prata dos ladrões, estavam muito bem escoltados por três bandidos letais

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de confiança, contratados da Irmandade dos Assassinos para esta noite,
um bem na frente como vanguarda, os outros dois na retaguarda, como
principal força de ataque.
Como se tudo isso não bastasse para fazer Slevyas e Fissif sentirem-
se seguros e serenos, andava silenciosamente ao seu lado, na sombra do
meio-fio, uma pequena figura disforme e um tanto cabeçuda, que poderia
ser um cachorro pequenino, ou algum gato de tamanho abaixo do normal,
ou um rato muito grande.
Em verdade, esta última guarda não era totalmente por si só uma
segurança. Fissif adiantou-se para murmurar no grande lóbulo da orelha
de Slevyas:
— Que o diabo me carregue, se me agrada ser seguido por este
demônio de Hristomilo, não importa a segurança que possa nos oferecer.
O pior é que Krovas tenha contratado ou se deixado convencer a contratar
um feiticeiro da mais dúbia, senão terrível reputação e aspecto, mas que...
— Cale a boca! — Slevyas cochichou ainda mais baixo.
Fissif obedeceu dando de ombros, preocupado em lançar olhares
atentos para os lados e principalmente à frente.
Um pouco além, nesta direção, de fato exatamente perto da Rua
do Ouro, a da Moeda era atravessada por uma passagem fechada de dois
andares, ligando os dois edifícios que constituíam os prédios dos famosos
escultores Rokkermas e Slaarg. Na fachada da casa havia pórticos muito
rasos, sustentados por pilares desnecessariamente largos de forma e de-
coração variadas, mais vistosos do que membros estruturais.
Exatamente debaixo da galeria, ouviram dois baixos e breves as-
sobios, um sinal do bandido dianteiro, avisando que inspecionara aquela
área contra o perigo de emboscada, não descobrira nada suspeito e que a
Rua do Ouro estava livre.
Fissif não estava inteiramente satisfeito com o sinal de segurança.
Para dizer a verdade, o ladrão gordo preferia ser apreensivo e mesmo me-
droso, ao menos até certo ponto. Perscrutou, então, mais atentamente,
através da fina e escura neblina, as fachadas e as Saliências de Rokkermas
e Slaarg.
Deste lado, a galeria possuía quatro janelinhas, entre cada uma
delas havia três nichos, nos quais se levantavam — outros ornamentos
— três estátuas de gêsso de tamanho natural, um pouco corroídas pelo
tempo e manchadas de variados tons de cinza escuro, por muitos anos de
névoa. Quando se aproximava da casa de Jengao, antes do roubo, Fissif
as tinha notado. Agora, parecia-lhe que a estátua da direita mudara in-
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definivelmente. Era a de um homem de estatura média, vestindo capote
e capuz, olhando fixamente para baixo com os braços cruzados e aspecto
atento. Não, não completamente indefinível — a estátua era agora de um
cinza-escuro mais uniforme, o capote, o capuz e o rosto, supôs; as feições
pareciam um poucp mais aguçadas e quase poderia jurar que ela diminu-
íra um pouco.
Logo abaixo dos nichos, além disso, havia um entulho cinza e bran-
co que não se recordava de ter visto antes. Esforçou-se para se lembrar
se durante a excitação do roubo, a parte vigilante de sua mente teria re-
gistrado um estrondo distante. Agora acreditava que sim. Sua rápida ima-
ginação representou a possibilidade de haver um buraco atrás de cada
estátua, através da qual fosse possível, por meio de um forte empurrão,
fazê-las cair em cima dos passantes, êle e Slevyas especificamente. Ima-
ginou também, que a estátua da direita tivesse sido quebrada, quando
testavam o estratagema, e substituída por outra quase igual.
Vigiaria atentamente todas as estátuas enquanto êle e Slevyas pas-
savam por baixo. Seria fácil escapar se uma começasse a balançar. Deveria
puxar Slevyas, desviando-o do perigo, quando isto acontecesse? Era algo
sobre o que pensar.
Sua atenção inquieta fixou-se em seguida nos pórticos e pilares.
Os últimos, grossos e com quase três jardas de altura, colocados em in-
tervalos irregulares como se fossem de formas e ranhuras desiguais, pois
Rokkermas e Slaarg eram muito modernos e salientavam o aspecto inaca-
bado, fortuito e inesperado.
Entretanto, parecia a Fissif que havia uma intensificação de impre-
vistos, especialmente um pilar a mais sob os pórticos do que quando êle
passara por ali pela última vez. Não podia ter certeza de qual era o novo
pilar mas estava quase certo que havia um.
A galeria estava perto, agora. Fissif olhou de relance para a estátua
da direita e notou outras diferenças. Embora menor, parecia mais firme-
mente ereta e a carranca gravada no rosto cinza-escuro, não era propria-
mente de meditação filosófica mas de desprezo arrogante, consciente de
sua inteligência e vaidade.
Contudo, nenhuma das três estátuas tombou, enquanto êle e Sle-
vyas passavam sob o viaduto. Entretanto algo aconteceu a Fissif naquele
instante.
Um dos pilares piscou o olho para êle.
Gray Mouser fêz a volta no nicho da direita, saltou e segurou-se na
cornija, silenciosamente pulou para o telhado baixo e cruzou-o precisa-
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mente a tempo de ver os dois ladrões aparecerem em baixo.
Sem hesitação, saltou, o corpo reto como um dardo, as solas de
suas botas de pele de rato visando os omoplatas gordos do ladrão mais
baixo embora adiantando-se um pouco, levando em conta a jarda que lhe
faltava transpor enquanto Mouser impelia-se para êle.
No instante em que este pulou, o ladrão alto lançou um olhar por
cima dos ombros e sacou uma faca, não fazendo entretanto nenhum mo-
vimento para empurrar ou puxar Fissif para fora do caminho do projétil
humano que com velocidade vinha em sua direção.
Manobrou com mais rapidez do que alguém pudesse imaginar, Fis-
sif voltou-se e gritou fracamente:
— Slivikin!
As botas de pele de rato apanharam-no exatamente no ventre.
Era como aterrissar numa grande almofada. Desviando-se do ataque de
Slevyas, Mouser virou uma cambalhota para frente e como o crânio do
ladrão gordo batesse numa pedra com um pesado bong, voltou-se com a
espada na mão, pronto para golpear o ladrão alto.
Mas não houve necessidade. Slevyas, os olhos arregalados, estava
caindo também.
Um dos pilares lançara-se para a frente, arrastando um manto vo-
lumoso. Um grande capuz ao resvalar para trás descobriu um rosto jo-
vem emoldurado por longos cabelos. Musculosos braços emergiram das
compridas e largas mangas que tinham sido a parte superior do pilar. Ao
mesmo tempo em que um forte punho, na extremidade de um dos bra-
ços distribuiu a Slevyas um perigoso murro no queixo, deixando-o fora de
combate.
Fafhrd e Gray Mouser encararam-se por sobre os dois ladrões ca-
ídos inconscientemente, prontos para atacar, embora no momento ne-
nhum deles se movesse.
Fafhrd disse:
— Nossos motivos para estar aqui parecem idênticos.
— Parecem? Certamente devem ser! — Mouser respondeu brusca
e arrogantemente, observando seu novo adversário em potencial, que ti-
nha uma cabeça a mais de altura que o ladrão alto.
— O que disse?
— Eu disse: Parecem? Certamente que devem ser!
— Que educado de sua parte! — Fafhrd comentou em tom agra-
dável..
— Educado?— Mouser perguntou com suspeitas, apertando sua
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espada com mais força.
— Sim, em preocupar-se no auge da ação, com o que dizer exata-
mente — Fafhrd explicou.
Sem deixar Mouser fora do alcance de sua visão, olhou rapidamen-
te para baixo.
Seu olhar atento passava de uma sacola à outra dos ladrões caídos.
Então olhou para Mouser com um sorriso amplo e ingênuo.
— Metade? — sugeriu.
Mouser hesitou, embainhou sua espada e vociferou:
— Negócio fechado!
Ajoelhou-se abruptamente, os dedos na correia da bolsa de Fissif.
— Faça você o saque em Slivikin — indicou.
Era natural supor que ao final o ladrão gordo tivesse gritado o
nome de seu companheiro.
Sem prestar atenção para onde se ajoelhara, Fafhrd observou:
— Aquele... furão que estava Com eles, aonde foi?
— Furão? — Mouser respondeu brevemente. — Era um pequeno
bugio.
— Um bugio — Fafhrd ponderou. — É um macaquinho tropical,
não é? Bem. deve ser. Eu nunca estive no sul, mas tenho a impressão
que...
A silenciosa lança que naquele instante investia contra eles quase
os atingindo, na verdade não os surpreendeu. Ambos inconscientemente
a esperavam.
Os três bandidos caíram em cima deles em ataque conjugado, to-
dos com espadas assestadas para atacar, supondo que os dois assaltantes
estivessem armados no máximo com facas e fossem tão tímidos, em com-
bate, como em geral acontece com ladrões e contra-ladrões.
Entretanto, foram os bandidos que ficaram confusos quando, com
a velocidade de um relâmpago, própria da mocidade, Mouser e Fafhrd
saltaram, desembainharam terríveis e grandes espadas e, de costas um
para o outro, os enfrentaram.
Mouser defendendo-se, desviou-se um pouco de modo que o ata-
que do bandido, vindo da direita, passou raspando por seu lado esquerdo.
Imediatamente revidou o golpe. Seu adversário, recuando desesperada-
mente deu uma volta, defendendo-se do ataque. Com firmeza e vagar, a
ponta da longa e fina espada de Mouser desviou-se, devido à manobra,
com a delicadeza de uma princesa cortejando, então projetou-se para a
frente e um pouco para cima e entrou entre duas lâminas da armadura do
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bandido, entre duas costelas, e, atravessando o coração, saiu nas costas
como se tudo fosse um bolo macio.
Entrementes, Fafhrd, enfrentando os dois bandidos vindos da es-
querda, varreu fora suas rasteiras investidas com mais força, impedindo
seus golpes de defesa; então desembainhou a espada tão longa como a
de Mouser, mas mais pesada, de maneira que ela golpeou o pescoço de
seu adversário da direita, quase decapitando-o. Recuando com rapidez,
preparou um golpe para o outro.
Mas não foi preciso. Um estreito fio de aço ensangüentado, segui-
do por uma luva cinza e por um braço, brilhou trespassando de trás para
a frente o ultimo bandido, com idêntico golpe que Mouser usara com o
primeiro.
Os dois jovens limparam as espadas. Farhrd esfregou a palma da
mão direita no manto e estendeu-a. Mouser tirou a luva cinzenta da mão
direita e apertou a de Fafhrd. Sem trocar palavras, ajoelharam-se e termi-
naram de saquear os dois ladrões inconscientes, apanhando as bolsinhas
de jóias. Com uma toalha embebida em óleo e outra seca, Mouser limpou
cuidadosamente o rosto da mistura de graxa e fuligem com que o tinha
escurecido.
Após um olhar inquisidor na direção leste da parte de Mouser e um
aceno de cabeça de Fafhrd, caminharam rapidamente na mesma direção
em que iam antes Slevyas, Fissif e sua escolta.
Depois de um reconhecimento na Rua do Ouro, atravessaram-na e,
a um gesto convidativo de Fafhrd, continuaram a leste na Rua da Moeda.
— Minha mulher está na Lampreia Dourada — exclamou.
—Vamos apanhá-la e levá-la à minha casa para conhecer minha
pequena — sugeriu Mouser.
— Casa? — Fafhrd inquiriu polidamente.
—. Beco Escuro — Mouser explicou.
— Enguia Prateada?
— Atrás. Tomaremos algumas bebidas.
— Apanharei um jarro. Nunca é demais.
— É verdade. Concordo.
Fafhrd parou, novamente limpou a mão direita no manto e esten-
deu-a.
— Chamo-me Fafhrd.
De novo Mouser apertou-a.
— Gray Mouser — disse um tanto acintosamente, como se desa-
fiasse qualqurer um que escarnecesse de sua alcunha.
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— Gray Mouser, hem? — Fafhrd observou. — Bem, você matou um
par de ratos esta noite*.
— Isso é verdade — Mouser empertigou-se e jogou a cabeça para
trás. Então, fazendo um cômico trejeito com o nariz e a boca, admitiu:
— Bem, você pegaria seu segundo homem facilmente. Eu o roubei
de você para demonstrar minha destreza. Além disso, estava excitado.
Fafhrd deu uma risada.
— É a mim que você vem dizer isso? Como pensa que me sentia?
Uma vez mais Mouser fêz um trejeito com a boca. Que diabo tinha
este companheiro grandalhão que o desarmava de seu habitual sarcas-
mo?
Fafhrd perguntava-se o mesmo. Sempre desconfiava de homens
baixos, sabendo que sua altura despertaria ciúme imediato. Mas este ra-
pazinho inteligente era de algum modo uma exceção. Implorou a Kos que
Vlana gostasse dele.
Na esquina nordeste da Rua da Moeda e das Prostitutas, uma to-
cha trêmula, protegida por uma larga espiral dourada, lançava para o alto
um cone de luz na espessa e negra neblina noturna e outro cone, em
direção ao chão de pedras em frente à porta da taberna.
Iluminada pelo segundo cone de luz, caminhava Vlana, linda, num
vestido justo de veludo preto e meias vermelhas, tendo como únicos ador-
nos um punhal com cabo e bainha de prata e uma bolsa negra trabalhada
em prata, ambos num cinto preto liso. Fafhrd apresentou Gray Mouser,
que comportou-se com uma cortesia quase lisonjeira. Vlana estudou-o
com petulância e então esboçou um sorriso.
Fafhrd abriu sob a luz da tocha, a bolsa que tirara do ladrão alto.
Vlana examinou o conteúdo, estreitou-o nos seus braços e beijou-o sono-
ramente. Colocou então as jóias na bolsa de seu cinto. Após, disse:
— Olha, vou comprar um jarro. Conte a ela o que aconteceu, Mou-
ser.
Quando saiu da Lampreia Dourada, levava quatro jarros com o bra-
ço esquerdo e limpava os lábios com as costas da mão direita. Vlana fêz
uma carranca que êle respondeu com um trejeito. Mouser estalou os lá-
bios ao ver as garrafas. Continuaram a leste na Rua da Moeda.
Fafhrd percebeu que a carranca de Vlana era por algo mais do que
os jarros e a perspectiva de algazarras de homens estupidamente embria-

*O autor faz um trocadilho com o nome do personagem: Gray Mouser significa Rato
Cinzento. (N. do Trad.).

