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SOPRO

DESTERRO, MARÇO DE 2010


23 Panfleto politico-cultural

verbete
CARÁTER
Emanuele Coccia
Não é uma qualidade de um indivíduo, nem algo que modo mais preciso, o caráter marca a graça de que
exprima seus modos, sua natureza, sua graciosida- cada um é capaz, e dispõe a alma à sua recepção;
de. Imprime-se especialmente sobre aquele mesmo distingue e separa quem a possui de quem não a pos-
rosto do qual não é capaz de revelar qualquer coisa, sui; em suma, equipara a alma do homem a Deus que
quase como se fosse a maquiagem ou o esplendor de o imprimiu, porque, através dele, a alma adquire uma
uma cosmética cuja arte so- forma da potência divina
mente os nossos demônios diferente daquela que toda
conhecem. Sua ciência é a vida naturalmente possui.
forma suprema da estética, Como todo sinal, tam-
aquela capaz de aproximar bém o caráter não expri-
a aparência da felicidade; me nada, mas se limita a
e não é conservada nos remeter a algo distinto de
obscuros arquivos da psi- si mesmo. Não revela de
cologia, mas sim em algum fato a natureza do vivente
negligenciado manuscrito sobre o qual está impresso.
de teologia, que, por sécu- Define um fenômeno da or-
los, o considerou como um dem da aparência e não a
termo técnico seu. Segundo realidade de uma essência:
a definição, dada primeiro não determina exatamente
por Agostinho, caráter é o nosso modo de ser, mas
a marca com que a graça a relação que estabelece-
incide sobre a alma, o si- mos com a exterioridade.
nal que se imprime sobre Por isso, ele não conserva
a vida de um homem toda nenhum dos segredos in-
vez que a felicidade a visita. Segundo sua própria eti- confessáveis que as criptas da consciência humana
mologia, explicavam os teólogos, caráter é um sinal adoram esconder; limita-se a dar forma à relação que
que alguém imprimiu sobre um indivíduo, e, por isso liga singularmente o vivente à sua felicidade. Não
mesmo, o traço que o distingue e o separa do resto tem nada de psicológico: porque nele não se mani-
dos homens e, ao mesmo tempo, uma cifra ou um festa o nosso psiquismo. Não tem nada de pessoal,
símbolo que o equipara àquele que o imprimiu. De porque não é um dote que o vivente possui desde o

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Sopro 23 mar/2010
nascimento, mas um traço gerado no momento em tinta com a qual a felicidade inscreve, sobre nós, as A intensidade desse canto pode enlouquecer. Os nais ou caracteres distintivos à graça que o redime
que uma existência é subitamente atravessada pela suas escrituras indecifráveis, mudas epígrafes feitas sinais com os quais a felicidade tatua o rosto de quem poderá esquecê-la sem melancolia. Sem caráter,
felicidade. Caráter é o sinal que o primeiro encontro de hieróglifos de uma língua quase desconhecida. a prova parecem, de fato, ter um poder e exercitar alheio à memória, sem sinais distintivos, irreconhecí-
com a felicidade – e a sua graça – deixou sobre nós, Seus fiéis escribas, as vidas menores, transformam uma certa magia. O demônio da melancolia pode ser vel ao tribunal da história, somente então o vivente
e também a cifra de sua ausência. nosso rosto em um minucioso arquivo, em um surpre- induzido a ler naquelas inscrições o feitiço capaz de cessará de se perder. Seu rosto sem sinais é o novo
endente palimpsesto de encontros casuais e, mesmo invocar o retorno da graça. Pode-se ceder ao ensur- mapa do céu de uma felicidade que finalmente perdeu
Causa igitur indebilitatis character est quia ex assim, sempre tão intensos a ponto de cobrir os sinais decedor burburinho daqueles demônios, acreditar na seu próprio destino.
