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SER HUMANO entre dois mundos

(trecho retirado de Fundamentos da Filosofia, cáp.1 – Gilberto Cotrim)

O que é o ser humano? Assim podemos sintetizar a reflexão de Blaise Pascal, filósofo e cientista
francês do século XVII. E a partir dela, formular outras mais, como, por exemplo, "Qual o lugar do homem no
Universo?" e "O que é o Universo para o ser humano?" Vamos filosofar sobre o ser humano e aquilo que o
toma diferente e singular.

O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente
mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos
especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os
pólos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos
aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas
de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar.
Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles
não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado
social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem
(fala e escrita).
A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro
de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura.

CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, p. 40-1.

Assim, diferentemente dos outros animais, os homens não são apenas seres biológicos produzidos pela
natureza. Os homens são também seres culturais que modificam o estado de natureza, isto é, o modo de ser,
a condição natural das coisas, definida pela natureza.

Natureza e Instintos
O comportamento de grande parte dos animais é basicamente determinado por reflexos e intintos
vinculados a estruturas biológicas hereditárias. Isso faz com que ocomportamento de um inseto seja
praticamente igual ao de outro de sua espécie, hoje e sempre. Comprovamos isso observando, por exemplo, a
atividade das abelhas nas colméias ou das aranhas tecendo as teias.
Existem animais que parecem mais livres do que outros da dependência dos instintos ou reflexos au-
tomáticos, que apresentam alguns comportamentos mais flexíveis, mais imprevisíveis, mais maleáveis às cir-
cunstâncias ambientais. É o caso, por exemplo, de cães e gatos, nos quais distinguimos muitas vezes o que se
poderia chamar "personalidade". E, dependendo do animal, como chimpanzés e gorilas, é possível encontrar
atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocínio.
Apesar de tudo isso, podemos dizer que existe um grande abismo, uma grande diferença entre o
comportamento dos animais e o dos seres humanos. Para dar um só exemplo, mesmo o chimpanzé mais
evoluído possui apenas rudimentos do que lhe permitiria desenvolver a linguagem simbólica e tudo o que dela
resulta: aprender, reelaborar o conteúdo aprendido e promover o novo (invenção). Isso quer dizer que a vida de
cada animal é uma repetição do padrão básico vivido pela sua espécie. Já o ser humano tem, individualmente e
como espécie, a capacidade de romper com boa parte do seu passado, questionar o presente e criar a
novidade futura.
É claro que exitem fatores genéticos e socioeconômicos que limitam certas mudanças, favorecem ou
dificultam a realização de determinados desenvolvimentos. Além disso há vários tipos de crenças, ideologias e
condicionamentos que impedem as pessoas sequer desejar uma transformação em si mesmas ou à sua volta.
Por fim, todo ser humano apresenta também reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias
próprias da espécie humana.
O que queremos destacar, no entanto, é que o ser humano não nasce pronto pelas "mãos da natureza".
A vida de cada indivíduo depende do parto de si mesmo, num processo permanente de "nascer sem parar".
O que determina, então, essa diferença entre o "animal homem" e todos os outros animais?
O ponto de transição
Podemos fazer agora as seguintes perguntas: onde acaba, no ser humano, a natureza e começa a
cultura? Em que ponto, em que momento, com que fato ocorreu essa transição ou essa síntese?
O tema é polêmico. Alguns estudiosos afirmam que não há um limite rígido entre natureza e cultura,
enquanto para outros um provável indicador desse limite seria a construção de instrumentos de trabalho. Aqui
destacaremos duas correntes interpretativas que consideramos as mais relevantes.

Linguagem e comunicação
Alguns estudiosos entendem que o fator determinante da transição natureza -cultura é a linguagem.
Trata-se de uma corrente que entende o ser humano fundamentalmente como um ser lingüístico.
Assim, segundo esse antropólogo, o que teria distanciado definitivamente o homem da ordem comum
dos animais - animal que ele também é e nunca deixará de ser - e permitido a sua entrada no universo da
cultura seria o desenvolvimento da linguagem e da comunicação.
De fato, a linguagem constitui uma das dimensões mais importantes da cultura, pois é ela que permite o
intercâmbio das experiências e as aquisições culturais. É pela linguagem, por exemplo, que os pais comunicam
aos filhos não apenas suas experiências pessoais, mas algo mais amplo: as experiências acumuladas e
compartilhadas pela sociedade. De modo inverso, é também por meio da linguagem que o conhecimento
individual de cada pessoa pode incorporar-se ao patrimônio social.

Trabalho
Outra vertente interpretativa, desenvolvida por Karl Marx, filósofo alemão do século XIX, entende que é
o trabalho que possibilita a distinção entre ser humano e animais; portanto, entre cultura e natureza. É a partir
do trabalho, e da fonna como se dá o processo de produção da vida material dos homens, que todas as outras
fonnas de manifestações humanas se desenvolvem. Para Marx:

Pode-se considerar a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém esta
distinção só começa a efetivar-se quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida.
MARX, K. e ENGEl, F. Ideologia alemã, v. 1, p. 19

De acordo com essa interpretação, portanto, é o modo como os homens constroem sua vida material
que dá origem à elaboração da vida espiritual e das relações sociais, formando um conjunto que constitui a
cultura. Isso quer dizer também que não podemos falar de cul.tura no singular, mas sim de culturas, pois elas
são multiplas e variáveis, de acordo com a diversidade dos modos de ser e viver das coletividades humanas.

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