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gados. Mouser com muito tato seguiu à frente.
Quando sua figura parecia na densa neblina, um pouco mais que
uma bolha, Vlana sussurrou com aspereza:
— Tendo dois membros da Sociededade dos Ladrões fora de com-
bate, você não cortou suas gargantas?
— Matamos três bandidos — Fafhrd protestou, desculpando-se.
Minha disputa não é com o Sindicato dos Assassinos, mas com esta
abominável sociedade. Você me jurou que sempre que tivesse a oportu-
nidade.. .
— Vlana! Não poderia deixar Gray Mouser supor que sou um con-
tra-ladrão amador, consumido pela histeria e desejo de vingança.
— Bem, êle disse que teria cortado suas gargantas num piscar de
olhos, se soubesse que eu assim o desejava.
— Estava somente apoiando-a por cortesia.
— Talvez sim, talvez não. Mas você sabia e não o fêz.
— Vlana, cale-se.
A carranca transformou-se num olhar irado; então, de repente, ela
riu abertamente, contraiu-se num sorriso como se fosse gritar, controlou-
se e sorriu de maneira mais amável.
— Perdoe-me, querido — disse. — Algumas vezes você deve pen-
sar que estou ficando louca e às vezes eu mesma acredito.
— Bem, não — disse-lhe rapidamente. — Pense nas jóias que con-
seguimos e comporte-se com nossos novos amigos. Tome um pouco de
vinho e relaxe-se. Pretendo divertir-me esta noite. Eu o mereço.
Ela assentiu e apertou seu braço, confortante e sensata. Apressa-
ram-se para alcançar a fraca figura à frente.
Mouser, dobrando a esquina, conduziu-os numa meia quadra ao
norte, na Rua das Pechinchas, onde um caminho mais estreito ia a leste
novamente. A névoa preta parecia sólida.
— Beco Escuro — Mouser explicou.
Vlana disse:
— Escuro é fraco demais — uma palavra demasiado transparente
para o beco esta noite — com um riso perturbado onde ainda havia traços
de histeria e que terminou num acesso de tosse sufocante.
Disse ofegante:
— Maldita neblina de Lankhmar! Que inferno de cidade!
— Estamos nas proximidades do grande Pântano Salgado — Fafhrd
explicou. .
Em verdade tinha razão na observação. Com o Rio Hlal correndo
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entre o Pântano e o Mar Interior, os campos de trigo a sudoeste, irrigados
por canais alimentados pelo Hlal, e as inumeráveis fumaças, Lankhmar
tornava-se a presa fácil de nevoeiros e neblinas de fuligem.
Cerca de meio caminho da Rua do Carroceiro, na parte norte do
beco, uma taberna emergia da escuridão. Indicando-a, pendia do alto
uma mola em espiral de metal pálido, crestado pela fuligem.
Passaram por baixo dela e pela frente de uma porta com cortinas
de couro enegrecido, de onde se derramava barulho, luzes trêmulas de
tochas e cheiro de bebida. Logo além da Enguia Prateada, Mouser condu-
ziu-os através de uma passagem escura a leste. Tiveram que andar em fila
indiana, sentindo o caminho áspero, tijolos lodosos e enevoados.
— Cuidado com o atoleiro — preveniu Mouser — êle é fundo como
o Mar Exterior.
A passagem alargou-se. Refletia as luzes das tochas que se infiltra-
vam através da névoa escura, permitindo-lhes perceber à sua volta so-
mente vagos contornos.
Apertado logo atrás da Enguia Prateada, surgiu um prédio, som-
brio e frágil, de madeira escura e antiga e tijolos enegrecidos. Fracas luzes
amarelas brilhavam ao redor e atrás de três janelas gradeadas, no sótão
do quarto andar, sob o telhado esburacado de goteiras. Mais adiante ha-
via uma estreita travessa.
— Travessa dos Ossos — indicou-lhes Mouser.
Agora Vlana e Fafhrd poderiam ver uma estreita escadaria externa
de madeira, sem corrimão, íngreme, embora gasta, que conduzia ao sótão
iluminado. Mouser aliviou Fafhrd dos jarros e subiu carregando-os com
rapidez.
— Sigam-me quando eu chegar em cima — voltou-se dizendo. —
Penso que suportará seu peso, Fafhrd, mas é melhor um de cada vez.
Fafhrd empurrou gentilmente Vlana para diante. Ela subiu até
Mouser que agora permanecia em em frente a uma porta aberta, através
da qual fluía uma luz amarela perdendo-se rápida na noite brumosa. Re-
pousava a mão suavemente num grande e inútil lampião de ferro forjado,
fixo na pedra da parede externa. Curvou-se para o lado. Vlana entrou.
Fafhrd seguiu-os, colocando os pés o mais perto possível da pa-
rede, as mãos prontas para apoiar-se. A escada inteira rangeu agouren-
tamente e cada degrau cedeu um pouco, oprimido com o peso. Próximo
ao topo, um degrau cedeu com o estalo surdo de madeira podre. Com o
máximo cuidado dividiu seu peso, as mãos e os joelhos pelo maior núme-
ro de degraus que pudesse alcançar e praguejou.
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— Não se queixe, as garrafas estão salvas — disse Mouser alegre-
mente.
Fafhrd arrastou-se o resto do caminho e só levantou-se à entrada
da porta. Quando aí chegou, quase sufocou de surpresa.
Era como limpar o azinhavre de um anel de cobre barato, surgindo
um luminoso diamante de primeira categoria.
Ricas tapeçarias, algumas com bordados cintilantes de ouro e prata
cobriam as paredes, exceto as janelas, cujas venezianas eram douradas.
Tecidos semelhantes, porém escuros, escondiam o teto baixo, represen-
tando uma abóbada celeste e magnífica onde os salpicados de ouro e pra-
ta pareciam estrelas.
Espalhadas pela sala, uma grande quantidade de almofadas e me-
sas baixas, onde ardiam numerosas velas. Sobre estantes, contra as pa-
redes, havia uma grande reserva de velas enfileiradas cuidadosamente
como pequenos cepos, numerosos rolos de pergaminhos, jarros, garrafas
e caixas esmaltadas.
Um pequeno fogão de metal preto e com um braseiro ornamenta-
do, estava colocado em uma grande lareira. Ao lado do fogão, havia tam-
bém uma bem organizada pirâmide de tochas finas e resinosas, com as
pontas esfiapadas, acendedores e outras pirâmides de pequenos cepos e
rutilantes e negros carvões.
Num estrado baixo ao pé dai lareira havia um sofá revestido de
brocado dourado. Nele, estava sentada uma linda moça magra, pálida e
delicada, usando um vestido de grossa seda violeta, trabalhado em prata
e acinturado com uma corrente prateada. Grampos de prata com pontas
de ametistas prendiam seu cabelo negro no alto da cabeça, seus ombros
envoltos por um manto de pele de serpente, branco como a neve. Ela
inclinou-se para diante, com forçada graciosidade, estendendo a trêmula
e pequena mão branca em direção a Vlana, que se ajoelhou à sua fren-
te, e, então, gentilmente tomou-lhe a mão, curvando á cabeça sobre ela,
seus cabelos castanhos e lisos formando um dossel, e apertou-a contra
os lábios.
Fafhrd estava satisfeito de ver sua mulher representando apropria-
damente esta situação que, embora agradável, era absolutamente bizarra.
Olhando para a longa perna de Vlana, com meias vermelhas, es-
tendida para trás, pois ela ajoelhara-se sobre a outra, notou que o chão
estava todo atapetado — duas, três e até quatro camadas com espessos,
densos e bem tramados tapetes de vários matizes da mais fina qualidade,
importados das terras do Leste. Sem se dar conta seu polegar apontava
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para Gray Mouser.
— Você é o Ladrão de Tapetes! — exclamou. — Você é o Recru-
tador de Tapêtes! — e o Corsário das Velas! — continuou, referindo-se a
duas séries de roubos insolúveis que estavam na boca de toda Lahkhmar
quando êle e Vlana haviam chegado, há uma lua atrás.
Mouser deu de ombros, impassível, encarando Fafhrd; então re-
pentinamente fêz um trejeito, os olhos apertados piscaram e Mouser ir-
rompeu numa dança inesperada que o levou pela sala, gingando num tur-
bilhão até Fafhrd. Com destreza puxou o imenso manto de capuz e longas
mangas dos ombros encurvados de Fafhrd, estendendo-o, dobrando-o
cuidadosamente, colocando-o sob uma almofada.
A garota de violeta nervosamente bateu de leve com a mão livre
no brocado de ouro ao seu lado, onde Vlana sentou-se cuidadosamente,
não muito perto, e as duas mulheres conversaram em voz baixa, Vlana
tomou a liderança.
Mouser despiu sua capa de capus cinzenta e a colocou ao lado da
de Fafhrd. Então desafivelaram as espadas e Mouser colocou-as por cima
do manto e da capa que estavam dobrados.
Sem aquelas armas pesadas e os volumosos mantos, pareceram
repentinamente dois jovens, ambos com rostos claros e bem barbeados,
esbeltos, apesar dos protuberantes músculos dos braços e das pernas de
Fafhrd. Este, com longo cabelo vermelho-dourado caindo sobre os om-
bros de Mouser com o cabelo preto cortado em franja, o primeiro com
túnica de couro marrom trabalhada em fios de cobre, e o outro vestindo
uma jaqueta de seda cinza rüsticamente tecida.
Sorriram-se. A sensação de sua transformação em garotos, levou-
os subitamente a sorrir embaraçados. Mouser limpou a garganta e, in-
clinando-se um pouco, mas olhando para Fafhrd, estendeu o braço com os
dedos frouxamente abertos na direção do sofá dourado e disse com um
balbuceio preliminar, ainda que bastante polido:
— Fafhrd, meu bom amigo, permita-me apresentá-lo à minha prin-
cesa. Ivrian, minha querida, por favor receba Fafhrd afàvelmente, pois
esta noite lutamos frente a frente contra três e vencemos.
Fafhrd adiantou-se parando um pouco, a coroa de cabelos verme-
lho-dourado roçando a abôbada estrelada, e ajoelhou-se em frente de
Ivrian exatamente como Vlana tinha feito. A delgada mão estendida para
êle parecia firme agora, mas ainda se agitava com um tremor que desco-
briu logo que a tomou. Tocou-a como se ela fosse de sedosa teia branca
de aranha, somente roçando-a com os lábios e ainda a sentiu nervosa
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quando murmurou alguns cumprimentos.
Não sabia se Mouser estava tão ou mais nervoso que êle, implo-
rando com fervor que Ivrian não exagerasse em seu papel de princesa e
desprezasse seus convidados, ou desfalecesse em tremores ou lágrimas,
pois Fafhrd e Vlana eram literalmente os primeiros seres que Mouser
trouxera para o luxuoso ninho que criara para sua bem-amada aristocrata
— exceto os dois adoráveis pássaros que pulavam numa gaiola prateada,
pendurada no outro lado da lareira, em frente ao trono.
A despeito de sua astúcia e cinismo jamais ocorrera a Mouser que
era principalmente seu encanto e não a absurda ternura de Ivrian que a
estava transformando em boneca.
Mas agora, como Ivrian finalmente, sorrisse, Mouser relaxou-se
com alívio, trouxe duas taças e duas canecas de prata, selecionou cui-
dadosamente uma garrafa de vinho tinto, e então, com uma careta para
Fafhrd desarrolhou-a, em vez de um dos jarros que o Nortista trouxera,
encheu os quatro rutilantes recipientes e sorriu para todos.
Desta vez sem hesitação, brindou:
— Ao meu maior roubo em Lankhmar, que, queira ou não, devo
repartir a metade com — não pôde resistir ao impulso repentino — este
grande bárbaro cabeludo aqui presente! — E bebeu um quarto da sua
caneca, do agradável e ardente vinho adicionado de conhaque.
Fafhrd bebeu de um sorvo a metade, então retribuiu:
— Ao mais presumido, polido e educado rapazinho com quem já
me dignei a dividir uma pilhagem — bebeu de um trago o resto, e com
um amplo sorriso, mostrando os dentes brancos, estendeu a caneca vazia.
Mouser serviu-o novamente, encheu sua própria caneca, largou-a
para ir até Ivrian e derramou em seu regaço as gemas da bolsinha que
tinha roubado de Fissif. Elas brilharam em seu novo e invejável local como
uma pequena poça refletindo as cores do arco-íris.
Ivrian recuou trêmula, quase deixando-as cair, mas Vlana segurou
seu braço gentilmente, firmando-o. Vlana aproximou de Ivrian uma caixa
esmaltada de azul incrustada de prata, e as duas passaram as jóias do colo
de Ivrian para o interior de veludo azul da caixa. Então conversaram.
Fafhrd bebendo a segunda caneca em goles menores, relaxando-se
e começou a perceber o ambiente de modo mais profundo. O maravilho-
so deslumbramento da primeira visão desta sala majestosa, situada numa
zona de cortiço, desvaneceu-se e êle começou a notar a fraqueza e a po-
dridão sob a magnífica cobertura.
Pedaços de madeira pretos e podres apareciam por toda parte en-
22
tre as cortinas, desprendendo antigos e nauseantes odores. Todo o chão
cedia sob os tapetes chegando a um palmo no centro da sala. Filêtes de
neblina noturna entravam através das venezianas, formando pretos ara-
bescos evanescentes contra o dourado. As pedras da grande lareira ti-
nham sido esfregadas e envernizadas, embora grande parte da argamassa
tivesse caído; algumas estavam soltas, outras faltando completamente.
Mouser estivera preparando um fogo no fogão. Agora empurrou,
em todas as direções, o acendedor em chama amarela que acendera no
braseiro, bateu a portinhola preta, fechando-a sobre as chamas que su-
biam e voltou para a sala.
Como se tivesse lido os pensamentos de Fafhrd, apanhou diversos
cones de incenso, queimou suas pontas no braseiro e espalhou-as pela
sala em resplandescentes taças de bronze. Então calafetou as fendas mais
largas com pedaços de seda, apanhou novamente sua caneca de prata e,
por um momento, lançou a Fafhrd um olhar severo.
Em seguida, sorrindo, levantou a caneca para Fafhrd, que fêz o
mesmo. A necessidade de enchê-las novamente aproximou-se. Movendo
os lábios com dificuldade, Mouser explicou:
— O pai de Ivrian era um duque. Eu o matei. Um homem muito
cruel, também para com sua filha, embora sendo um duque, de modo que
Ivrian é completamente incapaz de prover-se a si mesma. Orgulho-me em
mantê-la em melhor situação do que seu pai lhe proporcionava com todos
os seus criados.
Fafhrd assentiu e disse amigavelmente:
— Com certeza você roubou também um encantador palacete.
Do divã Vlana chamou, com sua voz rouca de contralto:
— Gray Mouser, sua princesa gostaria de ouvir uma descrição da
aventura desta noite. Poderíamos ter mais vinho?
— Sim, por favor, Mouser — disse Ivrian.
Mouser olhou para Fafhrd, esperando o sinal de partida, e lançou-
se na estória. Mas primeiro, serviu-as de vinho. Não havia o suficiente
para suas taças, então abriu outro jarro e, depois de um momento de
hesitação, desarroIhou todos três, colocou um junto ao sofá, outro perto
de Fafhrd, agora estendido no tapete macio, e reservou um para si. Ivrian
olhou apreensiva para essa evidência de pesada bebedeira à vista, Vlana
cínica.
Mouser contou satisfatoriamente, a estória do contra-roubo, re-
presentando-a em parte, com - as mais artísticas imagens — o macaqui-
nho que antes de escapar subira no seu corpo e tentara arrancar-lhe os
23
olhos — e só foi interrompido duas vezes.
Quando dizia: — Então, com um silvo e um golpe, desembainhei
Escalpelo — Fafhrd observou:
— Oh! Então você apelida sua espada como a você mesmo?
Mouser levantou-se:
— Sim, e chamo meu punhal de Garra de Gato. Alguma objeção?
Parece-lhe infantilidade?
— Não, de maneira alguma. Chamo minha própria espada de Vara
Cinzenta. Por favor, continue.
E quando mencionou o animal de natureza indefinida que pulava
junto dos ladrões (e que atacara seus olhos). Ivrian empalideceu e disse
horrorizada:
— Mouser! Aquilo parece um demônio de bruxa!
— De feiticeiro — corrigiu Vlana. — aqueles vilões sem entranhas
da Sociedade não mantém relações com mulheres, exceto como instru-
mentos remunerados ou coagidos, de seus apetites. Mas Krovas, seu atual
rei, salienta-se por tomar todas as precauções, e deve, certamente, ter
um feiticeiro a seu serviço.
— Parece-me mais nrovável; isto me deixa angustiado de pavor —
Mouser concordou com um -gourento olhar de espanto e uma voz sinis-
tra, aceitando com avidez toda e qualquer atmosfera de encantamento
pela sua façanha.
Depois, as moças, com olhos briIhantes e ternos, os brindaram por
sua destreza e bravura. Mouser, fazendo uma reverência, os olhos cinti-
lantes, sorriu, então estendeu-se no chão com “um-olhar fatigado limpan-
do a fronte com um pano de seda, e sorveu um grande gole.
Após pedir a permissão de Vlana, Fafhrd contou as aventuras da
fuga de ambos da Esquina Fria — êle de seu clã, ela, de sua companhia
teatral — e de sua jornada para Lahkhmar, onde agora habitavam uma
casa de artistas perto da Praça dos Prazeres Noturnos, Ivrian abraçou-se a
Vlana e, arrepiada, ficou atenta às partes de feitiçaria do conto.
O único fato que êle propositalmente omitira dessa estória foi a
idéia fixa de monstruosa vingança de Vlana contra a Sociedade dos La-
drões que a tinham expulsado de Lankhmar e torturado seus cúmplices
até a morte quando ela tentava roubar, por livre iniciativa na cidade, antes
de se conhecerem. Naturalmente, também não mencionou sua própria
promessa — loucura, pensava agora — de ajudá-la nessa sangrenta aven-
tura.
Quando acabou e recebeu os aplausos, sentiu a garganta seca,
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apesar de acostumado à bebida, mas quando procurou molhá-la desco-
briu que a caneca e o jarro estavam vazios, embora não sentisse a menor
embriaguez — falando, expelira toda a bebida, pensou, um pouco do ál-
cool escapara em cada palavra ardente que dissera.
Mouser estava em situação semelhante, e também não estava em-
briagado — embora com tendência a pausas misteriosas e olhares vagos
para o infinito antes de responder perguntas ou fazer comentários. Suge-
riu, depois de um olhar absorto especialmente longo, que Fafhrd o acom-
panhasse até a Enguia enquanto adquirisse um novo suprimento.
— Mas ainda resta muito vinho em nosso jarro — Ivrian protestou.
— Ou ao menos um pouco — emendou.
Quando Vlana o sacudiu, pareceu-lhe vazio.
— Além disso, você tem aqui vinho de todas as qualidades.
— Não desta espécie, querida, e a primeira regra é nunca misturá-
las — Mouser explicou, sacudindo um dedo. — Senão torna-se nocivo, na
verdade, embriaga.
— Minha querida, disse Vlana, com simpatia, batendo no pulso de
Ivrian — em um dado momento, em qualquer festa que se preze, todos
os homens que o são em verdade, simplesmente, têm que sair. É extre-
mamente estúpido, mas de sua natureza e não pode ser evitado, acredite-
me.
— Mas Mouser, estou apavorada. O conto de Fafhrd aterrorizou-
me. O seu também — ouvirei este demônio arranhando as venezianas
depois que vocês saírem, sei que ouvirei.
— Queridíssíma — disse Mouser com um pequeno soluço — há
todo o Mar Interior, todo o Reino das Oito Cidades, e ainda todas as Mon-
tanhas Tortuosas com seus picos majestosos entre você e a Esquina Fria
de Fafhrd e seus tolos feiticeiros. Quanto aos demônios, ih! — nada mais
tem sido no mundo que repugnantes, característicos caprichos de velhas
bolorentas e velhos efeminados.
Vlana disse alegremente:
— Deixe esses tolos saírem, minha querida. Teremos a oportunida-
de de uma conversa particular, durante a qual os manteremos afastados
da embriaguez.
Como Ivrian deixara-se persuadir, Mouser e Fafhrd escaparam rapi-
damente, fechando a porta atrás deles, para impedir a entrada da neblina
noturna. As moças então, ouviram seus passos leves descendo a escada.
Enquanto esperavam que os quatro jarros fossem trazidos da ade-
ga da Enguia, os dois novos camaradas encomendaram uma caneca do
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mesmo vinho forte, e abrigaram-se no canto menos barulhento do longo
balcão da tumultuosa taberna. Habilmente, Mouser deu um pontapé num
rato que mostrava a cabeça e os ombros pretos no buraco de sua toca.
Depois de se terem cumprimentado entusiasticamente por suas
garotas, Fafhrd disse com desconfiança:
— Cá entre nós, você crê que sua doce Ivrian deva ter alguma ra-
zão em sua opinião de que a negra criaturinha que acompanhava Slivikin e
o outro ladrão da Sociedade era um demônio de feiticeiro, ou de qualquer
modo, um astuto animal de estimação de um bruxo treinado para infiltrar-
se e informar desgraças a seu amo ou a Krovas?
Mouser riu levemente.
— Você está vendo fantasmas — pequenas deformações inexplicá-
veis pela lógica — nada mais que isto, caro irmão bárbaro, se me permi-
te falar assim. Como poderia apresentar um útil relatório? Não creio em
animais que falam — exceto papagaios e tais pássaros, que somente...
papagueiam.
— Alô! Você aí atrás do balcão! Onde estão meus jarros? Será que
os ratos comeram o menino que foi buscá-los há dias? Ou simplesmente
morreu de fome procurando na adega? Bem, diga-lhe para andar mais
ligeiro e sirva-nos novamente.
— Não, Fafhrd, mesmo supondo ser o animal direta ou indireta-
mente uma criatura de Krovas, e que tivesse voltado correndo à Casa dos
Ladrões depois de nossa briga, o que lhe poderia dizer? Somente que algo
fracassara no roubo a Jengao.
Fafhrd franziu as sobrancelhas e resmungou obstinadamente:
— Êsse covarde peludo poderia, entretanto, transmitir de algum
modo nosso aspecto aos mestres da Sociedade, que poderiam reconhe-
cer-nos, perseguir-nos e atacar-nos em nossas casas.
— Meu caro amigo — Mouser disse pesarosamente — mais uma
vez imploro sua indulgência, temo que este potente vinho esteja alteran-
do o seu juízo. Se a Sociedade soubesse quem somos ou onde moramos,
teria estado sordidamente em nosso encalço, não há dias e semanas, mas
há meses atrás. Ou então presume-se que você desconheça a pena da So-
ciedade para ladrões independentes dentro dos muros de Lankhmar, não
é nada menos que a morte, depois de torturas, caso conseguir sobreviver.
— Sei tudo sobre isto, e minha situação é ainda pior que a sua —
Fafhrd retrucou — e depois de pedir segredo a Mouser, contou-lhe a estó-
ria da vendetta de Vlana contra a Sociedade e seus sérios sonhos mortais
de uma vingança geral.
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No decorrer da estória, os jarros chegaram da adega, entretanto,
Mouser pedia que enchessem novamente suas canecas de barro:
Fafhrd concluiu:
— Então, em conseqüência de uma promessa feita por um rapaz
enfatuado e ignorante ao sul do Deserto Frio, sou agora um homem sen-
sato — bem, em outras ocasiões — constantemente solicitado a combater
um poder tão grande como o dos domínios de Lankhmar, pois como você
deve saber, a Sociedade tem filiais em todas as outras cidades e capitais
deste país. Amo Vlana profundamente e ela é uma ladraiexperiente, mas
com referência a este assunto, é maníaca, com um firme nó no cérebro,
que nem a lógica nem a persuação conseguem afrouxar.
— Por certo seria loucura assaltar diretamente a Sociedade, nisso
sua sabedoria é perfeita — comentou Mouser. — Se você hão pode per-
suadir sua adorável garota a afastar-se dessa idéia louca, então você deve
recusar firmemente até mesmo sua menor súplica nesse sentido.
— Certamente que devo — Fafhrd concordou com grande ênfase
e convicção — tenho sido um idiota preocupando-me com a Sociedade.
Naturalmente, se eles me pegassem, de qualquer maneira me matariam
como assaltante e ladrão por conta própria. Mas assaltar ia Sociedade
direta e audaciosamente, matar um ladrão associado, sem necessidade
— verdadeira loucura!
— Você não tem sido somente um idiota bêbado e tolo, você esta-
ria sem dúvida rescendendo no máximo há três noites, do pior dos males,
a morte. A maliciosos ataques a sua pessoa, a golpes diretos à organiza-
ção, a Sociedade retribui dez vezes mais severamente do que a outras
quebras de regulamento e a independência inclusive. Então dê o mínimo
de atenção à Vlana neste assunto.
— Concordo! — disse Fafhrd em voz alta, apertando a mão mus-
culosa de Mouser com força quase esmagadora.
— Agora deveríamos voltar para a companhia das moças — disse
Mouser.
— Uma dose mais, enquanto acertamos a conta — Ei, rapaz!
— De acordo.
Vlana e Ivrian, que conversavam entretidas e animadamente, as-
sustaram-se com o ruído das fortes pisadas subindo a escada. Uma corrida
de animais antediluvianos não poderia ter feito mais barulho. Os estalos
e os rangidos eram extrordinários e ouviam-se duas passadas distintas. A
porta escancarou-se e seus dois homens precipitaram-se através da nebli-
na em forma de um grande cogumelo, cuja haste negra fora nitidamente
27
arrancada com a batida violenta da porta.
— Disse-lhe que voltaríamos num instante — Mouser piscou a-
legremente à Ivrian, enquanto Fafhrd entrava com largas passadas, não se
importando com os estalos do chão, gritando:
— Querida, senti muitas saudades de você — e, levantando Vlana
a despeito de seus protestos e empurrões, beijou-a e abraçou-a sonora-
mente antes de colocá-la de volta no divã.
Estranhamente, era Ivrian que parecia zangada com Fafhrd, em vez
de Vlana, que sorria com ternura e deslumbramento.
— Fafhrd, senhor — disse ela com atrevimento, os pequenos pu-
nhos colocados nos quadris estreitos, o queixo fino erguido, os olhos pre-
tos flamejando — minha querida Vlana esteve me contando das inexpri-
míveis atrocidades que a Sociedade dos Ladrões fêz a ela e a seus mais
queridos amigos. Perdoe-me a franqueza de falar com quem conheço há
tão pouco, mas penso ser quase inumano de sua parte recusar-lhe a jus-
ta vingança que deseja e merece plenamente. Serve para você também,
Mouser, que se gabou a Vlana sobre o que você teria feito se soubesse,
mas sua intenção era de vazia bajulação. Você, que em situação seme-
lhante não teve escrúpulos em matar meu próprio pai!
Fafhrd percebeu que enquanto êle e Mouser bebiam ociosamente
na Enguia, Vlana relatara a Ivrian de maneira duvidosa e colorida suas
queixas contra a Sociedade, ativando impiedosamente românticas simpa-
tias e um alto conceito de honra cavalheiresca na mente teórica da moça
ingênua. Notava, também, que Ivrian estava um pouco mais do que ligei-
ramente embriagada. Um frasco de vinho tinto do longínquo Kiraay, quase
vazio, encontrava-se na mesa baixa, perto do divã.
Como se não soubesse o que fazer, estendeu suas grandes mãos
desamparadamente, inclinou a cabeça mais do que o teto baixo obrigava,
sob o olhar penetrante de Ivrian, agora reforçado pelo de Vlana. Afinal de
contas elas tinham razão. Êle tinha prometido. Foi Mouser o primeiro que
tentou refutar.
— Venha cá, queridinha — exclamou suavemente, dançando pela
sala, calafetando outras fendas para impedir a entrada da espessa neblina
noturna, atiçando e alimentando o fogo no aquecedor — e você também,
bela senhora Vlana. No último mês Fafhrd, com seus assaltos, tem atingi-
do a Sociedade dos Ladrões ferindo-a onde ela mais sente em sua bolsa.
Venham, bebamos todos.
Desarrolhou um dos jarros novos com estouro e precipitou-se para
encher as taças de prata e as canecas.
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— Uma vingança de mercador — retrucou Ivrian com escárnio,
nem um pouco apaziguada, mais zangada ainda. — Você e Fafhrd deve-
riam ao menos trazer à Vlana a cabeça de Krovas!
— O que Vlana faria com ela? para que serviria senão para man-
char os tapetes? — Mouser inquiria lamentosamente, enquanto Fafhrd,
finalmente, recuperando sua sabedoria, ajoelhou-se e disse calmamente:
— Respeitadíssima Sra. Ivrian, é verdade que prometi solenemente
à minha amada Vlana que a auxiliaria em sua vingança, mas se Mouser e
eu trouxéssemos à Vlana a cabeça de Krovas, ela e eu teríamos de sumir
de Lankhmar no mesmo instante, pois teríamos todos os homens contra
nós. Quanto a você, certamente perderia este formoso reino que Mouser
criou pelo seu amor, e ambos teriam de fugir como mendigos pelo resto
de suas vidas.
Enquanto Fafhrd falava, Ivrian arrebatou sua taça recém-servida e
bebeu um trago. Agora permanecia ereta como um soldado, o rosto páli-
do e ardente, e disse de maneira severa:
— Você avalia as conseqüências! Você me fala de coisas — indi-
cando o esplendor que a cercava — simples bens materiais, ainda que
custosos — quando a honra está em jogo. Você deu a Vlana a sua palavra.
Estará perdida toda a dignidade de cavalheiro?
Fafhrd encolheu os ombros de novo, contorceu-se por dentro e be-
beu, pouco à vontade, de sua caneca de prata.
Com maestria, Vlana tentou habilmente conduzir Ivrian até seu as-
sento dourado.
— Calma, querida — pediu — você falou nobremente por mim e
por minha causa; acredite-me, estou agradecidíssima. Suas palavras re-
viveram em mim sentimentos nobres e puros, mortos todos estes anos.
Mas de todos nós aqui, só você é uma verdaderia aristocrata em harmo-
nia com os mais altos padrões. Nós outros não passamos de três ladrões.
Será surpreendente que algum de nós coloque a segurança acima da hon-
ra e da palavra empenhada e, mais prudentemente, evite arriscar nossas
vidas? Sim, somos três ladrões e fui vencida. Por favor, não fale mais em
honra e arrebatamento, em bravura destemida, mas sente-se e...
— Você quer dizer que ambos estão com medo de desafiar a Socie-
dade dos Ladrões, não ? — disse Ivrian, os olhos abertos e o rosto crispa-
do pelo desgosto. — Sempre pensei que meu Mouser fosse em primeiro
lugar nobre e depois ladrão. Roubar não é nada. Meu pai vivia de roubos
cruéis contra ricos viajantes e vizinhos menos poderosos, ainda assim era
um aristocrata. Oh! vocês são covardes, ambos! Poltrões! — terminou, fi-
29
xando os olhos de desprezo, primeiro em Mouser, em seguida em Fafhrd.
O último não pôde sustentar o olhar por muito tempo. Levantou-se
de um salto, o rosto vermelho, os punhos apertados, despreocupado com
o ruído de sua caneca caindo ao chão e do estalo de mau agouro que sua
ação repentina produziu no soalho vergado.
— Não sou um covarde! — gritou. — Desafiarei a Casa dos Ladrões
e trarei a cabeça de Krovas para você e jogá-la-ei sangrando aos pés de
Vlana. Juro pela minha espada Vara Cinzenta aqui ao meu lado!
Levou a mão ao quadril esquerdo, mas não encontrando nada mais
que sua túnica, teve que se contentar em apontar com o braço trêmulo
para a espada embainhada que estava sob o manto cuidadosamente do-
brado — então apanhou a caneca, encheu-a até as bordas e bebeu até o
fim.
Gray Mouser começou a rir em alta, divertida e estrepidosa gar-
galhada. Todos fitaram-no com espanto. Começou a dançar ao lado de
Fafhrd e ainda sorrindo amplamente perguntou:
— Por que não? Quem fala em temer a Sociedade dos Ladrões?
Quem se transtorna com a perspectiva dessa façanha fácil e ridícula,
quando todos sabemos que todos eles, até mesmo Krovas e sua facção
regulamentada, não passam de pigmeus em argúcia e destreza, compara-
dos a mim ou a Fafhrd? Ocorreu-me agora um esquema admiràvelmente
simples e seguro para penetrar na Casa dos Ladrões em todas as suas fres-
tas e cubículos. Fafhrd e eu levá-lo-emos a efeito imediatamente. Você
está comigo, Nortista?
— Naturalmente que sim — respondeu Fafhrd com grosseria, ao
mesmo tempo indagando-se frenèticamente que loucura afligira seu pe-
queno companheiro.
— Dê-me algum tempo para reunir o material necessário e saire-
mos — gritou Mouser. Puxou de uma estante um saco resistente, então
correndo para lá e para cá, jogou para dentro um rolo de cordas e atadu-
ras, jarros de óleo, pomada e ungüento e o outras ninharias.
— Mas você não pode ir esta noite — protestou Ivrian, repentina-
mente pálida e com voz incerta. — Estão ambos... sem condições.
— Estão ambos embriagados — disse Vlana com aspereza. — To-
dos embriagados, e desta maneira não conseguirão nada na Casa dos La-
drões, exceto a morte. Fafhrd! Controle-se!
— Oh não — Fafhrd disse-lhe enquanto afivelava a espada. — Você
queria a cabeça de Krovas lançada a seus pés numa grande possa de san-
gue e é o que vai receber, ou isso ou nada.
30
— Calma, Fafhrd — Mouser interveio, parando de repente, e fe-
chou firmemente a boca do saco, puxando suas tiras.
— E devagar você,também, Sra. Vlana, e minha querida princesa.
Tenciono executar esta noite apenas uma expedição de patrulha. Não cor-
reremos riscos, somente obteremos a informação necessária para plane-
jar o golpe mortal amanhã ou depois. Então nada de cabeças cortadas ou
qualquer violência esta noite, Fafhrd, entendeu? O que quer que suceda,
observar é a palavra. Vista o seu manto de capuz.
Fafhrd deu de ombros, concordou e obedeceu.
Ivrian parecia um pouco aliviada. Vlana também, contudo disse:
— De qualquer modo estão ambos embriagados.
— Tudo vai dar certo! — Mouser assegurou-lhe com um sorriso
louco. — O álcool pode retardar a espada de um homem e abrandar um
pouco seus golpes, mas deixa suas idéias ardentes, inflama a imaginação,
e são estas as qualidades de que precisaremos esta noite.
Vlana olhou-o indecisa.
Aproveitando-se da confabulação, Fafhrd, tranqüilo, mas rapida-
mente, preparou-se para encher uma vez mais sua caneca e a de Mou-
ser, mas Vlana, notando, isso, lançou-lhe um olhar tão penetrante que
êle depositou as canecas e o jarro destampado, tão ligeiro que seu manto
esvoaçou.
Mouser colocou o saco nos ombros e abriu a porta com violência.
Com um abano casual às moças, em silêncio, Fafhrd saiu para o pequeno
alpendre. A neblina noturna estava tão espessa que quase não se podia
avistá-lo. Mouser acenou quatro dedos a Ivrian e seguiu Fafhrd.
— Que a boa sorte os acompanhe — gritou Vlana cordialmente.
— Oh, tenha cuidado, Mouser — murmurou. Ivrian.
Mouser, a figura delgada contra o vulto de Fafhrd, fechou a porta
em silêncio.
Automaticamente as moças se abraçaram, esperando os inevitá-
veis estalos e gemidos da escada. Demorava e demorava. A neblina notur-
na que entrava na sala já se dissipara e o silêncio continuava total.
— O que podem eles estar fazendo? —- murmurou Ivrian. — Pla-
nejando seu rumo?
Vlana, impaciente, sacudiu a cabeça, então desembaraçando-se,
foi até a porta na ponta dos pés, abriu-a, desceu com cuidado alguns de-
graus que estalavam dolorosamente e voltou, fechando a porta atrás de
si.
— Foram-se — disse admirada.
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— Estou assustada — murmurou Ivrian.
Atravessou rapidamente a sala e abraçou a moça mais alta.
Vlana estreitou-a, e logo desvencilhou um braço para correr os três
pesados ferrolhos da porta.
Na Travessa dos Ossos, Mouser recolocou em sua bolsa a linha que
amarrara ao gancho da lâmpada e pela qual eles tinham descido. Sugeriu:
— Que tal pararmos na Enguia Prateada?
— Você está falando sério? Pararmos na Enguia Prateada e depois
dizer às garotas que estivemos na Casa dos Ladrões? — perguntou Fafhrd.
— Oh! não — Mouser protestou — mas você não conseguiu seu
trago de despedida e eu também não.
Com um sorriso velhaco, Fafhrd tirou de baixo do manto dois jarros
cheios.
— Passei a mão neles, como estavam, quando depositei as cane-
cas. Vlana viu muito, mas não tudo.
— Você é prevenido, camarada perspicaz — disse Mouser com ad-
miração. — Orgulho-me em chamá-lo de camarada.
Cada um abriu um jarro e bebeu um gole sequiosamente. Sob a
indicação de Mouser, dirigiram-se para oeste, mudando de rumo e tro-
peçando um pouco, então entraram a norte numa travessa ainda mais
estreita e fétida.
— Beco da Peste — disse Mouser.
Depois de diversas olhadelas e espreitadas preliminares, cruzaram
rápidos e cambaleantes a ampla e vazia Rua da Astúcia e entraram nova-
mente no Beco da Peste. Inesperadamente, o beco tornava-se um pouco
mais claro. Olhando para cima viram estrelas. No entanto, nenhum vento
soprava do norte. O ar estava mortalmente parado.
Embriagados e preocupados com seu plano e a simples locomoção,
não olharam para trás. Lá, a neblina noturna estava espessa como nun-
ca. Um vôo circular de corvos noturnos veria as partículas convergindo
de todas as partes de Lankhmar e em rápidos e escuros regatos e rios,
acumulando-se, redemoinhando, correndo em espirais, a escura e enfu-
maçada essência de Lankhmar oriunda dos ferretes, braseiros, fogueiras
e fogos de cozinha e de aquecedores, fornos, fornalhas, cervejarias, des-
tilarias, incineradores de lixo, vapores de alquimistas e dos antros de fei-
ticeiros, crematórios, montes de carvões em brasa, todos estes e muito
mais... convergindo determinadamente sobre o Beco Escuro, e particular-
mente sobre a Enguia Prateada e a frágil casa atrás dela. Quanto mais se
aproximavam deste ponto, mais compacta tornava-se a neblina, fiapos em
32
turbilhão e trapos em espirais prendiam-se como teias pretas nos cantos
ásperos das pedras e na irregular superfície dos tijolos.
Mas Mouser e Fafhrd só tinham exclamações de branda e muda
admiração para as estrelas e, ziguezagueando cautelosamente, atravessa-
ram a Rua dos Pensadores, chamada Avenida dos Ateístas pelos moralis-
tas, continuando pelo Beco da Peste até a bifurcação.
Mouser escolheu o caminho da esquerda que se dirigia para no-
roeste.
— Travessa da Morte. Depois de duas curvas, a Rua das Pechinchas
surgiu cerca de trinta passos à frente. Mouser parou imediatamente e se-
gurou Fafhrd. Via-se claramente, no outro lado da Rua das Pechinchas, a
entrada ampla, baixa e aberta da Casa dos Ladrões, construída de sujos
blocos de pedra. Dois degraus esburacados por séculos de uso levavam
até ela. De dentro suportes com tochas derramavam luzes amarelo-ala-
ranjado. Não havia porteiro ou guarda à vista, nem mesmo um cão de
vigia numa corrente. O efeito era agourento.
— Agora, como conseguiremos entrar neste maldito lugar? — per-
guntou Fafhrd num sussurro louco. — Esta entrada cheira a armadilha.
Por fim, Mouser respondeu com desdém:
— Por quê? — Entraremos direto por esta entrada que você teme.
— Franziu as sobrancelhas. — Apronte-se, mexa-se. Venha, vamos nos
preparar.
Enquanto voltava, arrastando o cético e carrancudo Fafhrd pela
Travessa da Morte até que toda a Rua das Pechinchas desaparecesse de
vista, explicava:
— Passaremos por mendigos, membros da sua Sociedade, que
nada mais é do que um ramo da Sociedade dos Ladrões e que informa
ao Chefe dos Mendigos, na Casa dos Ladrões. Seremos membros novos,
que saíram durante o dia, de modo que não é provável que o Chefe dos
Mendigos Noturnos nos reconheça.
— Mas não temos aparência de mendigos — protestou Fafhrd. —
Os mendigos têm chagas horríveis e são aleijados.
— É isso exatamente o que vou providenciar agora — riu-se Mou-
ser puxando Escalpelo.
Ignorando a hesitação e o olhar receoso de Fafhrd, Mouser olhou
atento e confuso para a longa e fina barra de aço que desembainhara;
então, com um alegre assentamento, desprendeu do cinto a bainha de
pele de rato do Escalpelo, embainhou a espada rapidamente e enrolou-a
toda em espirais, incluindo o cabo, com a larga faixa do rolo de ataduras
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tirado do saco.
— Eis — disse, amarrando as pontas da faixa. — Agora tenho uma
bengala contudente.
— O que é isto? — Fafhrd. — E por quê?
Mouser colocou um trapo preto e fino por sobre os olhos e amar-
rou-o firmemente atrás da cabeça.
— Porque serei cego, eis a razão.
Deu alguns passos cambaleantes, batendo nos seixos à frente com
a espada enrolada — segurando-a pelo guarda-mão, de tal modo que a
alça e o punho ficaram escondidos pelas mangas — e tateando à frente
com a outra mão.
— Que tal lhe parece, bem? — perguntou a Fafhrd enquanto se
virava.
— Parece-me, perfeito. Morcego cego!
— Oh! Não se aborreça, Fafhrd — o pano é de gaze, posso enxergar
através dele perfeitamente bem. Além disso, não preciso convencer nin-
guém na Casa dos Ladrões de que sou realmente cego. Muitos mendigos
da Sociedade fingem ser cegos, como você deve saber. Agora, o que fazer
com você? Não poderá ser cego também — óbvio demais — poderia pro-
vocar suspeitas. — Desarrolhou o jarro e sugou inspiração. Fafhrd imitou
o seu gesto, em princípio.
— Encontrei! Fafhrd, firme-se em sua perna direita e dobre a es-
querda para trás. Segure-se! — não caia em cima de mim! Avante! Segure-
se em meu ombro. Assim está bem. Agora, mantenha o pé esquerdo mais
alto. Disfarçaremos sua espada como a minha, como uma muleta — é
mais grossa e ficará bem. Você também pode se firmar com a outra mão
em meu ombro, enquanto pula — o coxo conduzindo o cego. Mas, mais
alto com este pé esquerdo! Não, êle não deve escorregar — terei que
amarrá-lo. Mas, primeiro, desprenda a bainha.
Em seguida, Mouser transformava Vara Cinzenta com a bainha,
como fizera com Escalpelo e amarrava o tornozelo esquerdo de Fafhrd à
coxa, puxando a corda brutalmente, ainda que os nervos de Fafhrd, ver-
melhos o entorpecidos, mal o registrassem. Equilibrando-se com a muleta
de aço enquanto Mouser trabalhava, bebeu com grandes goles e delibe-
rou profundamente.
Por mais brilhante que fosse o plano de Mouser, parecia que se
prejudicariam com êle.
— Mouser — disse — não sei se estou satisfeito com as espadas
amarradas, assim não poderemos puxá-las numa emergência.
34
— Podemos ainda usá-las como cacetes — retrucou Mouser, a res-
piração sibilando entre os dentes enquanto esticava firme o último nó.
— Além disso, teremos nossas facas. Aliás, vire seu cinto para que a faca
fique nas costas, então o manto a esconderá, seguramente. Farei o mes-
mo com Garra de Gato. Mendigos não usam punhais, ao menos à mostra.
Pare de beber agora, você já bebeu demais. Preciso de dois tragos mais
para alcançar minha melhor forma.
— Não sei se gostarei de entrar maneando neste antro de assassi-
nos. Posso pular espantosamente ligeiro, é verdade, mas não tão depres-
sa quanto posso correr. É realmente compreensível, não acha?
— Você pode se livrar num instante — falou Mouser sibilando, com
um toque de impaciência e irritação. — Você não está querendo fazer o
menor sacrifício, por amor à arte?
— Oh! Muito bem — disse Fafhrd, esvaziando seu jarro e jogando-
o para o lado. — Sim, naturalmente que quero.
— Sua compleição é vigorosa demais — disse Mouser, inspecio-
nando-o criticamente. Retocou o rosto e as mãos de Fafhrd com graxa
cinza-pálido; então salientou as rugas com cinza-escuro.
— E seus trajes estão limpos demais.
Escavou poeira de entre os seixos e sujou o manto de Fafhrd, de-
pois tentou rasgá-lo, mas o pano resistiu. Deu de ombros e meteu o saco
vazio no cinto.
— Agora é sua vez — observou Fafhrd, e agachou-se em sua perna
direita, pegou uma boa quantidade de sujeira. Levantou-se com esforço, e
limpou a mão na capa de Mouser e na jaqueta de seda cinza.
O homenzinho blasfemou, mas — conformidade dramática — Fa-
fhrd lembrou-o. — Agora venha, enquanto nossos ânimos e nossa irrita-
ção ainda estão no auge. — Agarrando-se nos ombros de Mouser, impeliu-
se rapidamente pela Rua das Pechinchas, apoiando sua espada enrolada
bem à frente, entre os seixos, dando saltos vigorosos.
— Devagar, idiota — Mouser gritou, não muito alto, deslizando
quase tão veloz quanto um patinador equilibrando-se, enquanto batia sua
bengala (espada) furiosamente:
— Presume-se que um aleijado seja fraco, isto é que atrai a sim-
patia.
Fafhrd concordou sabiamente e andou um pouco mais devagar. A
entrada vazia e agourenta aparecia aos poucos, de novo. Mouser inclinou
seu jarro para beber todo o vinho, sorveu-o demoradamente e apoiou-
se estonteado. Fafhrd apanhou o jarro e, esgotando-o, jogou-o para trás,
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despedaçando-o ruidosamente .
Arrastaram-se, aos pulos, para o outro lado da Rua das Pechinchas,
subiram os degraus gastos e, através da entrada, passaram pelo muro ex-
cepcionalmente espesso. À frente, havia um corredor longo e reto, de teto
alto, terminando em escadas, iluminado pela claridade que se infiltrava
através das portas e pelas chamadas tochas nas paredes, porém vazio em
toda a sua extensão.
Tinham acabado de passar pela entrada quando o fio do aço arre-
piou-lhe o pescoço e picou-lhes o ombro. Do alto, duas vozes ordenaram
em uníssono: — Parem!
Embora excitados — e estontea-dos — pelo vinho forte, ambos
tiveram a suficiente lucidez de se imobilizarem, e então, muito cautelosa-
mente, olharam para cima.
Dois rostos esqueléticos, cheios de cicatrizes, excepcionalmente
feios, emoldurados por cabelos pretos presos por uma faixa de pano es-
palhafatosa, olhavam para eles de um grande e profundo nicho bem em
cima da entrada. Dois braços musculosos e curvos empurraram as espa-
das que ainda os espetavam.
— Saíram com o grupo dos mendigos do meio-dia, hem? — ob-
servou um deles. — Bem, será melhor que tenham uma boa coleta para
justificar a volta tardia. O Chefe dos Mendigos Noturnos está de licença
na Rua das Prostitutas. Apresentem-se a Krovas. Meu Deus, vocês cheiram
mal! É melhor limparem-se primeiro ou Krovas os jogará num banho de
vapor fervendo. Andem!
Fafhrd e Mouser arrastaram-se mancando para frente, da maneira
mais autêntica possível. Um guarda sentinela gritou atrás deles:
— Relaxem-se, meninos! Aqui não precisam fingir.
— A prática faz o mestre — respondeu Mouser com voz trêmula.
As pontas dos dedos de Fafhrd cutucaram o ombro de Mouser,
advertindo-o. Caminharam um pouco mais naturalmente, tanto quanto a
perna atada de Fafhrd o permitisse. De fato, pensou Fafhrd, Kos dos Des-
tinos parecia estar conduzindo-o diretamente a Krovas e talvez cabeças
cortadas fossem a ordem da noite. Agora começaram a ouvir vozes, na
maioria ásperas e entrecortadas, e outros ruídos.
Passaram por outras entradas nas quais desejaram deter-se, em-
bora o máximo que ousaram foi diminuir um pouco mais a marcha.
Muito interessantes eram algumas daquelas atividades. Numa
sala, jovens rapazes estavam sendo treinados para bater carteiras e abrir
bolsas. Abordavam um instrutor pelas costas e, se êle ouvisse o ruído de
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pés descalços ou sentisse o toque da mão batendo a carteira — ou, pior,
ouvisse o tinido das falsas moedas de chumbo ao caírem — aquele rapaz
seria espancado.
Em uma segunda sala, ladrões estudantes mais velhos faziam ex-
periências de como arrombar fechaduras. Um grupo assistia às aulas de
um velho respeitável e de mãos encardidas que desmontava uma fecha-
dura mais complexa, peça por peça.
Numa terceira sala, os ladrões comiam em mesas compridas. Os
odores eram tentadores, mesmo para os homens embriagados. A Socie-
dade tratava bem seus membros.
Numa quarta, o piso era parcialmente acolchoado; ali eram treina-
dos a fugir, trapacear, saltar, dar cambalhotas e, desta maneira, despistar
as perseguições. Uma voz como a de um primeiro sargento rosnou:
— Não, não, não! Vocês não poderiam escapar nem de uma avó
aleijada. Eu disse abaixar-se, não ajoelhar-se em adoração a Arth. Agora
desta vez...
Nesse meio tempo, Mouser e Fafhrd estavam a meio caminho do
topo da escada, Fafhrd pulando com esforço, agarrando-se no corrimão e
na espada enfaixada.
O segundo andar assemelhava-se ao primeiro, embora tão sun-
tuoso quanto o outro era simples. Pelo longo corredor alternavam-se
lâmpadas e potes de incenso ornamentados com filigrana, pendentes do
teto, difundindo uma luz suave e um odor picante. As paredes eram rica-
mente cobertas, o chão espêssamente atapetado. Contudo, estava vazio
também e, além disso, completamente silencioso. Após trocarem-se um
olhar, seguiram adiante corajosamente.
A primeira porta, escancarada, mostrava uma sala desabitada,
cheia de cabides com trajes ricos e simples, impecáveis e imundos, tam-
bém suportes com perucas, estantes com barbas e coisas deste gênero.
Uma sala de disfarces, evidentemente.
Mouser entrou e saiu rapidamente a fim de apanhar um grande
frasco verde sobre a mesa mais próxima. Destampou-o e cheirou-o. Um
odor forte de gardência, podre e adocicado, opôs-se aos vapores do vinho
que impregnavam seu nariz. Mouser salpicou seu rosto e o de Fafhrd com
este duvidoso perfume.
— Antídoto contra sujeira — explicou com a empáfia de um médi-
co, tampando o frasco.
— Não quero ser ludibriado por Krovas. Não, não. não.
Dois vultos apareceram no fim do corredor e dirigiram-se a eles.
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Mouser escondeu o frasco sob seu manto, apertando-o contra o corpo
com o braço, e seguiram corajosamente em frente.
As próximas três entradas, pelas quais passaram, estavam fecha-
das por pesadas portas. Perto da quinta entrada, os dois vultos que se
aproximavam de braços dados, tornaram-se nítidos. Suas roupas eram de
nobres, mas seus rostos de ladrões. Olhavam com desagrado, indignação
e suspeita para Mouser e Fafhrd.
Neste exato momento, de algum lugar entre os dois pares, uma voz
começou a falar numa língua estranha, usando o tom rápido e monótono
que os padres empregam nos sermões de rotina, ou alguns feiticeiros nas
suas magias.
Os dois ladrões ricamente vestidos detiveram-se no sétimo vão e
olharam para dentro. Interromperam sua caminhada. Os pescoços esti-
cados, os olhos arregalados. Empalideceram. Então, de repente, avança-
ram rapidamente quase correndo, e passaram por Fafhrd e Mouser como
se estes fossem apenas peças de mobiliário. A voz encantada retumbava
continuamente.
A quinta entrada estava fechada, mas a sexta aberta. Mouser olhou
de esguelha para dentro, o nariz esbarrando de leve no umbral. Deu um
passo adiante e olhou atentamente o interior com expressão fascinada,
empurrando para a testa o trapo preto para poder enxergar melhor. Fa-
fhrd juntou-se a êle.
Era uma sala grande, vazia do que possa ser chamado de vida hu-
mana e animal, mas abarrotada dos mais interessantes objetos. De certa
altura para cima, toda a parede oposta era um mapa da cidade de Lankh-
mar. Todos os prédios e ruas estavam ali representados, até a mais insigni-
ficante choupana e a mais estreita viela. Havia sinais de rasuras, recentes
e novos desenhos em muitos pontos, e aqui e ali, pequenos hieróglifos
coloridos de misteriosa significação.
O soalho era de mármore, o teto azul como lápis-lazúli. As paredes
lateriais eram abundantemente carregadas, uma delas com todas as espé-
cies de ferramentas de ladrões, desde uma imensa, espessa alavanca que
parecia ser capaz de deslocar o universo, até uma haste tão delgada que
podia ser uma vara de condão aparentemente planejada para projetar-se
e pescar de uma certa distância preciosos adornos de um toucador de
dama, com tampa de marfim e pernas alongadas. Todas as espécies de es-
tranhos objetos, brilhantes e cintilantes, estavam presos a cadeado na ou-
tra parede, evidentemente mementos escolhidos por suas excentricida-
des, nas pilhagens de memoráveis assaltos, desde uma máscara feminina
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de ouro delgado, empolgantemente bonita em suas feições e contornos,
mas espêssamente incrustada de rubis, simulando as marcas da varíola
no estágio febril, até uma faca cujas lâminas eram diamantes cuneiformes
colocados lado a lado e a borda cortante como uma navalha afiada.
No centro da sala estava uma mesa redonda, vazia, de ébano e
quadrados de marfim. Cercavam-na sete cadeiras de encosto reto mas
bem estofadas; uma delas, em frente ao mapa e afastada de Mouser e
Fafhrd, tinha o encosto mais alto e braços mais largos que as outras — a
cadeira do chefe, provavelmente a de Krovas.
Mouser adiantou-se na ponta dos pés, irresisíivelmente atraído,
mas a mão esquerda de Fafhrd apertou seu ombro.
Franzindo o sobrolho com desaprovação, o Nortista puxou a ven-
da preta sobre os olhos de Mouser novamente, apontou para a frente
e partiu naquela direção em pulos cuidadosos, calculados e silenciosos.
Encolhendo os ombros, desapontado, Mouser seguiu-o.
Logo que se afastaram da entrada, uma cabeça, de barbas pretas
e cabelos curtos, apareceu como uma serpente ao lado da cadeira mais
alta, fixou-os atentamente com olhos encovados e brilhantes. Em seguida,
um dedo de ofídio da mão comprida e flexível, aproximou-se dos lábios
como uma serpente em sinal de silêncio, acenando com os dedos para os
dois pares de homens vestidos com túnicas parados de cada lado da en-
trada, de costas para o corredor, segurando em uma das mãos um punhal
e na outra um pesado cacete de couro escuro.
Quando Fafhrd estava a meio caminho da sétima entrada, de onde
vinha a monótona mas sinistra recitação, surgiu um jovem esguio e de
faces pálidas, os olhos arregalados de terror, as mãos estreitas colocadas
sobre a boca, como se abafando gritos ou vômitos, e com uma vassoura
embaixo do braço, parecendo-se um pouco com um jovem feiticeiro pron-
to para voar. Passou impetuosamente por Fafhrd e Mouser, continuou, as
pisadas rápidas e abafadas pelos tapetes e com sons agudos nas escadas,
até extinguir-se.
Fafhrd olhou atentamente para Mouser com uma careta e um en-
colher de ombros, e ajoelhou-se, avançou a metade de seu rosto pelo um-
bral da porta. Depois de um instante, sem entretanto mudar de posição,
acenou para que Mouser se aproximasse. Este último espiou, colocando
vagarosamente a cabeça por cima da de Fafhrd.
O que eles viam era uma sala menor do que a do mapa, ilumi-
nada por luminárias centrais que davam uma claridade branco-azulada,
ao invés da costumeira luz amarelada. O chão era de mármore escuro e
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com desenhos em espirais. Das paredes pendiam quadros astrológicos e
antropomânticos, instrumentos de magia e estantes com jarros de porce-
lana criptieamente rotulados, frascos vítreos e tubos de vidro das mais es-
tranhas formas, alguns cheios de fluídos coloridos, outros rutilantemente
vazios. Ao pé das paredes, onde as sombras eram mais espessas, trastes
quebrados e rejeitados amontoavam-se irregularmente, como se arrasta-
dos do caminho e esquecidos, ao mesmo tempo em que grandes tocas de
ratos apareciam aqui e ali.
No centro da sala, com um brilho contrastante, havia uma mesa
comprida de tampo espesso e, inúmeras pernas sólidas. Lembrou a Mou-
ser uma centopéia e o bar da Enguia, pois o tampo da mesa estava inten-
samente sujo e marcado por sucessivas manchas de elixires e queimadu-
ras escuras causadas por fogo e ácido.
No meio da mesa um alambique funcionava. A chama da lampari-
na, azul-escura, conservava fervendo na cucúrbita grande de cristal, um
líquido escuro e viscoso com cintilações luminosas. Da matéria espessa
e espumante subiam espirais de vapor mais escuro para aglomerarem-se
através do gargalo da cucúrbita e tingir — estranhamente, de escarlate
brilhante — a parte superior transparente. Então, agora de um preto in-
tenso, dali fluía por um cano estreito para um recipiente esférico de cris-
tal, ainda maior que a cucúrbita, e aí ondulava-se e entrelaçava-se como
rolos vivos de corda preta — uma serpente de ébano — sinuosa e sem
fim.
Atrás da extremidade esquerda da mesa encontrava-se um homem
alto e encurvado, de manto preto com capuz, que sombreava mais do que
escondia um rosto cujas feições eram muito proeminentes, o nariz grosso,
longo e pontudo, a boca saliente e quase sem queixo. Sua côr era cinza-
pálida, como barro arenoso. Uma barba aparada, eriçada e cinza crescia
no alto da face. Abaixo da testa recuada e das cinzentas sobrancelhas
cerradas, os olhos separados olhavam intensamente para o pergaminho
amarelecido que suas pequenas mãos repugnantes, de juntas grandes e
pêlos cinzentos, desenrolavam sem cessar. O único movimento que seus
olhos faziam, além de um curto vai-e-vem ao ler as linhas que ràpidamen-
te entoava, era uma ocasional olhadela para o alambique.
Do outro lado da mesa, havia um pequeno animal preto encolhi-
do, cujos olhos grandes e redondos moviam-se rapidamente do feiticeiro
para o alambique e vice-versa. Fafhrd, percebendo-o de relance, fincou os
dedos dolorosamente no ombro de Mouser que quase sufocou, mas não
de dor. Parecia-se mais com um rato, embora tivesse uma testa mais alta
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e olhos mais juntos, enquanto suas patas dianteiras que constantemente
esfregava impaciente, parecendo divertir-se, assemelhavam-se a minús-
culas cópias das mãos disformes do feiticeiro.
Simultânea, mas independentemente, Fafhrd e Mouser certifica-
ram-se de que era o animal que escoltara Slivikin e seu companheiro e
escapara. Recordaram-se do que Ivrian dissera a respeito do demônio de
bruxa e Vlana acêrca da probabilidade de Krovas ter um empregado fei-
ticeiro.
O ritmo do encantamento acelerou-se; as chamas branco-azula-
das, brilharam e chiaram audivelmente; o fluido da cucúrbita tornou-se
espesso como lava; grandes bolhas se formaram e estouraram ruidosa-
mente; a corda preta no recipiente enroscou-se como um ninho de ser-
pentes; havia uma crescente impressão de presenças invisíveis; a tensão
sobrenatural tornou-se quase insuportável, e Fafhrd e Mouser tiveram
dificuldade em ficar silenciosos, e embasbacados, de boca aberta, pela
qual agora respiravam, temiam que as batidas do coração pudessem ser
ouvidas ao longe.
Abruptamente a feitiçaria atingiu o máximo e cessou como um
tambor rufando que fosse instantaneamente silenciado pela palma da
mão e pelos dedos estendidos contra o couro. Com um brilhante clarão
e uma surda explosão, inumeráveis rachas apareceram na cucúrbita; seu
cristal tornou-se branco e opaco; no entanto, não se despedaçou e nem
vazou. A parte superior do alambique subiu um pouco, vacilou e recuou.
Duas laçadas pretas apareceram entre as espirais no recipiente e repen-
tinamente reduziram-se a dois grandes nós pretos. O feiticeiro sorriu ma-
liciosamente, deixou o fim do pergaminho a enrolar-se com um estalo,
mudou o olhar atento do recipiente para o seu demônio que saltava e
guinohava extasiado.
— Silêncio, Slivikin! Agora vem a sua vez de correr, esforçar-se e
suar — gritou o bruxo, falando em jargão Lankhmaresco, agora, mas tão
rapidamente e com voz tão aguda que Fafhrd e Mouser mal podiam acom-
panhá-lo. Entretanto, ambos perceberam que estavam enganados quanto
à identidade de Slivikin. No momento do infortúnio, o ladrão gordo prefe-
rira pedir ajuda ao animal bruxo que ao seu companheiro humano.
— Sim, mestre — Slivikin respondeu confusamente, modificando,
num instante, as opiniões de Mouser sobre animais falantes, continuou
no mesmo tom agudo e bajulador: — Ouço-lhe obedientemente, Hristo-
milo.
Hristomilo ordenou em sons sibilantes:
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— Vá fazer a sua tarefa! Convoque um número suficiente de con-
vivas! Quero os corpos estripados até os ossos, de maneira que os efeitos
da névoa mágica e todas as evidências de morte por sufocação fiquem
totalmente apagados. Mas não esqueça a pilhagem! A missão, agora —.
parta!
Slivikin, que a cada ordem sacudia levemente a cabeça, demons-
trando sua vivacidade, agora, guinchava: — Providenciarei para que assim
seja! — e, como um relâmpago cinzento, saltou ao chão e entrou numa
escura toca de rato.
Hristomilo, esfregando suas mãos à maneira de Slivikin, gritou às
gargalhadas:
— O que Slevyas perdeu, minha mágica reconquistou!
Fafhrd e Mouser retiraram-se, em parte por medo de serem vistos,
em parte por repulsa do que tinham visto e ouvido, nuna pungente, mas
inútil piedade por Slevyas, fosse êle quem fosse, e pelas outras vítimas
desconhecidas das palavras mágicas mortais do feiticeiro referentes a ra-
tos, pobres estranhos, que mortos, teriam suas carnes devoradas.
Fafhrd arrebatou a garrafa verde de Mouser e, quase vomitando
do cheiro fétido, tomou um grande e forte gole, Mouser não se animou a
fazer o mesmo, conformando-se em aspirar os vapores do áleool.
Então, viu, além de Fafhrd, de pé antes da entrada da sala do mapa,
um homem ricamente vestido com uma faca de cabo de ouro e bainha in-
crustada de jóias. A face de olhos fundos era prematuramente enrugada
nela responsabilidade, excesso de trabalho è autoridade, emoldurada por
cabelos e barba pretos, cuidadosamente cortados. Sorrindo, acenou-lhes
silenciosamente com um gesto sinuoso.
Mouser e Fafhrd obedeceram, o último devolvendo a garrafa verde
ao primeiro, que a escondeu embaixo da capa segurando-a com o braço,
com dissimulada irritação.
Suspeitaram que aquele que os convocara era Krovas, o Grão-Mes-
tre da Sociedade. Mais uma vez, novamente, Fafhrd admirava-se, enquan-
to mancava de modo impetuoso e vacilante, como Kos ou os Destinos
guiavam-no a seu alvo esta noite. Mouser, mais alerta e também mais
apreensivo, lembrava-se que eles tinham sido encaminhados pelas sen-
tinelas para apresentarem-se a Krovas, de modo que a situação, se bem
que não se desenvolvesse totalmente de acôrdo com seus próprios planos
vagos, deles não se desviava desastrosamente.
Entretanto, nem mesmo sua vigilância, nem os instintos primiti-
vos de Fafhrd preveniram-nos, quando seguiam Krovas, para a sala dos
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mapas.
Logo que entraram, foram agarrados rapidamente pelo ombro e
ameaçados com cacetes por um par de valentões armados com facas nos
cintos.
— Estão sob controle, Grão-Mestre — um dos rufiões vociferou.
Krovas girou a cadeira mais alta e sentou-se, olhando-os friamente.
— O que traz dois bêbados e malcheirosos mendigos associados
até os aposentos mais reservados dos mestres? — perguntou calmamen-
te.
Mouser sentiu um suor de alívio formar gotas na testa. Os disfarces
que imaginara brilhantemente ainda funcionavam, logrando até mesmo o
chefe, embora este tivesse percebido a embriaguez de Fafhrd. Reassumin-
do os ares de cego, disse trêmulo:
— Fomos encaminhados pelo guarda à porta da Rua das Pechin-
chas para apresentarmo-nos a vós em pessoa, grande Krovas, pois o Se-
nhor dos Mendigos Noturnos estava de licença, por razões de higiene se-
xual. Hoje à noite conseguimos uma boa bolada! — E, remexendo na sua
bolsa, ignorando tanto quanto possível o forte aperto nos seus ombros,
êle retirou uma moeda de ouro e exibiu-a com as mãos trêmulas.
— Poupem-me de sua inexperiente atuação — disse Krovas brus-
camente. — Não sou uma das suas vítimas. E tire esta venda dos olhos.
Mouser obedeceu, endireitou-se novamente tanto quanto sua ma-
nietação permitisse, e sorriu, procurando parecer o mais despreocupado
possível, apesar das novas incertezas despertadas. Compreensivelmente,
sua representação não era tão brilhante quanto pensara.
Krovas inclinou-se para a frente e disse plácida mas penetrante-
mente :
— Admitindo que vocês estivessem tão atarefados, por que esta-
vam espiando para a sala ao lado desta quando os encontrei?
— Vimos bravos ladrões fugindo desta sala — Mouser respondeu,
convenientemente. — Temendo que algum perigo ameaçasse a Socieda-
de, meu camarada e eu investigamos, prontos a Impedi-lo.
— Mas o que vimos e ouvimos apenas nos tornou perplexos, gran-
de Senhor — disse Fafhrd polidamente.
— Não perguntei a você, beberrão. Só fale quando lhe fôr dirigida
a palavra — vociferou Krovas. Então, dirigindo-se a Mouser: — Você é um
velhaco vaidoso, presunçoso demais para seu nível. Os mendigos alegam
proteger os ladrões — realmente! Pretendo mandar açoitá-los por sua
curiosidade, outra vez por sua embriaguez, sim, e uma vez mais por suas
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mentiras.
Num lampejo Mouser decidiu que a situação exigia mais insolência
e mentiras do que bajulação.
— Eu sou um malandro muitíssimo presunçoso, na verdade, se-
nhor — disse de modo convencido. E, com um ar solene: — Mas agora
vejo que chegou a hora de dizer toda a mais negra verdade. O Mestre dos
Mendigos Diurnos suspeita de um complô contra sua própria vida, senhor,
por um de seus mais altos e mais próximos tenentes — um em quem você
confia tanto que não acreditaria, senhor. Êle nos contou! Por esta razão
designou-nos a mim e a meu companheiro para protegê-lo e pegar este
miserável canalha.
— Mais mentiras desajeitadas — disse Krovas rispidamente, mas
Mouser viu sua face tornar-se pálida.
O Grão-Mestre ergueu-se um pouco da sua cadeira.
— Qual tenente?
Mouser sorriu malicioso e relaxou. Seus dois cantores fixaram-no
de lado curiosamente, afrouxando as mãos um pouco. O par de Fafhrd
parecia igualmente intrigado.
— Você está me interrogando como um fiel espião ou um mentiro-
so amarrado? Caso seja o último, não o insultarei com nenhuma palavra
a mais.
O rosto de Krovas tornou-se mais sombrio.
— Rapaz! — chamou.
Através das cortinas de uma entrada secreta, surgiu um jovem com
a pele escura de um Keeshita e vestindo apenas uma tanga preta; ajoe-
lhou-se diante de Krovas, que ordenou:
— Convoque primeiro meu feiticeiro, em seguida os ladrões Sle-
vyas e Fissif — após o que, o jovem moreno correu para o corredor.
Krovas hesitou um momento, pensando, e logo estendeu a mão
em direção a Fafhrd:
— O que você sabe a este respeito, beberrão? Você sustenta a es-
tória maluca de seu companheiro?
Fafhrd apenas escarneceu e cruzou os braços, pois os captores os
agarravam frouxamente. Sua mão segurava levemente a muleta-espada,
que pendia contra seu corpo. Então franziu a testa, sentindo uma súbita
e aguda dor na perna esquerda amarrada e dormente, que já esquecera.
Krovas ergueu-se com um punho cerrado em prelúdio a alguma
ordem terrível — provavelmente que Fafhrd e Mouser fossem torturados,
mas neste instante Hristomilo entrou na sala, os pés presumivelmente rá-
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pidos e os passos muito curtos — de qualquer modo, seu manto preto
tocava sereno o piso de mármore apesar de sua velocidade.
Houve um choque à sua entrada. Todos os olhos na sala dos mapas
seguiam-no, a respiração suspensa, e Mouser e Fafhrd sentiram as mãos
calosas que os seguravam tremer um pouco. Até mesmo a expressão ten-
sa de Krovas tornou-se também defensivamente apreensiva.
Aparentemente absorto da reação provocada por seu aparecimen-
to, Hristomilo, com um sorriso nos lábios finos, parou ao lado da cadeira
de Krovas e inclinou sua face roedora num arremedo de reverência.
Krovas perguntou ríspida mas nervosamente, gesticulando em di-
reção a Mouser e Fafhrd:
— Você conhece estes dois?
Hristomilo acenou positivamente:
— Agora mesmo ambos me espiavam com um olhar estonteante
— disse — enquanto eu fazia aquele negócio de que falamos. Eu os teria
enxotado e denunciado, não fosse tal ação quebrar meu encanto mágico,
desajustar minhas palavras com o trabalho do alambique. Um deles é um
nortista, as feições do outro têm uma aparência de sulista — o mais pro-
vável, de Tovilinis ou proximidades. Ambos mais jovens do que aparentam
agora. Bandidos independentes, eu os julgaria, da espécie que a Irman-
dade contrata como extras quando estão sobrecarregados, com serviços
de vigia e escolta. Claro, agora, grosseiramente disfarçados de mendigos.
Fafhrd bocejando, Mouser sacudindo a cabeça penalizado, tenta-
vam convencer de que tudo isso não passava de pobres conjeturas. Mou-
ser ainda acrescentou um penetrante olhar de advertência, breve como
um relâmpago, sugerindo a Krovas que o tenente poderia ser o próprio
feiticeiro do Grão-Mestre.
— Eis tudo que posso lhe dizer sem ler suas mentes — Hristomilo
concluiu. — Devo mandar vir minhas luzes e espelhos?
— Ainda não. — Krovas encarou Mouser e disse:
— Agora, fale a verdade ou a obterei por meio de mágicas, e então
serão açoitados até a morte. Qual dos meus tenentes foi indicado para
vocês o espionarem, pelo Chefe dos Mendigos Diurnos? Mas estão men-
tindo sobre este encargo, creio?
— Oh! Não — Mouser negou-o fingindo sinceridade. — Informa-
mos todas nossas atividades ao Chefe dos Mendigos Diurnos e êle apro-
vou-as, dizendo-nos para espionar o melhor que pudéssemos e reunir o
maior número possível de fragmentos, fatos e rumores sobre a conspira-
ção.
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— E êle nada me falou sobre isto! — Krovas vociferou. — Se fôr
verdade, mandarei cortar a cabeça de Bannat por isto! Mas vocês estão
mentindo, não?
Quando Mouser fixava Krovas com olhar ofendido, um homem im-
ponente passou mancando pela entrada, com o apoio de uma bengala
dourada. Movia-se em silêncio, e serenamente.
Mas Krovas o viu.
— Chefe dos Mendigos Noturnos! — chamou categoricamente. O
homem coxo parou, voltou-se e entrou majestosamente. Krovas apontou
um dedo para Mouser, depois para Fafhrd:
— Você conhece estes dois, Flim?
O Chefe dos Mendigos Noturnos estudou sem pressa cada um, por
algum tempo, e sacudiu a cabeça com um turbante dourado.
— Nunca vi nenhum deles antes. Quem são? Mendigos delatores?
— Mas Flim não nos conheceria — Mouser explicou desesperado,
sentindo que tudo iria desmoronar para êle e Fafhrd. — Todos os nossos
contatos eram apenas com Bannat.
Flim disse calmamente: — Bannat tem estado acamado com febre
nestes últimos dez dias. Enquanto isso tenho sido o Chefe dos Mendigos
Noturnos e Diurnos.
Neste momento Slevyas e Fissif entraram correndo por trás de
Flim. O ladrão alto ostentava uma mancha roxa no queixo. A cabeça do
ladrão gordo estava enfaixada, acima dos olhos dardejantes. Êle apontou
rápido para Fafhrd e Mouser e gritou:
— Eis os dois que nos atacaram, tomaram nosso roubo de Jengao
e mataram nossa escolta.
Mouser levantou seu cotovelo e a garrafa verde espatifou-se em
cacos a seus pés, no piso de mármore. O cheiro forte de gardênia espa-
lhou-se rapidamente pelo ar.
Mas mais rápido ainda, Mouser desvencilhou-se do negligente do-
mínio dos guardas surpreendidos, saltou em direção a Krovas, golpeando
com sua espada enfaixada.
Com velocidade espantosa, Flim lançou a bengala dourada, derru-
bando Mouser, que ficou de pernas para o ar, procurando, a meio cami-
nho, transformar em voluntária, sua involuntária pirueta.
Entrementes, Fafhrd deu uma guinada brusca contra o captor à
sua esquerda, ao mesmo tempo balançando a enfaixada Vara Cinzenta
fortemente para diante para atingir seu captor da direita sob o queixo.
Recuperando o equilíbrio, apoiado numa perna só e com uma poderosa
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contorção, saltou para a parede dos roubos atrás dele.
Slevyas dirigiu-se para a parede dos instrumentos de ladrões, e
cem um esforço que fêz os músculos estalarem, arrancou a grande ala-
vanca do cadeado.
Levantando-se, depois de uma infeliz aterrissagem em frente à ca-
deira de Krovas, Mouser encontrou-a vazia e o Rei dos Ladrões curvado
atrás dela, o punhal de ouro desembainhado, os olhos encovados frios e
enfurecidos para a luta. Virando-se, viu os guardas de Fafhrd no chão, um
deles caído inconsciente, o outro, começando a levantar-se enquanto o
grande nortista, de costas contra a fantástica parede de jóias, ameaçava
toda a sala com a Vara Cinzenta enfaixada e com a sua longa faca, arranca-
da da bainha, às suas costas.
Desembainhando igualmente a Garra de Gato, gritou com voz de
comando:
— Afastem-se todos! Êle está ficando louco! Cortarei o tendão de
sua perna sã para vocês!
E correndo através da confusão e entre seus dois guardas que ain-
da pareciam segurá-lo admirados, lançou-se com, a espada rutilante para
Fafhrd, implorando que o nortista, embriagado agora não só pela batalha,
mas também pelo vinho e o perfume venenoso, o compreendesse e adi-
vinhasse seu estratagema.
Vara Cinzenta golpeava bem acima de sua cabeça desviada. Seu
novo amigo não somente adivinhara, mas o apoiara e não errava o alvo
somente por acidente, Mouser assim o esperava. Abaixando-se junto à
parede, cortou os cordões da perna esquerda de Fafhrd. Vara Cinzenta e
a comprida faca de Fafhrd continuaram a poupá-lo. Levantando-se num
salto, para o corredor, gritando por trás do ombro de Fafhrd: — Venha!
Hristomilo permanecia fora do caminho, observando serenamen-
te. Fissif fugiu à procura de segurança. Krovas ficou atrás de sua cadeira
gritando:
— Detenham-nos! Segurem-nos! Os três remanescentes guardas
rufiões, finalmente recobrando sua capacidade de luta, reuniram-se em
posição a Mouser. Mas este, ameaçando-os com rápidas fintas de sua es-
pada, deteve-os e lançou-se entre eles — então, naquele exato momento,
com um golpe rasteiro do Escalpelo enfaixado, derrubou para o lado a
bengala dourada de Flim, que o atacara novamente tentando derrubá-lo.
Tudo isto deu tempo a Slevyas de retornar da parede de ferramen-
tas e tentar atingir Mouser, balançando a pesada alavanca. Ao iniciar o
golpe, uma espada embainhada e enfaixada, na ponta de um longo braço,
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lançou-se por cima do ombro de Mouser e, solida e pesadamente, empur-
rou Slevyas para trás, atingido-o na parte superior do peito, de maneira
que o balanço da alavanca foi demasiado curto e passou zunindo inofen-
sivamente.
Então Mouser encontrou-se no corredor com Fafhrd a seu lado; o
companheiro por alguma razão, ainda mancava. Mouser apontou em di-
reção às escadas. Fafhrd assentiu, mas deteve-se para arrancar da parede
mais próxima uma dúzia de jardas e de pesados panos que espalhou pelo
corredor para confundir seus perseguidores.
Alcançando as escadas começaram a subir o lance seguinte, Mou-
ser na frente. Havia gritos atrás deles, alguns abafados.
— Pare de mancar, Fafhrd! — Mouser ordenou, lamentando-se.
Você tem duas pernas de novo.
— Sim, e a outra está dormente — queixou-se Fafhrd. — Ah! Agora
a sensibilidade está voltando.
Uma faca passou sibilando entre eles e retiniu, quando a ponta
atingiu a parede, levantando poeira da pedra. Estavam agora dobrando
a esquina.
Mais dois corredores vazios, mais dois lances curvos, e avistaram
acima deles, sobre o último patamar, uma escada sólida que levava a um
buraco quadrado a escuro no telhado. Um ladrão com os cabelos presos
atrás, por um colorido lenço — que parecia ser a identificação das senti-
nelas — ameaçou Mouser com a espada desembainhada, mas ao ver que
eram dois, ambos atacando determinantemente com facas reluzentes e
estranhas clavas, voltou-se e correu pelo último corredor vazio.
Mouser, seguido de perto por Fafhrd, subiu rapidamente à escada
e pulou, através do alçapão, para a noite estrelada.
Encontrou-se próximo à borda, sem parapeito, de um telhado de
ardósia com tal inclinação que parecia alarmante a um inexperiente cami-
nhador de telhados, mas seguro como chão para um veterano.
Voltando-se ao som de um baque, viu Fafhrd prudentemente içan-
do a escada. Logo que conseguiu, uma faca vinda do alçapão passou zu-
nindo perto deles.
Caiu com estrépito a seu lado e escorregou para fora do telhado.
Mouser marchou para o sul através das ardósias e, a meio caminho entre
o alçapão e aquela extremidade do telhado, ouviu o fraco tinido da faca
chocando-se nas pedras arredondadas da Travessa dos Assassinos.
Fafhrd seguia mais devagar, fosse talvez devido a uma menor expe-
riência em telhados, fosse porque ainda coxeava um pouco para proteger
48
sua perna esquerda, e também, porque carregava a pesada escada que
oscilava sobre seu ombro esquerdo.
— Não precisaremos dela — exclamou Mouser.
Sem vacilar, Fafhrd jogou-a alegremente por cima da borda. En-
quanto ela se espatifava com estrépido na Travessa dos Assassinos, Mou-
ser pulava duas jardas abaixo e transpunha uma brecha de uma jarda para
o telhado seguinte, de inclinação menor e oposta. Fafhrd aterrissou a seu
lado.
Mouser o precedia, numa quase corrida através de uma floresta de
chaminés cobertas de fuligem, canos de chaminés, cataventos cujas cau-
das faziam-nos ficar de frente para o vento, cisternas escurecidas, tampas
de alçapão, casas de pássaros e armadilhas de pombas; passaram sobre
cinco telhados, até alcançarem a Rua dos Pensadores, no ponto onde esta
se cruzava com uma passagem coberta muito semelhante à de Rokermas
e Slaarg.
Enquanto a atravessavam curvados, algo passou por eles sibilando
e caiu com estrépido logo adiante. Ao saltarem do telhado da ponte, três
coisas mais assobiaram sobre as suas cabeças, para cair mais além. Uma
delas ricoeheteou de uma chaminé quadrada, quase aos pés de Mouser.
Apanhou-a, imaginando uma pedra, e surpreendeu-se com o grande peso
de uma bola de chumbo do tamanho de dois dedos.
— Eles — disse, apontando com o polegar por sobre o ombro —
não perderam tempo em colocar atiradores de estilingues no telhado.
Quando provocados ficam bons.
A sudeste então, através de outra floresta de negras chaminés, em
direção a um ponto na Rua das Pechinchas, onde havia tantos pavimentes
mais altos projetando-se sobre os dois lados da rua que seria fácil transpor
as brechas. Durante a travessia do telhado, uma frente de neblina notur-
na, suficientemente densa para fazê-los tossir e engasgar, envolveu-os e,
talvez pelo tempo de sessenta batidas do coração, Mouser teve de andar
mais devagar, arrastando os pés e tateando o caminho, a mão de Fafhrd
em seu ombro. Bem próximo da Rua das Pechinchas, saíram abrupta e
completamente do nevoeiro e enxergaram as estrelas de novo, enquanto
a nuvem preta rolava em direção ao norte.
— Bem, que diabo era aquilo? — indagou Fafhrd e Mouser deu de
ombros.
Um corvo noturno teria notado um vasto círculo de neblina es-
cura, espalhando-se em todas as direções de um ponto perto da Enguia
Prateada.
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A leste da Rua das Pechinchas, os dois camaradas logo saltaram
para o solo, aterrando no Beco da Peste.
Por fim, olharam um para o outro e para suas espadas, as faces
e roupas imundas tornadas ainda mais sujas pela fuligem do telhado, e
riram, riram e riram; Fafhrd ainda numa gargalhada, ao inclinar-se para
massagear sua perna esquerda ao redor do joelho. Continuaram a zombar
de mesmos, enquanto desenfaixavam as espadas — Mouser, como se a
sua fosse um pacote de surpresa — e prenderam mais uma vez as bainhas
nos cintos.
Seus esforços dissiparam a última molécula e átomo de vinho for-
te e do ainda mais forte perfume fétido, mas não sentiram mais vonta-
de de beber, apenas a pressa de chegar em casa, comer imensamente e
empanturrar-se de gahveh quente e amargo, e finalmente, contar às suas
adoráveis pequenas sua louca aventura.
Andavam lado a lado.
Livres da neblina noturna e salpicados com as luzes das estrelas,
Os limitados arredores pareciam muito menos miseráveis e opressivos
do que quando tinham partido. Mesmo na Travessa dos Ossos havia uma
aragem.
Subiram apressadamente a longa e crepitante escada de degraus
quebrados, sem a menor cautela e, quando atingiram o alpendre, Mouser
empurrou a porta para abri-la com surpreendente rapidez.
Mas esta não se moveu.
— Trancada — disse a Fafhrd secamente. Notou, agora, que ne-
nhuma luz se infiltrava através das frestas da porta, nem tampouco das
venezianas — somente um débil brilho vermelho-alaranjado. Então, com
um trejeito sentimental e numa voz afetuosa que revelava apenas uma
sombra de preocupação, disse:
— Estão dormindo, as despreocupadas raparigas!
Bateu três vezes ruidosamente e, apertando os lábios, chamou su-
avemente pela fresta da porta:
— Olá, Ivrian! Estou a salvo em casa. Ei, Vlana! Seu marido satisfez
seu orgulho, derrubando, um grande número de ladrões da Sociedade,
com um pé amarrado nas costas!
Não se ouvia nenhum som do interior — isto é, não contando um
sussurro, tão fraco que quase não se podia percebê-lo.
Fafhrd franziu as narinas: — Sinto cheiro de bichos.
Mouser bateu na porta novamente. Nenhuma resposta. Fafhrd
afastou-o do caminho e forçou o portal com seu grande ombro.
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Mouser sacudiu a cabeça e com um hábil golpe e um puxão, re-
moveu um tijolo que há pouco parecia firmemente fixo na parede ao lado
da porta. Estendeu para dentro todo seu braço. Ouviu-se o ruído de um
ferrôlho sendo retirado, então mais outro e um terceiro. Rapidamente re-
tirou seu braço e, a um toque, a porta abriu-se inteira para dentro.
Mas nem êle nem Fafhrd precipitaram-se em seguida, como ha-
viam tencionado, pois o indefinível cheiro de perigo e do desconhecido
soprou com um crescente odor de animal e um leve aroma enjoativo que,
embora doce, não era um perfume propriamente feminino.
Mal podiam ver a sala através da luz alaranjada, saída do pequeno
retângulo da porta aberta do pequeno e negro fogão. No entanto, o retân-
gulo não estava devidamente aprumado, mas estranhamente inclinado —
sinal evidente que o fogão havia sido derrubado e agora apoiava-se contra
a parede lateral da lareira, com a portinhola aberta naquela direção.
Esta posição anormal, por si só, transmitia todo o impacto de um
universo revirado.
Através do brilho alaranjado, percebia-se que os tapetes haviam
sido estranhamente amarrotados, apresentando aqui e ali, círculos pre-
tos esburacados de um palmo de largura; as velas, antes cuidadosamente
empilhadas, esparramavam-se por baixo das estantes com alguns jarros e
caixas esmaltadas, e — acima de tudo — dois aglomerados pretos, baixos,
irregulares e um tanto longos, um junto à lareira, o outro, metade sobre o
divã, metade a seus pés.
De cada aglomerado, inúmeros pares de olhos minúsculos, bastan-
te separados e avermelhados, fitavam Mouser e Fafhrd.
Sobre o chão espêssamente atapetado, do outro lado da lareira,
havia uma fina trama prateada — uma gaiola de prata caída, mas dela não
se ouviam cantos de adoráveis pássaros.
Houve um fraco tinido de metal, quando Fafhrd certificou-se de
que Vara Cinzenta estava solta em sua bainha.
Como se este minúsculo som tivesse sido escolhido de antemão
como o sinal de ataque, sacaram instantaneamente as espadas e avança-
ram lado a lado para dentro da sala, vigilantes a princípio, testando o chão
a cada passo.
Com o retinir das espadas, os pequeninos olhos avermelhados
piscaram e mexeram-se agitados e agora, com a aproximação dos dois
homens, espalharam-se rápida e ruidosamente de par em par, os olhos
na extremidade de um corpo preto, pequeno, delgado, com o rabo liso, e
dirigiram-se para um dos círculos negros nos tapetes, por onde desapa-
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receram.
Sem dúvida, os círculos negros eram buracos que os ratos haviam
recentemente roído através do soalho e dos tapetes, e as criaturas de
olhos vermelhos eram ratos pretos.
Fafhrd e Mouser saltaram para a frente, açoitando-os e retalhan-
do-os num frenesi, blasfemando palavras ásperas.
Atingiram alguns. Os ratos fugiram com rapidez sobrenatural, a
maioria deles desaparecendo pelos buracos das paredes e da lareira.
A primeira investida desvairada de Fafhrd atravessou o chão e ao
seu terceiro passo... com agourento estalo, sua perna afundou através do
soalho até o quadril. Mouser passou por êle sem ligar para ulteriores es-
talos.
Fafhrd ergueu sua perna, sem mesmo notar os arranhões e tão
despreocupado como Mouser quanto aos contínuos estalos. Os ratos su-
miram. Pulou até seu camarada, que atirava uma pilha de acendedores
dentro do fogão, para fazer mais luz.
O horror era que, embora os ratos tivessem ido embora, os dois
aglomerados permaneciam, ainda que consideravelmente menores e,
agora, visíveis claramente à luz das chamas amarelas lançadas pela porta
aberta, transformados num matiz de cores — não mais eram vultos com
pontos vermelhos, mas uma mistura de um vago preto e marrom-escuro,
um nauseante azul-purpúreo, violeta, prêto-aveludado e branco, do ver-
melho das meias e do sangue de carnes e ossos ensangüentados.
Embora as mãos e os pés tivessem sido roídos até os ossos, e os
corpos escavados, os dois rostos tinham sido poupados. Mas estavam ar-
roxeados, revelando morte por estrangulamento, os lábios retraídos, os
olhos salientes, as feições contorcidas em agonia. Apenas os cabelos pre-
tos e castanho-escuros rutilavam imutáveis — estes e os dentes, brancos,
brancos.
Ao olharem atentamente para suas amadas, incapazes de desviar
o olhar apesar das ondas de horror e tristeza que os envolviam cada vez
mais, viram um minúsculo fio preto soltar-se da depressão negra que en-
volvia cada garganta e flutuar, dissipando-se, em direção à porta aberta
— dois fios de neblina noturna.
Com um crescendo de estalos, o chão cedeu em mais três partes
ao centro, antes de chegar a uma nova e temporária estabilidade.
Os limiares das mentes torturadas notavam detalhes: que o punhal
de cabo prateado de Vlana espetara no chão um rato, que provavelmente,
demasiado esfomeado, aproximara-se demais antes que a neblina notur-
52
na provocasse seu mágico efeito. Que seu cinto e bolsa haviam desapa-
recido. Que a caixa esmaltada de azul e incrustada de prata onde Ivrian
colocara a parte de Mouser no assalto das jóias também desaparecera.
Mouser e Fafhrd fitaram-se, as faces lívidas e contraídas, e bas-
tante transtornadas, ainda que inteiramente unidos em compreensão e
propósito. Não foi necessário a Fafhrd explicar por que despiu o manto e
capuz, ou por que arrancou o punhal de Vlana com uma torção do pulso,
colocando-o em seu cinto. Nem foi necessário a Mouser dizer por que
procurou meia dúzia de jarros de óleo e, após atirar três deles contra a
parede do fogão flamejante, parou, pensou e jogou os outros três dentro
da sacola na sua cinta, juntando a eles os acendedores e o braseiro reple-
to de carvão em brasa e amarrou-o firmemente.
Então, ainda sem trocar palavras, Mouser penetrou na lareira e
sem recuar ao contato do metal ardente, com deliberação derrubou o fo-
gão em chamas sobre os tapetes ensopados de óleo. Chamas amarelas
espalharam-se à sua volta.
Viraram-se e correram para a porta. Com estalos ainda mais altos
o chão desmoronou. Lutaram desesperadamente para transpor uma pilha
de tapetes e alcançaram a porta e o alpendre momentos antes que tudo
cedesse. E tudo estava incandescente, os tapetes, o fogão, todas as lenhas
e velas, o divã dourado, as mesinhas, as caixas, as jarras e os corpos in-
concebivelmente mutilados de suas amadas — rolaram para a sala abaixo,
atulhada de teias, seca e empoeirada; e as grandes chamas de uma pu-
rificante e arrasadora cremacão começaram a arder em direção ao alto.
Precipitaram-se pela escada que, assim que alcançaram o solo,
desmoronou na escuridão. Tiveram que forçar seu caminho sobre os es-
combros para chegar à Travessa dos Ossos.
A esta altura as chamas lançavam brilhantes e compridas línguas
pelas venezianas do sótão e pelos tapumes do andar inferior. Ao alcança-
rem a Viela da Peste, correndo lado a lado o mais que podiam, o alarma
de fogo da Enguia Prateada ressoou dissonante atrás deles.
Corriam ainda quando alcançaram a bifurcação na Travessa da
Morte. Então, Mouser agarrou Fafhrd e forçou-o a parar. O enorme ho-
mem debateu-se, blasfemando loucamente e só desistiu — a face branca
ainda de um lunático — quando Mouser gritou ofegante:
— Apenas dez batidas de coração, será o tempo suficiente para nos
prepararmos.
Puxou a sacola do cinto e, segurando-a com firmeza, atirou-a com
violência contra os seixos — quebrando não só as garrafas de óleo, mas
53
também o braseiro, a sacola incendiando-se em seguida.
Desembainharam o rutilante Escalpelo e a Vara Cinzenta de Fafhrd,
continuaram a correr, Mouser balançando a sacola em grandes círculos
para atiçar as chamas. Era uma verdadeira bola de fogo queimando sua
mão esquerda quando se lançava pela Rua das Pechinchas; entraram na
Casa dos Ladrões e Mouser, com um enorme salto, jogou-a em direção ao
grande nicho que encimava a entrada.
As sentinelas gritaram de surpresa e pânico ante o incendiário in-
vasor de seus abrigos.
Ouvindo as pisadas e os gritos, ladrões estudantes saíram pelas
portas e, então, recuaram ante as labaredas e as duas caras endemoni-
nhadas dos inesperados invasores que brandiam suas longas e rutilantes
espadas.
Um magro e pequeno aprendiz — que podia ter no máximo dez
anos de idade — demorou-se demais. Vara Cinzenta trespassou-o sem
piedade, os grandes olhos arregalaram-se e a pequena boca contorceu-se
de horror, implorando misericórdia a Fafhrd.
Agora chegava até eles um fantástico clamor de lamentação, irreal
e horripilante, e portas se fechavam com estrondo ao invés de despejarem
os guardas armados que Fafhrd e Mouser ansiavam por que aparecessem
para espetá-los com suas espadas. Apesar das longas tochas pendentes
das paredes, parecendo recém-renovadas, o corredor estava escuro.
A razão disso tornou-se clara quando se lançaram escada acima.
Fios de neblina noturna surgiam na escadaria, materializando-se do nada,
ou do ar.
Os fios tornaram-se mais longos e mais palpáveis. Eram desagrada-
velmente aderentes e pegajosos. No corredor acima, de parede a parede
e do teto ao chão, formavam uma gigantesca teia que tornou-se mais real
quando Mouser e Fafhrd tiveram de cortá-la para abrir caminho, ou assim
acreditavam suas obcessivas mentes. A teia preta amorteceu um pouco
a repetição do sinistro e lamentoso clamor que provinha da sétima porta
adiante e que agora terminava em uma sonora e macabra gargalhada, tão
insana como as emoções dos dois atacantes.
Aqui, também portas eram violentamente fechadas. Num efêmero
lampejo de razão, ocorreu a Mouser que não era a eles que os ladrões
temiam, pois ainda não tinham sido vistos, mas a Hristomilo e sua mágica,
ainda que este estivesse agindo em defesa da Casa dos Ladrões.
Mesmo a sala do mapa, o lugar mais provável de onde eclodiria
o contra-ataque, estava bloqueada por uma imensa porta de carvalho e
54
pinos de ferro.
À medida que avançavam, desferiam golpes na preta e pegajosa
teia de aranha, espessa como corda. Entre a sala do mapa e a das má-
gicas, sob a teia escura, formava-se, vaga a princípio, mas rapidamente
tornando-se mais real, uma aranha grande como um lobo.
Mouser retalhou a densa teia, recuou dois passos e então arremes-
sou-se num grande salto. Escalpelo trespassou-a, golpeando-a no meio
dos oito olhos negros recém-formados, A aranha desmoronou como um
balão esvaziado, desprendendo um repulsivo mau cheiro.
Depois, êle e Fafhrd inspecionaram a sala das mágicas, o aposento
do alquimista. Estava tal qual como antes, com exceção de algumas coisas
que haviam duplicado e até multiplicado.
Sobre a mesa comprida, duas cucúrbitas ferviam em chamas a-
zuis, borbulhando e turvando-se. De seus topos projetava-se uma sólida
corda que se enroscava mais rápido do que se move a preta cobra do pân-
tano, capaz de destruir um homem. — não para dentro dos dois idênticos
recipientes, mas para o ar livre da sala (caso se pudesse chamar de livre
o ar da Casa dos Ladrões). Tecia assim uma barreira entre suas espadas e
Hristomilo, que uma vez mais permanecia alto e curvado sobre o pardo
pergaminho mágico, porém desta vez, seu exultante olhar fixava-se sobre-
tudo em Mouser e Fafhrd, com apenas um ocasional olhar para o texto
das palavras mágicas que entoava de modo retumbante.
Do lado oposto da mesa, no espaço livre de teias, exultava Slivikin e
um imenso rato que se equiparava a êle em tamanho e membros, exceto
na cabeça.
Dos buracos de ratos ao pé das paredes, olhos vermelhos brilha-
vam e faiscavam.
Com um urro de raiva, Fafhrd começou a golpear a barreira preta.
As cordas que saíam das cucúrbitas eram substituídas rapidamente tão
logo êle as cortava, e as extremidades cortadas, ao invés de penderem,
começaram agora a contorcer-se esfomeadamente em direção a êle como
cobras ou vinhas estrangulantes.
Repentinamente, mudou Vara Cinzenta para a mão esquerda, pu-
xou sua longa faca e atirou-a contra o feiticeiro. Faiscando em direção ao
seu alvo, a faca cortou três fios, sendo desviada por um quarto e quinta
fios, quase detida por um sexto e terminou pendurada inutilmnete na alça
enroscada de um sétimo fio.
Hristomilo riu às gargalhadas, exibindo seus imensos incisivos su-
periores, enquanto Slivikin chilreava extasiado e saltava.
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Mouser arremessou Garra de Gato sem melhor resultado. — Na
verdade, pior, pois este até deu tempo para que dois dardejantes fios de
neblina se enrolassem em volta de sua mão e se enrascassem envolvendo
seu pescoço.
Ratos pretos saíram correndo dos grandes buracos ao pé das pa-
redes.
Entrementes, outros fios serpenteavam em volta dos quadris, dos
joelhos e do braço esquerdo de Fafhrd, e quase derrubando-o. Mas, mes-
mo lutando para equilibrar-se, arrancou o punhal de Vlana de seu cinto
e ergueu-o sobre o ombro, o cabo de prata reluzindo, a lâmina marrom,
com sangue seco de rato.
Ao enxergá-lo, Hristomilo modificou seu semblante. O feiticeiro gri-
tou estranha e inoportunamente, afastou-se do pergaminho e da mesa, e
ergueu suas mãos tortas: e armadas de garras para desviar o golpe mortal:
O punhal de Vlana voou desimpedido através da teia negra — seus
fios pareciam romper-se — e continuou por entre as defensivas mãos do
feiticeiro para enterrar-se até o cabo em seu olho direito.
Hristomilo deu um fino grito de agonia e arranhou sua face.
A teia preta contorceu-se num espasmo mortal.
As cucúrbitas despedaçaram-se, derramando sua lava sobre a
mesa manchada, extinguindo as chamas azuis, a espessa madeira da
mesa começou a fumegar ao ser atingida pela lava que começou a pingar
sobre o piso escuro de mármore.
Com um fraco e derradeiro grito, Hristomilo inclinou-se para fren-
te, as mãos tapando os olhos acima do nariz saliente, o punhal de cabo de
prata projetando-se entre os dedos.
A teia tornou-se descorada como tinta preta inundada por um jato
d’água.
Mouser correu para diante e trespassou Slivikin e o imenso rato
com um único golpe do Escalpelo, antes dos animais perceberem o que
acontecia, eles também morreram rapidamente com gritos agudos, en-
quanto todos os outros ratos retornavam para suas tocas, velozes como
um relâmpago preto.
Então, o último vestígio de neblina noturna ou névoa encantada
desapareceu, e Fafhrd e Mouser encontraram-se a sós com três corpos
mortos em meio a um profundo silêncio, que parecia invadir não só esta
sala, mas toda a Casa dos Ladrões. Mesmo a lava da cucúrbita cessara de
mover-se, solidificava-se e a madeira da mesa não fumegava mais.
Sua fúria desaparecera e também toda a raiva — desafogada até a
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última partícula vermelha, saciada até a saturação. Para eles, agora, matar
Krovas ou quaisquer outros ladrões, era tão desejável como esmagar mos-
cas. Horrorizado, Fafhrd olhou para a face deplorável do ladrâo-criança
que espetara em sua fúria lunática.
Apenas a tristeza permanecia, nem um pouca atenuada, mas antes
tornando-se maior — e ainda mais rápida e crescente repulsa de tudo
que os rodeava: os mortos, a desordenada sala mágica, toda a Casa dos
Ladrões, toda a cidade de Lankhmar, até sua última viela miserável.
Com um murmúrio de desgosto, Mouser arrancou o Escalpelo dos
cadáveres roídos, enxugou-o na roupa mais próxima, e devolveu-o à sua
bainha. Fafhrd, também negligentemente, limpou e embainhou Vara Cin-
zenta. Então apanharam do chão suas facas e punhais, que tinham caído
quando a teia se desmaterializara. Nenhum deles sequer olhou para onde
estava enterrado o punhal de Vlana. Mas, sobre a mesa do feiticeiro, nota-
ram a bolsa e o cinto de veludo preto e trabalhados em prata de Vlana, e a
caixa de esmalte azul, incrustada de prata, de Ivrian. Estas, eles pegaram.
Sem trocar palavra, como antes no incêndio do ninho de Mou-
ser, atrás da Enguia, mas em uma contínua sensação de sua unidade de
propósito, sua identidade de intenção e sua camaradagem, seguiram de
ombros caídos e em passos vagarosos e fatigados que aos poucos iam
acelerando. Saíram da sala das mágicas e andando pelo corredor atape-
tado, passaram pela sala do mapa, cuja porta estava agora, trancada com
barras de ferro e madeira maciça, por todas as outras silenciosas portas
fechadas e pelas escadas que repercutiam o som de suas pisadas, agora
um pouco mais rápidas; ao longo do gasto assoalho do corredor inferior,
passaram por outras portas fechadas e imóveis, as passadas ressoando
ruidosamente, não obstante suas leves pisadas; passaram sob o nicho
dos guardas, desertos e chamuscados, em direção à Rua das Pechinchas,
dobrando à esquerda e ao norte, porque este era o caminho mais curto
para a Rua dos Deuses, e aí, dobrando à direita e a leste nenhuma alma
desperta na extensa rua, exceto um jovem aprendiz magro e encurvado,
tristemente esfregando as lajes, em frente a uma loja de vinhos na fraca
luz rósea que começava a infiltrar-se do leste, embora houvesse muitos
vultos adormecidos que roncavam nas sarjetas e sob os pórticos escuros
— sim, dobrando à direita e a leste, pela Rua dos Deuses, pois este era o
caminho do Portão dos Pântanos, que conduzia à Estrada Elevada através
do Grande Pântano Salgado; e a Portão do Pântano era o caminho mais
próximo para sair da grande e glamurosa cidade, agora repugnante para
eles, uma cidade de adoráveis e irresistíveis fantasmas — na verdade, não
57
podiam mais suportar nenhuma pesada e amargurada batida de coração,
além do necessário.