conditione suae naturae habet ita firmum esse in anteriores, preencher as margens e os espaços que magia dessas runas e exigir ser reconhecido pela
subiecto cuius est quod habet compossibilitatem cum o passado havia deixado em branco. Aquilo que cha- felicidade que nos atravessou. O caráter se transfor-
quolibet actu circa suum subiectum, qualitercumque mamos alma não é senão o livro de registros sobre o mará, então, fatalmente no encanto pelo qual não se
circumstationato, sive bene sive male, sed quia gratia
ex conditione suae naturae non habet ita firmum
esse cum suo subiecto quod possit compati secum
qual toda vida estenografa os encontros com a graça
que não cessa de querer apreender; perdida ou pos-
suída, esquecida ou melancolicamente contemplada,
deixa de esquecer a própria felicidade, a fórmula com
a qual ela se mantém em perpétuo exílio. Tentar pro-
nunciá-la significa somente oferecer-se à amargura
debate
Teses sobre a política
actum vitiosum et ita non quemlibet actum. ela é o único objeto daquela espécie de diário não de descobrir que aqueles sinais não exercem nenhu-
escrito que é a máscara natural e a maquiagem mais ma magia, que neles a graça (ou a felicidade) se dá 1) A política é a disputa da imaginação pública
O primeiro atributo do caráter – aquilo que o dife- imediata dos nossos rostos. e existe apenas como traço, recordação, como algo Antes de tudo, é preciso esclarecer que, para o
rencia da graça – é a sua indelebilidade (indelebitas). que irremediavelmente perdemos. Eles são apenas bem ou para o mal, o homem é “o animal que vai ao
Diferentemente da graça, que em todo momento pode Ideo post hanc vitam remanet character et in bonis a ruga, a careta incipiente que a beatitude imprimiu cinema”. A imaginação, como esclarecem os filósofos
abandonar um homem, o caráter é um sinal indelé- ad eorum gloriam, et in malis ad eorum ignominiam: sobre o nosso rosto ao nos deixar. Se exprimem algo, árabes medievais na sua releitura de Aristóteles, é
vel, porque por sua natureza tem um ser estável no sicut etiam militaris character remanet in militibus é, sobretudo, uma forma de lamento, o ressentimento aquilo que liga o indivíduo ao intelecto comum à hu-
vivente sobre o qual se imprime, a ponto de ter, como post adeptam victoriam, et in his qui vicerunt ad com o qual se distancia, de si e dos outros, toda a manidade. Imaginar, portanto, é sempre um ato cole-
os teólogos escreviam, a compossibilidade com qual- gloriam et in his qui sunt victi ad poenam. graça de que se seria capaz. As vidas menores, trans- tivo, pois remete à potencialidade humana. O homem
quer ato do vivente, em qualquer condição que ele se formadas em involuntários carcereiros da melancolia, é aquele que pode ou não fazer - não tem nenhum
encontre, no bem e no mal. A graça não parece tole- Esses sinais são indeléveis. A nossa felicidade é tentarão desenhar uma nova máscara: mas o rosto, destino, nenhuma vocação biológica, como asseve-
rar nem simpatizar com um ato vicioso, e não pode efêmera, inconsistente, freqüentemente incapaz de desfeito, é apenas o penoso registro dos falhos en- ra Agamben; antes, sofre de um “déficit essencial”,
acompanhar por qualquer gesto: ela desaparece toda deter-se e de ser verdadeiramente apreendida. Mas contros com uma felicidade mil vezes perdida. como o caracterizou Oswald de Andrade. A humani-
vez que a alma está envolvida em um ato vicioso. Do os sinais incompreensíveis que ela deixa sobre o nos- Como que encantados por um refrão perdido que dade não tem instintos, a humanidade produz insti-
mesmo modo, nossa felicidade não resiste a toda e so corpo – aqueles mesmos sinais que tentamos ler e a brisa carrega ao longe e do qual não captamos mais tuições, aquilo que Marx chamou de trabalho - mas
qualquer ação nossa. O caráter adere, pelo contrário, interpretar toda vez que sonhamos – não podem mais as palavras, permanecemos hipnotizados pela pro- o que caracteriza este trabalho é que, antes de ser
à alma com força própria e tanta tenacidade a ponto ser apagados. Somos imortais apenas no nosso cará- messa de beatitude que queremos estar escondida realizado ele é sempre imaginado. A autoconsciência
de tolerar qualquer outro acidente, enquanto a alma ter. Uma vida pode perder a própria graça, desviar-se naquele alfabeto desconhecido. Mas a felicidade não não é nada mais que a consciência de que se imagi-
