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OUTUBRO 2008 80 Educação

OLDIMAR CARDOSO

Já viu este filme?


Nem o passado como realmente foi,
nem uma caricatura recheada de erros.
O cinema é uma oportunidade de se
questionar essas visões em sala de aula

N
ão é de hoje que o cinema freqüenta as aulas
de História nas escolas. Os alunos gostam. Os pro-
fessores também. Como recurso pedagógico, a séti-
ma arte é quase uma unanimidade. Mas é preciso
ter cuidado. É bem verdade que o uso do cinema co-
mo ferramenta de ensino é capaz de deixar a aula
mais dinâmica e divertida; entretanto, o professor
deve estar atento às armadilhas que essa estratégia
pode gerar.
A exibição de filmes tanto pode funcionar como
um proveitoso momento de crítica e aprofundamen-
to de um tema histórico como ser uma simples ses-
DIVULGAÇÃO

são da tarde, pura diversão para a turma. Pior do


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FUNARTE
que isso: dependendo da maneira como o professor
utiliza o filme, o resultado final do processo pode
ser desastroso. O problema é que não existe uma
fórmula infalível a ser aplicada. Não há uma ma-
neira certa e outra errada de ensinar os alunos por
meio do cinema. Ainda assim, podemos refletir so-
bre esse tipo de atividade e talvez adaptar seu uso
para um melhor aproveitamento, de acordo com o
que pede o contexto.
O primeiro ponto a se levar em conta é que um
filme, por melhor que seja, jamais revela o passado
aos alunos. Ele é apenas uma forma original de re-
presentar determinado período. Por exemplo: exi-
bir “Tróia” (Wolfgang Petersen, 2004) para ensinar
sobre a Antiguidade grega, “Gladiador” (Ridley
Scott, 2000) para tratar do Império Romano ou “Ol-
ga” (Jayme Monjardim, 2004) para falar sobre o
Brasil republicano não significa desvendar essas
épocas históricas para os alunos. Os diretores des-
ses filmes empregam figurinistas e utilizam o ser-
viço de historiadores para reproduzir com fidelida-
de as espadas dos guerreiros greco-romanos ou os
casacos da década de 1930. As roupas e armas po-
dem até ser réplicas incrivelmente fiéis, idênticas
às originais, mas o comportamento dos persona-
gens e as maneiras de agir e falar deles estão mais
relacionados ao presente do que ao passado que de-
sejam representar.
Assim, o personagem Aquiles do filme “Tróia”,
interpretado por Brad Pitt, lembra mais um ho-
mem supervaidoso, um metrossexual dos nossos
dias, do que um semideus grego. O Commodus do
filme “Gladiador” se comporta como um presiden-
te estadunidense do século XX, e não como um im-
perador romano. Composto pelo ator Joaquim
Phoenix, o personagem age como um governante e
estadista cujo perfil seria comum nos dias atuais, As caricaturas não são exclusividade da ficção nem
mas que não poderia existir no sistema político da
Roma antiga.
dos meios de comunicação – também estão presentes
Outro exemplo dessa distância entre caracteres na historiografia
ficcionais e figuras históricas reais se encontra no
filme “Olga”, de Jayme Monjardim, no qual os pro- mantivesse fidelidade total às características das Cartaz do filme
tagonistas se assemelham mais a um par românti- personagens que retrata, dificilmente seria capaz “Independência ou
co de novela – não à toa, o diretor se consagrou de seduzir os espectadores de hoje. Talvez, aos nos- Morte”, de 1972. Ele
nesse tipo de formato para a televisão – em vez de sos olhos, os verdadeiros Aquiles, Commodus e Ol- conta a história oficial
da independência do
retratarem fielmente dois militantes comunistas ga parecessem bastante tediosos. Essa licença poéti-
Brasil, que pode ser
dos anos 1940. ca praticada pelo cinema, que permite ao diretor
utilizada para se dis-
Antes que essa visão crítica desanime o profes- trazer esses personagens históricos para perto dos
cutir o contexto de
sor, é bom deixar claro: o fato de a linguagem au- espectadores, é, então, muito bem-vinda. É tam-
sua produção.
diovisual não retratar a realidade histórica como bém, como vimos, inerente à linguagem audiovi-
ela teria acontecido não inviabiliza de forma algu- sual. Mesmo aquele diretor que deseja ser absoluta-
ma sua utilização em sala de aula. Se o cinema atual mente fiel à realidade histórica representada terá
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Brad Pitt interpretan-