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A EXECUÇÃO FATAL
Poul Anderson

Trad. de Eosaura Eichenberg

PRÓLOGO

— A mão esquerda, — disse o homem magro automaticamente.


— Descubra o pulso.
Douglas Bailey arregaçou o punho da camisa; o homem magro co-
locou algo frio em seu pulso e acenou em direção à porta mais próxima.
— Por ali, primeira laje à direita, — disse.
— Um minuto, — sobressaítou-se Bailey. — Eu queria...
— Vamos andando, amigo, — disse o homem magro. — Essa droga
é rápida.
Bailey sentiu uma punhalada sob o coração. — Você quer dizer que
já... é só isso?
— Foi por isso que você veio, não foi? Primeira laje, amigo. Vamos.
— Mas... estou aqui há somente dois minutos...
— O que você esperava? Música de órgão ? Olhe, amigo, — o ho-
mem magro deu uma olhada no relógio da parede. — Está na hora da
minha folga, compreende?
— Pensei que, pelo menos, tivesse tempo para... para...
— Coragem, camarada. Vá por si mesmo. Que eu não tenha de
arrastá-lo, compreende ? — O homem magro empurrou a porta, enquan-
to coagia Bailey a entrar num quarto que cheirava a produtos químicos e a
cadáveres. Num vão estreito e acortinado, indicou uma maca acolchoada.
— Deite-se de costas, os braços e as pernas esticados.
Bailey assumiu a posição e retesou-se, quando o homem magro
começou a prender-lhe os tornozelos com correias.

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— Acalme-se. É apenas que às vezes nos atrasamos e não voltamos
a ver um cliente talvez por algumas horas e, como ficam rígidos.., bem, os
caixões são todos do mesmo tamanho, compreende o que quero dizer?
Uma onda de doçura e tepidez percorreu-lhe o corpo, enquanto
permanecia deitado de costas.
— Ei, você não comeu nada nas últimas doze horas? — A face do
homem magro era um borrão côr-de-rosa indistinto.
— Eu orrr mmmm, — Bailey ouviu sua própria voz murmurar.
— O. K., durma bem, amigo... — A voz do homem magro retum-
bou e enfraqueceu-se. O último pensamento de Bailey, enquanto a escu-
ridão infinita se fechava, foi a respeito das palavras gravadas no granito
sobre o portal do Centro de Eutanásia:
“... mandem-me os cansados, os pobres, os desesperados, os que
anseiam pela libertação. A eles, ergo a luz ao lado da porta de bronze...”.

O veneno imobilizou sua hemoglobina, e êle estava morto.


