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RESENHA
As assinaturas de uma
Signatura rerum
Giorgio Agamben
Turim, Bollati Boringhieri, 2008
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compreendido tanto pela crítica italiana, quanto pela mas sim o direito. Ele próprio afirma, em entrevista
intelectualidade européia como um todo. Basta dizer concedida a Roman Herzog, que depois de ter con-
que Umberto Eco, um dos poucos a fazer uma crítica cluído seus estudos em direito pensou que os havia
do livro, ao ressaltar as qualidades eruditas do au- abandonado para sempre. No entanto, assume que
tor fez um irônico jogo de palavras entre Melandri e a lógica férrea do direito, sobretudo a do direito ro-
meandri (meandros), insinuando que o leitor acabaria mano, é algo que jamais alguém pode abandonar por
por se perder na dificuldade argumentativa das quase completo e que, justamente por isso, o acompanha
1000 páginas do livro. Desde essa “má recepção” de até hoje. Ainda que para qualquer leitor mais atento
La Linea e il Circolo, lembra-nos Stefano Catucci, Me- de Homo Sacer. O Poder soberano e a vida nua tal
landri entra num progressivo isolamento intelectual e declaração de Agamben não soe como novidade, o
político, de modo que seus escritos não encontram que aqui ressalto é o fato de ter sido o próprio Agam-
mais lugar nas editoras de grande circulação (como ben quem prefacia a segunda edição do livro de Me-
a Il Mulino). Apenas 36 anos depois, em 2004, uma landri, isto é, um estudo sobre a analogia. Em certo
segunda edição – agora pela editora Quodlibet de sentido, eis que uma implícita contradição pode ser
Macerata – é publicada. De certo modo, o resgate lida nessa atitude: ao constatar a própria impossibili-
de um livro “obscuro” e que durante muito tempo per- dade de escapar à lógica no modo de pensar (lógica
maneceu quase sem fortuna crítica não poderia se essa incutida na idade de formação do pensador),
dar senão com a intervenção de alguns intelectuais Agamben irá, na esteira de Melandri, defender um
que, com refinadas leituras, tentam resgatar nos me- método ana-lógico de pensamento. O que está em
andros da recente história da filosofia uma nova pos- jogo então nessa tomada de posição de Agamben ao
sibilidade de pensar o contemporâneo. Dentre esses lado de Melandri é algo mais que uma tentativa de
“novos” leitores de Melandri um, em especial, parte dar a merecida voz a alguém que ficou à sombra dos
na defesa do falecido professor de Bologna: Giorgio eventos da esquerda italiana dos anos 70 e 80; de
Agamben. fato, ao assumir como própria uma assinatura lógica
Talvez a fama recente e repentina alcançada por que se dá a contrapelo da sua atual produção textual,
sOPRO
é o próprio modo de pensar de Agamben, seu mé- arké (a origem), que paira a todo instante (é sempre
todo, que acaba aqui por se expor. presente) sobre o dito. A isso tanto Melandri quanto
O que o prefácio de 2004 de La Linea e il Circolo Agamben – ambos pagando os tributos a Foucault –
– para o qual Agamben dá o nome de Archeologia di chamam de método arqueológico.