DIVULGAÇÃO
de lidar com esse procedimento de – das fontes consultadas, e sim
do Aquiles na mais criação de personagens e adequa- ações falíveis, realizadas por his-
nova versão do filme ção da forma narrativa. toriadores de carne e osso, com
“Tróia”: a produção
Outra interpretação que pode todos os seus vícios e dilemas.
de caricaturas históri-
ser evitada é considerar os filmes Ainda que revestido de legitimi-
cas pelo cinema não
como caricaturas equivocadas e dade institucional e de status
impede sua utilização
deploráveis, devendo ser desacre- científico, o historiador é huma-
em sala de aula.
ditados pela historiografia. Até no, e o produto de seu conheci-
porque a construção de caricatu- mento não pode ser considerado
ras não é exclusividade da ficção algo neutro e objetivo.
nem dos meios de comunicação – Não é papel dos professores
elas também estão presentes na desmistificar o processo de elabo-
historiografia, como resultado de ração dos personagens baseados
complexas disputas de poder empreendidas nas em figuras históricas para o cinema. O que os mes-
universidades, nos museus, nos arquivos, nas re- tres podem e devem fazer é ensinar aos alunos que
vistas científicas, nas editoras e nos órgãos finan- tanto as narrativas ficcionais quanto a historiogra-
ciadores de pesquisa. O que define as inovações da fia trabalham com construções, com personagens
História não é a objetividade – ou a originalidade criados com base em determinadas versões e des-
crições. Assim o estudante tem a oportunidade de
aprender não só a refletir criticamente sobre as ca-
As muitas versões de uma história
racterísticas da sétima arte, mas, sobretudo, a com-
preender que toda representação, seja a do cinema
Para evitar os equívocos citados neste narrativa típica das histórias nacionais: Ja-
ou a da historiografia, é parcial e relacionada aos
artigo, uma boa estratégia é utilizar vé surgiu da migração de um povo injus-
obras que fogem ao estereótipo dos “fil- tiçado que, conduzido por um herói, contextos nos quais foi idealizada e realizada. A Ol-
mes históricos”. É o caso do chinês “He- passou por muitas privações e venceu. A ga interpretada pela atriz Camila Morgado, apre-
rói” (Zhang Yimou, 2002) e do brasileiro cineasta nos mostra, por exemplo, o sentada no filme de Jayme Monjardim, não é fruto
“Narradores de Javé” (Eliane Caffé, quanto é discutível acreditar em heróis,
apenas da criatividade do roteirista e do diretor —
2003). O longa-metragem de Caffé po- povos valentes e versões unívocas dos
de ser utilizado para ensinar o processo acontecimentos. As entrevistas do filme está pautada em pesquisas históricas, ainda que re-
de independência do Brasil, uma ótima ainda nos ajudam a ensinar aos alunos criadas de maneira parcial. A Olga que o especta-
opção aos tradicionais “Independência que as fontes não são isentas ou impar- dor fica conhecendo no filme não é estritamente
ou morte” (Carlos Coimbra, 1972) e ciais. Muito pelo contrário. Quando a
ficcional, mas uma distorção e amplificação das in-
“Carlota Joaquina, princesa do Brazil” entrevistada é uma mulher, por exem-
(Carla Camurati, 1995). O filme conta a plo, surge a versão de que Maria Dina formações obtidas em diversas fontes de pesquisa.
história dos moradores da pequena Ja- seria a verdadeira fundadora de Javé. Na Para os alunos compreenderem por que o ci-
vé. Eles precisam registrar os principais entrevista de um negro, é um persona- neasta distorceu e amplificou sua personagem des-
acontecimentos da cidade para caracte- gem da mesma cor que ganha o honro-
sa forma, é preciso que eles entendam principal-
rizá-la como patrimônio histórico e sal- so título. Assim, o filme nos ajuda a aler-
vá-la de uma inundação. Ao fazê-lo, suas tar os alunos sobre os complexos mente o contexto histórico de produção da obra.
fontes orais reproduzem a estrutura processos de construção da História. Desse modo, compreenderão que não existe uma
Olga caricatural e outra verdadeira. As fontes nos
BANANEIRAS FILMES

apresentam informações para criar tanto a mulher


romântica quanto a militante comunista, pois am-
bas as características, por mais distantes que apa-
rentem ser, faziam parte da personalidade da figu-
ra retratada, contraditória como a de todas as
pessoas. Substituir simplesmente uma personagem
por outra, desconstruindo o mito da Olga românti-
ca em favor da militante, mesmo que por meio de
reflexão crítica, contribui pouco para a formação
dos alunos. De acordo com a narrativa escolhida pe-
lo autor, podem-se privilegiar algumas característi-
cas da pessoa abordada em detrimento de outras,
menos interessantes para o perfil que se deseja tra-
çar. Mais do que aprender que Olga foi isso ou aqui-
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E
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

GLOBO FILMES
Saiba Mais
HOBSBAWM, Eric. Sobre
a História. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1998.