A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo
lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de
novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres
monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com
o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos
e os trovões faziam seus dentes bater.
Olhos? um espanto chispou-lhe a mente. Dentes ? Mas estou mor-
to. Naquele formulário que tive ae preencher em três vias, colocarão o
selo CONCLUÍDO, e um assistente entediado me levará, a mim e ao meu
caixão, para a rampa crematório, e adeus Bailey. Serei transfigurado; não
serei mais Douglas Bailey, mas uma estatística.
Procurou aferrar-se à realidade, qualquer realidade, mas só apre-
endia o caos. Uma vertigem sugava-o por uma espiral infinita. Em algum
lugar e por toda a parte, Deus estava contando, “Zero, um, dez, onze, cem,
cento e um, cento e dez, cento e onze, mil, mil e um, mil dez,” numa voz
seca e baixa. Bailey achou que seu estômago inexistente havia-se trans-
formado num polvo com tripas no lugar dos tentáculos. Iria comê-lo e
depois comeria a si mesmo; o que estava certo, pois o universo dentro de
Douglas Bailey era topologicamente idêntico a Douglas Bailey dentro do
universo. Assim, quando o universo tragasse a si próprio, êle talvez ficasse
livre de sua loucura.
Deve ser privação dos sentidos, pensou no meio do redemoinho.
Estando morto, não tenho corpo; conseqüentemente, não tenho sentidos,
60
nem energia sensorial; conseqüentemente, são alucinações, e já devo ter
sido reduzido a cinzas. Como não tenho meios para medir o tempo, — se
este tem algum significado após a morte, — talvez séculos já se tenham
passado, desde que me tornei uma estatística. Pobre e pequena estatís-
tica, jogada para sempre na tempestade e na contagem. Não deveria ter
tido tanta pressa para morrer.
Por que me apressei?
Não posso me lembrar. Não consigo me lembrar. Havia os edifícios,
sim, e os jardins arranjados com gosto. Entrei — ou será que não? — ;
sim, acho que entrei para procurar, oh, conselho. Talvez alguém para me
dizer que eu ainda não estava tão ruim assim, que eu deveria ir para casa
e pensar novamente, com mais calma. Mas, a partir do momento em que
cruzei aquêle limiar, não era mais um homem; era uma categoria que seria
lançada de escrivaninha a escrivaninha, gentilmente, cortêsmente, — mas
com tanta rapidez que não tive nenhuma chance de pensar —, até chegar
inexoravelmente àquele quarto no final do corredor.
O que se passou durante minha última hora de vida ? Não sei.
“Cem mil cento e dez”, contou Deus, “cem mil cento e onze, cento
e um mil.”
“Não sei!” a estatística gritou. “Não consigo me lembrar!”
“Cento e um mil e um, cento e um mil e dez.”
“Por que fizeram isto comigo?” gritaram os fragmentos. “Por que
me deixaram fazer? Sabiam que eu estava demasiado doente para pen-
sar.”
“Cento e um mil e onze.”
Mais que isso. O número de pessoas doentes era muito maior. Mas
dar-nos a liberdade de escolher a morte não era liberdade. Assassinavam-
nos.
“Cento e um mil e cem.”
Cale-se, maldito! Onde estava Você, quando me assassinaram? Por
que Você deixou que fizessem isso ? Não eram mais sãos que o enxame
patético de psicóticos, neuróticos e psiconeuróticos que convidavam a
morrer. Poderiam ter-nos curado... poderiam ter tentado, pelo menos...
não deveriam ter...
“Clique”, disse Deus. E houve o silêncio, e fêz-se a escuridão sobre
a face das profundezas.
... não deveriam ter-nos dado essa “escolha” que os livra de qual-
quer obrigação. Deveriam ter assumido sua responsabilidade para conos-
co; deveriam ter-nos confiado à guarda de alguém e nos obrigado a ficar
61
bons.
Que se faça Douglas Bailey.
E Douglas Bailey foi feito.

SEGUNDO DESTINO

Pegaram-no praticando o vício da solidão em seu apartamento de


solteiro. A porta foi aberta de sopetão. Dois homens possantes entraram.
“Fique onde está,” disse um, numa arranhada voz de baixo. “Mãos ao alto.
Um passo atrás. Isto é uma batida.”
O fato foi como um pontapé no estômago. Bailey cambaleou, qua-
se caiu e ficou sem ar. A luz do sol e os murmúrios do tráfego através
de uma janela aberta, as formas familiares das cadeiras, mesas, cortinas,
o cheiro limpo de terebintina, tudo parecia repentinamente irreal à sua
consciência. Por outro lado, sentia as pulsações de seu pulso, o suor sobre
a pele, os joelhos sem força.
— O. K. — disse o outro detetive ao superintendente do edifício. O
homenzinho estava encolhido no saguão. — Dê o fora.
— Sim, senhor. Imediatamente.
— Mas não se afaste de seu posto. Alguém irá falar com você mais
tarde.
— Certamente, — respondeu o superintendente, com os dentes
a bater. — Qualquer coisa que possa fazer para ajudar. — Saiu correndo.
Êle deve ter fornecido uma chave-mestra, pensou Bailey no mal-
estar que o sufocava. Assim todas as precauções haviam sido inúteis.
— Bem, bem, bem. — O primeiro detetive colocou-se na frente do
cavalete. — Que pensa disto, Joe?
— Parece um caso, realmente. — Era difícil diferenciar aqueles
dois, com a mente a rebentar de terror. Estavam vestidos da mesma ma-
neira, com roupas civis corretamente discretas; tinham ambos o cabelo
cortado à escovinha, uma face de pedra, e eram excessivamente possan-
tes; consideravam o trabalho de Bailey com o mesmo desagrado um pou-
co enojado, como se fossem os restos de uma chacina.
— Mas isso é apenas um passatempo que tenho! — Bailey ouviu
sua própria voz dizer lugubremente. — Nunca... nunca... nunca foi um
segredo.. .todo mundo sabe que pinto quadros... ora, o Presidente reco-
menda os passatempos...
— Esta espécie de pintura? — bufou Joe.
— Você não anda mostrando coisas assim por aí, não é? — acres-
62
centou o companheiro de Joe.
“Não”, pensou Bailey. “Fui cuidadoso.”
Item 1: As paisagens e retratos convencionais que produzia, eram
para êle um passatempo semelhante à tapeçaria de Penélope. Entedia-
vam-no, mas deveriam ter evitado qualquer curiosidade sobre o material
artístico em sua casa.
Item 2: Sua porta ficava fechada à chave sempre que pintava para
valer. Um armário de fundo falso ficava aberto, pronto a receber e escon-
der a tela, e uma pintura convencional, quase terminada, ficava à mão,
pronta para substituir a outra (um total de quinze segundos de movimen-
tos bem ensaiados)... se alguém batesse. Como o apartamento era no
terceiro andar e havia um armazém no outro lado da rua, não precisava
fechar as persianas, o que provocaria suspeitas.
Item 3: O local não era muito conveniente para seu trabalho, mas
ficava bem no centro do bairro de Haight-Ashbury. Antes do Ato de Saúde
Mental, esse bairro fora um tradicional antro de excêntricos. Conseqüen-
temente, fora tratado e limpo de forma tão completa — os próprios edifí-
cios haviam sido destruídos, reconstruídos em estilo higiênico e recondi-
cionados para fins saudáveis — que tornara-se o bairro mais respeitável
de São Francisco. A vigilância era mais severa ao redor da zona portuária
e de Mob Hill. Mas a burguesia de Haight-Ashbury? Ora, eles tinham o
índice de estabilidade normal mais elevado da cidade.
Item 4: Todo o caráter secreto que tinha sua vida.
Será que fora isso o que o atraiçoara afinal? Êle próprio? Alegria
demais ou de menos, ambição insuficiente, negligência nas organizações
sociais, pouca ou demasiada castidade — será que algo assim levara al-
guém a pensar que seria melhor denunciar Douglas Bailey como üm pos-
sível doente mental? Talvez, talvez, talvez. Mas como se comporta um
homem são?
— Bem, — disse Joe, — vejamos seus papéis.
— Mas é apenas uma pintura... à Van Gogh...
— Que orelha você pensa cortar? — perguntou Joe surpreendente-
mente. Ou talvez não tão surpreendentemente. Diziam que o esquadrão
encarregado da saúde mental da cidade tinha uma coleção de trabalhos
patológicos, pornográficos e ainda outros proibidos, que se comparava
favoravelmente com a do FBI.
O outro homem continuava a olhar fixamente os violentos azuis
e amarelos do campo de ranúnculos que Bailey estivera pintando. — As
flores não crescem tanto assim, — disse. — E você não tem perspectiva.
63
— Sacudiu a cabeça e estalou com a língua. — Rapaz, você está doente.
— Isto a Clínica, é que vai decidir, — disse Joe. — Mas vejamos os
papéis, Mac.
Bailey apresentou-lhe a carteira de modo mecânico. Joe passou
por cima da carteira de motorista, da licença pata trabalhar, do cartão de
recrutamento, do atestado de vacina, da licença para consumir bebidas
alcoólicas, do cartão da segurança social, do cartão da biblioteca... — Ei, o
que você está fazendo com um cartão da classe B?
— Sou um sociólogo, — murmurou Bailey. — Pesquisa. Necessito
consultar livros especializados, algumas vezes... periódicos.
— Sim? Depois você pedirá um cartão de classe A, para retirar tal-
vez uma cópia de Krafft-Ebbing? — Joe riu, mas continuou a busca até
encontrar o cartão de controle psíquico.
— Vê ? — Bailey conseguiu engolir em seco. — Apropriadamen-
te perfurado. Todos os anos nos, nos... últimos seis anos ?... exatamente
como a lei exige. A última vez foi... há quatro meses atrás ?
— Olhe, amigo, —disse Joe com um cansaço forçado, — deixemo-
nos de brincadeiras. Você sabe quanto um EEG anual à toa pode revelar,
quando deve ser dado a três milhões de pessoas neste país. Se isto pudes-
se indicar todos os giras, eu agora estaria sem emprego, não é mesmo?
— Enfiou a carteira no casaco. — Pode-se sentar, Bailey. Naquele, canto,
fora do caminho. Venha, Sam, vamos dar uma busca rápida neste lugar.
O outro homem fêz que sim com a cabeça e dirigiu-se à estante de
livros. Tirou de seu bolso uma lista de títulos que comparou com os dos
volumes. Era um processo lento, principalmente porque todos os livros
encapados tinham, de ser abertos, como também outros ao acaso, para
terem certeza de que nenhum fora reencadernado. Seus lábios moviam-
se. Joe era mais organizado; revistava as gavetas como um cão de caça
perseguindo ratos.
Bailey sentou-se numa cadeira, como haviam ordenado. Um en-
torpecimento invadiu-lhe o corpo. Por que preocupar-se? Que diferença
fazia? Se ao menos pudesse dormir. Talvez sonhar, dormir, morrer. Não
espere, você está começando de novo. Retraimento. Fuga. Desejo de iso-
lamento. Os elementos esquisóides básicos contra os quais você lutou, aos
quais procurou se adaptar (?) e que escondeu desde que o tratamento das
doenças mentais se tornou compulsório... porque não sou demente, não,
não, não.
Mas estou tão cansado. Se ao menos o mundo desaparecesse e me
deixasse em paz.
64
Depois de uma hora, Joe e Sam compararam as notas. Não haviam
descoberto o compartimento secreto, mas parecia haver elementos sig-
nificativos em vários outros itens. Bailey não sabia o que ou quais, Estava
seguro de que não havia deixado nada proibido a descoberto. Mas, sem
dúvida, a lei permitia uma série de coisas, simplesmente porque a posse
das mesmas era esclarecedora a um observador treinado. Bailey não sa-
bia o que pudes se ser, — informações psiquiátricas acima do nível mais
elementar só eram acessíveis aos que possuíam o cartão A —, e os dete-
tives murmuravam baixo demais para que pudesse ouvir alguma coisa.
Não fazia mal. Sua apatia atingira o ponto culminante.
— O. K., levá-lo-emos e providenciaremos para que uma divisão
venha e desmanche esta espelunca — disse Joe.
— Quer dizer que você e eu não conseguimos ? — Sam devia ser
novo no emprego, provavelmente transferido de outra divisão.
— Merda, não! Por que você acha que as ordens são de colocar
tudo de volta no lugar, exatamente como você encontrou? Um verdadeiro
perito pode dizer, a partir do modo como sua roupa de baixo está dobra-
da, se o gira quer assassinar o pai ou deformar a mãe.
— Ou ambas as coisas? — Sam arreganhou os dentes.
— Neste caso, acho que seria bem possível. Lembre-se que temos
um mandado de prisão urgente contra êle. Outra razão para que o leve-
mos o mais rápido possível.
— Joe dirigiu-se com passos largos até a cadeira — o assoalho tre-
mia um pouco sob seu peso — e agarrou o braço de Bailey. — De pé,
cabeça de porongo. Há um doutor amável à sua espera.
Bailey deixou-se arrastar. Pararam para fechar a porta à chave e
rotulá-la. O boato devia ter percorrido o edifício, pois os corredores e as
escadas estavam vazios. Os passos ecoavam.
Lá fora, a luz do sol estava cruelmente brilhante; jorrava de um céu
de verão onde algumas gaivotas rodavam com o movimento elegante de
suas asas. Um dia assim chegava à alegrar até as formais e graves fachadas
que se alinhavam ao longo da rua, e as formais e graves vestimentas dos
pedestres que se ocupavam sobriamente de seus afazeres. Os carros pas-
savam por ali quase sem fazer ruído, devido a seus silenciadores elétricos;
ainda tinham um certo espalhafato, pensou Bailey. O veículo da polícia
podia passar despercebido; era um Chevrolet 1989 e tinha, portanto, a
parte superior da carroceria transparente.
Num rompante de rebeldia, Bailey exclamou: — Por quê ?
Joe lançou-lhe um olhar severo. — Por que o quê?
65
— Carros civis. Obrigados a ter o interior totalmente visível. Isso
não é levar o fetiche do não-isolamento a extremos ridículos ?
Sam puxou uma caderneta e começou a escrever. — Como se es-
creve “ridículo”? — perguntou.
— Oh, deixe estar, — disse Joe. Bailey voltou ao seu silêncio. Joe
abriu o carro e tomou a direção. Os outros dois sentaram-se na parte de
trás. Como Bailey não tinha vontade de olhar para nenhum de seus cap-
tores, fixou os olhos na paisagem.
Passaram pelo gigantesco aparelho de televisão local. Pela primei-
ra vez, desde que se mudara para o bairro e aprendera a ignorar a tela,
Bailey prestou atenção. Estava colocado numa parede perto de uma pa-
rada de ônibus. Como sempre, quando não havia nenhuma participação
especial a fazer, incitava o público à higiene.
“Não deste modo!” gritava, e, por um momento, aparecia a ima-
gem de uma pessoa esquálida, toda curva, que tagarelava, enquanto tira-
va puigas imaginárias de si mesma. O momento era curto, para que não
provocasse o desenvolvimento de uma possível hipocondria latente em
algum espectador. “Mas assim!” Seguia-se uma família bem americana: o
pai robusto, a mãe bonita, mas digna e sem muito busto, e quatro crianças
saudáveis marchando para o futuro com sorrisos de dentifrício. Entre as
crianças, havia, por ordem, uma nórdica, uma negra, uma oriental e uma
cujo nariz judaico estava tão exagerado, que não podia haver dúvidas a
seu respeito. Evitar os ressentimentos das tensões provocadas pela mino-
ria era, afinal, mais importante que uma genética rigorosa. “Sim, assim!”
(Toque de trombetas) “Para ser limpo, certo, feliz...” (Rufar de tambores)
“PENSE DE MODO LIMPO! PENSE DE MODO CERTO! PENSE DE MODO FE-
LIZ!”
Um pouco mais adiante havia um cartaz que, recordou Bailey, o-
ferecia uma recompensa de dez mil dólares ($10,000) por qualquer in-
formação que acarretasse a prisão e tratamento de qualquer pessoa que
padecesse de desordem psíquica incomunicada.
Na calçada ali por perto, um policial uniformizado entregou uma
convocação a uma mulher de meia idade. Talvez ela lhe tivesse respondi-
do de maneira insolente, talvez fosse uma fiscalização acidental; de qual-
quer maneira, Bailey reconheceu o pedaço de papel côr-de-rosa. “Pelo
presente, você está intimado a se apresentar no centro em que está re-
gistrado... antes da data de... exame e nova certificação da estabilidade
nervosa... deixar de comparecer, sem poder provar a impossibilidade, a-
carretará em...” A mulher parecia mais incomodada que assustada. Uma
66
medida tão drástica como o Ato não teria sido aprovada, se a maioria da
população não tivesse sentido que algo deveria ser feito a respeito da inci-
dência crescente de doenças mentais. E a lei não teria se tornado vigente
sem a cooperação dessa mesma maioria.
O carro da polícia dobrou na esquina do Parque Golden Gate e pas-
sou pelo Estádio Kezar. Os alunos de uma aula de higiene de uma escola
primária estavam sentados na grama, com uniformes asseadamente bran-
cos. A professora mantinha-se de pé à sua frente. Era jovem e atraente, e
já não se viam mais com tanta freqüência encantos femininos assim tão à
mostra. (Que acrobacia ela tinha de fazer para não provocar nem a vergo-
nha em relação a funções naturais, nem o interesse erótico!) No passado,
Bailey apreciara tais espetáculos. Desviava a atenção do que ela dizia pau-
sadamente: “Agora, crianças, é a hora de pensar em coisas boas. Vamos,
primeiro, pensar sobre a bela luz do sol. Um, dois, três e quatro...”. Mas
hoje êle estava fechado em sua noite particular. E o carro passou muito
rapidamente.
Subiram uma ladeira íngreme, até que, no seu topo, os edifícios da
Clínica apareceram como penhascos escarpados. Bailey lembrava-se do
tempo em que haviam sido o Centro Médico da Universidade. Mas isso
fora antes que um único tipo de doenças tivesse prioridade absoluta.
O carro parou no portão principal para a identificação. Além de
dois guardas corpulentos, podia-se ver a fila usual no dispensário: pacien-
tes de ambulatório, casos beirrando a gravidade, que eram obrigados a
se apresentar todos os dias para receber os tranqüilizantes prescritos.
Apesar de toda a propaganda afirmar que os problemas emocionais não
eram mais desonrosos que qualquer outro tipo de doença, os pacientes
entravam furtivamente, com as cabeças inclinadas, e se esgueiravam na
saída, sozinhos. O assistente que fazia com que a fila se movesse estava
entediado e quase não era cortês.
Contudo... talvez eu pudesse ter-me livrado desta maneira, pensou
Bailey. Se tivesse confessado meu tumulto bem no começo, talvez êle pu-
desse ter sido detido, talvez eu pudesse ter-me adaptado... Mas não. De-
sanimou-se. Não queria me adaptar. Queria seguir meu próprio modo de
ser. E agora é tarde demais. Em seu desespero, mal notou quando o carro
começou a andar de novo, ou quando parou e conduziram-no à maior de
todas as casas. Todavia, o elevador que o levou aos andares superiores,
era tão semelhante a um caixão para três, que teve de se esforçar para
não gritar.
Depois viu surgir um longo saguão branco e sem características,
67
cheirando um pouco a antisséptico e percorrido por alguns sussurros. No
final, havia um escritório com um balcão. Atrás deste, estava sentado um
servente. Atrás do servente, por sua vez, trabalhava um grupo de secretá-
rias e máquinas. Não deram atenção aos recém-chegados.
— Aqui está êle, — disse Joe.
— Bailey.
— Então vamos fazer um ID, — disse, o servente. Pegou um formu-
lário de uma pilha e o entregou com uma caneta a Bailey. Estava grampe-
ado com várias folhas de papel carbono. — Preencha isto.

Bailey levantou os olhos.


— Mas isto é um requerimento, — disse fracamente. — Não sou
obrigado a preenchê-lo, não é?
— Acho que não, — disse o servente. — Mas, se não o fizer, isso
provará que é incapaz, e você será automaticamente internado.
Bailey escreveu. Depois, examinaram-lhe os dedos e o alcance da
visão. — Sim, é êle, — disse o servente. — Vocês podem ir agora, rapazes.
68
— Rabiscou num pedaço de papel. — O recibo de vocês.
— Obrigado, — disse Joe. — Até logo, Mac. Vejo-o no boliche. Ve-
nha, Sam. — Os detetives saíram.
O servente ligou o sistema de intercomunicação do hospital. —
Você está de sorte, Bailey — informou. — O Dr. Vogelsang pode vê-lo
imediatamente. Tenho visto pessoas esperarem três dias antes de serem
atendidas. É um pouco aborrecido.
Bailey seguiu-o pelo saguão, caminhando tão desamparadamente
como num sonho. Mas o escritório a que chegou, despertou-lhe nova-
mente a vivacidade. Era bem diferente de tudo o que encontrara até en-
tão. Revestimento de carvalho, tapetes altos, duas pinturas chinesas de
bom-gôsto, música — sim, por Deus, embora sussurrante, era certamente
a “Sonata ao Luar” de Beethoven; e, atrás da escrivaninha, encontrava-se
um homem pequeno, de cabelos brancos e feições bondosas, com trajes
quase temeràriamente coloridos. Levantou-se para apertar a mão de Bai-
ley.
— Bem-vindo a bordo, Mr. Bailey, — sorriu. — Muito prazer em
conhecê-lo. Não preciso de mais nada, Roger.
— O senhor não acha que êle deveria ser... contido? — perguntou
o servente.
— Oh, não, — disse o Dr. Vogelsang. — Claro que não. — Quando a
porta se fechou e eles ficaram sozinhos: — O senhor deve desculpá-lo, Mr.
Bailey. Na verdade, êle não é muito inteligente. Mas temos tanto trabalho,
tanto o que fazer, que temos de nos arrumar com o pessoal disponível.
Sente-se, por favor. Cigarro? Ou, se prefere, tenho charutos.
Bailey reclinou-se numa cadeira extraordinariamente confortável.
— Eu... eu não fumo — disse. — Mas se... uma bebida, talvez ....?
Vogelsang surpreendeu-o com um riso. — Mas claro! Excelente
idéia. Não ligue, se eu também tomar. O mais antigo tranquilizante e ain-
da um dos mais eficazes, hem? Que tal um Scotchl?— Usou o sistema de
intercomunicação.
Bailey não conseguia encontrar os olhos que se moviam rapida-
mente, mas perguntou: — O que me trouxe aqui?
— Oh, várias informações. Pessoas que se preocupam muito pelo
seu bem-estar. Sugeriram que investigássemos, a seu respeito. E, franca-
mente, há elementos um pouco perturbadores nas suas fichas. Elementos
que deveriam ter sido estudados com mais atenção há muito tempo —
teriam sido eventualmente estudados; mas, como disse, temos carência
de pessoal. Ainda temos de confiar, em grande parte, no próprio paciente,
69
em sua capacidade educada para reconhecer os primeiros sintomas, em
sua vontade educada para vir logo em busca de ajuda. — O Dr. Vogelsang
sorriu. — Mas, por favor, não imagine que estamos zangados porque o
senhor não o fêz. Compreendemos que o senhor não é totalmente senhor
de si mesmo no presente. Nosso único desejo é curá-lo. Intrinsecamente,
o senhor tem uma mente ótima, Mr. Bailey. Seu QI coloca-o entre os 5%
superiores. A sociedade necessita de mentes como a sua — mentes liber-
tas de culpas, terrores, desequilíbrios metabólicos, qualquer coisa que as
faça operar com menos da metade de sua eficiência e torne a pessoa tão
infeliz. Ah, aqui está.
Entrou uma enfermeira com uma bandeja. Sobre esta, encontra-
vam-se a garrafa, o balde de gelo, copos, soda. Ela sorriu para Bailey, tão
afetuosamente quanto o médico.
— À sua saúde, — brindou Vogelsang.
— O que... o senhor vai fazer? — Bailey animou-se a perguntar.
— Ora, pouca coisa. Desejamos fazer uma série de testes de diag-
nóstico, antes de decidirmos a respeito de um curso de ação. Não se pre-
ocupe. Estou convencido de que sairá daqui antes do Natal.
O Scotch era bom. A conversa era agradável. Bailey perguntou a si
mesmo se os boatos não teriam exagerado o que se passava na Clínica.
E, na verdade, os primeiros dias consistiram apenas em entrevis-
tas, questionários polifásicos, testes de Rorschach, narco-síntese, estudos
de laboratório; eram cansativos, quase sempre embaraçosos, mas, de ma-
neira alguma, insuportáveis.
Entretanto, decidiram que êle pertencia à Ala 7. Essa era destinada
aos casos de distúrbios sérios.
Na Ala 7, tentaram choques, tanto de insulina como elétricos. Isto
reduziu o notável QI numa percentagem perceptível. Quando não deram
resultado, consideraram a cirurgia, lobotomia pré-frontal ou leucotomia
transorbital. Como Bailey já encontrara um grande número de seres ve-
getativos, produtos de tal tratamento, gritou e tentou lutar. Chorou de
gratidão quando o Dr. Vogelsang indeferiu a sugestão e ordenou a nova
terapia de excitação, ainda em fase de experiência. Para tal, Bailey foi
preso por correias, enquanto uma corrente de baixa tensão passava por
seus nervos. A dor era incrível. O Dr. Vogelsang observava cada minuto do
processo.
— Tsk, tsk, — disse, depois de uma ou duas semanas, e sacudiu
a cabeça branca. — Nenhum resultado, hem? Bem, receio que não pos-
samos continuar assim. Mas temos de dissolver esses maus padrões de
70
pensamento de alguma maneira, não é? Seu problema não parece residir
em sua química glandular. Não é assim tão simples. Usaremos algumas
técnicas pavloviarias e veremos o que acontece.
Privação de sonhos. Privação do sono. Frio. Calor. Fome. Sede.
Campainhas soando. Recompensas, quando os pensamentos apropriados
eram recitados. Castigo, quando não o eram. Mas os resultados permane-
ceram desalentadores. Pelo menos, segundo uma análise em profundida-
de; Bailey já não sabia mais no que acreditava. — Meu Deus, meu Deus,
— disse o Dr. Vogelsang — receio que tenhamos de ir um pouco além. Os
métodos pavlovianos quase sempre conseguem resultados decisivos com
a castração.
Bailey pulou para atacá-lo, mas a correia do pescoço impediu-lhe o
movimento. — O senhor não pode fazer isto comigo! — gemeu. — Tenho
meus direitos!
— Vamos, vamos. Seja razoável. O senhor sabe, tão bem quanto
eu, que a Suprema Corte declarou o Ato de Saúde Mental constitucio-
nal, de acordo com a cláusula interestadual. Por favor, não se preocupe.
A operação não doerá nem um pouco. Eu próprio a executarei. E é claro
que primeiro congelaremos alguns espermatozóides. O senhor quererá
ter filhos depois de ficar curado. Todo homem normal deseja isto.
Mas isto também não adiantou.
— Não creio que devêssemos continuar com este gênero de trata-
mento, — disse o amável Dr. Vogelsang. — Tem seus aspectos penosos,
não é mesmo? E, no seu caso, por alguma razão, parecem apenas aumen-
tar sua hostilidade básica. Penso que o melhor será recriá-lo.
— Recriar? — A mente de Bailey procurou compreender através do
atordoamento em que fora recentemente mergulhada. — O quê? Matar-
me? O senhor vai me matar?
— Oh, não! Não, não, não! Os boatos são tão deturpados, por mais
que tentemos esclarecer o público. É certo que este processo substitui a
pena capital. Mas isto não quer dizer que o senhor seja um criminoso. An-
tes, significa que o criminoso também é um homem doente assim como o
senhor. Não pensaríamos em regredir ao desperdício bárbaro do assassi-
nato legalizado, — O Dr. Vogelsang ficou indignado. — Especialmente no
seu caso. O senhor tem potencialidades maravilhosas. Estão apenas opri-
midas por atitudes más que, infelizmente, se tornaram uma parte integral
de sua personalidade. Assim, — animou-se, — começamos tudo de novo,
hem? Uma técnica recente, mas perfeitamente segura, perfeitamente
digna de confiança. Um tratamento eletroquímico altera completamente
71
a formação do RNA, que é a base física da memória. Toda a memória,
todos os hábitos, todos os últimos maus e velhos engramas desaparecem.
O senhor começa de novo, limpo, forte, novo em folha. Uma tabula rasa,
onde os peritos gravarão uma personalidade diferente, sã, sociável, extro-
vertida, ajustada, eficiente! Não será ótimo?
— Hum, — disse Bailey. Queria que fossem embora e o deixassem
dormir.
Mas quando, por fim, colocaram-lhe o capacete na cabeça, amar-
raram-no numa cama, pingaram-lhe drogas nas veias e, enquanto seu ge-
mido se tornava cada vez mais alto, sentiu afastarem-se...
...o pôr do sol púrpura nas colinas de Eastbay; a primeira e única
garota que beijara; uma curiosa taberna antiga, num certo verão quando
era jovem e estava fazendo uma excursão a pé pela Inglaterra; uma corri-
da branca morro abaixo nas rampas de esqui da High Sierra; Shakespeare,
Beethoven, Van Gogh, o trabalho, os amigos, o pai, a mãe, a mãe...
... os instintos animais reviveram, e êle gritou com a angústia do
terror: “Se isto não é a morte, o que é a morte então?”
Foi apagado o último traço do que fizera com seus dotes genéticos
e do que lhes havia sido feito, e êle estava morto.
A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo
lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de
novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres
monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com
o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos
e os trovões faziam seus dentes bater.
Olhos? um espanto crispou-lhe a mente. Dentes? Mas estou mor-
to. Usarão meu corpo para criar outra pessoa. Não, espere, não está cer-
to. Cremarão meu corpo. Aceitei voluntariamente a eutanásia, quando
já não podia mais suportar minha desgraça. Não, também não foi isso.
Apagaram-me a mente, depois de me terem tornado tão miserável, que já
não importava mais nada.
“Zero,” contou Deus, “um, dez, onze, cem, cento e dez.”
Bailey procurou agarrar-se à realidade, qualquer realidade, nas
torrentes da noite. Uma vertigem o sugava por uma espiral infinita. Mas
a única realidade era êle próprio. Agarrava-se a isto. Sou Douglas Bailey,
pensou contra o polvo voraz. Sou... sou... um sociólogo. Um louco. Que
mais ? Morri duas vezes, depois de duas vidas diferentes e horríveis.
Que havia sido mais? Não consigo me lembrar. O vento sopra forte
demais.
72
Espere. Um lampejo. Não, passou.
“Mil e onze,” contou Deus o Simulador, “mil e cem, mil cento e um,
mil cento e dez.”
Por que Você faz isso comigo ? gritou Bailey. Você é tão ruim quan-
to eles. Mataram-me duas vezes. Uma vez, com a indiferença. Chamavam-
na liberdade — liberdade de escolher a morte, mas não se preocupavam
conosco; sua única preocupação era reduzir o número de pessoas. Afas-
taram-se de nós, estabeleceram uma máquina social automática para nos
processar, fizeram o possível para nos esquecer. E, depois, mataram-me
com o ódio. Devia ser ódio, crueldade, desejo de matar, por mais que fa-
lassem de cura. Que mais poderia ser? Como é possível tomar um ser
humano e fazer dele um objeto (objetivo), a menos que a verdadeira meta
seja subtrair-lhe a humanidade, torná-lo algo rastejante, porque se odeia
sua humanidade ?
“Dez mil, dez mil e um, dez mil e dez, dez mil e onze.”
O espaço girou sobre si mesmo, e o tempo dividiu-se como o delta
do Estige. O vento soprou e soprou.
Meu problema era real. Estava sofrendo. Necessitava ajuda e amor.
Clique. O vento parou. A escuridão esperava-o.
Por favor, pediu Douglas Bailey, chorando. Ajudem-me. Preocu-
pem-se comigo. Dêem-me seu amor.
Assim foi feito.

TERCEIRO DESTINO

Tendo acabado de se lavar, separou repentinamente as pernas e


olhou entre elas.
Mas por que deveria fazer isso? perguntou a si mesmo. Está tudo
em ordem. É claro.
Mas ainda não estou bem, lembrou a si mesmo. Colapso nervoso
agudo, uma possível esquizofrenia incipiente. Andava fazendo coisas ain-
da menos racionais, antes de me persuadirem a vir aqui.
Enquanto puxava novamente as calças, olhou-se no espelho acima
da pia. Era alto e de ombros largos. Não julgava que Birdie Carol lhe men-
tia, pelo menos quando elogiava seu corpo. Contudo, estava se deterio-
rando: pouco exercício, remédios demais. Não gostava disso, mas nunca
conseguia reunir a energia necessária para tomar alguma providência. E
o rosto era chocante : pálidas maçãs do rosto, olhos cercados de olheiras
fundas, o cabelo escuro despenteado.
73
Não tinha como medir exatamente sua piora. Poucas pessoas o
conseguiam. Tudo acontecera tão gradativamente. Mas sabia que, após
a breve euforia que se seguira à sua admissão ao hospital, estava pioran-
do rapidamente. Tanto mental como fisicamente — os problemas físicos
eram consequência dos mentais, estava bem pior que quando entrara.
O que não deveria ser. Segundo todas as teorias, não deveria ser.
Um tique numa pálpebra. Afastou-se do espelho. Isto fêz com que
se defrontasse com as paredes. Eram cor-de-rosa, com pinturas de ursi-
nhos e cavalinhos de pau. Detestava o rosa. “E também podia passar sem
desenhos infantis no quarto,” resmungara certa vez.
Birdie dera-lhe uma palmadinha no joelho. Estavam sentados lado
a lado no sofá da sala. — Sei, querido, — dissera, — mas o Dr. Breed acha
“que isso ajudará, a longo prazo. E, francamente, acho que êle tem razão.
— Como assim?
— Bem, a idéia é recriar sua infância. Isto é, o amor, a confiança
e a inocência que você tinha então. Sei que parece tolo, mas um motivo
infantil deve recordar seu pobre subconsciente de tudo que foi perdido, e
lembrá-lo de que há uma maneira de voltar atrás.
— Que amor, confiança e inocência? — dissera Bailey. — Lembro-
me muito bem de minha infância que foi cem por cento típica. Foi arrasta-
do para a escola e odiado a cada minuto. O valentão do bairro costumava
esperar por mim, na volta da escola, para me bater. Mas, por alguma ra-
zão, nunca pude contar a meus pais. Uma ou duas vezes, li uma estória de
fantasmas e passei várias noites acordado, tremendo de medo. Atropela-
ram meu cachorrinho. Pegaram-me fazendo...
— Chega, querido. — Colocara uma mão grande e macia contra
seus lábios e chegara-se mais para perto dele. A colônia que sempre usa-
va, tinha um perfume excessivamente doce. — Sei. Queremos dizer uma
infância ideal. Você tem de aprender... bem lá no fundo... você tem de
aprender a amar. E a ser amado. Então ficará bom.
— Olhe, — dissera, enquanto sua exasperação crescia em progres-
são geométrica, — suponhamos que meu problema não seja uma neuro-
se autista ou qualquer outro rótulo que vocês lhe tenham dado. Suponha-
mos que seja uma esquizofrenia orgânica. Que relação pode ter com este
amor de que você vive falando ?
Birdie sorrira com rima paciência infinita. — O amor é uma exigên-
cia básica da forma de vida mamífera, — dissera. — Nós somos mamífe-
ros. — Sua constituição física não deixava dúvidas a este respeito. — Os
bebêzinhos, nos orfanatos, costumavam morrer, porque não recebiam ca-
74
rinho. Se alguém recebe um pouco de amor, mas não o suficiente, morre
por falta de amor, quando maduro. A deficiência o deforma e enfraquece,
como se fosse um raquitismo. O que estamos fazendo é dar-lhe o amor
que necessita para tornar-se certo e forte.
Levantara-se de um pulo. — Já ouvi isso mais de vinte vezes, até
ficar a ponto de vomitar! —gritara. — E que dizer da verdadeira psicose?
— Bem, sim, suponho que seja um distúrbio de metabolismo, —
respondera Birdie. — Ou assim os cientistas pensam. Embora eu ache que
essas doenças também são provocadas por falta de amor. Você não acha?
— Eu... eu...
— De qualquer maneira, — dissera ela, — a esquizofrenia acarreta
uma perda de comunicação com o mundo exterior. Não se pode esperar
uma cura sem restabelecer a comunicação, não é mesmo? Pense, querido,
e verá que tenho razão. Mas o amor é a ponte que une todos os abismos.
Bailey quisera replicar com um nome feio, de preferência obsceno.
Mas os que conseguira recordar eram muito fracos, Birdie levantara-se,
jogara para trás o cabelo loiro e desabotoara o vestido. — Penso que de-
veríamos fazer amor de novo, — dissera animadamente.
Não tinha muita vontade, mas ela o coagira... e que mais havia
para fazer? Assim acabaram no quarto de dormir. Só que, desta vez, não
fora capaz de fazer amor. Ela fora muito compreensiva; embalara-o em
seus braços e cantara para que dormisse. Contudo, precisara primeiro de
um barbitúrico.
Talvez essa lembrança fosse o que o levara a se preocupar agora
com... Malucos! Não há nada errado comigo a este respeito, exceto que
estou tão cheio disso...
Deixou o banheiro. Seu apartamento não era grande, mas era
confortável e agradavelmente mobiliado. Dirigiu-se até a janela da sala e
olhou para fora. Havia grades na mesma, mas apenas contra algum pos-
sível ataque de sonambulismo, conforme haviam assegurado. Tinha fran-
quia aos jardins. Assim que ficasse melhor, poderia tirar licença para pas-
sar fora os fins-de-semana. Entrementes, todos os amigos que desejasse
ver, podiam visita-lo.
A vista do vigésimo andar do maior edifício do Centro Médico era
magnífica pelo que abrangia à distância. O parque de Golden Gate esten-
dia seu manto verde em direção ao oceano que resplandecia com a luz do
sol. Vislumbrou a ponte que se elevava na desembocadura da baía, a água
que corria cintilante para as colinas; da margem leste, gaivotas, barcos,
navios, aviões. Uma brisa fresca, com cheiro de mar, entrou no quarto e
75
trouxe consigo um remoto som de tráfego.
Era, entretanto, demasiado remoto, demasiado abafado; e, afora
a magnificência do conjunto de edifícios no topo da colina, São Francisco
demonstrava decadência: aqui uma vitrina vazia, lá um prédio de aparta-
mentos arruinado. A economia da grande cidade estava tão deteriorada
quanto Douglas Bailey. Como sociólogo, observara os dados. Não havia
dúvida. Nem podia haver dúvida sobre a causa deste estado de coisas.
Se a doença mental, em todos os seus graus — desde a excentricidade
amena até a total insanidade, estava adquirindo proporções epidêmicas
e se os Estados Unidos haviam assumido a obrigação moral de cuidar das
vítimas tão prodigamente quanto fosse necessário, alguém tinha de pagar
por isso. Os impostos e as inflações coletavam o dinheiro, causando seus
usuais efeitos colaterais.
Argumentara contra este plano de ação. Ainda argumentaria con-
tra êle, supôs, apesar de se ter tornado um de seus beneficiários. Mas os
avisos dessa pequena minoria, da qual fazia parte, eram um desperdício
de tempo. Ou as pessoas se recusavam a aceitar os fatos da vida eco-
nômica, ou arregalavam os olhos e perguntavam: “Você quer dizer que
alguma coisa pode ser mais importante que o bem-estar das pessoas que
amamos?”
Talvez, pensou abrupta e desanimadamente, a futilidade de seus
esforços tivesse ajudado a causar o colapso que o colocara no hospital.
Então a sensação de estar preso e de ter sido logrado tomou conta
de todo o seu ser, até não poder pensar em outra coisa. Golpeou o pu-
nho contra o peitoril da janela, uma vez, duas vezes, três vezes. “Mal-di-
tos. Mal-di-tos. Mal-di-tos.” A cantilena tornou-se mais rápida. “Malditos,
malditos, malditos-malditos-malditosmalditosmalditosm alditos, Uúuuu,
Uúuuu, ch-ch-ch-ch-ch-ch...”
— Duggie! O que está fazendo?
Bailey parou. Virou-se bem devagar. A figura gorducha de Birdie
Carol ocupava a passagem da porta do saguão. Carregava um buquê de
ranúnculos. Como sempre, seu vestido era comum, um pouco vistoso;
apenas um broche indicava que era uma técnica psiquiatra.
Engoliu um pouco de sua raiva, embora ela quase o estrangulasse,
e retorquiu: — Poderia perguntar o mesmo a você.
— Ora, vim vê-lo. — Fechou a porta e correu para êle. — Veja, trou-
xe flores para você. Certa vez você me disse que gostava de ranúnculos.
Eu também os adoro.
— Intrometendo-se na minha vida como uma... como uma... uma
76
intrusa...
— Mas, querido, não podia deixá-lo sozinho. Este é o seu proble-
ma, você sabe, isolamento. Pense um pouco e verá que tenho razão. Você
deveria sair mais. — Chegando-se a êle, parou e deu-lhe uma palmadinha
no ombro. — Você deveria, realmente. Vá reunir-se com os outros pacien-
tes nos quartos de recreação. São pessoas maravilhosas quando se chega
a conhecê-los; eles o são realmente. E as recepcionistas sociais também
são tão queridas. Querem ajudá-lo... ajudá-lo a se divertir, ajudá-lo a ficar
forte de novo. Como é aquela bela e antiga expressão alemã? Você a co-
nhece; significa...
— Kraft durch Freud, — sugeriu Bailey.
— Isto significa “força através da alegria”? Porque é a essa que eu
me referia. Mas, oh, querido, tenho de colocar essas pobres e sequiosas
flores num vaso com água, não é mesmo ? — Birdie começou a mover-se
de novo. Suas madeixas loiras saracoteavam-se, mas as cadeiras balan-
çavam-se como massas sólidas. Havia, de fato, uma solidez em todos os
seus aspectos, uma espécie de total controle físico — mesmo numa tarde
quente em que estivera com êle na cama, ela não suara; isto havia sido
confortador nos primeiros tempos: a imagem da Mãe Terra.
Mas por que a Mãe Terra tinha de tagarelar?
— Essa expressão foi um lema nazista, — disse Bailey.
— Oh, realmente? Que interessante! Você sabe tantas coisas, Dug-
gie querido. Assim que ficar bom de novo, será capaz de encontrar tantas
maneiras maravilhosas de ajudar os outros. Não é mesmo? — Tomou um
vaso de plástico inquebrável de cima de uma mesa e sacudiu a cabeça
tristemente para as rosas sem espinhos que estavam lá dentro. — Pobres
rosas. Receio que já tiveram seu pequeno dia de vida. Mas se ajudaram a
alegrá-lo, tiveram sua utilidade, não é mesmo?
Bailey cerrou os punhos. — Por exemplo, —disse, — sei que os
nazistas mandavam para as câmaras de gás todas as pessoas que não se
enquadravam no seu esquema. Mas, pelo menos, não pregavam pensa-
mento positivo a elas.
— Não, suponho que não. — Birdie jogou reverentemente as rosas
no conduto do lixo e levou o vaso, os ranúnculos e sua enorme bolsa para
o banheiro. — Esse pobre homem... Era Hitler seu nome? Como deve ter
tido carência de amor!
Deixou a porta aberta. Bailey podia ter evitado a visão das paredes
côr-de-rosa com ursinhos e cavalinhos de pau, olhando para fora. Mas,
por alguma razão mórbida, tinha de olhar bem naquela direção. Talvez,
77
pensou, isto fizesse com que os odiasse mais.
— Sem dúvida, foi uma grande crueldade dos outros países decla-
rar guerra contra os nazistas, — disse entre dentes.
Birdie colocou sua bolsa em cima da caixa da descarga e revistou-
a. — Certamente, — replicou. — Não digo que não devessem ter liberta-
do os prisioneiros; se realmente houve prisioneiros. Você sabe como é a
propaganda em tempo de guerra. Agora que já se passaram — quantos?
— cinqüenta anos, você acredita realmente, verdadeiramente, que seres
humanos pudessem ter agido daquela maneira? Honestamente, não con-
sigo.
— Eu consigo. Sei o que é uma evidência histórica. Também sei
como os seres humanos estão agindo hoje em dia. Cometendo crimes
violentos, dizem.
— Sim, sim, querido; mas será não você não compreende? Supo-
nhamos que essas coisas terríveis fossem verdadeiras. Ou sejamos rea-
listas e pensemos a respeito de atos de hoje que — sim, eu sei — são
cometidos por pobres e desnorteadas vítimas de uma sociedade insen-
sível. Agora suponhamos que as pessoas que estivessem sendo atacadas
ou mesmo conduzidas às câmaras de gás e aos fornos, se isto realmente
aconteceu, suponhamos que se virassem e dissessem com os olhos bri-
lhando de amor: “Vocês também são vítimas. Vocês são nossos irmãos.
Venham, vamos nos abraçar”. — Birdie inclinou-se para fora da porta e
colocou seu intenso olhar de um azul diluído diretamente sobre êle. —
Você não compreende o que isso ocasionaria? Não consegue sentir que
mudança ocorreria ?
— O método não parece me ter melhorado muito, — disse Bailey
com um convulsivo movimento de ombros.
— Bem, leva tempo. — Birdie retornou à sua ocupação. Tirou da
bolsa um canivete e começou a cortar as hastes dos ranúnculos. — Mas o
verdadeiro amor é infinito, — disse. — O verdadeiro amor não sabe o que
é impaciência, cólera, desespero e fim.
Não pôde conter-se; teve de dar um passo em sua direção, depois
outro, enquanto um fragor subia-lhe à cabeça. — Você me ama? — dis-
se, numa voz que lhe soou remota e ôca. — Ou sou apenas parte de seu
trabalho?
— Amo todos, — falou amorosamente.
— Na cama também?
— Oh, Duggie. o amor não é ciumento. Amar é partilhar. Uso meu
corpo apenas como uma maneira de amá-lo.
78
Êle estava na entrada do banheiro, balançando-se sobre os pés. —
Mas você se interessa por mim? — gritou. — Por mim, exclusivamente,
especialmente; não porque sou um bípede sem penas, mas porque sou
eu!
Ela não se ruborizou. Nunca havia visto uma mudança desta espé-
cie em sua pele cremosa. Mas suas pestanas tremeram, e ela baixou os
olhos — Bem, — murmurou, — tenho pensado, algumas vezes, que, se
isto o fizesse feliz, poderíamos nos casar quando você ficasse bom. Um
nome tão doce, não acha? Birdie Bailey.
Êle gritou em seu tormento, arrebatou-lhe a faca e cortou, cortou,
cortou.
— Por favor, não faça isto, — disse ela. — Isso não é um ato de
amor.
Abriu-lhe o ventre de um golpe. Por um momento, através da es-
curidão que crescia a seu redor, viu os fios, os transistores, os chumbos
termogênieos supercondutores,. o acumulador de serviço pesado. Teria
parado de atacar, mas seu braço já estava em movimento.
A faca cortou a fita isolante ao redor de um cabo. A força provocou
um curto-circuito através de seu corpo. A sensação era de ódio; um belo
ódio limpo e claro que penetrava em seu ser, apoderava-se dele e o fazia
participar da onda destrutiva. Mas, quando seu coração teve uma fibrila-
ção, isso doeu.
Numa nuvem de fumaça, Douglas Bailey caiu sobre Birdie Carol.
É claro que ela era uma máquina, pensou seu último fragmento de
consciência. Nenhum ser humano poderia- ter mantido tal representação.
Seu pulso parou, e êle estava morto.
A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo
lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de
novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres
monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com
o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos
e os trovões faziam seus dentes bater.
Olhos? um espanto chispou-lhe a mente. Dentes? Mas estou mor-
to... Espere um minuto. Espere só um momento. Quantas mortes já mor-
rera ?
“Zero,” Deus contou, “um, dez, onze, cem.”
Por que Você não me dá uma chance de pensar? Gritou, frustrado.
Concentrando-se, conseguia manter um certo equilíbrio no caos.
Êle era Douglas Bailey. Sociólogo Psiconeurótico. Finalizando sua vida
79
numa instituição — três vidas diferentes e três instituições diferentes,
cada uma pior do que a outra.
Por que o Simulador estava fazendo isso com êle?
Bem, o problema era bem real. A psicopatologia crescia cada vez
mais. A sociedade tinha de resolver esse problema de alguma maneira.
Mas nenhuma das três tentativas fora bem sucedida. Nenhuma,
realmente. Indiferença assassina, maldade assassina, amor assassino. Na
verdade, este último não era nem amor — ou, pelo menos, não era uma
espécie sadia de amor. Não passava de outro modo de tentar compelir as
pessoas a aceitarem a estrutura que as deformara.
O amor era aceitar o ser amado, quer este estivesse certo ou er-
rado; era adaptar-se, dentro de limites razoáveis, ao comportamento do
companheiro, e não forçá-lo a adaptar-se ao seu; era dar-lhe a liberdade
e, ao mesmo tempo, permanecer a seu lado para ajudá-lo, se houvesse
algum problema.
“Cento e onze, mil, mil e um.”
Se as condições sociais fossem responsáveis pela epidemia, a cura
residia numa reforma básica. Mudar as condições sociais. Remover as
pressões insuportáveis.
Clique. O caos repousou.
Chega de pressões, ordenou Douglas Bailey. Que eu viva na primei-
ra civilização genuinamente livre do mundo.
Isto lhe foi concedido.