un´Archeologia – aponta é justamente a diretriz meto- É a Foucault que Agamben se refere no início de
dológica que ele assume e que, quatro anos mais tar- Signatura Rerum. Todo o texto é, em maior ou menor
de, esmiúça e traz à luz no livro Signatura Rerum. Sul medida, uma indagação a respeito das idéias do pen-
metodo (Signatura Rerum. Sobre o método). Os três sador francês. Como a arqueologia feita ao texto de
ensaios que o compõem (Che cos’è un paradigma?, Melandri, Signatura Rerum é, de certa maneira, uma
Teoria delle segnature e Archeologia filosofica) são outra arqueologia de uma arqueologia, desta vez, à
desse modo um desenvolvimento do texto de 2004 e Arqueologia do Saber de Foucault. A complementa-
dão as notas do cabedal metodológico que perpassa riedade entre La Linea e il Circolo e A Arqueologia
toda a obra de Agamben – desde seus primeiros tex- do Saber, para a qual Agamben chama a atenção já
tos como Stanze, de 1977, até o seu recentíssimo no prefácio de 2004, é a chave para a sua proposta
Nudità, de 2009. metodológica: “fundando a arqueologia sobre os
Archeologia di un’archeologia é talvez – mais do enunciados (isto é, não sobre o dito de um discurso,
que apenas a introdução da temática arqueológica rei- mas sobre seu puro ter-lugar), Foucault fornece-lhe,
vindicada por Melandri – uma prova à qual Agamben por assim dizer, o paradigma ontológico; Melandri,
submete sua própria formação jurídica (ou seja, sua fundando a arqueologia sobre a analogia, fornece-lhe
formação a partir da lógica das oposições binárias por a ‘lógica’ da qual tinha necessidade.” Para Agamben é
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excelência). O princípio de analogia, pedra de toque justamente essa leitura em paralelo que lhe possibilita
do livro de Melandri, é a base da compreensão do falar em arqueologia, isto é, numa leitura da arké.
paradigma agambeniano. Isto é o que lemos nas A idéia de uma retomada do não-dito – cautela
teses sobre o paradigma avançadas por Agamben arqueológica que Agamben enfatiza na advertência
no final do primeiro ensaio de Signatura Rerum: “o inicial de Signatura Rerum: “somente um pensamento
paradigma não é uma forma de conhecimento nem que não esconde o próprio não-dito mas incessante-
indutiva, nem dedutiva, mas analógica (...); neutrali- mente o retoma e desenvolve pode, eventualmente,
zando a dicotomia entre o geral e o particular, esse [o pretender a originalidade” – não é uma tentativa de
paradigma] substitui à lógica dicotômica um modelo alcançar o inconsciente ou o esquecido para além da
analógico bipolar.” fronteira da consciência, mas, por meio do princípio
Assim, quando Agamben ressalta que Melandri analógico – isto é, paradigmaticamente – uma tenta-
tenta, a partir do princípio de analogia, uma declina- tiva de encontrar a “originalidade” no ponto em que a
ção das oposições binárias que definem a lógica oci- própria instauração da divisão (das dicotomias) entre
dental, está, de certo modo, remodelando seu método consciente e inconsciente, história e historiografia se
presente sem perder de vista as assinaturas de seu dá. De fato, a arké (a origem) que a arqueologia al-
passado. Essa regressão ao passado proposta por cança “não é uma origem pressuposta no tempo, mas,
Agamben (à própria formação e, para quem acom- situando-se no cruzamento de diacronia e sincronia,
panha seu pensamento, às tradições filosóficas de torna inteligível não menos o presente do pesquisador
certo modo ofuscadas que ele visita: o averroísmo, que o passado do seu objeto.”
a teoria do fantasma e também a medicina paracel- Essa origem, que não é meta-histórica (uma ori-
siana que aparecerá em Signatura Rerum), mais do gem antes da queda e cantada sempre numa teo-
que uma tentativa de remoção do não-dito – como for- gonia, diria Foucault em seu ensaio de 1971 sobre
ma de superação do trauma infantil originário, como Nietzsche e a genealogia), é tomada por Agamben
suscitaria uma leitura nos moldes de Freud ou ainda como uma assinatura (e daqui a referência do título,
Ricoeur – é um modo de retomar o próprio não-dito, a Signatura Rerum, a Paracelso, cujo livro IX de seu
tratado De natura rerum intitula-se De signatura
Agosto de 2009 16
interpretação e a eficácia.” Ou seja, para Agamben “a
rerum naturalium). Depois de uma incursão sobre arqueologia é, nesse sentido, a ciência das assinatu-
como as assinaturas aparecem na ciência ocidental ras.”.