restar em vida. Nisso ele parece resistir no vivente da própria salvação, perder a perfeição que parecia é senão o silêncio e o fim de todas as promessas. E é na. Sendo uma esfera de saída comum e/ou coletiva,
mil vezes mais do que resistem todas as outras qua- habitá-la, mas não perderá jamais a marca com a qual ela mesma que confia aos nossos vícios e às nossas a imaginação sempre foi a trincheira por excelência
lidades. Pode-se perder esse ou aquele traço, mudar a felicidade quis marcar o nosso pertencimento à sua fraquezas a tarefa de tornar ilegíveis aqueles sinais. da política. Representações do outro, auto-represen-
de rosto, esquecer ou renegar a própria experiência natureza. Perderemos a nossa beatitude, perderemos A verdadeira graça está sempre privada de cará- tações, projetos, Utopias, símbolos, cerimoniais, no-
passada, mas não é possível perder o sinal que a fe- a nossa felicidade, perderemos a nós mesmos... mas ter. Porque na sua forma mais intensa a beatitude não menclaturas, vocabulário - os exemplos são infinitos
licidade e a graça imprimiram sobre nossa alma na aquelas incertas assinaturas sobreviverão à nossa deixa traços no indivíduo ao qual se doa. E a ética, e em cada um deles se trava um embate.
primeira ou na última vez que a tenham atravessado. felicidade e à nossa própria morte, semelhantes às talvez, não é senão a maestria e a habilidade com
Se toda vida menor é uma insígnia, um sinal ca- inscrições que a lava do passado não conseguiu se- a qual cada homem sabe livrar-se dessas escrituras, 2) O Estado sempre foi a hegemonia da mediação
paz de distinguir o vivente daquilo que não vive e do pultar. Aquilo que chamamos melancolia não é senão retirar essas tatuagens, desfazer-se do próprio cará- da imaginação pública
resto dos viventes é porque todas as manias, todos os o silencioso testemunho que essas letras sem signifi- ter. Porque somente aquele que consegue deixar-se Se aceitamos tal premissa, isso não quer dizer
desejos, todos os nossos caprichos e as nossas mais cado não cessam de prestar, o canto imperceptível da atravessar pela felicidade sem carregar-lhe os traços que possamos concluir que a situação em que certa
inconfessadas obsessões são o ductus e também a sua voz arruinada e distante. poderá dizer-se salvo. Somente quem não pede si- forma e/ou conteúdo da imaginação pública se torna

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hegemônica possa ser caracterizada como Estado.
Antes, o mais correto seria dizer que o Estado é a
concentração da mediação da imaginação pública.
Ele não é uma situação da imaginação pública que
RESENHA
UM CORPO DO TAMANHO DO MUNDO
A vida sensível
de Emanuele Coccia
Tradução de Diego Cervelin
Desterro: Cultura e Barbárie
se estabiliza, mas uma pura forma que permite que
I

(Coleção PARRHESIA), 2010


qualquer situação se estabilize. Nesse sentido, ele Flávia Cera
não nasce da concentração da força física e do apa-
rato fiscal - mas do censo e da censura, da medida Emanuele Coccia, jovem filósofo italiano, vem de-
enquanto parâmetro e ação. Não se trata só de proi- senvolvendo, desde seu livro A transparência das
bição, mas também de informação: o Estado esvazia imagens: Averróis e o averroísmo, uma leitura fun-
as formas da imaginação coletiva, substituindo-as damental sobre a imagem, que altera radicalmente
por uma pura forma em que garante, antes de tudo, a compreensão de uma série de pressupostos que
o seu controle, inscrevendo a sua marca, a marca da perseveraram por muito tempo. Em A vida sensível,
mediação. Daí a profusão de noções literárias, como publicado pela editora Cultura e Barbárie, Coccia
a representação, no aparato estatal. Que algo tão apresenta uma reflexão contundente (que supera,
recente e an-árquico como o Estado tenha deixado evidentemente, as fronteiras da filosofia e alcança
a sua marca como imprescindível à reorganização (e a psicanálise, a antropologia) sobre uma física do
isto quer dizer, re-imaginação) da coletividade fica pa- sensível e uma antropologia da imagem, deslocan-
tente no fato do marxismo prescrever a mediação de do o sensível do psíquico, colocando-o em um fora
um Estado proletário no caminho da sociedade sem absoluto e afirmando que o que difere o homem não
classes. Mas a evidência mais clara de que o Estado é a racionalidade, mas uma especial relação com as
é a hegemonia da mediação da imaginação pública é imagens.