QUARTO DESTINO

— Sim, estou deprimido, — disse o homem que estava sentado à


esquerda de Bailey. Tinha seus trinta anos, era de estatura mediana, tinha
o cabelo ruivo e estava muito bêbado. “Quem não estaria?” Terminou seu
uísque com gelo e colocou-o barulhentamente sobre o balcão do bar. —
Outro, — pediu. E para seu companheiro: — Quer outro?
— Não, obrigado, — disse Bailey.
— Oh, vamos lá. Eu pago. É o mínimo que posso fazer, depois de
ter abusado assim de sua paciência. É bondade sua me escutar, eu, um
estranho e tudo o mais. Mas se Jim Wyman — esse é o meu nome — se
Jim Wyman chora no ombro de alguém, Jim Wyman espera pagar pelo
privilégio.
— Não há problema, — disse Bailey. — Estou interessado pelo que
você está me contando. Estive fora durante alguns anos, compreende?
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Acabo de chegar. As coisas mudaram.
— Certamente que sim, Sr.... Sr...., certamente que mudaram. O
lugar nunca mais será o mesmo de novo, isto é certo. Garçon! — berrou
Wyman. — Onde está a outra dose?
Bailey cerrou os maxilares, temendo uma cena embaraçosa. Não
queria ser expulso do bar. Queria permanecer na escuridão refrescante,
no ambiente elegante dos antigos móveis de mogno e tapetes grossos;
queria beber devagarzinho o único Scotch com água que ousava tomar
e passar uma hora em paz, procurando reaver sua coragem. Haviam-no
avisado de que São Francisco, como todas as outras cidades americanas,
havia mudado; mas não lhe haviam dito que a mudança seria assim tão
chocante.
O garçon considerou Wyman por um momento, deu de ombros
e serviu a dose. Um outro sintoma, Bailey pensou. A Taberna de Drake
outrora nunca teria servido bebida alcoólica a um homem evidentemente
bêbado. Mas, quando se olhava com mais atenção, via-se como a decora-
ção elizabetana tornara-se poeirenta e surrado.
— Você estava me dizendo que faz R e D em computadores, — dis-
se, com a esperança de acalmar Wyman.
Funcionou. A voz do homem até tornou-se mais clara. — Sim. No
Centro Médico. Ou melhor, fazia. Até ontem. Agora não faço mais. Can-
celado o projeto. E teria sido o maior golpe desde... desde... Não, maior
ainda. Fun-da-men-tal!
— Qual era o projeto?
Veio a ser algo de que Bailey já ouvira falar em teoria, antes de ficar
doente. Ligações diretas entre o homem e a máquina eram uma velha
idéia; e já eram familiares os membros protéticos, dotados de energia,
ligados diretamente ao sistema nervoso de amputados, que haviam sido
desenvolvidos por volta de 1980. Mas a integração do cérebro humano
com um computador apresentava dificuldades numa outra ordem de
grandeza. O problema não era a conexão. Não eram necessários fios no
crânio ou outra tolice qualquer. Por amplificação e indução, os impulsos
podiam fluir em ambas as direções, dos neurônios aos transistores e vice-
versa, simplesmente através de canais eletromagnéticos. Mas o problema
era como estabelecer uma linguagem comum. Nunca fora demonstrado
que uma estrutura encefalográfica particular correspondesse a um pen-
samento particular, e, na verdade, as provas eram em contrário. O pensa-
mento parecia ser um funcionamento incrivelmente complexo de toda a
rede cortical.
81
— Mas já temos algo básico, — disse Wyman. — Descobrimos como
proceder. A idéia é que não são necessários códigos especiais. Precisamos
apenas de uma correspondência para cada unidade. Mais ou menos como
as línguas afins. Você pode dizer a mesma coisa em inglês e alemão, na
medida em que palavras diferentes significam a mesma coisa. Provaram,
na seção de neurofisiologia, que o cérebro pode incorporar qualquer có-
digo digital em seus próprios processos, desde que haja uma correspon-
dência única. Depois os rapazes da matemática elaboraram uma porção
de teoremas. Você compreende, os novos dados transformaram todo o
problema numa questão de demarcação dos elementos. Um problema
topológico. Compreende? Quando tivermos a solução desses teoremas
em nossas mãos, ora, aí poderemos ir adiante. R e D. Desenvolver a “es-
pécie correta de computador e a espécie correta de programação. Não vai
ser fácil; vai ser necessário esforço pessoal, alguns anos de trabalho, mas
sabemos que podemos fazê-lo. E você calcula o que significaria o sucesso?
Bailey fèz um sinal com a cabeça, animadamente. Estava se sentin-
do melhor a cada minuto. Por mais bêbado que Wyman estivesse, falava
a linguagem da ciência. E ouvi-la, depois dos últimos anos perdidos, era
como um retorno ao lar. A disciplina de Bailey havia sido a sociologia, mas
ela também estava impregnada de matemática agora, e....
E o sistema homem-computador tinha potencialidades fantásticas.
Com efeito, o imenso armazenamento de dados da máquina, a velocidade
com que consultava sua memória, sua capacidade de realizar operações
lógicas em microssegundos seriam acrescentados, ou melhor integrados
com a criatividade e conotação humanas. Durante a ligação, os dois se-
riam uma coisa só, um computador que estaria continuamente se pro-
gramando, uma mente tão poderosa que o QI não teria mais significado
algum. Eles/êle/a coisa considerariam, pela primeira vez na história inte-
lectual, a totalidade de um problema.
Deveriam se precaver contra certos perigos óbvios, e, sem dúvida,
outros problemas menos evidentes manifestar-se-iam à medida que o tra-
balho fosse progredindo. Mas as recompensas finais pareciam dignas de
qualquer risco.
— Bem, não vamos fazê-lo. — Wyman curvou-se sobre o copo. —
Não há verba disponível. Recebi a resposta ontem. Por isso, agora estou
tratando de me embebedar..
— Como, não há verbas? — perguntou Bailey. — Pensei que o NSF
despejasse um caminhão carregado de dólares sobre uma proposta dessa
espécie.
82
— O quê? Onde você esteve, amigo ? Já se passou o tempo em que
o NSF tinha dinheiro para distribuir. O NIH também não tem. Requeremos
a ambos. A todos os que talvez pudessem ajudar. Nada. A saúde mental
é cara demais. Por outro lado, o governo mal pode manter em funcio-
namento os poucos programas existentes. A Defesa, por exemplo; seria
natural que tivessem interesse pela defesa, não é mesmo? Pois bem, com
os diabos, êles certamente têm interesse, mas você sabe em que con-
dições estão os órgãos da segurança nacional. A Força Aérea aceitando
passageiros comerciais, o USS Puerto Rico no alto mar como um cassino
flutuante...apenas para que os serviços possam financiar uma quantia mí-
nima para a defesa. Foi por essa razão que recusamos no caso da Guiana,
no ano passado. Oh, o Presidente tentou salvar as aparências e falou so-
bre “acordo honroso sem pressão militar”... mas, com os diabos, todo o
mundo sabe que houve pressão militar — sobre nós — da Venezuela, pelo
amor de Deus!
Uma lágrima caiu no copo de Wyman. — Maldito seja aquele ho-
mem, — resmungou. — Que vá para o inferno. Maldito seja por toda a
eternidade. Foi quem nos arruinou. Aposto como o governo francês insti-
gou-o a fazer o que fêz. Aposto o que você quiser, como êle escreveu seus
livros e fêz seus discursos de propósito.
— De quem você está falando? — perguntou Bailey.
— Você sabe. O professor. O francês. Não consigo pronunciar seu
maldito nome. Aquele das idéias de proteção aos doidos.
— Espere um minuto. — Bailey empertigou-se na cadeira. Sua pele
começou a formigar. — Você não quer dizer Michel Chanson d’Oiseau ?
— É esse o homem. É esse. Shansong Dwahso. Aposto como era
realmente um agente chinês; só podia ser, com um nome assim. Sabia que
este grande país piegas, sentimental e estúpido gostaria de suas idéias,
que faria tudo por êle, que se destruiria por suas idéias. Foi quem nos
arruinou. Arruinou meu projeto. Arruinou meu país. Agora não se pode
fazer mais nada a não ser sustentar um bando de vagabundos inúteis e
birutas. — Wyman levantou o copo. — Abaixo Shansong Dwahso!
— Não. — Bailey levantou-se. Sua cadeira caiu estrondosamente
no chão.
— O quê? — Wyman olhou-o com os olhos semicerrados.
Não deveria me zangar, Bailey sabia. Ainda não estou bem. Disse-
ram-me para ter cuidado, para não ficar emocionado, para conservar as
emoções sempre sob controle até que meus nervos se tornem mais es-
táveis. Mas, não obstante, a cólera crescia, indispondo-o, repugnando-o,
83
abalando-o. Disse asperamente: — Para seu governo, sou um desses va-
gabundos inúteis e birutas.
— O quê? Você?
— Não acredita em mim? — Bailey tirou a carteira do bolso das
calças. (Dissera-lhes que não precisavam lhe dar um terno tão bom, mas
responderam-lhe que manter uma certa moral era importante para sua
recuperação.) Folheou-a até encontrar o cartão que atestava sua condição
de doente mental. — Fui liberado hoje de manhã, depois de passar cinco
anos no Hospital Estadual NAPA, — disse. — Antes de ficar doente, era um
membro útil da sociedade. Mas, depois, passei por um pesadelo que você,
com sua presunção, não pode nem começar a imaginar. Salvaram-me no
NAPA. Não poderiam ter sido mais bondosos. De acordo com o que lhes
permitia a capacidade de seus conhecimentos, procuraram dar uma nova
unidade à minha mente. Estou agora numa fase de recuperação. Quando
ficar completamente curado, o que espero que eventualmente aconteça,
voltarei a trabalhar, E então pagarei de bom grado o imposto para ajudar
os que não estão bem.,
— Mas... mas... — Wyman tentou falar.
Bailey interrompeu-o brutalmente:
— O que você queria que o país fizesse? Nos últimos vinte anos,
a percentagem das doenças mentais cresceu quase exponencialmente.
Alguma coisa tinha de ser feita. Que se podia fazer? Matar-nos? Subme-
ter-nos a uma lavagem cerebral? Exilar-nos? Deixar-nos morrer de fome ?
Todas estas eram medidas possíveis. Mas eu, junto com alguns milhares
de outros seres humanos, dou graças a Deus que Chanson d’Oiseau nos
mostrou a maneira decente de solucionar o problema... e que você vá
para o inferno!
Jogou o conteúdo de seu copo no rosto de Wyman.
— Garçon! — gritou Wyman. — Viu o que êle fêz ? Viu o que este
psicótico sugador da riqueza pública fêz comigo?
— Tome cuidado com o modo de falar, — replicou o garçon. — Êle
tem seu certificado, não é mesmo? Portanto, a lei diz que temos de fazer
concessões.
— Ela diz isso? — exclamou Bailey. Maravilhado, derramou o copo
de Wyman na cabeça deste.
— Ei, — disse o garçon. —Tenha dó, companheiro. Tenho de limpar
depois.
Bailey virou-lhes as costas e saiu a passos largos.
A luz do sol caía brilhantemente de um céu sem nuvens e cheio de
84
vento e gaivotas. Bailey procurou ignorar o fato dela iluminar o estado mi-
serável de edifícios outrora magníficos, as calçadas sujas, as vitrinas sem
brilho, os pedestres mal vestidos. O custo era certamente grande, mas a
obrigação tinha de ser cumprida. Como Chanson d’Oiseau escrevera: —
(Bailey deliciou-se mentalmente com a nobre passagem tantas vezes lida
e traduziu-a para o inglês, enquanto caminhava.)
“Tendo demonstrado, nos capítulos precedentes, que a loucura
epidêmica surge de uma situação que o homem criou coletivamente (de-
vido à superpopulação, à supermecanização, à organização, à desperso-
nalizacão, contra o que os instintos mais profundos do animal humano se
revoltam), considero agora o que deve ser feito a respeito destes animais
humanos revoltados. Seu número está, na verdade, criando um tal ônus e
perigo, que a compaixão para com eles tende a desaparecer. Todavia, sua
condição não é devida a uma falha própria, mas a um fracasso maciço da
sociedade. Portanto, deve-se procurar uma cura social para esta doença
social.
“A solução que proporei e apresentarei detalhadamente é das mais
radicais. Mas o que significa radical’? A palavra vem do latim radix, que
significa raiz; e assim as propostas radicais são aquelas que vão à raiz do
problema,
“É óbvio que os serviços clínicos devem ser fornecidos gratuita-
mente durante todo o tempo necessário para cada caso individual. Mas
a psiquiatria é imperfeita. Se acaso existirem, as curas totais são muito
poucas. O paciente que tende à instabilidade ou que recuperou uma cer-
ta estabilidade depois de passar um período internado no hospital, não
deveria nunca mais ser exposto às pressões intoleráveis que causaram
sua doença. Ou melhor, deve ficar livre delas. Todo seu esforço deve ser
dirigido à recuperação ou, pelo menos, a procurar evitar qualquer pio-
ra. Portanto, êle deveria receber um estipêndio do Estado, o suficiente
para sustentá-lo e a seus dependentes num padrão decente de vida. E,
enquanto seu comportamento não se constituir numa verdadeira ameaça
para os outros, deveria ser liberado de restrições legais e ter liberdade
para dar vazão a seus impulsos conforme suas necessidades ...”,
Bailey gritou. Um carro parou derrapando. Branco, o motorista
inclinou-se para forae gritou; — Por que não olha por onde anda, biruta?
— Oh. — Bailey voltou a si com o choque e viu que estava no meio
da Rua Post e que a luz da sinaleira estava contra êle. — Eu...
Os carros paravam forçosamente ao redor da cena e buzinavam.
Uma multidão aglomerou-se. Um possante policial de uniforme azul a-
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briu caminho por entre as pessoas. — Está bem, está bem, — dizia, — que
está acontecendo? -— Compreendeu a situação. — Um pedestre impru-
dente, hem? Quer se matar, Mac ?
—Eu... eu... — Um medo irracional, mas terrivelmente real aperta-
va a garganta de Bailey.
— Aplique-lhe uma multa, seu polícia, — pediu o motorista. —Tire-
o já daí. É uma ameaça às grades dos radiadores.
Tut! Tut! Tut! — Por Judas, — gemeu o policial, — teremos um
engarrafamento de tráfego daqui até a cidade de Daly por sua causa. Ve-
nha para cá! Saia da rua! Deixe-me ver seus... — Mas Bailey já lhe dera a
carteira.
O queixo do policial caiu. — Com os diabos, por que não me disse
logo? — exclamou. O carro já estava arrancando. O policial correu e api-
tou para que parasse. — Você aí! Estacione! Não sabe que quase matou
um infeliz ?
O motorista ficou branco de novo.
— Sim, — disse uma voz na multidão, e insultou-o também. Cha-
mou-o de biruta.
— Tem certeza ? — perguntou o policial.
— Tenho, sim. — O falante deu um passo à frente. — Eu próprio o
ouvi, seu polícia. Só Deus sabe que danos psíquicos este bruto inflingiu.
Várias testemunhas confirmaram. O policial disse: — Desculpe, Sr.
Bailey, não posso multá-lo por crime de insulto, a não ser que o senhor
venha ao posto e faça a queixa, pedindo um mandado de prisão. O senhor
deseja fazer isto ?
Bailey engoliu em seco e sacudiu a cabeça.
— Bem, de qualquer maneira, posso intimá-lo por um 666, — disse
o polícia severamente, — E êle comparecerá ante o juiz Jeffreys. Cuidarei
disto pessoalmente. Ninguém consegue insultar impunemente na minha
zona.
Bailey sentiu que deveria dizer alguma coisa, mas estava demasia-
do abalado. Desejando apenas fugir, desapareceu entre a multidão que
lhe abriu caminho, e passou à praça Union. A grama estava muito irre-
gular e necessitava um corte, mas as bandeiras ainda flutuavam em seus
mastros...
Espere. Essas deveriam ser as bandeiras americana e da Califórnia,
não é? E não uma bandeira de piratas, outra do SPQR, outras de Campbell
e dos Amigos em Intima União...
O homem que fora sua primeira testemunha tocou-o no braço. —
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Posso ajudá-lo, caro rapaz ? — murmurou. — É evidente que você recém
chegou à nossa bela cidade.
—Bem, eu... eu estive no NAPA, — disse Bailey.
— E agora está sozinho. Que horror! Você poderia ter levado dias
até encontrar seus verdadeiros companheiros. — O homem era pequeno,
asseado, limpo e falava com educação; de fato, por mais pormenoriza-
damente que Bailey observas-se, seu único traço singular era roupão de
veludo azul sem cinto. Apertou-lhe a mão lentamente e disse: — Chame-
me Jules.
— Bailey. Douglas Bailey. Eu... ahn... você também... um infeliz?
— Mas é claro, rapaz encantador, mas é claro. Você tem muita sor-
te de eu estar aqui por acaso. Poucos de nós descem a esta área. Sem um
guia, você poderia ter ficado desamparado entre verdadeiros láteros.
Um homem de uniforme preto surgiu da multidão, subiu num ban-
co e anunciou: — Amigos! Meus queridos amigos sub-humanos! Escutem-
me! Esta é uma mensagem muito vital. Vocês notarão que sou da raça
caucasiana. Bem, amigos, tenho uma surpresa para vocês. Sou bastante
singular. Sou um racista — um racista dedicado e fanático — que mantém
e pode cientificamente provar que sua própria raça é inferior. Os únicos
humanos verdadeiros sobre a Terra, meus amigos, a principal linhagem da
evolução, os senhores do futuro, são os nobres melanesianos.
Bailey e Jules circularam por ali.
— Mas parece haver tipos individualistas aqui, — disse Bailey.
— Oh, meu pobre inocente replicou Jules. — Como pode distingui-
los? Não seja tão ingênuo. Fica encantador em você, mas é ainda assim
uma ingenuidade. A metade dos oradores da praça Union é sadia. Apenas
cedem a seus impulsos interiores, sabendo que uma força policial, sobre-
carregada de trabalhos, dificilmente lhes pedirá os certificados. E a outra
metade... ora realmente, querido você não concorda que são tão desagra-
dáveis como os láteros?
— Láteros ?
Jules deu-lhe uma palmada nas costas. — Vejo que terei de me en-
carregar de você. Realmente terei de fazê-lo. Não, não, não. Não precisa
ficar agradecido. O prazer é meu. É, por assim dizer, minha arte espiritual.
Apresentá-lo-ei às pessoas que têm importância. Dar-lhe-ei as informa-
ções necessárias. Remodelarei sua personalidade. Em resuma, criá-lo-ei.
— O quê ? Hem, espere um momento, eu...
Jules tomou o cotovelo de Bailey e levou-o adiante. — Láteros,
— disse — vem de quadriláteros. Quadrados nas quatro dimensões. Os
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insensível e inflexívelmente sãos. Mas insisto que estes pseudodoentes
mentais aqui do centro, mesmo os que têm certificado, são também láte-
ros. Têm as mesmas preocupações — sociedade, sucesso, ostentação — e
não têm o menor conceito de espaço interior. Ora, certa vez ouvi um falar
sobre Deus e perguntei-lhes se já apreendera o infinito pela simples con-
templação de uma caixa de aveia, e êle simplesmente cuspiu! — Cruzaram
a rua. — Levá-lo-ei diretamente à casa de Genghiz. Tenho certeza de que
devem estar começando uma festa lá. É nessa hora que sempre come-
çam. E êle tem amigos mais encantadores... Ah, chegamos. — Jules parou
junto a um Volkswagen. O prazo de estacionamento já estava esgotado,
mas evidentemente o rótulo no pára-brisa ou talvez os folhos ao redor do
chassi tomavam conta disso.
— Você tem carteira de motorista? — perguntou Bailey admirado.
Jules fêz que sim com a cabeça. — Faz com que eu seja muito
necessário em meu pequeno círculo de amigos. São poucos os que têm
permissão para dirigir, compreende. Alguns ficam verdadeiramente furio-
sos com isso. Mas devo concordar, apenas cá entre nós, querido, que a
sociedade tem alguns direitos em relação aos infelizes. Não muitos, mas
alguns. Entretanto, consegue encontrar alguma razão que impeça um ho-
mossexual de dirigir?
— O quê? Mas... mas... seu caso...
Jules fêz um trinado alegre com a língua. — Oh, meu bem, como
foi que trataram você no NAPA ? Nunca lhe permitiram ler jornais? Nem
ouviu noticiários? Ora, foi o grande acontecimento da última eleição. Está-
vamos até divididos entre nós mesmos. A Sociedade Mattachine dizia que
havia trabalhado tanto para conseguir que nos aceitassem como cidadãos
normais, apesar de singulares. Pobres queridos! Faltava-lhes apenas um
pouco de realismo. As recompensas da condição de “infeliz” compensam:
o rótulo. E, de qualquer modo, não deve mais ser considerado como um
estigma, não é? Todos os candidatos — quero dizer simplesmente todos
os candidatos através de toda a nação — que apoiavam a mudança da
lei para que fôssemos declarados casos mentais, foram eleitos por uma
maioria esmagadora. Não tinha pensado que houvesse tantos de nós.
Agora, upa upa para dentro do carro, e comecemos nosso alegre passeio.
Bailey subiu automaticamente, reconhecendo sua própria fraque-
za, mas incapaz de fazer qualquer coisa a respeito. Além do mais, pensou,
não tinha o que fazer. Poderia ser divertido. Sempre posso sair, se não o
fôr. Espero.
Dirigiram-se para o oeste, pelas colinas, em direção a Haight-Ash-
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bury. Jules indicava-lhe os lugares por onde passavam. O Templo de Ishtar:
— Bem, talvez eu também tenha certos preconceitos, mas acho que esses
que padecem de satiríase e ninfomania são um pouco vulgares. Onde já
se viu fazer de sua doença uma religião incorporada às leis do Estado da
Califórnia? Tão sem sentido. — A neblina de marijuana no pátio de recre-
ação infantil de Hamilton: — Esse litígio foi à Suprema Corte. O que os
pais doentes podiam ou não podiam fazer a respeito da educação de seus
filhos? A Corte achou que, segundo a emenda 14, era arbitrário exercer
controle oficial sobre tais famílias, quando nenhum dano físico estivesse
sendo infligido. — A vista distante das ruínas de Oakland: — Tão trágicas.
Mas suponho que, com os encargos que têm, sem falar dos pedidos de
admissão que excedem, em muito, o espaço disponível, as instituições
deviam ser perdoadas por terem acreditado na Cura de um incendiário.
Um grupo barulhento de homens e mulheres, vestidos apenas com dese-
nhos artísticos, estavam posando para as câmaras de um casal de aspecto
estrangeiro: — Acho que esses turistas são russos. Ultimamente, temos
tido muitos russos aqui. Riem e riem. Por que será?
Quando o carro parou, Bailey engoliu em seco e esteve a ponto de
sair correndo. Ao longo da rua, havia casas velhas que tinham as vidraças
quebradas, as portas descaídas, as telhas frouxas e as estruturas sem pin-
tura e cambaleantes. As calçadas estavam cobertas de uma camada de
lixo que chegava até ao tornozelo. Não se podia passar para o próximo,
quarteirão, porque dois automóveis haviam colidido e nunca haviam sido
removidos; eram agora dois cascos enferrujados, e um rato saiu correndo
de um deles. Na rua, havia somente um viciado numa varanda apodreci-
da, alegremente injetando a droga em si mesmo. Uma brisa fria espalhava
o forte cheiro do lixo, e havia sombras impenetráveis entre as paredes
pendentes. Em algum lugar, alguém estava gritando, alto e com uma re-
gularidade horrível.
Jules sentiu a apreensão de Bailey e bateu-lhe levemente na mão.
— Não se preocupe, — disse o homenzinho. — Sei que isto talvez lhe dê
uma impressão um pouco... sinistra, não é mesmo ? Mas, realmente, essa
sua bela cabeça está em segurança aqui. É simplesmente que:. ... bem,
os láteros têm suas próprias áreas, mas não podem monopolizar toda a
cidade, não é? Este bairro foi entregue aos infelizes para que fizessem o
que bem entendessem. Porque uma das causas das doenças não foi uma
conformidade excessiva à sociedade?
Bailey tomou coragem e acompanhou Jules a uma mansão eduar-
di-ana de três andares, com torreões e incrustações, que fora subdividida
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em apartamentos. — Não deveríamos levar alguma coisa? — disse. — Se
estamos invadindo uma festa... quem sabe uma garrafa ou um baralho?
Jules bateu com o pé. — Você deve livrar-se dessas preocupações!
— gritou. — O que poderia ser mais aborrecido que uma “festa”? — Êle
quase pronunciou as aspas. — Como é possível organizar o divertimento?!
E quanto às bebidas, se você não tem realmente os recursos interiores
para ficar alto, ora, haverá bebidas em profusão. Genghiz Khan conhece
Joe o Calvo, compreende ?
— Êle conhece ?
Jules acalmou-se e explicou: — Temos um infeliz que pensa que
é Joe o Calvo. Você certamente se lembra de seus clássicos. Joe o Calvo
fazia bebidas alcoólicas. Portanto, aquele que se julga Joe o Calvo, deve
ter permissão para fazer bebidas alcoólicas. E conceder-lhe uma licença
ou fazê-lo pagar o imposto feriria sua psique. Assim o custo é mínimo.
— Piscou e enterrou o polegar entre as costelas de Bailey. — Não foi fácil
conseguir este certificado. Joe o Calvo é o homem mais sutil que conheço.
Num saguão de entrada sombrio e cheio de teias de aranha, havia
uma escada que conduzia ao som das vozes e do que Bailey supôs ser mú-
sica. — Ei, quem você disse que é o nosso anfitrião? — perguntou.
—Oh! — Jules bateu no peito. — Que bom você ter-me lembrado!
Poderia ter acontecido algo terrível, se você não soubesse que deve ad-
mitir sua ilusão. Cuide para chamá-lo de Genghiz Kahn. Seu nome é... era
realmente Ole Swenson, mas não se deve falar nisto. Enquanto, você o
obsequiar de modo razoável — você sabe, ajoelhar-se e tocar o chão com
a cabeça quando da apresentação, tremer de medo e perguntar sobre
sua conquista da China —, êle se revela um amor de pessoa. Mas, caso
contrário, bem, devo admitir que pode-se tomar terrivelmente, terrivel-
mente mau.
— Violento?
— Oh, não! Céus, não! — Jules lançou as mãos para cima. — De
onde você tem estas idéias deturpadas ? Admito que alguns dos meus
amigos são um pouco estranhos, mas a culpa não é sua; é da sociedade.
Tenho certeza de que, no fundo, são todos pessoas muito boas. — Baixou
a voz. — Entretanto, quanto a Genghiz, tome cuidado. Se você não tratá-lo
como o Imperador de todos os homens, êle... êle o processará. Por dano
psíquico. E ele freqüentemente ganha as causas.
Bailey molhou os lábios que haviam-se tornado secos e subiu, após
Jules, a escada que rangia.
Mas, assim que entrou no ritmo da festa, esta revelou-se inofen-
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siva. Na verdade, lembrou-lhe seu tempo de estudante em Berkeley. As
roupas estranhas, os corpos um pouco sujos, as conversas honestas e um
pouco pomposas, os agarramentos nos cantos das salas que tinham as
paredes pintadas de preto, cobertas com panos de pára-quedas ou deco-
radas segundo a última moda não-conformista, tudo isso lhe era muito fa-
miliar. Lembrou-se de que aquelas pessoas tinham o certificado de serem
dignas de confiança; eram capazes de enfrentar o mundo, desde que este
lhes desse o necessário para viver. Como êle.
A festa tornou-se maior e mais barulhenta, quando o dia passou
lentamente à noite. Alguns voluntários fizeram uma arrecadação — ao
contrário de outras festas boêmias, não faltava dinheiro a esta — e trouxe-
ram o necessário para fazerem sanduíches. Bailey ficou no apartamento,
circulando, travando conhecimento com as pessoas, conversando; admitiu
que Jules lhe fizera provavelmente um favor. Era uma festa interessante.
Teve algumas decepções ocasionais. Por exemplo, sua discussão
com um antigo professor de Economia foi interrompida por um jovem de
túnica, cabelo pela cintura:
— Ei Phíl, já sabe o que aconteceu a Tommy?
— Não, o quê? — replicou o professor. Era um homem grisalho,
gentil e de fala macia, que parecia mais conformado que alegre com seu
desalinho.
— Foi espancado, — disse o jovem. — Os policiais pegaram-no com
a esposa.
— Bem, bem. — O professor sacudiu a cabeça. — Não posso dizer
que sinto muito. Você sabe que nunca aprovei.
— Ora, deixe-se deste seu lance de látero, — disse o jovem. — Não
podemos deixar que os quadrados façam esta espécie de coisa. Temos
que fazer algo.
— Qual é o problema? — perguntou Bailey.
Agora, com um copo de vinho na mão e outro já em seu corpo,
sentia-se quase audaz.
— Companheiro novo? — disse o jovem. — É o seguinte: Tommy
conseguiu o certificado no ano passado. Caso incurável de impotência
conjugal.
— Você quer dizer que não era?
— Claro que não. Tommy é o maior garanhão da Costa Oeste. Forte
como um cavalo. Mas acho que a informação chegou até os quadrados.
Imaginem! Espionar a vida particular de um homem. Que espécie de po-
lícia temos, afinal?
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— Mas uma pessoa que se finge de doente... — Bailey viu que es-
tava se dirigindo às costas da túnica.
O professor sorriu: — Receio que isto se tornou tão comum, que
é verdadeiramente respeitável em alguns grupos, — disse. — Este jovem
não esconde de seus amigos que sua monomania religiosa nada mais é
que uma maneira que descobriu, de viver sem trabalhar.
— E você não o delata?
— Não, lamento dizer que não tenho coragem de ser um delator.
— O professor suspirou. — Meu colapso foi bem genuíno. Tente explicar a
moderna política econômica americana.
Uma ou duas horas mais tarde, Bailey estava de pé, junto a um
grupo que escutava um negro loquaz:
— Rapaz, vou lhe contar, nós podemos fazê-lo. Tudo o que necessi-
tamos é organização. Se os homossexuais conseguirem, por que não os de
côr? Já no caso de Brown contra o Departamento de Educação, a Suprema
Corte demonstrou como a discriminação afeta a psique. Certo? Certo. E,
com ou sem lei, ainda temos discriminação neste país. Assim, por que não
deveríamos fazer com que fosse aprovado um projeto de lei declarando
que todas as pessoas de côr são casos mentais? Será que os brancos não
nos devem isto?
— Bem, — respondeu Genghiz Khan, — se o mesmo pensamento
pudesse ser aplicado aos mongóis e suecos...
— Certamente, — disse o negro. — Por que não? Estava pensando
que deveríamos nos unir com os judeus. Mas a maior parte dos judeus
colocou-se ao lado dos quadrados. Assim, por que não vocês, ao invés
deles? Auxílio mútuo, como dizem.
Uma garota ruiva puxou a manga de Bailey, fêz um sinal em direção
ao negro e sussurrou: — É ironia maravilhosa. Ferd deseja tanto um cer-
tificado, que já pode senti-lo. Você deveria ouvi-lo falar arrebatadamente
sobre como o homem negro deveria se rebelar e matar todos os brancos
sujos deste mundo. Mas nunca conseguiu passar em nenhuma junta exa-
minadora. Os bastardos dizem sempre que êle não é paranóico, que está
apenas expressando uma opinião política. Você compreende, bem lá no
fundo, êle gosta dos brancos. Não pode deixar de gostar. Assim, êle agora
está planejando este esquema para conseguir o certificado individual. Só
que aposto como não consegue. Mas também aposto como, dentro de
dez anos, será a lei da nação.
Por volta da meia-noite, começaram a dançar. A esta altura, todos
os apartamentos da casa estavam apinhados de gente, provavelmente
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metade da população do bairro; no andar térreo, as pessoas transbor-
davam para a rua. Mas descobriram que podiam saltar ao som de uma
gravação de bongôs, se o fizessem em uníssono.
A cabeça de Bailey doía. Sentia-se um pouco tonto. Demasiada
quantidade de álcool, fumaça, calor, ar viciado e excitação para seu esta-
do ainda enfraquecido. Mas não queria sair. Suas perturbações interiores
não existiam neste brilho rosado. Sua solidão desaparecera. Este mundo-
dentro-do-mundo aceitava-o. A garota ruiva falava sobre sua análise; fa-
lara e falara e falara. Mas era bonita e revelou-se muito ativa, quando
começaram a pular com os ventres unidos; pensou que poderia levá-la
para a cama mais tarde. Dançava.
O grupo dançava. O chão estrondava. Os lustres oscilavam. O re-
boco caía. As vidraças despedaçavam-se. Rat-a-plan, rat-a-plan, para-tim-
bum, fían, flan! Olê, olá!
Até que todo o edifício, carunchado e infestado de cupins, veio
abaixo. Bailey teve somente um instante para compreender que êle e o
telhado estavam caindo.
O entulho o enterrou, e êle estava morto.
A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo
lançado num redemoinho, jogado para cima e para baixo, e já começa
tudo de novo. Mas, concentrando sua vontade, ignorando resolutamen-
te coisas como trovões, raios e polvos, conseguia permanecer, de certo
modo, num plano menos perturbado.
“Zero,” Deus contou, “um, dez, onze...”
“Oh, cale-se,” rosnou.
O que estava lhe acontecendo? Esta seqüência de finais úmidos
continuaria para sempre? Será que morrera realmente e fora destinado
ao inferno?
Não. Pois qual seria a razão do inferno, se ás pessoas não pudes-
sem se lembrar por que estavam ali?
Concentrou-se num único enigma. Quem era êle? Por que existia?
Como não estava mais tão confuso e apavorado, descobriu que podia re-
cordar todo o seu passado em cada uma de suas vidas. E, até certo pon-
to, eram iguais. Infância comum, estudos, viagens, livros, música, amigos,
casamento, divórcio, outras mulheres, outros passatempos, uma carreira
promissora como jovem sociólogo pesquisador ligado ao Centro Médico
da Universidade em São Francisco. Escrevera sua tese sobre o problema
proposto pela incidência crescente de doenças mentais e agora estava
tentando encontrar a causa e a cura em termos sociológicos. As vidas pas-
93
savam-se muitos anos atrás; 1984 foi o ano mais próximo que pode situar.
“Mil, mil e um, mil e dez.”
Mas qual das quatro foi a sua existência real? Ou todas elas o fo-
ram? Não. Não podia ser. Nada, no passado comum a todas elas, suge-
ria que sua psique foss se desintegrar algum dia. E, no entanto, havia se
desintegrado. Quatro vezes. Assim, não eram esses episódios a ilusão, o
passeio-não-tão-fe-liz de que tinha de fugir?
Fugir como?
Bem, em primeiro lugar, como entrara nisso ?
Não sabia! As “encarnações” camuflavam este último segmento de
sua vida. Ó deuses e bruxas, estava por acaso condenado a repetir a morte
em mundos lunáticos, um após outro, até que, por fim, ficasse realmente
louco?
Pense, êle ordenou num desespero crescente. Pense muito. O que
você fêz para ser lançado numa pseudo-existência ?
“Mil cento e onze.”
Você considera onde esteve por último. Compreende o que estava
errado na maneira de tratar a situação. Acredita que percebe uma manei-
ra melhor. Então Deus diz clique, e você se vê numa nova situação para
descobrir que também esta não vale nada.
Por exemplo, tome este último mundo. Tinham realmente o em-
brião de uma idéia. Remover as pressões que fazem com que as personali-
dades mais fracas fiquem deformadas. O problema é que a sociedade não
consegue funcionar sem algum grau de intolerância e pressão.
Pelo menos, esta não funcionaria. Uma sociedade tecnológica, do-
minada pelas cidades, orientada para o racionalismo, exerce inevitavel-
mente pressões sobre as pessoas, e talvez essas pressões sempre sejam
demasiado brutais para alguns. Mas que dizer de uma cultura totalmente
diferente? Não Selvagens Nobres, é claro; mas... bem, um homem pós-
tecnológico que usa a máquina apenas para as tarefas mais difíceis e
aborrecidas. Um homem que, sob outros aspectos, liberou seu mundo da
feiúra e complexidade excessiva, que voltou a uma natureza agora cheia
de segurança e perfeição, de modo que, ao mesmo tempo em que satis-
faz seus instintos animais, também cultiva suas capacidades intelectuais,
espirituais e singularmente humanas...
Clique. O ventre do tempo estava prenhe.
Não! gritou Douglas Bailey com horror. Não quis dizer isto.
Mas já era tarde.