com Paracelso, passando pelo seu desenvolvimento Quando o arqueólogo se propõe a estudar um ob-
na doutrina dos sacramentos da Igreja, pelas idéias jeto histórico deve se dar conta de que esse nunca é
astrológicas e medicinais do Renascimento, até seu dado de modo neutro, “mas é sempre acompanhado
desaparecimento no final do século XVIII, Agamben de um índice ou de uma assinatura, que o constitui
constata como elas ressurgem em Foucault, em As como imagem e lhe determina e condiciona tempo-
Palavras e as Coisas. Ainda que ali Foucault não de- ralmente a legibilidade.” A arké, isto é, a assinatura
fina as assinaturas, a elas confere uma função e uma ou índice aqui chamado à causa, é justamente o que
posição próprias. Ao bipartir o campo epistemológico constitui todo objeto histórico (uma obra de arte, um
do século XVI em hermenêutica – o “conjunto de co- texto, um edifício) como imagem – uma imagem di-
nhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os alética diria Benjamin. Entretanto, essa imagem não
signos e descobrir seu sentido” – e em semiologia – o é uma meta última em relação à qual se dirige o ar-
“conjunto de conhecimentos e de técnicas que per- queólogo – como seria o caso do fantasma (o eido-
mitem distinguir onde estão os signos, definir o que os lon, isto é, uma imagem) indestrutível da regressão
institui como signos, conhecer seus liames e as leis freudiana, ou seja, propriamente um passado (cro-
de seu encadeamento” –, Foucault diz que “o século nológico) petrificado numa imagem – mas um ponto
XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma da de insurgência (justamente uma imagem dialética,
similitude”. Tal superposição, no entanto, não é imedi- nesse sentido, uma assinatura), algo que, mais do
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ata e evidente, sempre restando entre ambas um vão. que atrelado ao passado, encontra-se em relação
É esse hiato entre semiologia e hermenêutica, o qual com o devir histórico. E é a partir desse constante
não suporta uma livre passagem de uma à outra, que jogo entre o ponto de insurgência e o devir histórico,
pode ser visto como o não-lugar das assinaturas. É em que tem lugar a origem – jogo por si só anacrônico
importante notar que algum tempo depois – em 1969, – que, talvez, seja possível à humanidade encontrar
um ano após a publicação de La Linea e il Circolo e seu tempo e sua história destituídos de sua fulgura-
mesmo ano da publicação de Arqueologia do Saber ção redentora; ou seja, é na leitura das assinaturas
– Émile Benveniste (também ele teórico de referên- que o presente talvez se torne acessível (e aqui as
cia constante na obra de Agamben) desenvolve em tentativas de Melandri e Foucault, respectivamente, a
seu ensaio Sémiologie de la langue essa bipartição, superação da lógica dicotômica ocidental e a procura
ainda que com denominações diferentes: os campos pela assinatura que qualifica e especifica todo evento
semântico e semiótico. Para Agamben, o hiato resul- de palavra parecem encontrar seu paradigma). Nesse
tante dessas oposições é também o puro ter-lugar do sentido, a arqueologia pode ser entendida como um
discurso, isto é, o enunciado proposto por Foucault a priori imanente da historiografia; do mesmo modo
na Arqueologia. “Nem semiótico, nem semântico”, como o gesto do arqueólogo – o seguir o curso da
diz Agamben (utilizando-se da terminologia de Ben- história a contrapelo – pode ser compreendido como
veniste), “ainda não discurso e não mais mero signo, o paradigma de toda verdadeira ação humana; isto é,
os enunciados, como as assinaturas, não instauram quiçá esteja aqui a possibilidade de uma ação huma-
relações semióticas nem criam novos significados, na desvinculada de seu cristalizar-se em obra – uma
mas assinalam e ‘caracterizam’ os signos no nível da ação que seja aberta sempre no seu presente como
sua existência e, desse modo, neles atuam e deslo- des-obra (désoeuvrement, inoperosità).
