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O ESTADO DE S.

PAULO SÁBADO, 20 DE MARÇO DE 2010 sabático S5

O MUNDO PRODIGIOSO RIMBAUD: A VIDA DUPLA


QUE TENHO NA CABEÇA DE UM REBELDE
Autor: Louis Begley Autor: Edmund White
Tradutor: Laura Teixeira Motta Tradutor: Marcos Bagno
Editora: Companhia das Letras Editora: Companhia das Letras
(256 págs., R$ 37) (192 págs., R$ 35)

KAFKA SEGUNDO O RIMBAUD ACIMA


PERFIL DO ALIADO DO BEM E DO MAL
Louis Begley diz que Praga limitou a experiência do checo Edmund White ousa assinar texto amoral sobre o francês

O escritor Louis Begley é conhecido no Rilke e obras importantes de Thomas O premiado escritor Edmund White, que a te de uma coleção concebida por James
Brasil por seus livros sobre um persona- Mann como Buddenbrooks e Morte em Vene- ensaísta Susan Sontag considerava o me- Atlas, que não queria um ensaio exaustivo,
gem interpretado no cinema por Jack Ni- za. Finalmente, quanto à competição com lhor texto da América, tinha 16 anos quan- acadêmico, mas algo acessível.
cholson, Schmidt, advogado sessentão escritores checos em Praga, devo dizer do leu Rimbaud (1854-1891) pela primeira
que se apaixona por uma garçonete de 20 que ela não existiu. Estou convencido de vez. Era, então, um gay tristonho, algo infe- ● Rimbaud e Verlaine escreveram textos jun-
anos. O personagem rendeu dois livros que Kafka se julgava bem acima deles e liz, completamente identificado com o re- tos, entre eles um bem desaforado, Sonnet
lançados pela Companhia das Letras, que certamente essa também era a opinião de belde poeta francês, que trocou a vida pro- du Trou du Cul. Que tipo de contribuição o sr.
agora publica sua biografia de Kafka, O Max Brod, seu biógrafo e melhor amigo. vinciana de Charleville por Paris, em 1870. acha que Rimbaud trouxe à poesia de Verlai-
Mundo Prodigioso Que Tenho na Cabeça. So- White também saiu de Detroit para tentar a ne com seu comportamento transgressivo?
bre ela, Begley falou ao Sabático, ousando ● Em sua opinião, por que, então, Kafka dei- vida em Nova York, mas não encontrou ne- O soneto, como sugere o título (Soneto do
discordar do primeiro biógrafo do escri- xou instruções para que Brod queimasse nhum Verlaine à espera. Teve de se associar Olho do C...), foi uma piada suja, o tipo de
tor checo, Max Brod, que salvou sua obra. seus textos após sua morte? a um médico e escrever um manual de sexo coisa que eles escreviam no Album des Zuti- Nível. Begley crê
Havia duas categorias distintas de papéis gay para sobreviver à própria custa em No- ques (álbum de 48 páginas dos frequentadores que o autor de A
● Kafka sempre planejou mudar de Praga que Kafka queria que Brod queimasse: pri- va York. Nesta entrevista ao Sabático, Whi- do Hôtel des Etrangers, em Paris, onde Rim- Metamorfose se
para Berlim, mas permaneceu na casa dos meiro, suas cartas pessoais e seus diários. te, autor de outras biografias sobre france- baud e seu amigo se reuniam para beber e pa- julgava acima de
pais a vida toda. O senhor acha que existi- Acho que é fácil entender como um ho- ses célebres – Proust e Genet, entre eles – rodiar os parnasianos). Mas Rimbaud exer- outros ficcionistas,
ram dois Kafkas, como existiram dois Rim- mem reservado como ele não desejava conta como sua identificação com escrito- ceu uma forte influência sobre Verlaine, também a opinião
bauds, o poeta e o traficante de armas? ver sua vida privada exposta publicamen- res com a mesma orientação sexual o habili- sem dúvida. Quebrou o gelo e levou-o a es- de Max Brod
Sabemos que existiu o Kafka escritor, que te. A segunda categoria engloba textos li- tou a entender e ler a obra deles de forma crever sobre sexo, sobretudo sobre sua ex-
sabia ter sido colocado nesta vida para terários que ele considerava inacabados e, isenta de ideias preconcebidas, a ponto de periência homossexual. Rimbaud prezava a
dar expressão ao prodigioso mundo den- nesse caso, a explicação reside em seu per- escrever que Rimbaud não parecia demons- experimentação e mesmo que ele tenha si-
tro de sua cabeça, como diz o título da bio- feccionismo. Ele estava certo sobre Améri- trar interesse em pessoas de seu sexo antes do mais ousado que Verlaine, empurrou-o
grafia que escrevi. Houve também um Ka- ca, O Processo e O Castelo? Diria que não, de encontrar Verlaine. para um novo território.
fka filho, que culpava seu pai por ter repri- mas sim quando mandou queimar contos
mido sua vontade e o infantilizado, embo- como Cenas de um Casamento no Campo. ● O sr. diz em seu livro que descobriu Rim- ● Naturalmente o sr. deve ter lido a biogra-
ra tivesse feito o impossível para o ver ca- baud em 1956, quando tinha 16 anos, em sua fia de Rimbaud por Graham Robb, considera-
sado e com filhos. Isso é do que trata Car- ● Sua opção por usar as cartas e os diários escola perto de Detroit. O que lhe atraía mais, do o mais completo estudo sobre o poeta.
ta ao Pai. Embora Kafka não fosse religio- de Kafka parece revelar que o sr. preferiu sua poesia, sua ânsia de liberdade ou seu Qual é a sua impressão sobre ela?