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QUINTO DESTINO

O robô que cuidava da manutenção da área, sofrera uma avaria


que estava fora do alcance de sua capacidade da auto-restauração. Bai-
ley pediu que o Engenheiro viesse repará-lo. O homem não pôde vir por
vários dias. Bailey não ficou incomodado por ter de tomar conta da casa
neste meio tempo. De fato, era êle próprio quem usualmente cuidava do
jardim. Cortar e rachar lenha, cozinhar, fazer consertos secundários no en-
canamento e na unidade de energia solar, tudo manualmente, constituía
uma mudança agradável em seu ritmo de vida. Era uma alegria trabalhar
ao ar livre. Estas colinas sobre a baía, onde êle e o robô haviam erguido a
cabana, nunca haviam sido mais belas.
Mas nenhum homem podia patrulhar sozinho toda uma região. E
Bailey não tinha vizinhos. (Não era um eremita, de modo algum; apenas
retirara-se de sua comunidade por uns tempos, para poder desenvolver
certos aspectos de ursa idéia filosófica.) Mesmo que não houvesse ne-
nhum outro problema, o fogo constituía uma ameaça onipresente na es-
tação da seca. Não podia correr este risco logo agora que a floresta estava
reflorescendo tão promissoramente. Além disso, odiaria ver Sausalito ar-
ruinada, quer por incêndio ou negligência. A cidade deserta tinha para êle
um encanto curioso e melancólico.
Assim, pôs em funcionamento o radiotelefone e chamou Fairfax.
Por acaso foi Avis Carmen, que dirigia as atividades cooperativas este ano,
quem recebeu pessoalmente a mensagem. —Ora, certamente, Doug, —
disse. — Você deveria nos ter notificado mais cedo. Vou lhe conseguir um
grupo de pessoas. Bem, muitos rapazes foram andar de barco no Delta, de
modo que talvez não possamos dispensar os que aqui estão. Mas posso
pedir voluntários de outros lugares. Quantos você acha que serão neces-
sários ? Vinte? Certo, chegaremos aí depois de amanhã o mais tardar.
— Muito obrigado, Avis, — disse.
— Ora, para que agradecer? É nosso dever para com a terra. Além
disso, uma tarefa em conjunto como esta é sempre divertida.
— Conservei o hábito de agradecer às pessoas sua generosidade.
Acho que sou antiquado.
— Você o é realmente, querido. — Sua voz tornou-se mais rou-
ca. — Sabe do que mais ? Vou delegar a organização a Jim Wyman e irei
sozinha hoje mesmo.
— Oh, não é necessário. Ainda não estou em apuros.
— Eu sei. Mas não gostaria de alguém que o ajudasse? E que tal um
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pouco de companhia e sexo? Você está sozinho há semanas.
Bailey hesitou. -— Para falar a verdade, sim, — disse. — Estou bas-
tante preocupado por não poder manter uma serenidade profunda. O
que significa que não estou realizando nada em profundidade ainda. Mas
você pode sair assim tã de repente?
Avis riu. — Calma! Você deve tentar superar esses empecilhos que
inventa. Juro que, se a Mudança não tivesse ocorrido, você teria eventu-
almente tido um colapso nervoso. Ninguém vai morrer se eu deixar de
dirigir as danças folclóricas, os cantos da comunidade e as aulas de ar-
tesanato por algum tempo. Minha única obrigação vital é o treinamento
em delicadeza, mas tenho certeza de que Roger Breed se encarregará de
meus pequeninos de seis anos, enquanto eu estiver fora. Se você ainda in-
sistir em ser escrupuloso e farisaico, posso lhe dizer que minha tarefa mais
urgente é você. Parece-me que a solidão estimulou sua agressividade.
— Faça amor, e não a guerra,— citou êle com um riso.
— Não é esse o princípio básico do mundo moderno? — replicou
ela seriamente. — Não que você fosse ferir outra pessoa, querido. Mas
isso significa que as tensões não liberadas voltam para o interior da pes-
soa.
Bailey interrompeu a ligação assim que foi cortêsmente possivel:
o que não foi logo depois, dadas as regras da sociabilidade e de agir des-
cansadamente. Avis Carmen falava demais e era um pouco afobadamente
sincera demais para seu gosto.
Não obstante, esperou ansiosamente a sua chegada.
Foi no final da tarde que ela chegou. Estando com pressa, ela não
caminhou, nem percorreu de bicicleta ou a cavalo as quinze ou vinte mi-
lhas. Depois de se assegurar de que ninguém mais a necessitaria, tomou
um dos carros-pairadores da vila. O veículo deteve-se com um zumbido
tênue ao lado da cabana. Bailey correu ao seu encontro. Avis içou-se para
fora. Era uma jovem grande, e seu cabelo loiro tinha um brilho desmaiado
espantoso contra a pele nua bronzeada. Quando se abraçaram, ela estava
quente, macia e cheirava a verão.
— Ei, garotão, — disse, — seu problema é assim tão urgente?
Bailey aconchegou o rosto na concavidade entre seu pescoço e
ombro. — Já que você traz à baila o assunto, — disse, — sim.
— Bem... está bem. Eu também senti saudades de você, Doug.
Mais tarde, voltaram para fora para buscar a mala. Mas ela parou
e sussurrou com uma reverência sincera e verdadeira: — Meu Deus, que
vista você,tem aqui! — E eles abriram suas consciências e ficaram em ín-
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tima união com o mundo.
O sol estava se pondo atrás dos carvalhos e eucaliptos que cíngiam
o cume onde se encontravam. De seu grande escudo dourado, jorravam
lanças que abrasavam tudo o que tocavam. As paredes da cabana, as ár-
vores circundantes, o próprio ar, tudo estava saturado de luz. Na frente
deles, o solo caía escarpadamente até as florestas, e além a baía difundia
um brilho azul, estendendo suas milhas calmas até as colinas castanho-
amareladas do leste. O céu estava transbordante de silêncio.
Bailey foi o primeiro a retornar a seu eu pessoal. Viu lágrimas na
face de Avis e disse: — Mas o que foi?
Ela voltou, lentamente e com alguma relutância, de sua união com
o mundo. — Nada, — respondeu-lhe. — A beleza. E a compaixão.
— Compaixão?
— Por todos os que viveram antes da Mudança. Que nunca chega-
ram a conhecer isto.
— Ora, convenhamos que não éramos assim tão miseráveis, que-
rida. E por que fazer com que me sinta antigo? Você também nasceu na
civilização anterior.
— Não me recordo muito, entretanto, — disse ela gravemente. —
Suponho que... a época do julgamento me impressionou tanto que esque-
ci grande parte da minha infância. O mesmo aconteceu com quase todos
os sobreviventes. Você parece recordar esse tempo passado melhor que
a maioria de nós. Nós ... bem, poder-se-ia dizer que o julgamento nos
purificou.
Conjeturou que ela queria expelir uma tristeza que a tocara, pois
continuou quase ardentemente: — Tinha de ser. Tínhamos de ficar livres
dos hábitos de nossos antepassados. Só então pudemos ver o que a des-
naturalidade, as pressões, as pequenas inibições sórdidas haviam feito à
Terra e à humanidade. Fomos libertados do passado e pudemos realmen-
te começar de novo.
— Não sei se estamos assim tão libertos do passado, — disse Bai-
ley.
— Oh, conservamos o que era bom. — Avis lançou um olhar para
São Francisco. — Veja a cidade, por exemplo. Dá realmente um toque má-
gico à cena. Fico feliz dela estar ali, feliz que as máquinas a conservaram,
feliz que as crianças são levadas a visitá-la por ser algo necessário à suae-
ducação. Mas viver ali? — Fêz uma careta.
— Eu gostava da cidade, — disse Bailey.
— Você ainda não compreendia muito bem as coisas, não é?
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— N-n-não. — Suas lembranças estavam reprimidas. — Mas eu ti-
nha amigos. Morreram. Todos os que eu conhecia morreram. Qual é a
estimativa? A praga matou 95%, não foi? Da população de todo o mundo
em meses! Até você tem de chorar por eles de vez em quando.
— Por suas pobres vidas desperdiçadas, — disse Avis. — Não por
suas mortes. A morte foi uma libertação, tenho certeza. E que outra ma-
neira havia para se sair da armadilha que o homem construíra ao redor
de si mesmo? Agora temos espaço para respirar, riquezas, recursos e co-
nhecimentos para fazermos o que quisermos; e estamos tornando nosso
planeta num paraíso,
— Estamos? — perguntou Bailey. — Conhecemos a área da baía.
Estabelecemos contatos radiofônicos ocasionais com alguns outros agru-
pamentos, aqui e ali ao redor do mundo. Mas, do contrário,... bem, supo-
nhamos que você me diga o que está acontecendo num lugar tão perto
como o Rio Russian.
— Provavelmente nada, — disse Avis. — Não há pessoas lá. Nós
nos propagaremos e ocuparemos as terras vazias. Mas sem pressa. — Seu
punho fechado golpeou o solo. — E nunca procriaremos, construiremos,
abriremos minas, derrubaremos árvores, poluiremos e destruiremos con-
forme a antiga maneira obscena. Nunca! Aprendemos nossa lição!
Bailey decidiu que a conversa se tornara deprimente e devia ser
mudada. Colocou um braço ao redor da cintura de Avis. — Você é uma
garota muito querida, — disse, tanto para acalmá-la, como porque assim
pensava realmente. — Se o ciúme fosse permitido, teria ciúme de seus
outros amantes. Acha que gostaria dé ter um filho comigo?
Sua tensão diminuiu; ela beijou-lhe a face e se aconchegou a êle.
— Ainda sou jovem, — disse. — Ainda não estou preparada para assumir
uma responsabilidade assim tão, grande. Mas algum dia... sim, Doug, se
você ainda quiser, penso que também quererei. Você deve ter cromosso-
mos muito bons e faria muito bem o papel de pai... e, oh, gosto de você.
A conversa perdeu-se em tolices amáveis até que o crepúsculo e a
fome os levaram para dentro. Depois do jantar, sobre um tapete de pele
de urso sintética (embora os ursos estivessem surgindo de novo, a es-
pécie ainda era protegida), ante as flamas que dançavam numa genuína
lareira de pedra, fizeram novamente amor ao som do Bolero de Ravel,
tocado num rústico aparelho estereofônico de alta fidelidade. Isso foi tão
divertido que repetiram com a Sagração da Primavera de Stravinsky, com
a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach, com a Nona Sinfonia de Beethoven
e, finalmente, com uma peça de Delius. A vida moderna fizera maravilhas
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para essa capacidade particular.
Na tarde seguinte, um grupo de amigos chegou de Fairfax com um
veículo carregado de ferramentas. No final da tarde, um contingente do
outro lado da baía ancorou seu iole e subiu a colina a pé. Recebeu uma
boa acolhida, o que era sempre dado às pessoas estranhas. O total do
grupo era bem maior que o necessário ou esperado, porque várias ga-
rotas haviam vindo junto para ajudar a cozinhar. Mas todos trouxeram
comida — carne de veado, carne de porco selvagem, peixe defumado,
frutas secas, nozes, uvas, mel e pão moído à pedra — que foi guardada no
rancho comum. Um homem havia sabiamente trazido uma caixa de vinho
Livermore. Houve uma grande festa naquela noite. Ninguém ficou bêba-
do — nunca ninguém ficava bêbado nesta cultura —, mas tornaram-se
mais alegres, cantaram canções, dançaram, trocaram de pares, realizaram
competições atléticas e trocaram convites para futuras visitas.
Seguiram-se dois dias de trabalho sério. Os homens percorriam a
pé grande extensão do terreno, verificando os lugares com possíveis pro-
blemas, retirando os galhos e as folhas secos das clareiras destinadas a
evitar a propagação do fogo, arrancando arbustos venenosos, medicando
plantas doentes, conservando trilhos e estradas, tudo o que o robô fizera
até então. À noite, chegavam tão cansados que só podiam pensar em co-
mer e dormir. Mas a sensação de camaradagem e de trabalho realizado
era preciosa.
Finalmente, o Engenheiro chegou. A unidade de energia solar esta-
va outra vez com problema, por isso Bailey encontrava-se com as mulhe-
res na cabana, quando o caminhão-pairador desceu do céu. Todos curva-
ram respeitosamente as cabeças, quando a figura alta e vestida com uma
túnica amarelada emergiu do caminhão, seguida de seus acólitos que to-
cavam campainhas.
O Engenheiro levantou sua régua de cálculo. — Que a Paz esteja
convosco, meus filhos, — entoou. — Peço-vos, conduzi-me ao sofredor.
— O senhor não quer tomar, nada primeiro, Doutor? — perguntou
Avis.
O gorro de penas oscilou e vacilou com o movimento da cabeça.
— Minha filha e bondosa. Mais tarde aceitaremos sua hospitalidade com
o mesmo espírito com que é oferecida. Mas primeiro devemos, antes de
mais nada, examinar o robô. Na medida em que qualquer coisa — sim,
até mesmo uma máquina — não está em harmonia consigo mesma, nessa
mesma medida estão em desarmonia o mundo e o universo estrelado.
Todo o funcionamento imperfeito é mau, todo o mal é funcionamento
99
imperfeito.
— O Doutor instruiu sua discípula, — disse Avis humildemente.
Bailey conduziu o Engenheiro e os acólitos ao galpão onde o robô
era guardado. Tiraram suas túnicas, retiraram as ferramentas das caixas
e começaram, muito prosaicamente, a trabalhar. Bailey observava. Seus
préstimos já não eram mais necessários. Logo que estivesse arrumado, o
robô repararia tudo com muito mais eficácia e rapidez.
— Deveis perdoar minha demora, meu filho, — disse o Engenheiro,
enquanto desparafusava, uma tampa. — Tenho tantos chamados a aten-
der numa área tão ampla. Oxalá mais pessoas entrassem para a Profissão.
— Bem, é uma profissão difícil, — disse Bailey.- — Não acho que a
geração mais jovem esteja incentivada a passar por anos de treinamento
intensivo.
— Tendes provavelmente razão. Esperemos que tenhamos sucesso
em instilar o verdadeiro espírito cooperativo.
— Oh, o senhor não acha que poderíamos tornar a Profissão me-
nos difícil ? Antes de mais nada, não poderiam ser omitidos os rituais?
Aposto como o senhor passou meses aprendendo a Missa da Matéria,
por exemplo.
Novamente o Engenheiro sacudiu a cabeça grisalha. — O espírito
da época o exige, — afirmou.
— Suspeito que vos recordais muito bem das condições de antes
da Mudança. Também recordo. Podemos ambos observar nosso presen-
te meio-ambiente com alguma objetividade. Não concordais que uma de
suas melhores características é este rito, este cerimonial, este desejo de
dar um significado religioso a todos os nossos atos? Acho que a carência
espiritual do mundo antigo foi uma das razões por que o julgamento o
destruiu tão completamente. Que sentido tinha a vida para a maioria das
pessoas ? Não tendo vontade de viver, não puderam resistir à praga. —
Retornou à sua tarefa. — É claro, — disse, — isso foi vantajoso.
— O quê ?
— Ora, certamente. Sem uma verdadeira limpeza, como teria sido
possível o nosso desenvolvimento?
O problema do robô não era nada sério: um circuito queimado que
foi logo substituído. O Engenheiro ficou apenas o tempo necessário para
tomar uma xícara de café e escutar uma curta canção de ação de graças.
Estava sendo esperado em muitos outros lugares.
Quando os homens voltaram ao cair da noite, todos sentiram que
ainda havia algo a ser feito. Deviam celebrar não apenas o final do traba-
100
lho, mas também o fato da terra não ter sofrido danos. Combinaram que,
no dia seguinte, iriam a pé até as florestas Muir.
Foi uma caminhada magnífica. Seguiram, por vezes, a estrada des-
truída e, por vezes, cortaram caminho através das imensas colinas vento-
sas e cobertas de papoulas vermelhas. Cantaram, conversaram, brinca-
ram, riram ou simplesmente alegraram-se com a luz do sol e o ar que os
envolviam. Durante a maior parte do tempo, Bailey viu-se caminhando ao
lado de Cynara. Ela fazia parte do grupo do leste; era uma pequena garota
ruiva, de constituição delgada, com os maiores e mais belos olhos que já
vira. E também gostou de sua conversa; ela tinha um humor travesso que
faltava a Avis. No final do passeio, já caminhavam de mãos dadas.
Como haviam saído cedo e estavam em ótimas condições físicas,
chegaram ao destino pouco depois do meio-dia. Pretendiam entrar no pe-
queno bosque de sequóias e comungar com sua atmosfera intimidadora.
Mais tarde, fariam um piquenique, passariam juntos algumas horas ale-
gres como as daquela primeira noite, estenderiam seus sacos de dormir
e descansariam à luz das estrelas. Na manhã seguinte, separar-se-iam, e
cada um tomaria o caminho de casa.
— Mas a primeira coisa a fazer é almoçar, — declarou Cynara.
Vários outros concordaram.
Avis franziu as sobrancelhas. — Não sei, meus amigos, — disse, —
Viemos aqui para uma santificação.
— Mas não com um estômago vazio, por favor, — respondeu Cy-
nara.
Avis descontraiu-se. — Muito bem, suponho que a santidade seja
um pouco difícil nessas circunstâncias. — Fêz uma genuflexão para as ár-
vores que se elevavam verticalmente atrás da casa do Guardião.
O sol deu sua bênção. A terra exalou incenso. Uma cotovia cantou.
Abriram os pacotes e fizeram milhares de sanduíches. Bailey e Cy-
nara estavam sentados juntos contra um carvalho solitário, quando por
acaso Avis passou por ali. — Bem, bem, — sorriu ela. — Um relaciona-
mento em franco progresso, hem?
— Você se importa? — perguntou Bailey.
Ela despenteou-lhes os cabelos
— É claro que não, tolinhos.
Depois de comer, colocaram mantos de oração sobre as roupas que
por acaso estavam ou não estavam usando, e aproximaram-se do bosque.
O Guardião saiu de sua casa. Ajoelharam-se. O velho os abençoou, e eles
penetraram nas sombras silenciosas e salpicadas de raios de sol.
101
Os olhos de Bailey desviavam-se freqüentemente das arcadas da
catedral, que se estendiam à sua frente, para Cynara a seu lado. Bem, pen-
sou, que há de errado nisto? Mesmo na religião de hoje. Especialmente na
religião de hoje. Que objetivo mais elevado pode ter o homem que dar e
receber a felicidade, cuidar da terra e aceitar suas dádivas, e saber que êle
e o cosmo são urm coisa só?
Unicidade, sim, também com nossos companheiros. Quando estou
com esta garota, também estou de certo moda com Avis; e, quando estou
com Avis ou outra qualquer, estou também de algum modo com Cynara;
assim nunca pudemos -ser cruéis ou infiéis. Uma melodia insinuou-se pela
mente de Bailey, algo dos velhos tempos. Ou seria um poema? Ou ambas
as coisas? Não conseguia lembrar.
“Mas sempre serei fiel a você,
Cynara, a meu modo.
Sim, sempre serei fiel a você,
Cynara, à minha maneira...”
Uma mulher gritou.
Foi como se o barulho de uma serra circular tivesse irrompido no
silêncio. Bailey deu um pulo para trás. Cynara sufocou-se com seu próprio
grito. Os companheíros que os haviam precedido, recuaram, pararam,
sem poder acreditar no que seus olhos arregalados viam.
Todos menos um homem. Este jazia estatelado no meio do cami-
nho, com o rosto para baixo, numa poça de sangue incrivelmente verme-
lha e brilhante. O sangue jorrava, jorrava, jorrava incessantemente.
Acima dele, o assassino arreganhava os dentes. A criatura era e-
norme, corpulenta, e estava vestida com peles malcheirosas. Através de
um tufo gorduroso de cabelos e barba, podiam-se ver as cicatrizes da varí-
ola. Escorria sangue do facão grosseiro que tinha na mão.
Bailey reagiu com um instinto que não pensara ter conservado.
Agarrou Cynara e lançou-se com ela no buraco que um incêndio fizera
num enorme tronco de árvore. Colocou-se na frente dela, com os punhos
preparados para a luta.
Surgiram outros, tão imundos quanto os primeiros. Uivavam e ga-
niam numa língua que talvez tivesse sido inglês outrora. Dois homens da
área da baía procuraram fugir. Um caiu, com o crânio rachado por um gol-
pe de machado. Seu companheiro foi atravessado por uma lança e ficou
prostrado no chão, ganindo de dor. O assassino ria.
— Joe, — sussurrou Bailey — Sam. Mas são meus amigos.
A cólera eliminou o terror. Nunca enxergara com tanta nitidez, nun-
102
ca sentira de tão perto o cheiro de sangue e suor, nunca sentira contra a
pele o frio de cada microscópica viração do ar. Seus pensamentos passa-
vam em lampejos relâmpagos: São selvagens. Devem ter vindo do norte.
Havia sobreviventes nesses lugares afinal. Pessoas que realmente volta-
ram ao estado primitivo.
Os membros da romaria permaneciam entorpecidos. Os invasores
os cercaram. Os dois grupos eram quase iguais em número; não, os civili-
zados contavam com mais quatro ou cinco homens, e as garotas também
estavam em boa forma física... Por que não lutavam? Um atleta podia se
esquivar de uma daquelas espadas, lanças e maças tão inàbilmente mane-
jadas... tirá-las do inimigo... ou, pelo menos, retribuir-lhe os golpes!
Bailey quase pulara de seu tronco para começar o combate, quan-
do Avis, recobrando a presença de espírito, levantou ambas as mãos e
gritou: — Que é isso? Meus companheiros, meus irmãos, o que estão fa-
zendo ?
Um nortista vociferou uma ordem. O grupo começou a trabalhar.
Uma ou duas vítimas tentaram fugir, mas não foram muito longe. A matan-
ça dos homens foi questão de segundos, embora fosse óbvio que alguns
ainda custaram muito a morrer. Depois o bando agarrou as mulheres.
—Não! — gemeu Avis. — Não com animais!
Ela lutou até que, impaciente, o atacante pôs fim à sua resistência
com um soco. Partiu-lhe o maxilar. As outras garotas deram menos tra-
balho. Enquanto esperavam sua vez, dois nortistas cortaram pedaços de
um dos cadáveres e comeram-nos crus.
Cynara desmaiara. Tenho de levá-la embora, Bailey pensou em seu
pesadelo. Para longe... de toda esta área? Esquecemos como lutar. Não
temos armas, não estamos treinados, não temos nem mesmo vontade de
nos defender. E agora os selvagens nos descobriram. Virão em enxames e
matarão, violentarão, escravizarão, depredarão, queimarão. Foi um erro
acreditar que havíamos conseguido fazer com que a história parasse. Mas
não. Não posso abandonar meu povo.
Talvez, talvez êle e ela não fossem vistos no buraco, até que os
invasores fossem embora com as mulheres cativas — isto se não assas-
sinassem simplesmente as garotas. Talvez os dois pudessem atravessar o
país, levando o aviso. Talvez fosse possível reorganizar o povo dócil, antes
que fosse tarde demais.
Talvez pudessem ter feito isso. Talvez tivessem se tornado os lí-
deres de uma civilização que, aplicando o método científico à perfeição
da guerra, exterminaria o inimigo e, com o ímpeto guerreiro despertado,
103
chegaria a conquistar um grande império. Mas Cynara acordou e gemeu,
precisamente quando alguns salteadores passavam por ali a caminho da
casa do Guardião. Chamaram o resto.
Se estivesse armado, Bailey poderia ter defendido a entrada da seu
refúgio por algum tempo. Mas a primeira lança que atingiu seu ombro,
convenceu-o de que precisava de espaço para operar, se não quisesse ser
impiedosamente massacrado. Investiu para fora e conseguiu pegar um
machado. Com muita satisfação, matou o dono do machado e dirigiu-se
de volta para a árvore. Mas os nortistas já estavam atrás dele.
Uma maça fêz com que seu cérebro fosse respingado no chão, e
êle estava morto.
A morte era um vento tempestuoso. Não, espere; isto não era a
morte, não era o caos. Era simplesmente a insensibilidade provocada por
uma total privação dos sentidos.
“Zero,” contou Deus, “um, dez, onze,..”
“Oh, deixe-se disto,” resmungou Bailey. “Você acha que não reco-
nheço dígitos binários?”
Este foi o pior mundo até agora, seus pensamentos continuaram.
E não foi por causa dos canibais, tampouco. Eram apenas pobres e igno-
rantes. Mas as pessoas civilizadas que nunca se preocupavam em saber o
que estava acontecendo fora de seu pequeno distrito, que serenamente
aceitavam as mortes de não sei quantas criaturas” humanas como um
preço razoável por sua cultura superior... arrgh!
Ei, espere. O que quero dizer com “até agora” ? Quero sair, e não
me envolver ainda mais.
Deveria ser capaz de encontrar uma saída. Tinha de ser capaz. Do
contrário, adeus saúde mental.
“.... cem, cento e um, cento e dez...”
Ou, em números arábicos, quatro, cinco, seis, etcétera. Isso é um
computador. Meus nervos detectam seus impulsos, enquanto está em
suspensão. Isto indica que, de algum modo, estou acoplado a êle. Quando
a coisa começa a funcionar ... sim, o Simulador.
O sistema homem-máquina. Eu, o homem; ela, a máquina. Juntos
consideramos um problema na sua totalidade.
Que problema?
Bem, sou um sociólogo que busca descobrir a causa e a cura das
doenças mentais. Muitas espécies de soluções têm sido propostas... lem-
bro-me de ouvir falar em eutanásia voluntária... Mas, freqüentemente no
passado, as emendas revelaram-se piores que os sonetos. Basta conside-
104
rar o efeito de longe alcance do pão e circo sobre o proletariado romano;
ou a maioria das revoluções e tentativas de utopia. Precisamos de uma
maneira menos cega e experimental de aperfeiçoar a sociedade. E não
basta planejar um sistema teoricamente exeqüível. Temos de saber, de
antemão, como será sentido, na prática, por aqueles que sofrem sua ação.
Por exemplo, uma pensão governamental poderia ser uma medida econo-
micamente acertada, mas poderia desmoralizar os beneficiários. Como é
possível testar antecipadamente os mecanismos internos de uma reforma
social?
Ora, certamente. A ligação homem-máquina. O componente hu-
mano fornece mais que uma diretiva geral. Fornece sua total compreen-
são consciente, inconsciente, visceral e genética do que é ser humano.
Isto passa aos depósitos de dados, junto com todas as outras informa-
ções que a máquina já possui. Depois, como uma unidade, o cérebro e o
computador imaginam uma mudança social e deduzem as conseqüências.
Desde que o objetivo é explorar essas conseqüências de um ponto de vis-
ta imediato e emocional, o resultado da lógica é apresentado como um
“sonho”.
Talvez a máquina seja um pouco prosaica demais.
Seja como fôr... claramente, se um mundo imaginário revela-se in-
desejável, não há razão para explorá-lo mais. O sistema deve permitir que
eu ordene a cessação da seqüência. Semelhante ao mundo como uma
pessoa pode ordenar a si própria que desperte de um sonho mau.
Somente que, neste caso, por alguma maldita razão psicológica, o
sinal para desligar tomou a forma de minha própria morte realisticamente
simulada. E o choque provocou em mim uma amnésia parcial. Em con-
seqüência disto, não pude emitir uma ordem inequívoca para terminar a
prova. Conseqüentemente, a máquina esperava em suspensão, até que
minha corrente de semi-inconsciência lançasse algo que pudesse ser in-
terpretado como uma ordem.
A mente sobressaitou-se. Céus! Podia ter continuado assim até...
até...
O. K., Simulador. Leve-me para casa e pare a operação.
Clique?
“Você me ouviu”, disse Douglas Bailey.
A criação começou.
Ó VÓS DE POUCA FÉ.
Abriu os olhos. A escuridão cobria-os. Gritou e debateu-se.
--Ei, que há? Espere um instante. Estou aqui.
105
Douglas Bailey fêz força: para ficar deitado sem se mexer. Seu tórax
arfava e seu pulso estava em disparada.
Tiraram-lhe o capacete de indução da cabeça. Olhou para a face
abençoada, familiar e britânica de Michael Birdsong, seu superior imedia-
to, e para a maravilha que era seu próprio laboratório. O conhecimento de
sua libertação percorreu-lhe todo o ser.
— Você está bem? — perguntou Birdsong, — Aconteceu algo er-
rado ?
— Não... não sei, — Bailey sentou-se no divã, deixando que as per-
nas ficassem penduradas. Ainda tremia. — Quanto tempo durou a expe-
riência?
— Não o cronometrei. Mas vou lhe dizer num minuto. — Birdsong
perfurou um código. O painel crivado de instrumentos emitiu um clique e
expeliu um cartão impresso. Birdsong arrancou o pedaço de papel e leu.
— Cerca de cinco segundos.
— O quê ? Oh, sim. — Com uma suspeita repentina, Bailey disse:
— Este é o mundo real, não é verdade?
— O quê? O quê? Sim, Que outro poderia ser ? A não ser que você
queira seguir o caminho do Bispo de Berkeley. Mas diga-me...
— Não, espere. — Bailey sacudiu a mão. — Isto é muito impor-
tante. Recuperei toda a minha memória, mas poderia ser falsa. Deixe-me
conferir com a sua. Isso talvez nos dê uma pista. Qual é o estado da epi-
demia mental?.
Birdsong considerou-o detidamente antes de dizer: — Bem, como
quiser. Seu crescimento está obedecendo à lei usual da fermentação. Co-
meçando a ficar uniforme, sabe. Assim deveríamos poder iniciar eventu-
almente um tratamento e cura em grande escala. Por enquanto, estamos
tratando as vítimas como melhor podemos improvisar. Este nosso progra-
ma é destinado a encontrar uma resposta mais rápida e básica. — Não
conteve a ânsia. — Você a encontrou?
— Não sei. — Bailey deixou as pernas escorregarem até ficar de
pé; foi até a janela e olhou para a cidade e a baía. — Teremos de avaliar
meus dados e provavelmente coletar outros, depois de termos instalado
um mecanismo de segurança que descobri ser necessário. Mas mais tar-
de, mais tarde, mais tarde. — Riu, com um leve e prolongado toque de
histeria. — Agora estou feliz por saber que não há respostas básicas; que
continuamos nosso confuso caminho à nossa maneira lenta, desajeitada,
perdulária, carente de totalidade e imaginação, mas humana; que, por
Deus, estou de volta ao mundo real!
106
TLON, UQBAR, ORBIS TERTIUS
Jorge Luis Borges

Trad. de Carlos Nejar

Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o desco-


brimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa
quinta da Rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se cha-
ma The Anglo-American Cyclopaedia (New York, 1917) e é uma reimpres-
são literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 1902. O
acontecimento ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo
naquela noite e demorou-nos uma vasta polêmica sobre a elaboração de
um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse
os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a pou-
cos leitores — a muito poucos leitores — a adivinhação de uma realidade
atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava.
Descobrimos (na noite alta esta descoberta é inevitável) que os espelhos
têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos here-
siarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis,
porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa
memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclo-
paedia a consignava, em seu artigo sobre Uqbar. A quinta (que havíamos
alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas
do volume XLVI achamos um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII,
um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Uq-
bar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou
em vão tôdas as lições imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ooqbar, Oukbahr... An-
tes de sair, explicou-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor.

107
Confesso que assenti com certo mal-estar. Conjeturei que esse país indo-
cumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela
modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos
atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida.
No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disse-me que
tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não
constava o nome do heresiarca, mas sim a notícia de sua doutrina, for-
mulada em palavras quase idênticas às repetidas por êle, ainda que —
talvez — literàriamente inferiores. Êle recordara: Copulation and mirrors
are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: Para um desses gnósticos,
o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os
espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are
abominable) porque o multiplicam e o divulgam. Eu lhe disse, sem faltar
à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias êle o trouxe.
O que me surpreendeu porque os escrupulosos índices cartográficos da
Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar.
O volume que Bioy trouxe, era efetivamente o XLVI da Anglo-Ame-
rican Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor
- Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas, constava de
921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uq-
bar; não previsto (como terá o leitor observado) pela indicação alfabética.
Depois comprovamos que não havia outra diferença entre os volumes.
Os dois (conforme creio haver apontado) eram reimpressões da décima
Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos lei-
lões.
Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy
era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verossímil, muito
ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante.
Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa forma uma fundamental vagüi-
dade. Dos quatorze nomes que figuravam na parte geográfica, apenas re-
conhecemos três — Jorasã, Armênia, Erzerum — interpolados no texto de
um modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o
mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras
de Uqbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e
cadeias dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de
Tsai Jaldún e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas des-
se delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na
seção histórica (página 920) soubemos que, por causa das perseguições
religiosas do século XIII, os ortodoxos buscaram amparo nas ilhas, onde
108
ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos
de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorá-
vel: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas
epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas
regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön. A bibliografia enumerava qua-
tro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro — Silas
Haslam: History of the land called Uqbar, 1874 — figure nos catálogos da
livraria de Bernard Quaritch*. O primeiro, Lesbare und lesenswerthe Be-
merkungen über das Land Ukkbar in Klem-Asien, data de 1641 e é obra de
Johannes Valentinus Andréa. O fato é significativo; um par de anos depois,
deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writin-
gs, volume décimo terceiro) e soube que era o de um teólogo alemão
que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade
da Rosa-Cruz — que outros fundaram, à imitação do prefigurado por êle.
Aquela noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão molestamos
atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajan-
tes e historiadores: ninguém estivera jamais em Uqbar. O índice geral da
enciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte,
Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria
de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-Ame-
rican Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XLVI. Naturalmente, não
encontrou o menor indício de Uqbar.

II

Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenhei-


ro das ferrovias do Sul, persiste no Hotel de Adrogué, entre as efusivas
madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrea-
lidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era
então. Era alto e enfastiado, e sua cansada barba retangular fora ruiva.
Acho que era viúvo, sem filhos. De tempos em tempos ia à Inglaterra: visi-
tar (julgo por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns
carvalhos. Meu pai estreitara com êle (o verbo é excessivo) uma dessas
amizades inglesas que começam por excluir a confidencia e que muito
depressa omitem o diálogo. Costumavam manter intercâmbio de livros e
de jornais; costumavam medir-se ao xadrez, taciturnamente ... Recordo-o
no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, contemplan-
*Haslam publicou também A general history of labyrinths.

109
do, às vezes, as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde falamos do siste-
ma duodecimal de numeração (no qual doze se escreve 10). Ashe disse
que precisamente estava trasladando não sei que tabelas duodecimais a
sexagesimais (nas quais sessenta se escreve 10). Acrescentou que esse
trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul.
Há oito anos que o conhecíamos e nunca referira sua estada naquela re-
gião... Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da
palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho)
e nada mais se disse — Deus me perdoe — de funções duodecimais. Em
setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel), Herbert Ashe morreu da
ruptura de um aneurisma. Dias antes recebera do Brasil um pacote lacra-
do e registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde
— meses depois — o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira
vertigem de assombro que não descreverei, porque esta não é a história
de minhas emoções, mas de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do
Islã, que se chama a “Noite das Noites”, abrem-se de par em par as secre-
tas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se
abrissem, não sentiria o que senti naquela tarde. O livro estava redigido
em inglês e o compunham 1001 páginas. Na amarela lombada de couro
li estas curiosas palavras que o ante-rosto repetia: A first Encyclopaedia
of Tlön. Vol XI. Hlaer to Jangr. Não havia indicação de data nem de lugar.
Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das lâ-
minas coloridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição: Orbis
Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num volume de certa enciclo-
pédia pirática uma sumária descrição de um falso país; agora o acaso me
mostrava algo de mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um
vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido,
com suas arquiteturas e seus debates, com o pavor de suas mitologias e o
rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus mi-
nerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua
controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem
visível propósito doutrinal ou tom paródico.
No “décimo primeiro volume” de que falo, há alusões a volumes
ulteriores e precedentes. Nestor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.F.,
negou a existência de tais volumes; Ezequiel Martínez Estrada e Drieu La
Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até
agora as pesquisas mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desarruma-
mos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado
dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreen-
110
damos a obra de reconstruir os muitos e maciços volumes que faltam: ex
ungue leonem. Calcula, entre jocoso e sério, que uma geração de tlönistas
pode bastar. Esse arriscado cômputo nos retrai ao problema fundamen-
tal: quais os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese
de um só inventor — de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na
modéstia — fora descartada unanimemente. Conjetura-se que este brave
new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos,
de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de
moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem
de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diver-
sas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subordinar
a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a
contribuição de cada escritor é infinitesimal. No começo pensou-se que
Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora
se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas,
ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições
aparentes do Décimo Primeiro Volume são a pedra fundamental da prova
de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se
observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zo-
ologia e a topografia de Tlön; penso que seus tigres transparentes e suas
torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os
homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo.
Hume notou em definitivo que os argumentos de Berkeley não ad-
mitiam a menor réplica e não causavam a menor convicção. Esse ditame
é totalmente verídico em sua aplicação à Terra; totalmente falso em Tlön.
As nações desse planeta são — congênitamente — idealistas. Sua lingua-
gem e as derivações de sua linguagem — a religião, as letras, a metafísica
— pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de
objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É
sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Urs-
prache de Tlön, da qual procedem os idiomas “atuais” e os dialetos: há
verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos
de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à pala-
vra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. Surgiu
a lua sobre o rio diz-se hlör u fang axatcaxas mlö, ou seja, em sua ordem:
para cima (upward) atrás dura-douro-fluir lualuziu. (Xui Solar traduz sin-
tèticamente: upa tras perfluyue lunó. Upward, behind the onstreaming it
mooned.)
O que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral.
111
Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no
Décimo Primeiro Volume) a célula primordial não é o verbo, mas o adje-
tivo monossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos.
Não se diz lua: diz-se aéreo-claro sobre escuro-redondo ou alaranjado-
tênue-do-céu ou qualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa
de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito.
Na literatura deste hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong),
são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento,
conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera si-
multaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual
e outro auditivo: a côr do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há
alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa
trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa
levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau
podem combinar-se com outros; o processo, mediante certas abreviatu-
ras, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma só
enorme palavra. Esta palavra integra um objeto poético criado pelo autor.
O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, para-
doxalmente, que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério
boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias — e
muitos outros mais.
Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön abrange uma
única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Mencio-
nei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série
de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo
sucessivo no tempo. Spinoza confere à sua inesgotável divindade os atri-
butos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlön
a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do
segundo — que é um sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras
palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção
de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois
do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada um
exemplo de associação de idéias.
Este monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou
julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado
posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior.
Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo — id est,
de classificá-lo — importa em falseio. Disso caberia deduzir que não há
ciências em Tlön — nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é
112
que existem, em quase incontável número. Com as filosofias acontece
o que sucede com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que
toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als
Ob, contribuiu para multiplicá-las. Sobram os sistemas incríveis, mas de
construção agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlön não
buscam a verdade nem sequer a verossimilhança: buscam o assombro.
Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que
um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do
universo a qualquer um deles. Até a frase “todos os aspectos” é inaceitá-
vel porque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéri-
tos. Também é lícito o plural “os pretéritos”, porque supõe outra operação
impossível ... Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta
que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como
esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lem-
brança presente*. Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e
que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida
falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história
do universo — e nela nossas vidas e o pormenor mais tênue de nossas vi-
das — é a escritura que produz um deus subalterno para entender-se com
um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas
quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que sucede cada
trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos
em outro lado e que assim cada homem é dois homens.
Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escânda-
lo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos
clareza que fervor, como quem expõe um paradoxo. Para facilitar o en-
tendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do século décimo
primeiro** ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome es-
candaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Desse “raciocínio
especioso” há muitas versões, nas quais o número de moedas e o número
de achados variam; eis aqui a mais comum:
Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas
de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pou-
co enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três

*Russel (The analysis of mind, 1921, página 159) supõe que o planeta foi criado há
poucos minutos, provido de uma humanidade que “recorda” um passado ilusório.
**Século, de acordo com o sistema duodecimal, significa um período de cento e
quarenta e quatro anos.