cam a eficácia. Eles são as assinaturas que os signos Diante de toda essa trama armada por Agamben
recebem pelo fato de existirem e de serem usados, o para discutir o método não está somente a tentativa
caráter indelével que, marcando-os no seu significar de dar fôlego a uma idéia (a arqueologia) que se en-
algo, lhes orienta e determina num certo contexto a contra epistemologicamente ancorada num evento
www.culturaebarbarie.org/sopro
histórico originário (a arké não datada cronologica- nome do espantalho, o Báçira, lança o leitor a um livro
mente), mas a própria possibilidade de uma ação de Luís da Câmara Cascudo sobre a Geografia do
humana para além de seus condicionamentos, hoje Brasil holandês, publicado em 1956. Lá, na página
ditos genético-comportamentais, com os quais a 195-6, Câmara Cascudo aponta para este nome no
humanidade luta incessantemente. É do modo de mapa de George Marcgrave ou Marcgraf, grafado
encarar esse combate (da estratégia, do método uti- assim por Paulo Leminski no Catatau. São indícios,
lizado) que depende também algo mais do que a so- deixados pelo escritor para rearmarmos o jogo de
brevivência do homem apenas enquanto espécie; ou leitura. O vestígio é encontrado em nota de rodapé,
melhor, ao tentar enxergar as assinaturas que condi- uma das 52 contidas no romance. Os vestígios são
cionam a história, viver pode deixar de ser o anseio indícios da contemporaneidade de uma obra de arte.
por um além da história (por um paraíso ou por uma Os corpos e figuras que aprecem neste livro, ilus-
eterna gestão do corpo) e, desse modo, abrir-se a um tram um aspecto do vestígio que atravessa toda li-
com-viver, a uma política. teratura, ou seja, o próprio rastro destes personagens
é um reflexo do rastro que deixa a escritura; rastro
Vinícius Honesko
que seguimos para tentar alcançar ou criar uma ima-
verbete
gem. O índice, indício, veste de algum corpo, muitas
vezes de um corpo velado. Esta proximidade a que
o vestígio põe o observador (a idéia de desvelá-lo)
é justamente aquilo que impede a representação, a
VESTÍGIOS (II) impossibilidade de ver o objeto de desejo. A aparição
Em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, destas criaturas põe em cheque a presença, realçam
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lemos uma passagem na qual a protagonista Maria o que já foi dito sobre a fotografia, por exemplo: que
de França, após um acesso de loucura e um transe a fotografia mostra o que já não mais está ali, como a
de nove dias e nove noites, gera um ser híbrido, o cena de um crime (era o que Benjamin falava a res-
espantalho. Criatura constituída por fragmentos de peito de Eugène Atget).
outros vinte e sete personagens que transitam a obra. A escrita é, em seu perímetro, uma superfície for-
Esta criatura toma parte do livro e seu discurso funde- mada por marcas, impressões, o olho que as segue
se tanto ao de Maria de França, quanto ao do nar- tenta sempre inutilmente transformá-la em outra
rador do livro (a narrativa é um diário escrito por um coisa. Alcança o êxito no mesmo instante que inau-
professor secundário, sobre um livro inédito, deixado gura um outro vestígio, como a reaparição destes
por sua amante antes de morrer atropelada). Temos personagens atravessando séculos de distância. A
um corpo que perambula e deixa seus vestígios pelo sobrevivência do vestígio compõe a memória imate-
livro, um corpo ao qual a narradora atribui, entre vá- rial (imaginação), como arquivos numa órbita movida
rios outros, o nome de Báçira. Mas é apenas um pela força do tempo. Paradoxalmente, é através dos
nome, uma veste. arquivos vestiginais que podemos criar nossa repre-
A engenhoca deste romance do escritor per- sentação do tempo, porque dele (lembra G.Agamben)
nambucano se arma sobre a arte da memória. Seus temos apenas a experiência e para elaborar a repre-
personagens são vestígios oriundos da máquina de sentação, recorremos às imagens, nos embrenhamos
leitura que era o próprio autor do romance. A partir na floresta escrita e/ou desenhada para criar imagens
da protagonista Maria de França, homônima de uma espaciais. Os artifícios com a técnica se multiplicaram
poeta normanda do séc. XII, desfilam vários outros e o mercado deu-lhes a potência na ambivalência do
nomes vindos de tradições místicas da antiguidade estar/não estar (seqüência de luzes nos out-doors
como Alberto Magno, que discutia com Tomas de eletrônicos). De alguma maneira poderíamos pensar
Aquino problemas ligados a memória artificial e Rôn- que os vestígios são índices de nada.
filo Rivaldo, nome de um insigne quiromante francês
do século XVII chamado Ronphyle. Ainda, o próprio Cristiano Moreira