so, ele estava imbuído da ideia de que era deixá-lo falar a inventar um outro Kafka. O carisma de anti-herói existencialista? Meu pequeno livro é original na interpreta-
dever de um judeu se casar e ter filhos. Es- que significa escrever sobre sua vida em Quando tinha 16 anos, ouvira falar apenas ção da poesia de Rimbaud, além de explorar
sa é a explicação mais razoável para o im- tempos de revisionismo biográfico? de Sartre e do existencialismo. Só depois vi- a interação entre ele e Verlaine, mas quanto
provável e desastroso relacionamento de Usei a correspondência de Kafka, incluin- ria a ler Rimbaud. O que me atraía nele era aos fatos da vida dele, tenho um débito
Kafka com Felicia Bauer. Haveria algum do a Carta ao Pai e seus diários, por estar a história de um jovem dominando um ho- imenso com a biografia de Graham Robb. Memória
apetite sexual mais profundo que ela des- disponível e considerar injusto com o lei- mem mais velho – e não um jovem qual- seletiva. White
pertou em Kafka? É possível. Ah, a estra- tor ignorá-la. O uso de longas citações re- quer, mas alguém que foi para Paris, revolu- ● O sr. escreveu a autobiografia My Lives co- vai dedicar o
nha atração que uma mulher feia pode flete minha crença de que é impossível pa- cionou a poesia e parou de escrever antes mo se estivesse falando de outra pessoa. O próximo livro às
exercer. ra um biógrafo competir com Kafka. Ele dos 20 anos, partindo para a África para vi- que significa uma biografia e uma autobiogra- suas experiências
se expressa tão bem que qualquer descri- ver uma nova aventura. Rimbaud era um fia para o sr.? Concorda com Roland Barthes na Paris dos
● Sobre a experiência judaica de Kafka, o ção sobre seu trabalho se reduziria a uma poeta tempestuoso, perdulário, mas extre- quando ele defende ser a biografia um roman- anos 1980
senhor encontra uma explicação sintética paráfrase sem vida. mamente inovador – tanto em seu compor- ce que não ousa dizer seu nome?
para justificar sua limitada vida social: uma tamento como em sua escrita, a despeito Acho que biografia e romance são gêneros
profunda fadiga. Como Kafka vivia sem o ● Como vê a biografia de Max Brod? de ter se transformado depois num trafi- muito diferentes entre si. Um romance ne-
apoio da comunidade judaica, competindo Brod teve como vantagem conhecer Ka- cante de armas solitário e moralmente con- cessita perseguir a verossimilhança, mas
com os checos e longe da literatura de con- fka muito bem, mas não se esqueça que servador. Naturalmente há semelhanças en- não deve obrigações à verdade literal da his-
temporâneos como Proust e Joyce? ele escreveu mais de uma vez que Brod tre o jovem e o velho Rimbaud – ambos tória de vida de alguém, embora uma biogra-
Primeiro, não é verdade que Kafka não te- não o entendia. Seu livro é marcado pela eram viajantes compulsivos e buscavam o fia ou um livro de memórias devam ser pre-
ve apoio da comunidade judaica. Em seu teoria – completamente equivocada, na sucesso. Talvez fosse como ele, um adoles- cisos e respeitar os fatos.
caso, ele veio por sua amizade com Max minha opinião – de que Kafka acreditava cente em busca da fama e um adulto em
Brod, Felix Weltsch, Oskar Baum e Franz em Deus e era, de alguma maneira, funda- busca de dinheiro e respeitabilidade. ● Depois de Rimbaud, o sr. pensou em escre-
Werfel, só para nomear alguns de seus mentalmente otimista. ver a biografia de Kleist. Acha mesmo que
amigos judeus. Isso não sugere que eles ● A ausência de notas de pé de páginas em ele se matou porque Goethe rejeitou uma pe-
formassem uma comunidade, mas com- ● Muitos se referem a Kafka como profeta. seu breve texto revela que sua intenção não ça sua? O que o atraiu na vida de Kleist? Sua
partilhavam a mesma experiência de se- O sr. acredita que ele foi visionário? era exatamente escrever uma biografia de inclinação para o suicídio?
rem judeus em Praga. Paradoxalmente, Não. Sua visão de mundo deriva da expe- Rimbaud, mas um ensaio. Após escrever a Esperava contar com a colaboração da
ele teve o consolo de morar no apartamen- riência de viver à margem como inte- elogiada biografia de Genet, o sr. pretendeu Academia Americana de Berlim para pes-
to dos pais. Sei que parece contraditório, grante de uma minoria detestada, ju- abandonar o gênero, dando-o por esgotado, quisar a vida de Kleist, mas eles rejeita-
mas Kafka era cheio de contradições. Em deus de língua alemã – o Zeitgeist que vi- ao optar por essa ficção realista sobre a rela- ram meu pedido e tive de deixar o projeto
segundo lugar, estar longe de contemporâ- ria a inspirar o expressionismo alemão e ção de Rimbaud e Verlaine? de lado. Atualmente, trabalho num ro-
neos como Proust e Joyce foi apenas um seus demônios pessoais. Kafka não pre- Não. A forma do livro, assim como minha mance e depois pretendo escrever mi-
fator geográfico. O fato que impressiona viu os horrores da Rússia comunista e biografia de Proust, lançada anteriormen- nhas memórias sobre a Paris dos anos
mesmo é que não tenha lido Rainer Maria da Alemanha nazista. / A.G.F. te, foi ditada pelo editor. Rimbaud faz par- 1980. / ANTONIO GONÇALVES FILHO

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