113
moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no
corredor de sua casa. O heresiarca queria deduzir dessa história a reali-
dade — id est a continuidade — nas nove moedas recuperadas. É absur-
do (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça
e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, duas entre
terça-feira e a madrugada de sexta-feira, É lógico pensar que existiram,
ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens
— em todos os momentos desses três prazos.
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os de-
mais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se,
no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma fa-
lácia verbal embasada no emprego temerário de duas vozes neológicas,
não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos
encontrar e perder, que comportavam uma petição de princípio, porque
pressupunham a identidade das nove moedas e das últimas. Recordaram
que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva)
somente tem um valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância
um pouco enferrujadas pela chuva de quarta feira, que pressupõe o que
se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas, entre quinta e
terça-feira. Explicaram, que uma coisa é igualdade e outra identidade, e
formularam uma espécie de reductio and absurdum, ou seja, o caso hipo-
tético de nove homens que em nove noites sucessivas padecem uma dor
viva. Não seria ridículo — perguntaram — pretender que essa dor fosse
a mesma*? Disseram que ao heresiarca movia-o apenas o blasfematório
propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e
que, às vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a
igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo
modo, que as nove moedas eram uma só.
Incrivelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Ao fim
de cem anos de proposição do problema, um pensador não menos bri-
lhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, suscitou uma hipóte-
se muito audaz. Essa conjetura feliz afirmava que há um só sujeito, que
esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são
os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z descobre três moedas,

*Hoje em dia, uma das igrejas de Tlön sustenta platonicamente, que tal dor, que tal
matiz verdoso do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos
os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem. Todos os homens que
repetem uma linha de Shakespeare são Willian Shakespeare.

114
porque se lembra que X as perdeu; X encontra duas no corredor porque
se lembra que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro volume
deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse
panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a
possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a
possibilidade de conservar o culto dos deuses. Schopenhauer (o apaixo-
nado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no
primeiro volume de Parerga und Paralipomena.
A geometria de Tlön compreende duas disciplinas um pouco dis-
tintas: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à
primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Esta ge-
ometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca
modifica as formas que o circundam. O fundamento de sua aritmética é
a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos
de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por > e por <.
Afirmam que a operação de contar modifica as quantidades e as converte
de indefinidas em definidas. O fato de que vários indivíduos que contam
uma mesma quantidade obtenham resultado igual é, para os psicólogos,
um exemplo de associação de idéias ou de bom exercício da memória. Já
sabemos que em Tlön o sujeito do conhecimento é uno e eterno.
Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um su-
jeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito
do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor,
que é intemporal e é anônimo. A crítica costuma inventar autores: esco-
lhe duas obras dissímiles — o “Tao Te King” e as “1001 Noites”, digamos
— confere-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a
psicologia desse interessante homme de lettres...
Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único
argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filo-
sófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra
de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado
incompleto.
Séculos e séculos de idealismo não deixaram de influir na realida-
de. Não é infrequente, nas regiões mais antigas de Tlön, a duplicação de
objetos perdidos. Duas pessoas buscam um lápis; a primeira o encontra
e não diz nada; a segunda encontra um segundo lápis não menos real,
contudo, mais ajustado a sua expectativa. Esses objetos secundários se
chamam hrönir e são, ainda que de forma desairada, mais compridos. Até
há pouco os hrönir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento.
115
Parece mentira que sua metódica produção conte apenas cem anos, mas
assim está referido no Décimo Primeiro Volume. Os primeiros intentos
foram estéreis. O modus operandi, no entanto, merece ser recordado. O
diretor de um dos cárceres do Estado comunicou aos presos que no anti-
go leito de um rio havia certos sepulcros e prometeu a liberdade aos que
trouxessem um achado importante. Durante os meses que precederam
à escavação, apresentaram-lhes fotografias do que iam encontrar. Essa
primeira tentativa provou que a esperança e a avidez podem inibir; uma
semana de trabalho com a pá e a picareta não conseguiu exumar outro
hrön, salvo uma roda enferrujada, de data posterior ao experimento. Esta
foi mantida em segredo e depois repetida em quatro colégios. Em três,
foi quase total o fracasso; no quarto (cujo diretor morreu casualmente
durante as primeiras escavações), os discípulos exumaram — ou produzi-
ram — uma máscara de ouro, uma espada arcaica, duas ou três ânforas de
barro e o limoso e mutilado torso de um rei com uma inscrição no peito
que ainda não se logrou decifrar. Descobriu-se assim a improcedência de
testemunhas que conhecessem a natureza experimental da busca... As in-
vestigações em massa produzem objetos contraditórios; agora preferem-
se os trabalhos individuais e quase improvisados. A metódica elaboração
de hrönir (diz o Décimo Primeiro Volume) prestou serviços prodigiosos
aos arqueólogos. Permitiu examinar e até modificar o passado, que agora
não é menos plástico e menos dócil que o futuro. Fato curioso: os hrönir
de segundo e de terceiro grau — os hrönir derivados de outro hrön, os
hrönir derivados do hrön de um hrön — exageram as aberrações do ini-
cial; os de quinto, são quase uniformes; os de nono, confundem-se com
os de segundo; nos de décimo primeiro, há uma pureza de linhas que os
originais não têm. O processo é periódico: o hrön de décimo segundo grau
já começa a decair. Mais estranho e mais puro que todo hrön é, às vezes,
o ur: a coisa produzida por sugestão, o objeto eduzido pela esperança. A
grande máscara de ouro que mencionei é um ilustre exemplo.
As coisas duplicam-se em Tlön; propendem simultaneamente a a-
pagar-se e a perder as particularidades, quando se as esquece. É clássico o
exemplo do umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo e que
se perdeu de vista com sua morte. Às vezes, alguns pássaros, um cavalo,
salvaram as ruínas de um anfiteatro.

1940. Salto Oriental.


Pós-escrita de 1947. Reproduzo o artigo anterior tal como apare-
ceu na Antologia da literatura fantástica, 1940, sem outro corte senão o
116
de algumas metáforas e de uma espécie de resumo zombeteiro que se
tornou frívolo. Tantas coisas se passaram desde aquela data... Limitar-me-
ei a recorda-las.
Em março de 1941, foi descoberta uma carta manuscrita de Gun-
nar Erfjord num livro de Hinton que fora de Herbert Ashe. O envelope
tinha o carimbo postal de Ouro Preto; a carta elucidava completamente
o mistério de Tlön. Seu texto corrobora as hipóteses de Martínez Estra-
da. Em princípios do século XVII, numa noite de Lucerna ou de Londres,
começou a esplêndida história. Uma sociedade secreta e benévola (que
entre seus adeptos contou com Dalgarno e depois com George Berkeley)
surgiu para inventar um país. No vago programa inicial figuravam os “es-
tudos herméticos”, a filantropia e a cabala. Dessa primeira época, data
o curioso livro de Andreä. Ao cabo de alguns anos de conciliábulos e de
sínteses prematuras, compreenderam que uma geração não bastava para
articular um país. Resolveram que cada um dos mestres que a integravam
escolhesse um discípulo para a continuação da obra. Essa disposição he-
reditária prevaleceu; depois de um hiato de dois séculos, a perseguida
fraternidade ressurge na América. Por volta de 1824, em Memphis (Ten-
nessee), um dos adeptos conversa com o ascético milionário Ezra Buckley.
Este o deixa falar com certo desdém — e ri da modéstia do projeto. Diz-lhe
que na América é absurdo inventar um país e propõe-lhe a invenção de
um planeta. A essa gigantesca idéia acrescenta outra, filha de seu niilis-
mo*: a de manter em sigilo a empresa enorme. Circulavam, então, os vin-
te volumes da Encyclofaedia Britannica; Buckley sugere uma enciclopédia
metódica do planeta ilusório. Deixar-lhes-á suas cordilheiras auríferas,
seus rios navegáveis, suas várzeas pisadas pelo touro e pelo bisão, seus
negros, seus prostíbulos e seus dólares, sob uma condição: “A obra não
pactuará com o impostor Jesus Cristo.” Buckley não acredita em Deus,
mas quer demonstrar ao Deus não existente que os homens mortais são
capazes de conceber um mundo. Buckley é envenenado em Baton Rouge,
em 1828; em 1914 a sociedade remete a seus colaboradores, que são
trezentos, o volume final da Primeira Enciclopédia de Tlõn. A edição é
secreta: os quarenta volumes que compreende (a obra mais vasta que os
homens empreenderam) seriam a base de outra mais minuciosa, não já
redigida em inglês, mas em algumas das línguas de Tlön. Essa revisão de
um mundo ilusório se denomina provisoriamente Orbis Tertius e um de
seus modestos demiurgos foi Herbert Ashe, não sei se como agente de
*Buckley era livre-pensador, fatalista e defensor da escravidão.

117
Gunnar Erfjord ou como adepto. Seu recebimento de um exemplar do
Décimo Primeiro Volume parece favorecer a segunda hipótese. Mas, e os
outros? Aí por volta de 1942, recrudesceram os fatos. Lembro-me com
singular nitidez de um dos primeiros e acho que vislumbrei algo de seu
caráter premonitório. Sucedeu num apartamento da Rua Laprida, frente
a uma clara e alta sacada, voltada para o oeaso. A Princesa de Faucigny
Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata. Do vasto interior de um
caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imó-
veis: prataria de Utrecht e de Paris com dura fauna heráldica, um samovar.
Entre elas — com um perceptível e tênue tremor de pássaro adormecido
— latejava misteriosamente uma bússola. A princesa não a reconheceu.
A agulha azul indicava o norte magnético; a caixa de metal era côncava;
as letras da esfera correspondiam a um dos alfabetos de Tlön. Tal foi a
primeira intrusão do mundo fantástico no mundo real. Um acaso que me
inquietava fêz que também fosse testemunha da segunda. Aconteceu uns
meses depois, na venda de um brasileiro, na Cuchilla Negra. Amorim e
eu regressávamos de Santana. Uma enchente do Rio Taquarembó nos
obrigou a provar (e a suportar) essa rudimentar hospitalidade. O vendeiro
acomodou-nos em catres rangentes numa peça ampla, entorpecida de
barris e couros. Deitamo-nos, mas não nos deixou dormir até o amanhe-
cer a bebedeira de um vizinho fantasma, que alternava injúrias inextricá-
veis com trechos de milongas — melhor, com trechos de uma só milonga.
Como é de supor, atribuímos à fogosa cachaça do hospedeiro essa gritaria
insistente... Pela madrugada, o homem estava morto no corredor. A aspe-
reza da voz nos enganara: era um rapaz moço. Durante o delírio caíram-
lhe do tirador algumas moedas e um cone reluzente, do diâmetro de um
dado. Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem
mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos:
lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o
cone, persistiu a opressão. Também me lembro do preciso círculo que me
gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo
tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e de medo.
Um lavrador propôs que o arremessassem à correnteza do rio: Amorim o
adquiriu por alguns pesos. Ninguém sabia nada sobre o morto, exceto que
“procedia da fronteira”. Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de
um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas
religiões de Tlön.
Aqui dou término à parte pessoal de meu relato. O resto está na
memória (quando não na esperança ou no temor) de todos os meus leito-
118
res. É suficiente para mim recordar ou mencionar os fatos subseqüentes,
com mera brevidade de palavras que a côncava lembrança geral enrique-
cerá ou ampliará. Por volta de 1944, um investigador do jornal The Ame-
rican (de Nashville, Tennessee) exumou numa biblioteca de Memphis os
quarenta volumes da Primeira Enciclopédia de Tlön. Até o dia de hoje se
discute se esse descobrimento foi casual ou se o consentiram os diretores
do ainda nebuloso Orbis Tertius. É aceitável a segunda hipótese. Alguns
traços incríveis do Décimo Primeiro Volume (por exemplo, a multiplicação
dos hrönir) foram eliminados ou atenuados no exemplar de Memphis; é
razoável imaginar que essas supressões obedecem ao plano de exibir um
mundo que não seja demasiadamente incompatível com o mundo real.
A disseminação de objetos de Tlön, em diversos países, complementaria
esse plano...* O fato é que a imprensa internacional apregoou infinita-
mente o “achado”. Manuais, antologias, resumos, versões literais, reim-
pressões autorizadas e reimpressões piráticas da Obra Maior dos Homens
abarrotaram e continuam abarrotando a terra. Quase imediatamente, a
realidade cedeu em mais de um ponto. O certo é que desejava ceder. Há
dez anos, qualquer simetria com aparência de ordem — o materialismo
dialético, o anti-semitismo, o nazismo — bastava para atrair os homens.
Como não submeter-se a Tlön, à minuciosa e larga evidência de um pla-
neta ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada.
Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas — explico: leis desumanas
— que nunca percebemos completamente. Tlön será um labirinto, mas
um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado
pelos homens. O contato e o hábito de Tlön desintegraram este mundo.
Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que
é um rigor de enxadristas, não de anjos. Penetrou nas escolas o (conjetu-
ral) “idioma primitivo” de Tlön; já o ensino de sua história harmoniosa (e
cheia de episódios comovedores) obliterou o que presidiu minha infância;
já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do qual nada
sabemos com certeza — nem, ao menos, que é falso. Foram reformadas
a numismática, a farmacologia e a arqueologia. Acho que a biologia e a
matemática aguardam também seu avatar... Uma dispersa dinastia de so-
litários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas previ-
sões não errarem, daqui cem anos alguém descobrirá os cem volumes da
Segunda Enciclopédia de Tlön.

6 Fica, naturalmente, o problema da matéria de alguns objetos.

119
Então desaparecerão do planeta o inglês e o francês e o simples
espanhol. O mundo será Tlön. Não me importo, continuo revisando, nos
plácidos dias do Hotel Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que
não tenciono publicar) do Urn Burial, de Browne.

120
CONTO BRASILEIRO

ALFREDO
Luciano Rodrigues

Este capróide genuíno,


verde, verde, morde, morde,
fatal!
Cruz e Sousa

Como um helicóptero, o visitante ficou quase imóvel, apenas ti-


nindo as asas. Olhou, calculou o endereço e, num flechaço de mestre,
instalou-se no peitoril da janela, exatamente nos melhores centímetros
de sol. Foi manobra quieta, mas olho algum normal teria deixado de vê-la,
já pela faiscação do risco no ar, já, agora, pelo esplendente ponto parado,
enfunado de mistério.
Não é difícil associar a tal visita alguma novidade a caminho, boa
ou má, principalmente quando ocorre em dia de incertezas e pesares. Crê
quem quer. Mas, de qualquer forma, o certo é que havia graças claríssi-
mos e evidentes poderes no recém-vindo: primeiro, armava-se daquele
jeito prenunciativo: uma postura levemente ondeada, expectante; segun-
do, estava muito lindo na roupagem atirada pelo corpinho esmeralda; ter-
ceiro, falava. E sem delongas falou:
— Por que me olhas assim, bom amigo, assim de baixo para cima,
quando o humano é focar em plongée, subestimantemente? Ah, estás
todo arrasado, eu sei. Distúrbios digestivos e dor no Peito sempre foram
fortes razões de humildade. Mas, coragem! poioca!, falemos em negócios,
que é para isso este meu pouso na janela. Chega mais perto, vem cá!
Duílio estava longe de querer negócios. Arreliado, levantou da
cama. “Já te mostro, seu bicho chato! Será que nem a morte já se pode
estudar em paz?” A mão apanhou o chinelo, a cara esticou-se toda em
precaução, os olhos confiaram e tudo foi andando, na ponta dos pés como
121
num roubo. Mas, pressentindo a intenção, a libélula tremeu (velho cos-
tume de odonato) e voou certeira para o teto, onde se pregou de cabeça
para baixo. “Fugiste!” — cuspiu o homem, como se acabasse agora de ver
o menos possível. Com raiva maior, agarrou uma cadeira para a escalada.
O animal interveio:
— Pára! Tanto esforço pode te arrebentar, bom amigo. És um pir-
ralho, não sabes voar e eu te tornaria um bobo eterno, se quisesse. Estás
pensando, por acaso, que fugi de medo? Que esperança, Duílio! Sabes por
que que eu pulei aqui pro alto? Cena, pura cena: quero que me identifi-
ques por algumas genialidades. Por exemplo: acreditas que eu volte pra
janela, pro mesmo lugarzinho bom de onde vim? Pois lá vou eu, belo e
formoso, sem nenhum receio de que pratiques o crime.
Elegantemente, fazendo evoluções que tinham tudo de carinhosa
zombaria, retornou ao parapeito e aí se permitiu maiores cintilações ao
toque do solzinho de primavera. O homem apreciou-o e, perturbado não
tanto pela arte fina das cabriolas quanto pela galhardia do desafio, sentiu
que largava chinelo e cadeira e que se sentava, sem querer.
— Parlamentemos, Duílio. Uma conversa franca pelo menos te
dará base para uma raiva mais justa contra mim. Dialoguemos na melhor
das pazes, como dois seres inteligentes.
Prova-se que a calma sempre foi ilustre arma para atingir-se a har-
monia. É o que sabia o inseto, criatura velha viajada por muito espaço.
E está também provado que essa mesma calma sempre foi o caminho
mais curto para um golpe decente de morte. É o que pensava Duílio, não
tão vivido e experiente, mas já bastante crescido para bem raciocinar em
proveito da vingança.
— Está bem — aquiesceu, vindo sentar-se a um metro do visitante.
— Quem és tu, afinal?
A tal pergunta, o bichinho sofreu um nó na garganta e murmurou
uma imprecação ilustrativa de desânimo. Era de pasmar. Há dois minutos,
nem isso, propusera dar-se a conhecer por ações maravilhosas e chegara
mesmo a praticar algumas, duas ou três, e agora, para começo de uma
palestra que imaginara brilhante, vinha o moço com uma asneira. Que
rudeza de espírito na ingenuidade da pergunta. Santo Deus!
— Não desconfias? — perguntou, a meia voz.
A resposta foi ligeira: boca aberta, olhos infantilmente esgaçados.
A libélula entendeu que não valia a pena gastar primores de malabarismo
e eloqüência. O pobre talvez sofresse na cabeça os mesmos distúrbios da
barriga e — vá lá a falta de graça! — que recebesse duma vez o alívio da
122
clareza e da mais chã simplicidade. Por economia de tempo, cabia então
declarar-se:
— Sou Êle, bom amigo.
— Êle? Êle quem?
— Êle, com e maiúsculo! — esclareceu com doçura, com tal doçura
que o mais absurdo dos enganos seria nada menos que automático, como
de fato o foi:
— És... és o Cristo! — e Duílio encheu-se de confusão, não atinando
por que motivos secretos viria o Cristo ao seu quarto, travestido de ínfimo
animal, e com ar tão galho feiro. Petrificou-se. Até que percebeu a blas-
fêmia: estava em cueca— e fugiu para a cama e cobriu-se até as orelhas.
A libélula compadeceu-se. A burrice dava-lhe pena; emocionava-se
mesmo com tanta singeleza de fé.
— Estás enganado, bom amigo. Não sou quem tu pensas.
— Mas...
— Exato. Também mereço uma maiúscula, não mereço? Mas po-
des me chamar de Alfredo.
Já era uma declaração. Duílio, entretanto, não chegou a ter medo.
Nenhum mesmo. Ao contrário, o que provou foi um sentimento de liber-
dade: deixou a cama e voltou ao assento de antes, sem escrúpulo nenhum
pelo que vestia ou não vestia. Toda a tremura esquisita desapareceu e
uma vontade de pensar foi chegando ao cérebro, Seria possível, Êle? Ad-
mitiu que, assim luzente e magnânimo, já era algo bem planejado. Pois
parecia mais um anjo, e que anjo! — atilado, espírituoso, irreverente,
simpático como um irmão. Sim, era possível. Com mais alguma reflexão,
porém, não demorou a descrer: não, não, foi direta demais a confissão,
quando é hábito dos infernos fazer tudo em forma de drama, com mean-
dros pegajosos e outros requintes de crueldade. E mais: que frágil viven-
tezinho, estridente e magro como uma palheta metálica, para ser o feio
monstro de cornos e cascos, de rabo pontudo e de bôca-fornalha!
— Alfredo, vamos ser honestos: és mesmo o que estás dizendo?
Alfredo piscou-se todo, mas sem zanga. Afinal, melhor do que nin-
guém compreendia o poder da má fama e sabia, desde a infância dos sé-
culos, que todos, encarniçadamente, o chamavam de Pai da Mentira. Não
podia brigar só porque mais um vinha descrer do que dizia. Estava habitu-
ado. E, de comedimento a comedimento, acabara chegando a uma quase
santidade em paciência para acatar a opinião do mundo. Recompensava-
se, no entanto, com um transbordamento fácil de espírito prático.
— Sou e te provo já. Chega aqui mais perto.
123
Duílio aproximou-se, completamente esquecido dos propósitos de
morte. A palidez de recluso começava a tornar-se um vermelhão de curio-
so e sedento.
— Olha bem no fundo dos meus olhos. Não tenhas medo, anda.
Até nos confins da terra eu te buscaria, se quisesse te fazer mal. Olha,
anda.
O rapaz debruçou-se e procurou os olhos miúdos de Alfredo.
Olhou, olhou e nada viu além do verde cristalino vagamente estriado de
azul. Eram duas bolas miúdas saltadas em boa parte para fora. Pouco a
pouco, porém, eis que elas foram crescendo, até se transformarem numa
tela única e plana. Foi quando... sim, Duílio via alguma coisa...
— Vejo... estou vendo uma espécie de rosto. É um rosto, sim! É o
rosto... é o rosto de...
— ... de Helena — completou Alfredo. — É Helena, sim, tal como a
viste nos melhores dias: um sorriso penado no canto da boca, uma nuven-
zinha de tristeza, uma ponta de cabelo caída sobre a testa. É ela, Duílio.
Mata as saudades, bom amigo.
Milagre! Tão límpido reencontro, tão sereno e real como se ela che-
gasse, em carne e osso, espontaneamente de volta aos grandes dias. Os
olhos autênticos, a pele morena, a curvatura do rosto — a mesma Helena.
E, puxa!, como mudam as faces e como, na verdade, não mudam nada.
De início, naqueles primeiros dias a feição querida ainda permaneceu viva
— uma presença grudada na retina, quente, cheia de sangue e de cores.
Depois, lentamente, a memória foi traindo a alma leal: cores em retirada,
traços em dissolvência, uma sombra a se pôr sobre a figura de mármore.
Por fim, o que já sobrava era um vulto longínquo, esfarrapado como que
por vendavais cada vez maiores e tão distante quanto o outro lado do céu.
E agora... era ela mesmo, Helena integral, idealizada, soberba.
Alfredo fechou os olhos, pretextando um cansaço impossível. Duí-
lio conformou-se. O estômago doía e um abafamento dominava o Peito.
Recolheu-se à beira da cama e soluçou.
— É a vida, meu amigo. Não digo que já devas conhecê-la bastante
pra que te seja fácil uma posição de independência. Mas eu a conheço e te
afirmo que o remédio é tocar pra frente. Pra frente, sim, e sempre!
O choro escondido, anasalado pela imposição violenta das mãos
sobre a boca, acabou por reduzir-se a intermitentes suspirações profun-
das.
— Volta aqui — pediu Alfredo com ternura. — Volta aqui pra outra
revelação de meus olhos, Espero que a recebas como um fato superior. Já
124
te falei que estou aqui pra negócios.
Duílio atirou-se, em ansiedade enorme, e lá encontrou a mesma
Helena. E viu-a mudar o sorriso penado em alegria inédita.
— Olha mais no fundo, Duílio. Meus olhos são pequenos, mas ne-
les eu colocaria o mundo inteiro ou o próprio inferno, que é mais numero-
so. Olha no fundo — quem é que tu vês?
Era uma sombra indecifrável, escura e que bem realçava a côr a-
penas morena da mulher. Precisou fixar-se com paixão, feito um labora-
torista diante do verme, para observar que aquela sombra se movia, se
aproximava, em lentidão mordente. E tudo foi clareando, os contornos e a
forma de uma face foram surgindo, surgindo, até se estampar, abertamen-
te, o retrato perfeito de um homem.
— Quem é êle? — perguntou, pasmado.
Alfredo optou por uma sábia displicência. Tinha jogado o lance
mais agudo da partida. Dava a impressão de estar nas profundezas de um
êxtase, como se o êxtase não fosse privilégio dos santos. Mas também
esse gesto de enlevo era encenação ardilosa: pretendia tocar os nervos de
Duílio, torná-los fáceis e febris, bem preparados para os negócios.
— Quem é êle? — repetiu o homem, já com ódio expresso em cada
uma das três palavras. — Não o conheço e nem Helena o conhecia. Não
era de nossas relações.
Alfredo escondeu, com delicadeza, o seu risinho de piedade. Bem
para isso possuía aquelas asas não de todo translúcidas. Depois, fechou
a cara, prolongou sadicamente a imobilidade e terminou por bocejar e
pedir licença, que estava na hora de voltar.
— Voltar? — Aquilo foi um choque, uma pancada com ameaça de
abismo.— Voltar? Agora? Mas, e os negócios?
— Sim, os negócios...
— E então? E vens dizer...
— É que estás muito descrente! — falou Alfredo, o majestoso cam-
peão em simular descaso e inventar armadilhas. — Noto com tristeza que
não simpatizaste comigo, apesar do meu esforço. E deves ter pensado que
só estou aqui pra te ferir onde já estás ferido.
— Não, claro que não, Alfredinho. Claro que simpatizei contigo.
Como poderia descrer?
Duílio desceu à submissão esperada e prometeu tanta confiança
que seu hóspede decidiu explorá-lo com exigência mais formal:
— Então, jura. Dá aqui tua mão: deixa ver se ela está suada ou se
treme.
125
A mão estava firme e enxuta e só os olhos permaneciam contrafei-
tos e úmidos, à procura ainda de uma calma que permitisse encarar aque-
le demônio jovial com a mais inteira camaradagem.
— Jura, bom amigo.
— Juro. Por minha vida, pela de Helena.
Alfredo voou da janela para a mesa, em movimento breve e sem
nenhum enfeite. O assunto passava a ser outro, muito outro. Grandes
portas estavam abertas. Grandes negócios deviam entrar por elas. Duílio
acompanhou-o, sentou-se, frente a frente, e aguardou. O outro só decidiu
falar depois que viu mais secura no seu olhar e mais amenidade no seu
semblante.
— Escuta: e se fosses o mais poderoso aqui na terra?
Duílio não entendeu, e surpreendeu-se. Alfredo fêz-se mais direto:
— Pergunto se te julgas em condição de querer a humanidade na
mão, pequenininha, toda tua.
Compreendia. Quem falava era Êle. E, ao intempestivo impulso de
não crer, sobrepôs-se, de imediato, uma imagem de grandeza: mandar!
mandar! Era isso.
— E então? — perguntou Alfredo.
Mandar, mandar — esse era o negócio. Mas contra o quê? Em tro-
ca de quê ?
— Qual é a minha parte, Alfredinho ?
O diabo aprumou-se, mas Duílio quis adiantar-se:
— Contra a minha alma, não é isso?
Alfredo gargalhou com sincero gosto. Pobre Duílio, ouvira tantas
historiazinhas de demônio que ali estava imaginando mais uma; tão ino-
cente que se julgava de alma importante para os projetos de um diabo
tarimbado na vida.
— Ah, não, meu caríssimo. Nem penses nisto. Desculpa eu ter rido,
mas é que não pude me conter. Pois é justo que eu ofereça tanto por tão
pouco? Pouco, sim, não tenhas dúvida. Afinal, não sou tão mau comer-
ciante. E, além do mais, (ia esconder, mas vá lá!) tua alma já me pertence.
Alfredo riu outra vez. Mas parou diante da amargura do moço. A
informação fora abrupta demais e quem não há de levar algum choque ao
recebê-la? Até o mais sujo criminoso da terra o levaria, pois é natural no
homem ter-se por mais merecedor das glórias celestes que dos horrores
do inferno. Duílio, então, colhia a notícia da própria boca de Satanás: tão
cômoda, tão fácil. E tudo sem um alerta, sem nenhuma oportunidade,
sem uma luta dos anjos. Era justo? Seria o caso de o bom Deus andar re-
126
partindo com Alfredo o dom sagrado da preciência? Duílio tentou outras
perguntas, outras saídas salvadoras.
— Pensa como quiseres — tornou Alfredo. — Perguntas a ti mes-
mo se posso conhecer o futuro. Já te dei algumas provas disso, se estás
lembrado. Só não te dou outras porque tiraria a graça do nosso brinque-
do. Pode pensar, meu jovem, estamos numa democracia.
Duílio remoeu a dúvida. Estaria aquele inseto-diabo com a razão?
Não seria uma graçola qualquer, dessas que todos dizem para engabelar
os mais tolos ? De qualquer maneira, era impressionante! Porque ouvir
do próprio Capeta aqueIa gabolice ou aquela verdade, significava, quando
menos, que interesse existia.
— Pensa, pensa, estamos numa democracia.
Mas uma cabeça sensível esquece também a tortura, quando algo
intrincado lhe vem bater à porta. Afinal de contas, se já tinha a alma ga-
rantida, que tipo de negócio queria propor Alfredo? Dava o poder máximo
— e, em troca, qual compensação ?
— Já te respondo. Se estou demorando em apresentar meu plano,
é por tua culpa.
— Reconheço.
— Pois bem. Vamos à parte que te cabe. Não é muito, para ti. Mas
eu te digo que me custaria bastante passar sem ela. O caso, bom amigo,
é que sou um ente desgraçado. Desgraçado diz pouco. Sou uma criatu-
ra levada ao supremo aniquilamento, à frustração absoluta, inimaginá-
vel para quem não a vive. Tu me viste, ainda há pouco, agindo como um
despreocupado. Tu mesmo me achaste espirituoso e simpático. Isso já
não é mais possível, porque passaras a saber que tudo é uma máscara, e
como me custa armá-la na face para enganar os outros e a mim mesmo!
Sou um frangalho, Duílio, a despeito de todas as riquezas que posso fazer
surgir a um estalo de dedo. Fica sabendo, então, que toda ambição que
carrego, ultrapassa, a esta altura da vida, o vulgar objetivo de caçar almas
e de levá-las para o meu aprisco. Êle já é vasto. E continuará crescendo,
mesmo que eu renuncie ao meu trabalho de cada dia. Sabes, portanto, o
meu desejo? Nada mais que isto: aproveitar teu ódio contra o mundo, tua
negações, teus distúrbios intestinais, tua dor no Peito, para uma satisfa-
ção que jamais me foi dada em toda minha carreira milenar, sempre tão
cheia de favores a tanta gente.. Quero dar-te uma ocasião de me seres
grato. Apenas isto: grato!
Por longo tempo, só Alfredo continuou com a palavra. E falou dos
pecadores: egoístas, vaidosos, presumidas criaturas a se julgarem os ex-
127
clusivos autores de cada maldade. Sonham com o crime, rastejam à busca
duma inspiração superior, praticam-no com sucesso, usufruem com gula
todas as vantagens, mas nunca se dão à nobreza de reconhecer o mérito
da ajuda, o devotamento da voz subterrânea, persistente, apostolar. E,
quando chegam a esse reconhecimento, que covardia!, é na hora vergo-
nhosa do arrependimento, da deserção. Aí, sim, foi Satanás o responsável;
êle, o perdido, foi quem inoculou o veneno e fêz promessas absurdas.
Malditos mais imundos que os que não crêem, ainda mais imundos que
os que reivindicam para o Anjo Irrecuperável da Maldade uma ilusória e
humilhante reabilitação!
— Ah, bom amigo, se te disser que, em certos momentos, chego a
preferir os santos, tu me acusarás de querer fugir à ordem da natureza e
de escapar à responsabilidade. Mas é que estou cansado. Não do mal em
si, que é minha atmosfera e o meu pão diário, mas dos porcos que o pra-
ticam. Eles jamais me mereceram. Levei séculos e séculos tolerando isso,
de cabeça baixa e, contudo, sempre ativo na minha missão. Hoje, recorro
a alguém que precisa do meu auxílio. E é grande a fé de que sejas justo.
A voz de Alfredo, em que cada palavra saíra pesada como pedra,
morria numa comoção deplorável.
— Quequeres, afina!? — indagou Duílio, muito confuso com a ines-
perada confissão de pobreza.
— Mas não entendeste? Quero dar-te o mundo! E repito: para me
seres grato. Apenas isso. Ver-te amistoso, buscar em teu coração algum
fogo de constância e de amizade, sem que, para isso, te rebaixes a meu
escravo. Tenho milhões deles. Quero é uma afinidade íntima, até mesmo
amor fraterno, se fôr possível. E, em troca.... te garanto que poderás ani-
quilar os impuros que te cercam, os falsos que te roubam, os covardes
que te ferem pelas costas; poderás vingar todos os risos escarninhos, a
prepotência e a dureza dos que não te, admitem. Eis como farás feliz o
nosso Peito! Não será uma tragediazinha como as tragédias diárias, tão
descoloridas e insuficientes. Será a Conquista, bom amigo, simplesmente
aquela que nos resta e que nos cabe, para consolo é até por direito. Tu me
dirás: morrerão inocentes! E eu te juro: eles serão felizes em desaparecer
na inocência, porque logo mais seriam também a mesma canalha.
Alfredo calou-se, ofegante. Mas, interiormente, prosseguiu ainda
no desabafo de toda aquela mágoa tão velha como o mundo: até um dia-
bo, senhores, passa fome de justiça; até êle chega a ser ofendido pela
vileza dos homens.
Duílio, por seu lado, imaginou-se na ação proposta: severíssima,
128
demolidora. Ah, Ciro e Alexandre, Dario e César, Átila e Napoleão, Hitler e
outros soldadinhos pedantes, pudessem todos ver o papelão de sua ba-
zófia! Ali estava quem já podia borrá-los da História, quem bem podia
arrasar a própria História.
— Fala mais, bom Alfredo. — Os olhos apertados e as mãos rija-
mente espalmadas sobre a mesa indicavam a concentração máxima. Toda
a grandiosidade já sugerida pedia mais palavras, na volúpia da ambição
despertada.
— Amigo, vejo que compreendeste por que eu mesmo não destruo
este mundo podre.
Duílio confirmou, que percebera.
— Então, abre a gaveta! — ordenou o demônio — assinalando o
centro da mesa.
Lá estavam seis pequenas bombas, bolas negras do tamanho... de
laranjas.
— São para que ganhes prestígio. Detonarás uma aqui, outra lá, e
assim o mundo se acostumará contigo e aprenderá a temer-te. Vê como
cada uma já traz seu destino.
De fato, todas elas tinham seu rótulo: uma para Alvorada, interior
de Jaraguá, Santa Catarina; outra para St. Augustine, na Florida, USA; a
terceira para Minsk, na Rússia Branca; a seguinte para Jerusalém; a quinta
para Nam Dinh, no Vietcong, e a última para o Vaticano. Era uma distri-
buição com evidentes motivações políticas. Mas o que logo sensibilizou
a atenção de Duílio foi o primeiro dos seis endereços: pois qual a impor-
tância daquela obscura Alvorada, no interior de um municipiozinho tão
distante do interesse mundial? Não haveria algo pessoal, algo particular
dele, Duílio?
— Agradeço-te especialmente esta, bom Alfredo. É lá que eles es-
tão, não é mesmo?
O demônio achou bom exprimir pena outra vez: aquela criatura
teimosa, munida de extraordinários podêres, mantinha-se enrascada em
banalidades. Fingiu desinteligência, mas Duílio tomou-a por mais uma
manobra de estratégia.
— É, sim! — vibrou, com segurança. — Não precisas dizer nada. Eu
sei que eles estão lá. Só me diz uma coisa: quem é êle, Alfredinho ?
— Chama-se Arnaldo, pronto! Isto basta?
— Não, não basta. Diz tudo — eu preciso!
— Está bem. Chama-se Arnaldo e é engenheiro-agrônomo. Tem
trinta e dois anos, é louro, forte, não padece mal nenhum, ganha bem
129
como empregado do Governo e roubou-te a mulher em apenas três dias
de esforço.
— Três dias...
— Três dias. Lembras o passeio que fizeste à casa da tua avó. Pois
foi um mau passeio. Na tua ausência, eles se entenderam e, se ela ainda
levou um mês para te deixar, foi por uma questão de política interna lá
dos dois. Satisfeito?
Duílio acariciou a bomba número um e pediu mais notícias. A curio-
sidade, em casos assim, é doença. Pretende ser antídoto, quando não pas-
sa de pior veneno. No fundo, no fundo mesmo, o amor pela mulher talvez
chegue a se deturpar em simpatia pelo adversário, e ladrão. (Senhora,
eu vos amo tanto, que até por vosso marido me dá um certo quebranto!
— já não falou Mário Quintana?) É o que sucede com muitos, conforme
teoria corrente. O mais razoável, porém, é que o desejo de vindita goste
de nutrir-se bem, antes do pulo. Busca informações de toda espécie, dolo-
rosas ou não, para que o gesto de cobrança caia sobre alguém conhecido,
estudado, compreendido. Construção metódica do ódio— eis o que é. E
Duílio, viva Alfredinho!, tinha já em mente o seu Arnaldo venturoso e de
bom aspecto, inteiro como um amigo diário ou como um inimigo de cada
minuto, e isso não só pela descrição mais recente, mas também pela visão
aquela nas pupilas, visão da cara dele e da alegria de Helena.
— Ela o ama, Alfredo?
O diabo fêz que não ouviu.
— Alfredinho, ela o ama?
— Ah, perdão, bom amigo: gosto de me fazer de surdo em conver-
sa deste tipo. Sinceramente, acho que falas demais em amor, é o que é
pior, falas demais em amor desabado.
— O deles?
— O teu. O deles estou por saber. Como vou te dizer, se eu não
sou ela?
— Mas tu sabes tudo.
— Quase tudo, E quando quero. Amor não me interessa, a não
ser o amor fraterno de que te falei e que venho buscar em ti. Mas, já que
insistes, e para acabarmos duma vez com tanta perda de tempo, façamos
juntos um exercício mental: não parece aceitável que o engenheirozinho
agrônomo deve ser muito amado, se te tomamos por medida? Penso que
deste ângulo miserável ela o ama, sim. Afinal, fêz uma troca, e não me
consta que tenha voltado, arrependida. No entanto, o engenheirozinho
também pode servir de medida, pois eu suponho que ela não resistiria a
130
certas contingências vitais..
— Que contingências ?
— Digamos que dês a ela uma oportunidade de sobreviver...
O homem quis ser forte. Não pôde. Quase gritou um não!, um nun-
ca!, mas caiu em silêncio e desviou os olhos de Alfredo.
— Eu não esperava este silêncio, bom amigo. Eu contava com um
não! honroso, com um nunca! cheio de máscula energia.
Alfredo reconhecia que o passo fora mal dado. Só Deus é infalível.
E aquele erro, aquele franqueamento para a mobilização da piedade, do
perdão... precisava anular, com urgência, os possíveis efeitos da distração.
— Mas, onde estamos ? — voltou.— Desviamos nossos assuntos e
aí ficaste como se eu já te houvesse dado todas as armas para o trabalho.
— Pois já não deste?
— Qual! Seis bombinhas! Achas que com elas conquistadas o mun-
do ? Eu te falei: elas são para ganhares prestígio.
— Mas....
— Olha naquele canto, Duílio. Duílio torceu o pescoço: era a Bom-
ba.
— Ei-la, um trilhão de vezes mais bomba que essas porcarias. É
com ela que te consagro senhor de todas as vidas.
Que pensar daquele monstro ovalado, entumescido de morte ? No
bojo dele repousavam potências extremas, solidão e cinzas. Estava calma,
reduzida a frio artefato, mas que hipocrisia maldita! Os homens nem che-
gariam a conhecê-la, a tremer ante sua síntese de fogo, seu laconismo de
ódio, sua rapidez de violência.
— Não te inquietes com os mistérios da nossa Bomba — observou
Alfredo, antevendo o rumo fracaIhão dos pensamentos do rapaz. — Os
super-homens do teu mundo não se dão a essas reflexões secundárias, e
com que empenho eles procuram também esse ideal de síntese, de laco-
nismo, de rapidez! Estão em bom caminho, não há dúvida. Mas eu só os
ajudo até um limite: jamais conseguirão as virtudes desta Bomba única.
Única para ti, para nós, Duílio.
— É terrível...
— Terrível... Existe algo mais terrível que o nosso próprio drama? E
os teus infortúnios, a solidão, a vergonha, os distúrbios intestinais, a dor
no Peito? E a minha tristeza sem-fim, o abandono a que me sinto atirado?
Acreditas que alguém pense mais nos outros que em si mesmo? Ah, bom
Duílio, não te deixes apodrecer-com cristianices. Elas é que mantêm esse
mundo carregado de misérias, porque com elas se manifestam os fracos
131
para alimento dos fortes. Com fracos espezinhados e com fortes sempre
arrotando sua força é que tudo aparece, do palavrão solitário e medroso
aos bate-bocas de nação com nação, do tabefe às guerras mundiais; apa-
recem os roubos e as calúnias, o adultério e tudo mais que são os traços
característicos da cultura de vocês. A passividade de uns abre o apetite
de outros; mas não há passividade que não se altere nunca — a não ser
aquela de um louco e, portanto, de um desgraçado ainda mais nulo. E,
então, quem ontem orava pela paz alheia e se sujeitava, hoje avança e
destrói para não ser mais escravo..
Duílio pensava: são sofismas. Como falar apenas em cristianice, se
bem antes do Cristianismo já os homens se retalhavam?
— É um modo de falar, jovem Duílio. Os homens sempre fizeram a
mesma coisa. Os fracos não são novidade. O Cristianismo veio apadrinhá-
los com promessas e esse apadrinhamento não melhora nada. Tudo, tudo
é mau para vocês.
— E se todos fossem iguais? — perguntou o homem, apenas para
tentar um embaraço àqueles argumentos pessimistas.
— Pior ainda: a luta seria mais sangrenta, pois se daria em pari-
dade de forças. O grande come o pequeno com duas ou três dentadas;
mas dois iguais em disputa, bom amigo, é do que mais gosto, mas que
monotonia!
— Então...
— Certo, não há remédio. Vocês não prestam e não posso saber
como que Deus teima em protegê-los. Eu o odeio por muita coisa, e o
admiro por algumas, mas sinto pena por ser assim ingênuo com essa es-
cória. Olha que tenho feito de tudo por esses séculos, mas sempre es-
barrei, no momento mais duro da investida, com a intervenção dele. Não
entendo. Se vocês me enjoam, me enlouquecem de náuseas, como não
deveriam enjoar aquele que os criou e que eu sei tratar-se de uma pessoa
limpa!
Na longa pausa, Alfredo considerou que não estava falando, outra
vez, em benefício dos negócios propostos. Empolgara-se com problemi-
nhas arcaicos e insolúveis. E isso foi péssimo, porque tratava com um ho-
mem que já pensava na extensão da debilidade humana.
— Bem, Duílio, estamos perdendo tempo — volveu, num movi-
mento angustiado para impedir o raciocínio do outro. Tinha de agir mais
depressa. — Olha, olha atrás daquela porta.
Duílio hesitou, mas acabou indo ver.
— É um balão. Num segundo êle se enche. Com êle subirás a qual-
132
quer altura e viajarás para o ponto que quiseres. Apanha-o já, leva as tuas
bombas, toma o rumo norte. Todos logo se aperceberão de ti e virão de
rastros procurar-te os pés. E tu me conhecerás plenamente e me beijarás
a face, na exultação de cada vitória.
Duílio pretendeu reagir de alguma forma. O diabo não lhe deu
tempo:
— Anda, cura-te já dos intestinos, pois necessitas de todo orgulho.
Toma o rumo norte, amigaço! Falaremos mais tarde. Adeusinho, adeusi-
nho!
Suavemente, Alfredo subiu. Duílio viu-o desaparecer nas alturas,
por trás duma fumaça qualquer, e voltou para a cadeira e cerrou os olhos.
Contudo, eia!, para que meditar, e sobre o quê?
Juntou o necessário e, com rapidez, ajeitou à borda da janela o
seu balão colorido. Num instante, então, era já outro ponto no vasto céu,
segura e remansadamente em direção do norte.
O balão era de simples feitura e de mais simples manejo. Nos pre-
tensiosos dias do foguetão interplanetário, facilmente passaria por ridí-
culo trambolho. No entanto, ah! ah! que dólares ou rublos não gastariam
dois povos para possuí-lo! Chegariam bem depressa à guerra frontal, caso
pudessem dísputá-lo. Mas era presente exclusivo de Alfredo. E funcionava
assim, mais ou menos: podia atingir qualquer altura e desenvolver qual-
quer velocidade, praticando quaisquer manobras sem nenhuma obediên-
cia às regrinhas da física vulgar e a outras complicações. Entenda-se: obra
de libélula, mestre famoso em liberdades de vôo; e que libélula, afinal!
Seria lógico esperar-se do competidor do Bem uma geringonça complexa
como as nossas, quando é tão imenso o seu domínio e tão mais sérios os
seus propósitos? Não, não, prevenção! O balãozinho tinha ar de brinque-
do, mas quanta magia!. Tornava-se invisível, só ao toque dá vontade ou a
qualquer sinal da necessidade; de frágil seda, era, entretanto, invulnerá-
vel como o diamante; e trazia música, perfume, televisão e rádio, bebida e
comida e uma cômoda privada. No mais, imagine-se o resto, para poupar
louvores.
Duílio riscou uma reta perfeita e, em não muitos minutos, atingiu o
lugar programado. Fiscalizou as bombas pequenas e a Bomba. Olhou para
baixo: não passava de um vilarejo, com cinqüenta casas, no máximo, No
centro, uma capelinha caiada de branco, com enorme cruz de ferro; ao re-
dor, todas as pequenas construções, também brancas e distribuídas com
regularidade; um pouco distante, sobressaindo das demais pelo tamanho
e pela côr marrom, algo que deveria ser a residência principal da vila, de
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alguma autoridade ou coisa que o valha; por todos os lados, estendia-se
vasta área cultivada. Podiam ser percebidas claramente as plantações vi-
cejantes, organizadas em geometria de bom efeito panorâmico. Alvorada
era uma granja experimental e não se poderia negar que fosse progres-
sista. E bonita, muito limpa, as ruazinhas de chão batido. Duílio gostou
dela, só em vê-la assim miúda, mas viva, a fazer projetos para logo mais,
o amanhã.
— Olha essa fraqueza! — gritou o demônio, de cima da geladei-
ra.:— Olha essas tentações da Fraqueza, já com inveja do teu sucesso.
— Alfredo, confirma: eles estão aqui ?
— Mas que interessa? — perguntou teatralmente o demônio. —
Temos um trabalho tão mais importante.
— Responde!
Alfredo, na verdade, não sabia; agora o que dizer. Esforçava-se o
quanto podia, mas não lhe era possível adivinhar a reação para a resposta
que desse. Sempre acontecia, nos momentos decisivos das maiores ba-
talhas: perdia o faro, vulgarizava-se numa ignorância quase humana. Por
isso, já se arrependia de ter posto aquele lugarejo no roteiro. O cálculo fa-
lhara, estava ficando claro que falhara. Porque a intenção fora a de ativar
os ódios profundos, à simples vista daquela granja. Mas Duílio carregava
sua obsessão, imprevisível, e, por todas as almas do inferno!, não parti-
lhava nem um pouco da magnitude do negócio. O que surgia, ao invés de
iras medonhas, era nada mais que um arremedo delas, espasmo de amor
em desespero de causa. Duílio estaria pronto a lamber a própria terra e a
esquecer todas as dores do amor-próprio.
— Não respondo! Não respondo porque o que procuro não é sa-
tisfazer tua inclinação primária, mas revelar-te à maior das glórias. É uma
necessidade minha. Por ti e por mim.
Duílio fixava a casa marrom. O balão, parado e silencioso, estava a
prumo sobre a capela.
— Traz a bomba — mandou Alfredo. — Não, não precisa. Eu mes-
mo vou buscá-la. Faço tudo, tudo, para ti... — Já não era mais a libélula
luzente, mas um satã formidável, tal como o pintam todas as legendas.
— Não! — berrou Duílio. — Não quero!
O demônio correu, apanhou a pequena bola e colocou-a, violenta-
mente, nas mãos do outro.
— Pronto, atira!
— Não quero! Desisto, desisto!
Alfredo como que naufragava.
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Mas ainda tentou o recurso da palavra calma, uma última prova.
— Duílio, por que esta fuga? Acaso a gentalha aí de baixo pode
oferecer alegrias ao teu coração? Não vês que ela está em nossos planos,
que é urgente arrasá-la, e as demais, tal como combinamos? Basta um
movimento, um só, e já partimos para a Florida, para a Rússia, para...
— Não! Eu te suplico: não quero, não quero!
— Um movimento só...
— Não quero! Por Deus, eu te peço...
Era o fim. Alfredo não resistiu. Colérico e rouquenho, babando
como se estivesse sufocado por todas as peçonhas, gritou, ao mesmo
tempo em que arrancava a bomba daquelas mãos trêmulas de arrepen-
dido:
— Ah, seu traidor imundo! Grande imbecil traidor! Eu te ofereço
tudo o que homem algum nunca teve, e me tratas assim, galinha velha!
Pensas que te adianta ser tolerante com esses depravados e com a vadia
que te deixou? Ela está aí, sim, com o engenheirozinho que te passou a
perna. E é bem feito, porque merecias muito mais.
Ainda falando, Alfredo dirigiu-se à janelinha. Duílio tentou correr,
mas sentiu-se amarrado, tonto de horror infinito. E, mesmo que pudesse
voar, já seria tarde: a bomba partia e, quase instantaneamente, cumpria
seu dever de morte.
— Maldito dos infernos! — arquejou, incendiando-se de ódio.
— Maldito és tu, grande imbecil. Malditos somos nós, eternamen-
te, galinha velha!
Na fração de um segundo, tudo desaparecia: bombas, a Bomba, o
balão, Alfredo. Duílio, sozinho e desvalido, mergulhou no vazio e empas-
tou-se de sangue na terra fumegante.