NAPOLITANO, Marcos.
Como utilizar o cinema na
sala de aula. Contexto,
2003.

Filme
“Narradores de Javé”, de
Eliane Caffé. Brasil, 2003,
100 min.

Foto do casal Prestes


lo, os estudantes podem compreender por que uma Os equívocos aqui descritos são resultado de
e Olga ao lado dos
é romântica e a outra é militante, ou como uma lei- uma determinada definição das relações entre sa- personagens do filme
tura anticomunista dos fatos históricos poderia ber escolar e saber científico. Segundo essa noção, de Jayme Monjardim:
transformá-la numa terrorista. Aprende-se, assim, caberia aos historiadores criar nas universidades não existe uma Olga
que todas as formas de narrar o passado incluem um conhecimento de referência para ser adaptado, caricatural e outra
uma interpretação particular dos fatos ocorridos. transposto ou reproduzido pelos professores den- verdadeira, e sim dife-
É ingenuidade utilizar-se um filme com a pre- tro das escolas. Mas, independentemente do desejo rentes visões construí-
tensão de mostrar a história como ela realmente deles, os professores nem sempre levam em conta das a partir das infor-
ocorreu. Por outro lado, também é empobrecedor novas pesquisas que relativizam e repensam a lei- mações fornecidas
pelos documentos.
apresentar a narrativa apenas como uma caricatura tura de certos fatos e personagens. A História ensi-
errônea. Podemos tomar como exemplo a produção nada nos colégios acaba não sendo uma reprodu- Cartaz do filme “O
“Independência ou morte” (Carlos Coimbra, 1972), ção exata daquela produzida pelos historiadores. descobrimento do
um drama histórico que celebra os 150 anos da in- Não é preciso muito tempo de experiência den- Brasil”, de Humberto
dependência do Brasil. Um professor que concorde tro de uma sala de aula para se perceber que ensi- Mauro, 1937. O cine-
com a versão encenada poderia utilizar a obra para nar nas escolas é algo muito mais complexo do ma pode enriquecer
ensinar a história oficial de nossa independência – que elaborar uma versão simplificada e facilitada as aulas de História,
desde que os alunos
entendida como um ato individual de D. Pedro. Ou- da historiografia para os alunos. Aliás, se formos
compreendam que os
tro professor, que tenha uma posição crítica em re- rigorosos, as pesquisas que vêm sendo feitas na
filmes atendem a
lação a essa visão histórica, pode usar o mesmo fil- academia influenciam muito pouco o conteúdo
múltiplos interesses.
me para debochar de tal representação, ensinando que compõe a disciplina escolar. Por
aos alunos que a narrativa é equivocada, mentirosa isso, a utilização do cinema nas au-

FU NA RT E
e não representa a verdade dos fatos. Essas duas op- las de História não precisa enalte-
ções podem provocar mal-entendidos. cer ou ridicularizar a representa-
Como nos alerta o historiador Eric Hobsbawm ção do filme em nome de uma
em sua obra Sobre a História, a tendência de relativi- pretensa visão correta da História.
zar a História precisa ter um limite: “Ou Elvis Pres- Os alunos podem aprender algo
ley está morto ou não”. Encontraremos muita difi- mais interessante se consegui-
culdade se acreditarmos que todos os rem entender que o cinema não
acontecimentos são incertos e passíveis de infini- passa de uma representação. H
tas interpretações. Os historiadores estabelecem al-
gumas datas e acontecimentos por unanimidade.
OLDIMAR CARDOSO É AUTOR DA
Olga, por exemplo, foi deportada do Brasil em
TESE “A DIDÁTICA DA HISTÓRIA E O
1936. Essa informação, ao contrário do caráter ro- SLOGAN DA FORMAÇÃO DE
mântico/militante da personagem, não pode ser re- CIDADÃOS” (USP, 2007) E DAS
lativizada. Assim foi, e ponto final, até que alguém COLEÇÕES DE LIVROS DIDÁTICOS
traga à tona novos fatos históricos e, com sua pes- “TUDO É HISTÓRIA” E “HISTÓRIA
HOJE” (ÁTICA, 2006 E 2008).
quisa, prove o contrário.

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