a pretensão da imprensa, dos meios de comunicação “O sensível não é algo meramente psíquico”.
de serem o “quarto poder”. As imagens, o sensível, não nascem ou acontecem
através do funcionamento cerebral, elas existem, an-
3) O quarto poder é hoje o Estado
tes, fora de nós. Ao sensível, temos que fazer devir,
Se, por muito tempo, o que conhecemos usual-
porque o mero contato entre o sujeito e o objeto não
mente como Estado possuía a hegemonia da media-
produz percepção. E para fazê-lo devir, precisamos
ção da imaginação pública, mas precisava disputá-la
de um meio, de um espaço intermediário que não é,
ou negociá-la com outros Estados e formas para-es-
contudo, alerta Coccia, um vazio: ele é “sempre um
tatais ou quase-estatais como o “quarto poder”, hoje
corpo, sem nome específico e diferente em relação
ele não mais possui esta hegemonia - o que quer
aos diversos sensíveis”, mas que, entretanto, mantém
dizer, que ele não é mais Estado. Antes, o “quarto po-
uma capacidade comum, a saber, a capacidade de
der” - não só os mass media, mas o que Guy Debord
poder gerar imagens.
chamou de “espetáculo integrado” - se independiza-
O espelho é esse lugar intermediário por excelên-
ram e tomaram para si não só a hegemonia, mas o
cia, nele o sujeito contempla sua imagem separada
monopólio da mediação: se converteram no Estado.
de si, fora de si. Ali, o sujeito existe como mera visi-
Das hegemonias, passamos a homogenia. Se o “tipo
bilidade, como exterioridade a si mesmo, sem cons-
puro” do Estado não é a hegemonia da mediação da
ciência, como “ser puro do conhecimento”. O espaço
imaginação, mas o seu monopólio, e se a imaginação,
intermediário, entretanto, não se reduz ao espelho:
sendo comum à humanidade, desconhece fronteiras,
a imagem, o sensível, diz Coccia, é “a existência de
não podendo ser mediada territorialmente, então tal-
algo fora do próprio lugar”, “qualquer forma e qual-
vez só hoje tenhamos de fato um Estado.
quer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar
Alexandre Nodari se torna imagem”. De modo que, podemos dizer,

4 não existe intimidade, tampouco uma interioridade


Sopro 23 Mar/2010
do ser ou uma oposição entre corpo (exterioridade) para o limite do questionamento entre fato e ficção: Dizer que somos “atravessados por imagens” parece do. Assim, tentam constituir uma arte puramente dos
e alma (interioridade), mas sim, para falarmos com existe ficção que não seja fato? Existe fato que não ser uma novidade quando tratamos da enorme indús- meios, que não passa da veiculação de uma notícia
Lacan, uma extimidade, uma intimidade estranha a seja ficção? tria da publicidade, ou dos meios de comunicação em que relata os fatos de um happening que aconteceu
si mesma, que o sujeito não contém, que não lhe é Ora, se, a todo o momento, nos apropriamos e geral, seria um “sintoma da nossa época”. Entretanto, (nos meios), mas que não aconteceu (“de verdade”).