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136
CIÊNCIA

PREENCHENDO AS LACUNAS
Isaac Asimov

Trad. de Rosaura Eichenberg

Enquanto escrevo este artigo, Houghton Mifflin está publicando


meu centésimo livro — Opus 100. Domingo passado, o Boston Globe ce-
lebrou a ocasião com um longo artigo, e entendo que o New York Times
seguirá seu exemplo dentro em breve. Além disso, Houghton Mifflin vai
me oferecer um coquetel no dia da publicação.
No todo, isto é o bastante para virar a cabeça de qualquer um,
de modo que, para não perder a modéstia adorável que é minha melhor
qualidade, guardo firmemente na memória algo que, certa vez, aconteceu
à minha mãe.
No começo da década de 50, meus pais venderam finalmente sua
confeitaria e retiraram-se para um descanso bem merecido. Naturalmen-
te, o tempo custava-lhes a passar, de modo que meu pai aceitou um em-
prego de meio turno que lhe tomava quarenta horas por semana (a con-
feitaria lhe tomara noventa) e minha mãe começou a freqüentar a escola
noturna.
Ela sentia profundamente não poder escrever em inglês. Sabia es-
crever em russo e iídiche, mas nenhuma das duas línguas empregava o
alfabeto latino. Conseguia ler em inglês, mas não conhecia as letras escri-
tas, de modo que tirou um curso de grafia inglesa e realizou um progresso
admirável. Num abrir e fechar de olhos, estava me escrevendo cartas com
uma letra bem clara.
Certa noite, um dos professores da escola noturna deteve-a no sa-
guão e perguntou-lhe o que, na nossa família, chamamos de Aquela Velha
Pergunta. Disse: “Desculpe-me, Sra. Asimov, mas, pôr acaso, a senhora
não é parente de Isaac Asimov?”

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Minha mãe disse imediatamente: “Sim, certamente. Isaac Asimov
é meu filho”.
O professor replicou: “Oh! Então não é de admirar que a senhora
escreva tão bem!”.
Ao que minha mãe, bem consciente do fluxo unidirecional dos ge-
nes, empertigou-se e disse friamente: “Desculpe-me, senhor. Não é de
admirar que êle escreva tão bem”.
E, com a lembrança deste comentário moderador a produzir em
mim a humildade adequada, volto-me agora para o assunto do mês, o
qual retomarei a partir do ponto onde o deixei o mês passado.

Na metade do século XIX, alguns sessenta elementos haviam sido


descobertos, e os químicos estavam se tornando um pouco ansiosos.
Cada década via o número aumentar: haviam sido descobertos três na
década de 1770, cinco na de 1780, cinco na de 1790, quatorze na de 1800,
quatro na de 1810, cinco na de 1820 e assim por diante.
Onde iria parar? Os cientistas dão valor à simplicidade, e, quando o
que parecera, a princípio, simples, torna-se crescentemente complexo, é
procurada uma nova ordem de significação. Neste caso, ficaram tentados
a encontrar alguma maneira de ordenar a lista enredada de elementos
de modo a possibilitar o aparecimento de “famílias de elementos”. Isto
dominaria um pouco a profusão de elementos.
Na verdade, se os elementos fossem apropriadamente ordenados,
talvez houvesse até um modo de determinar quantos elementos existi-
riam ao todo e, conseqüentemente, quantos ainda deveriam ser desco-
bertos. Na metade do século XIX, entretanto, isto parecia um pensamento
muito avançado.
A única medida quantitativa, conhecida nessa época, para os áto-
mos dos vários elementos era o peso atômico. Assim, se o peso do átomo
do hidrogênio (o mais leve conhecido, tanto naquela época como agora)
fôr considerado 1, atribui-se ao átomo do carbono, que é doze vezes mais
pesado, um peso atômico de 12, ao átomo do oxigênio um peso atômico
de 16 e assim por diante.
Em primeiro lugar, portanto, poder-se-ia tentar agrupar os elemen-
tos segundo a ordem de seus pesos atômicos para ver se algum sistema
racional de famílias apareceria. O resultado foi que uma tabela pôde ser
traçada, na qual elementos semelhantes apareciam ocasionalmente em
linhas ou colunas (conforme os elementos sucessivos fossem ordenados
vertical ou horizontalmente). Infelizmente, as primeiras tabelas também
138
agruparam elementos muito diversos, e, em ciência, uma meia solução
não é solução alguma.
O problema básico dos pesos atômicos servirem como um guia
para a ordenação dos elementos é que não é possível saber quando a
lista está completa. Acontece que o peso atômico do carbono é 12, do
nitrogênio 14 e do oxigênio 16. Como se pode ter certeza de que não há
elementos ainda não descobertos que tenham os pesos atômicos de 13 e
15? Toda a tabela podia ser rejeitada de vez, somente por não incluir os
elementos que faltassem.
Poder-se-ia argumentar, é claro, que uma diferença de 2 em peso
atômico é a diferença mais próxima a que os elementos provavelmente
cheguem, mas não se pode ter certeza disto. O níquel tem um peso atô-
mico de 58,7 e o cobalto um peso atômico de 58,9. Com tais diferenças
entre pesos atômicos, haveria lugar para nove elementos entre o carbono
e o nitrogênio e mais nove entre o nitrogênio e o oxigênio.
A realidade é simplesmente que os pesos atômicos não são o sufi-
ciente. São necessárias outras propriedades quantitativas que, sobretudo,
possam ser apresentadas apenas através de números inteiros, de modo
que, se tivermos um 1, um 2 e um 3, saberemos que não há possibilidade
de haver nada entre eles.
O caminho começou a ser descoberto em 1852. Um químico in-
glês, Edward Frankland, observou que, nas fórmulas químicas que es-
tavam sendo elaboradas, um átomo de um elemento particular parecia
combinar-se sempre com um número fixo de elementos.
Assim, um átomo de hidrogênio nunca se combinava com mais de
um átomo diferente. Podia lhe ser atribuído um poder combinatório (ou
“valência”, de uma palavra latina cujo significado é “poder”) de 1. Um
átomo de oxigênio podia se combinar com dois átomos de hidrogênio,
um átomo de nitrogênio com três e um átomo de carbono com quatro, de
modo que o oxigênio, o nitrogênio e o carbono tinham, respectivamente,
valência de 2, 3 e 4. O cálculo destas valências era bem preciso. Assim,
um átomo de carbono (valência 4) podia se combinar com dois átomos de
oxigênio (2 + 2) ou com um átomo de oxigênio e dois átomos de hidrogê-
nio (2+1 + 1).
O conceito de valência não só tinha a virtude de simplificar e ser
útil de uma forma clara e evidente, como também oferecia os números
inteiros desejados, pois parecia não haver possibilidade de valência de
1,5, 2,32 ou algo assim.
Em 1869, o químico russo, Dimitri Ivanovitch Mendeleiev tentou
139
ordenar os elementos segundo o peso molecular e a valência. O resulta-
do foi uma tabela da qual apresentarei uma versão muito simplificada e
incompleta (V. Tabela I), com os pesos atômicos calculados até a primeira
casa decimal.

140
Na Tabela I, uso os símbolos químicos dos elementos para poupar
espaço, mas isso não afeta a argumentação, nem a atrapalha de modo
algum, mesmo se o leitor não souber que elementos os símbolos repre-
sentam. Quando tiver de mencionar um elemento particular, entretanto,
darei o nome completo, bem como o símbolo.
As fileiras da Tabela I contêm, na verdade, famílias de elementos
intimamente ligados. Por exemplo, a primeira fileira contém o lítio (Li), o
sódio (Na), o potássio (K), o rubídio (Rb), o césio (Cs) e o frâncio (Fr), que
têm todos propriedades muito semelhantes. Todos têm baixo ponto de
fusão e são metais extremamente ativos que, sob dadas condições quími-
cas, reagem de modo quase idêntico. E, além disso, onde há diferenças,
estas apresentam uma gradação constante através da fileira. Do lítio ao
sódio, ao potássio e assim por diante, vemos que o ponto de fusão se
torna progressivamente mais baixo e a atividade progressivamente mais
alta. Estes seis elementos são os “metais alcalinos”.
A segunda fileira contém seis “metais alcalinos terrosos”, que tam-
bém são semelhantes entre si, e assim por diante.
Observe-se que, no período 5, o telúrio (Te) vem antes do iodo (I),
apesar do telúrio ter peso atômico maior. Deveria ser colocado após o
iodo, se o peso atômico fosse o único critério.
Foi uma das grandes decisões de Mendeleiev dar primazia às ques-
tões de valência (e às propriedades químicas em geral), relegando as do
peso atômico a segundo, plano. Para colocar o telúrio e o iodo na famí-
lia adequada e com a valência adequada, a ordem do peso atômico teve
de ser invertida. O conhecimento mais sofisticado da estrutura atômica,
alcançado por cientistas mais modernos, provou que, a este respeito, a
intuição de Mendeleiev estava totalmente correta.
Quando se percorre a lista de elementos seguindo a ordem dos pe-
sos moleculares, observa-se que um conjunto particular de propriedades
aparece periodicamente. Assim, quando os elementos são dispostos de
modo a fazer com que esses conjuntos particulares se agrupem em fileiras
ou colunas bem ordenadas, a lista é chamada de “tabela periódica”.
Na época em que Mendeleiev propôs pela primeira vez a tabela
periódica, alguns elementos incluídos na Tabela I ainda não haviam sido
descobertos. Estão indicados na Tabela I por asteriscos.
Por exemplo, os seis elementos da última fileira, o hélio (He), o
neônio (Ne), o argônio (Ar), o criptônio (Kr), o xenônio (Xe) e o rádon
(Rn), eram todos desconhecidos em 1869. Sua existência era totalmente
insuspeitada, e a tabela periódica parecia completa sem eles. Quando se
141
percorre a lista dos pesos atômicos em ordem crescente, observa-se que
a mudança de valência dos elementos incluídos na Tabela I (com exceção
da última fileira) seria 1,1,2,3,4,3,2,1,1,2,3,4,3,2,1, 1,2, e assim por diante.
Entretanto, quando os elementos da última fileira foram descober-
tos, observou-se que eles não se combinavam com nenhum outro ele-
mento e que, conseqüentemente, tinham uma valência de O. A mudança
de valência ficou, portanto, 1,0,1,2,3,4,3,2,1,0,1,2,3,4,3,2,0,1,2, e assim
por diante.
Os elementos da última fileira, que têm todos propriedades muito
semelhantes e são chamados de “gases inertes” ou “gases nobres”, au-
mentam, portanto, a tabela sem a alterar. Bem pelo contrário, a inserção
de um O no lugar adequado torna a tabela periódica ainda mais elegante.
O fato de que um grupo desconhecido de elementos devesse tão notavel-
mente se adequar e dar mais harmonia a uma tabela periódica inventada
sem eles, é uma prova extraordinária a favor da validade do conceito de
Mendeleiev.
Observa-se que, para conservar o argônio (Ar) no seu lugar correto
na família dos gases inertes, êle teve de ser colocado antes do potássio
(K), apesar disso inverter a ordem do peso molecular. Novamente, isto
revelou ser A Medida Acertada.
Observa-se também que, na Tabela I, os cinco elementos que têm
os pesos atômicos mais altos eram desconhecidos na época de Mende-
leiev. São o polônio (Po), o astatínio (At), o rádon (Rn), o frâncio (Fr) e o
rádio (Ra). Foram descobertos a partir da década de 1890 e são exemplos
de elementos radioativos. Todos são instáveis e existem em quantidades
muito pequenas na crosta terrestre. Como estão todos no final da tabela,
sua ausência não afeta o restante.
Depois há o caso do flúor (F), que, a rigor, não era conhecido na
época de Mendeleiev. É, entretanto, um caso especial. Compostos do
flúor eram conhecidos, e, como o elemento é um membro de uma famí-
lia muito intimamente ligada, os cientistas, baseados no conhecimento
daqueles compostos, tinham determinado sua existência e propriedades.
Foi apenas devido ao flúor ser tão estreitamente unido aos outros ele-
mentos que os químicos só conseguiram desprendê-lo e estudá-lo na sua
forma elementar em 1886. Na realidade, foi incluído na tabela desde o
princípio (exatamente como os pólos Norte e Sul puderam ser colocados
nos globos terrestres do século XIX apesar de ninguém ainda ter chegado
até lá nessa época).
Restam dois elementos: o gálio (Ga) e o germânio (Ge). Estes não
142
estão no final da tabela, quer seja na última coluna ou na última fileira,
de modo que não podiam ser omitidos sem afetar o resto da tabela. Ao
contrário do flúor, eram totalmente insuspeitados e deixavam “buracos”
na tabela.
Isto significa que, se tentássemos ordenar os elementos segundo
seu peso atômico e não considerássemos o gálio e o germânio, seríamos
forçados a colocar o arsênio (As) à direita do alumínio (Al), o selênio (Se) à
direita do silício (Si) e assim por diante. Isto alteraria totalmente a ordem
das famílias e da valência.
Mendeleiev recusou fazê-lo, e essa foi a maior de suas contribui-
ções. Colocou o arsênio (As) à direita do fósforo (P) e o selênio (Se) à di-
reita do enxofre (S), onde, segundo o critério das propriedades, eram seus
lugares. Como isso deixava dois espaços vazios à direita do alumínio (Al)
e do silício (Si), êle calmamente decidiu que tais espaços representavam
dois elementos que ainda deveriam ser descobertos. Chamou-os de “eca-
alumínio” e “eca-siiício”, respectivamente, sendo “eca” a palavra sânscrita
para “um”. Em outras palavras, os elementos ainda não encontrados co-
locavam-se um espaço à direita do alumínio e do silício, respectivamente.
Além disso, Mendeleiev predisse, com bastantes detalhes, as pro-
priedades dos elementos ainda não encontrados, supondo que o gálio
(Ga) teria propriedades afins às do alumínio (Al) e do índio (In) e que o
germânio (Ge) teria propriedades afins às do silício (Si) e do estanho (Sn).
Em geral, os químicos sorriram indulgentemeníe do russo louco;
mas em 1875 o gálio foi descoberto e em 1886 descobriu-se o germânio.
As predições de Mendeleiev estavam corretas sob todos os aspectos. Os
químicos pararam-de rir. .
Será que isto significa que a tabela periódica, como foi descrita até
agora, é perfeita?
Infelizmente, não. A versão da tabela periódica apresentado na Ta-
bela I contém apenas quarenta e quatro elementos, mas o número de ele-
mentos é muito maior. Elementos tão conhecidos como o ouro, a prata, o
cobre, o ferro, a platina, o manganês e o tungsrêhio (todos perfeitamente
conhecidos na época de Mendeleiev) não encontraram lugar na tabela
periódica, na forma apresentada na Tabela I.
Deve a tabela periódica ser rejeitada ou será possível encontrar
lugar para os elementos que faltam?
Bem, observem os três lugares que marquei com um sinal #. Entre
o cálcio (Ca) e o gálio (Ga), há uma diferença de peso atômico de 29,7;
entre o estrôncio (Sr) e o índio (In), uma diferença de 27,2; e entre o bário
143
(Ba) e o tálio (TI), uma diferença que atinge o total de 67,1. Estas diferen-
ças são muito maiores que as outras existentes na tabela periódica. Na
verdade, se estes três intervalos não são considerados, a diferença média
de peso atômico de um elemento para outro é de apenas 2,5 em todo o
restante da tabela.
Se aceitamos 2,5 como a diferença média de peso atômico entre
elementos adjacentes em toda a tabela, há lugar para doze elementos
entre o cálcio (Ca) e a gálio (Ga), para onze entre o estrôncio (Sr) e o índio
(In) e para nada menos que vinte e sete entre o bário (Ba) e o tálio (TI).
Será isto possível ?
É possível, se admitimos que os períodos da tabela periódica não
precisam ser todos necessariamente do mesmo comprimento (como al-
guns dos primeiros especuladores supuseram), mas podem ter suas colu-
nas aumentadas.
Na época de Mendeleiev, por exemplo, o primeiro período tinha
apenas um membro, o hidrogênio (H), enquanto os períodos 2 e 3 tinham
cada um sete membros. Na geração seguinte, quando os gases inertes
foram descobertos, o primeiro período passou a conter dois elementos
e o segundo e o terceiro, cada um, oito elementos. (Não houve mudança
desde então.) Por que, portanto, não poderiam os últimos períodos, pular
para vinte ou até mesmo trinta ou mais elementos?
Na verdade, na época de Mendeleiev, eram conhecidos nada me-
nos que nove elementos cujos pesos atômicos se colocavam entre os do
cálcio (Ca) e do gálio (Ga), elementos que serviriam, portanto, para preen-
cher esta grande lacuna de pesos atômicos. Da mesma forma, havia nove
elementos que contribuiriam para preencher as lacunas entre o estrôncio
(Sr) e o índio (In).
O problema era que, entre; esses elementos das lacunas, a valên-
cia não era mais um fenômeno tão predominante e claro quanto entre
os elementos da Tabela I. Os elementos preenchiam lacunas entre um
elemento com uma valência bem definida de 2 e outro com uma valên-
cia bem definida de 3; entre o cálcio (Ca) e o gálio (Ga) no primeiro caso
e entre o estrôncio (Sr) e o índio (In) no segundo. Como representavam
uma espécie de transição de 2 a 3, podem ser chamados de “elementos
de transição”. Por razões deste artigo, chamo os elementos da Tabela I de
“elementos de valência”.
A ordenação dos elementos de transição pode ser orientada em
parte pelo peso molecular, em parte por propriedades de valência me-
nos precisas e em parte por outras propriedades químicas. Seguindo estes
144
critérios, podemos tomar os dezoito elementos conhecidos destas duas
primeiras lacunas (a partir de 1869) e ordená-los como na Tabela II.

145
Não há nenhuma dúvida quanto à ordenação desta tabela. É claro,
por exemplo, que a prata (Ag) deva ficar à direita do cobre (Cu) e que o
cádmio (Cd) deva ficar à direita do zinco (Zn) por considerações químicas
muito convincentes. O mesmo acontece com os outros. É somente com
esta ordenação que as propriedades dos elementos da coluna da esquer-
da se combinam com as dos colocados na coluna da direita; e isto acon-
tece na ordem devida do peso atômico, tom exceção do cobalto (Co) e do
níquel (Ni). Nesse caso, para preservar as verdades químicas, a ordem do
peso atômico deve ser invertida. Mas a diferença entre os pesos atômicos
desses elementos é tão pequena que o inversão é uma falha algo venal.
(Este é o terceiro e último caso de uma inversão da ordem dos pesos atô-
micos na tabela periódica.)
Com os dezoito elementos de transição dos períodos 4 e 5 arran-
jados como na Tabela II, nota-se a existência de dois espaços vazios. O
primeiro é o que fica à esquerda do ítrio (Y) e o segundo é o que fica à di-
reita do manganês (Mu). Mendeleiev escolheu o espaço vazio à esquerda
do ítrio (Y) para predizer, pela terceira vez, a existência de um elemento
ainda desconhecido, com todas as suas propriedades. [Chamou-o de “eca-
boro”, porque, na sua primeira versão da tabela, colocara o espaço vazio
à direita do boro (B).]
Suas afirmações foram confirmadas em 1879, quando o escândio
foi descoberto. Seu símbolo é (Sc), e seu peso atômico é 45,0, ajustando-
se perfeitamente entre o cálcio (Ca) e o titânio (Ti).
O espaço vazio à direita do manganês (Mn) não foi tão facilmente
preenchido. Na verdade, o elemento que o preenche não foi descoberto
senão em 1937. Foi chamado de tecnécio (Tc, peso atômico 99).
Os intervalos de peso atômico entre elementos de transição (su-
pondo-se que os períodos 4 e 5 tivessem, com os espaços vazios, cada
um, dez elementos) estavam agora em ordem. A diferença média de peso
atômico entre os elementos era de 2,6, para a de 2,5 entre os elementos
de valência.
Entretanto, poder-se-ia ter certeza, na ausência de decisivas consi-
derações de valência, de que não havia onze elementos em cada uma das
duas séries de transição ou até mesmo doze? Suponhamos, por exemplo,
que faltasse um elemento entre c e d nas duas séries. Se faltasse um ele-
mento entre c e d em apenas uma das séries, poderíamos notar a lacuna
resultante pela presença do elemento equivalente na outra série (como
no caso da lacuna à esquerda do ítrio, por exemplo). Mas, se ambas as
séries fossem deficientes no mesmo ponto, não poderíamos perceber a
146
ausência de elementos. (Esse foi o caso dos gases inertes, pois sua exis-
tência era insuspeitada, quando toda a série era desconhecida. Assim que
um foi descoberto, os outros surgiram na tabela como espaços vazios;
foram procurados e encontrados.)
Um argumento a favor de dez, como sendo o número correto para
os elementos de transição, deriva-se do fato do número total de elemen-
tos, de valência e de transição, dos períodos 4 e 5 ser 18. Isto introduz
uma regularidade interessante. Isto é, o número total de elementos no
período 1 é 2x12 = 2; o número total de elementos nos períodos 2 e 3 é
2x22 -=8; e o número total de elementos nos períodos 4 e 5 é 2x32 = 18.
Isto é bonito, e, para uma pessoa que tenha, como eu, inclinação
pelos números, é até convincente. Mas, na verdade, que relação têm os
elementos com este arranjo bem ordenado? Não havia, no século XIX,
nenhuma teoria que desse razão a uma tal relação, e ela bem poderia ser
apenas uma coincidência desorientadora.
De modo que os químicos não podiam ter certeza, e a tabela perió-
dica, embora fosse um guia valioso, permanecia algo vacilante.
A seguir, o que dizer sobre a terceira série de elementos de transi-
ção, os elementos que deviam preencher a lacuna particularmente grande
de peso atômico entre o bário (Ba) e a tálio (TI)? Na época de Mendeleiev,
eram conhecidos onze elementos dessa lacuna. Se tentamos combiná-los
com as outras duas séries de elementos de transição de acordo com o
esquema de a a j, acabamos por obter a Tabela III.
Os elementos indicados na Tabela III combinam-se indubitavel-
mente com os da Tabela II. Assim o ouro (Au) ocupa claramente a posição
i à direita do cobre (Cu) e da prata (Ag), e o resto dos elementos indicados
estão, com igual clareza, nos seus devidos lugares.
Há dois espaços vazios na tabela, entretanto. Na posição c, deveria
haver um elemento à direita do zircônio (Zr), e, em 1923, esse elemento
foi, na verdade, encontrado. Recebeu o nome de háfnio (Hf, peso atômi-
co 178,5) e foi descoberto em minérios de zircônio. Adequava-se perfei-
tamente ao lugar. O háfnio levou tanto tempo para ser descoberto não
porque fosse extremamente raro, mas porque suas propriedades eram
tão semelhantes às do zircônio que foi difícil separá-lo de sua irmã gêmea
muito mais comum.
A lacuna na posição e foi preenchida em 1925 com a descoberta do
rênio (Re, peso molecular 186,2).
Não havia nenhum elemento conhecido na terceira série de ele-
mentos de transição que indicasse a existência de lacunas insuspeitadas
147
ha primeira ou segunda séries. Isso era um ponto a favor da suposição
de que havia apenas 10 elementos em cada uma dessas duas primeiras
séries.

148
Mas, mesmo com a descoberta do háfnio, observa-se que há um
intervalo considerável de peso atômico entre este e o lantânio (La), um
intervalo de 39,6. Este intervalo existe entre a e b do período 6, e não
há absolutamente nenhum intervalo na posição correspondente dos pe-
ríodos 4 e 5. Há lugar para vários elementos nesse grande espaço entre
pesos atômicos.
Todavia, eu disse que, na época de Mendeleiev, havia onze ele-
mentos conhecidos cujos pesos atômicos se situavam entre os do bário
(Ba) e os do tálio (TI). A Tabela III apresenta somente oito. E os outros
três?
Esses outros três têm pesos atômicos que, de fato, pertencem a
esse intervalo entre o lantânio (La) e o háfnio (Hf). São o cério (Ce), o érbio
(Er) e o térbio (Tb).
Estes são três dos metais das terras raras que discuti no artigo do
mês passado. Dois outros eram conhecidos na época, o lantânio (La) e o
ítrio (Y), e um outro foi descoberto logo depois, o escândio (Sc). Entretan-
to, o escândio, o lantânio e o ítrio têm seu lugar na posição a dos períodos
4, 5 e 6, respectivamente, e são elementos de transição comuns. Apenas
o cério, o érbio e o térbio devem ser colocados nessa lacuna especial do
período 6. Até 1907, foram localizados mais dez elementos das terras ra-
ras cujos pesos atômicos os colocam neste intervalo especial. A lista dos
treze encontra-se na Tabela IV.
Quantos mais poderia haver?
Voltemos a um jogo de números que mencionei a pouco. O mes-
mo sistema que explica os números 2,8,8,18,18 para os cinco primeiros
períodos, faria o número total de elementos no sexto período ser 2x42 =
32. Como os elementos de valência e os elementos de transição juntos
somam 18 no sexto período, seriam necessários 14 elementos das terras
raras pára preencher as lacunas e obter 32.
Temos 13; onde encontraríamos o décimo quarto?
Entre o neodímio (Nd) e o samário (Sm), há uma diferença de peso
atômico de 6,2, o dobro da diferença normal. Talvez o elemento esteja
neste intervalo. Entretanto, a diferença entre o európio (Eu) e o gadolínio
(Gd) é de 5,3 e a existente entre o túlio (Tm) e o itérbio (Yb) é de 4,1. Tal-
vez faltem três elementos das terras raras, um em cada lugar, ou, quem
sabe, até mais. Não podemos afinal nos apegar demais a uma bela relação
numérica sem ter uma evidência física que explique sua existência.
Em resumo, quarenta anos após Mendeleiev ter apresentado a ta-
bela periódica dos elementos, esta permanecia incompleta. Apesar dos
149
enormes triunfos que alcançou e da maneira ordenada com que solucio-
nou quase todos os problemas com que se defrontou, os químicos não
podiam ter certeza de que permaneceria um guia adequado sob todas as
condições. Em especial, não podiam ter certeza de que incluiria adequa-
damente os elementos das terras raras.
Foi por esta razão, mais do que por qualquer outra, que os quími-
cos vasculharam ansiosamente os minerais das terras raras para ver quan-
tos elementos novos podiam identificar com certeza. Com isso, poderiam
ter ocasionado o colapso estrondoso de toda a tabela periódica.
Mas tal não aconteceu. Pelo contrário, em 1914, a tabela periódica
recebeu finalmente um fundamento firme e lógico; e isso aconteceu de
um modo totalmente inesperado através de um ramo de pesquisa que
parecia não ter relação alguma com a química.

150
CARTAS
ATENÇÃO: Toda a correspondência deverá ser enviada para o se-
guinte endereço: Rua dos Andradas, 1416 — Porto Alegre — RS.

José Sanz (Rio-GB) — Achamos excelentes as sugestões que fêz e que cer-
tamente serão aproveitadas.

Pedro C. Cavini Ferreira (São Paulo-SP) — Parabéns pelo livro enviado e


gratos pelo entusiasmo com que se refere ao MFC.

José Carlos Kfouri (São Paulo-SP) — Você nos pede, José Carlos, que insis-
tamos na publicação do MFC, que façamos tudo para que êle sobreviva, que êle
é aquilo que você esperava há anos. Creia, lutaremos sempre. Quanto à sugestão
sobre as capas, anotamos.

Arlindo Padilha (Curitiba-PR) — O livro de sua autoria, de que nos fala na


carta, deveria ser remetido à editora de sua preferência, a fim de ser apreciado.
Quanto à colaboração conosco, só no terreno de contos de FC. Como sabe, deverá
enviá-los para Andradas, 1416, 7.° andar, Porto Alegre-RS, guardando sempre uma
cópia, pois não há possibilidade de devolução dos originais, coisa que acarretaria
uma série de problemas.

José Luiz L. Parussini (Porto Alegre-RS) — O endereço da Associação Bra-


sileira de Ficção Cientifica (ABFC) é: Sr. Clóvis Garcia — Av. Miranhas, 333 - ZP-9
- São Paulo-SP. Sua finalidade é aproximar todos aqueles que apreciam o gênero,
que o professem ou que se sintam ligados a êle de alguma forma, com o intuito
de realmente dar vulto à FC no Brasil. Pode enviar os originais de seus contos que
serão examinados com o maior cuidado.

Izaura Rocha Döhler (Rezende-RJ) — Jeronymo Monteiro é realmente o


autor de A Cidade Perdida. Com relação ao representante da Coleção Argonauta
pedimos anotar: Catavento Distr. de Livros Ltda - Rua 7 de Abril, 59 - 3.° andar - São
Paulo-SP. Escreva para eles e poderá, possivelmente, obter os livros que faltam em
sua coleção.

Ismael de Carvalho (Rio-GB) — Também a Editora Globo deseja ver o MFC


com a estatura do “Mistério Magazine de Ellery Queen”. Suas sugestões estão sen-
do estudadas.

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