própria. “O ser das imagens é o ser da estranheza”, emitimos imagens ao mundo estamos longe de po- como se pode ver, somos todos desde sempre (e in- O que eles propunham era uma “‘obra de arte’ [que]
ou seja, as imagens não têm um ser natural, mas sim der conceber uma pureza de gêneros ou de formas. dependente da constituição de um sujeito), atravessa- desapareça o momento de sua realização”. E prosse-
um “esse extraneum”. É o que Coccia nos permite ler em uma das nossas dos por imagens. Recebemos e produzimos imagens, guem: “Levamos assim até sua última conseqüência
É justamente quando Coccia dialoga com o está- atividades mais corriqueiras: vestir-se. Existimos en- ou seja, o velho clichê utilizado pelos críticos apressa- uma das características dos meios de comunicação: a
dio do espelho de Lacan, que surge a pergunta: “O quanto aparência, nós damos a ver nosso corpo em dos da indústria cultural para condenar ao expurgo e des-realização dos objetos. Desse modo se privilegia
que significa, de fato, ser capaz de viver em nossa uma autopresentação. Essa operação se faz ver, so- à alienação (termo recorrente no livro) o sujeito que é o momento da transmissão de uma obra mais do que
forma mesmo quando ela não existe mais em nós, bretudo, na moda. Na moda, o vivente se apropria de “atravessado por imagens” pode ser, ali, revisto. o momento da sua constituição. A criação consiste em
não nos dá mais vida e não é mais o lugar onde um sensível exterior: “o vivente é aquilo que não tem Dizer que somos manipulados, pura e simples- deixar sua constituição vinculada a sua transmissão”.
pensamos?” Ao que responde imediatamente: o que nenhuma substância, mas que adere à própria subs- mente, pelas imagens, pela mídia, não expressa a Ou seja, a imagem só é compreendida, apropriada,
torna essa vida possível é a faculdade mimética. A tância apenas através do costume, de uma moda”. perversão dos “meios de comunicação de massa”. O na sua transmissão, na sua veiculação. Se os meios
possibilidade de imitar e ser imitado é o que garan- Ou seja, não somos um ser, temos, apenas, modos que eles mediam é a própria medialidade da imagem. de comunicação se apropriam das formas, da media-
te essa existência fora de nós mesmos. É o sensível de ser. Isso porque o ato de vestir-se, maquiar-se, Mediam a imaginação pública, ou seja, modelam o lidade dos meios, capturam a linguagem, as imagens,
que permite que as formas sejam veiculadas, multi- decorar-se, permite-nos emitir um traço singular de meio (o lugar onde se produz o sensível) para con- a arte dos meios se apropriou, em contrapartida, da
plicadas, reproduzidas, transmitidas e apropriadas nós mesmos, mas ele, por outro lado, confunde-se trolar o real. Mas não há como ser imune a eles (as forma dos meios de comunicação. Ao “tematizar os
infinitamente. com diversos traços do mundo. A moda é uma manei- imagens são transmissíveis, ou seja, são contagio- meios como meios”, ao inoperar essa mediação do
Essas possibilidades se aprofundam e “tomam ra de ser singular- plural: incorporamos, do mundo, sas), não existe uma roupa protetora e nem mesmo meio, ao fazer da transmissão o objetivo próprio do
corpo” quando outro tema caro à psicanálise aparece: o que nada tem a ver conosco e emitimos nossos a possibilidade de não ser afetado, por exemplo, dei- meio para a realização do objeto, nesse caso, do ha-
o sonho. “Toda vez que sonhamos, a própria nature- traços mais pessoais ao mundo. Ou seja, “para nos xando de assistir televisão, ou deixando de assinar ppening, a “arte de los medios” não fez outra coisa
za deixa de ser definida pelo corpo anatômico ou por tornarmos reconhecíveis, confundimo-nos com algo um jornal. Isso porque as imagens estão no mundo senão mostrar a surrealidade do real. Ali, na trans-
aquele fantasma existencial que chamamos de ‘eu’”; que não nos pertence”. É aí que o mundo se trans- indiferentemente à presença de um sujeito, indepen- missão, onde os meios de comunicação exercem um
no sonho, podemos tornar-nos outras formas, somos forma em nossa pele, que nosso corpo passa a ser dentemente de qualquer tipo de controle. poder, a arte dos meios desarticula-o, apropriando-se
invadidos por vozes, histórias, imagens que passam a uma imagem, que existimos mais fora do que dentro Talvez uma das formas mais radicais de inoperar da sua forma.
fazer parte de nós mesmos. No sonho, a oposição en- de nós. Se somos imagem na moda, isso significa os meios tenha sido “El arte de los medios” planejada A intenção, ou seja, a capacidade do vivente de
tre eu e mundo desaparece: “o eu descobre que seus que precisamos de outros corpos, de outros meios, e executada (ou não-executada) por Roberto Jacoby, produzir imagens, de produzir sensível, “é surreal
limites são os mesmos do mundo, e todo mundo está para aparecer. De modo que estamos sempre em um Eduardo Costa e Raúl Escari em 1966, ou seja, pela sua capacidade de veicular.” E uma intenção
contido no eu e é recriado por ele”. Sonhar, contudo, corpo a corpo ou em um pele a pele com o mundo e contemporânea às reflexões do estádio do espelho surreal “tem a capacidade de veicular o real e o psí-
quer dizer imaginar, e é a capacidade de imaginar com os outros. de Lacan e da sociedade do espetáculo de Debord quico em um estado de ser ulterior. Graças a esse ter-
que assegura a nossa existência. É com Sinésio de Corpo e imaginação, pele e linguagem estão, evocadas por Coccia. Lê-se no manifesto: “Em uma ceiro estado que nosso mundo é sempre um mundo
Cirene que Coccia passa a explicar essa “vida imagi- portanto, em íntimo contato. O ato da fala é o que civilização de massas, o público não está em contato mágico”. Essa afirmação está muito longe de ser um
nativa” do sonho (que, embora seja uma vida menor, faz a nossa pele existir fora de nós: “a linguagem é a direto com os fatos culturais, mas se informa sobre disparate. Se são as imagens que permitem a “anima-
ainda é vida), “o primeiro corpo da alma”, denominado faculdade suprema de apropriação imaterial das coi- eles através dos meios de comunicação. A audiência ção do corpóreo”, se “não convém medir os limites da
por Sinésio como “espírito fantástico”. São, portanto, sas”. Essa faculdade suprema da linguagem, nos leva de massas não vê, por exemplo, uma exposição, não vida animal pelos confins de seu corpo anatômico”,
a fantasia e a imaginação que constituem o vivente. de novo ao meio. Nesse caso, especificamente, aos presencia um happening ou uma partida de futebol, se somos afetados pelas imagens e somos capazes
O vivente é o que é capaz de imaginar, seus limites meios de comunicação de massa. Não é por acaso mas vê a sua projeção em um noticiário”. O que eles de produzir imagens, somos, perdoem o trocadilho da
são os limites do alcance da imaginação. O que nos que Coccia usa termos medievais para descrever as pretendem colocar em questão é a indiferença ao “cultura de massas”, desenhos animados, uma vida
faz pensar que o sonho e a imaginação são tão “re- imagens, tais como “veiculação”, “transmissão”, “re- acontecimento – ou não-acontecimento – do fato: o sensível, um corpo extensivo aos limites do mundo,
ais” que constituem a “realidade”, e vice-versa, que a cepção”, “reprodução”. É aí que está a radicalidade que interessa é a imagem construída pelos meios aos limites do sensível, aos limites da paixão – infini-
“realidade” não é feita de outra coisa senão do sonho política da proposta de A vida sensível. Foram esses, de comunicação. Daí que eles vão ao “interior dos tamente transmissíveis e apropriáveis.
e da imaginação. E essas questões nos empurram exatamente, os termos apropriados pela sociedade meios” noticiar um happening que, “de fato”, não
espetacular, pelo reino dos meios de comunicação. acontece, mas é noticiado como se tivesse aconteci-

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