Você está na página 1de 1

Gagueira: um fenômeno mundial

Nathan Lavid, M.D.*

A
gagueira do desenvolvimento não está confinada ape- crianças que exibiam a condição. Não ter uma palavra para
nas ao mundo ocidental. Um por cento da população gagueira evitaria, portanto, o diagnóstico e impediria que os
mundial gagueja e a condição parece afetar todas as pais rotulassem seus filhos com a condição.
etnias e culturas igualmente. Podemos verificar isso através 2) os Bannock-Shoshoni “exerciam muito pouca pressão
do variado conjunto de palavras que as diferentes culturas sobre as crianças para falar” (Ibidem, p.494). Esta ausência
usam para descrever a gagueira. Na Etiópia, a palavra do de pressão era vista como uma menor tensão sobre a criança
idioma amárico (língua oficial da Etiópia) que significa ga- para falar fluentemente. Dessa forma, os pais não tentariam
gueira é mentebateb. No Japão, usa-se a palavra domori. Os apressar prematuramente o desenvolvimento normal da fala
turcos dizem kekelemek. Todas as culturas orientais e ociden- e assim a gagueira do desenvolvimento não ocorreria.
tais reconhecem o distúrbio e têm palavras para descrever a A ausência de gagueira entre os Bannock-Shoshoni per-
gagueira. [N.T.: vale aqui mencionar, como mais uma evi- maneceu incontestada na literatura médica por algum tem-
dência de que a gagueira não é um distúrbio predominante- po. Contudo, em 1983, um artigo publicado na revista Jour-
mente ocidental, que o próximo congresso internacional da nal of Speech and Hearing Research desfez o equívoco de
ISA (International Stuttering Association) será realizado na Snidecor. Gerald Zimmerman, professor de fonoaudiologia
China, em 2010.] da Universidade de Iowa, e seus parceiros de pesquisa relata-
É didaticamente interessante mostrar o quanto é recente ram que os Bannock-Shoshoni tinham no mínimo 17 termos
o entendimento da gagueira como um distúrbio que afeta para referir-se à gagueira. Entre eles estavam: kyctanni, que
indiscriminadamente todas as culturas. De 1937 a 1939, significa “gaguejar”; pybyady, que significa "ele gagueja";
John C. Snidecor, chefe do departamento de fonoaudiologia nicannugi/na, que significa "ele gagueja cada vez mais" e
da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, entrevistou assim por diante. Snidecor nunca chegou a entrevistar ne-
mais de 800 membros da tribo indígena Bannock-Shoshoni, nhum Bannock-Shoshoni que gaguejava, porque a gagueira
situada na reserva de Fort Hall, em Pocatello, Idaho (EUA). era estigmatizada na cultura da tribo e por isso os índios
Snidecor também obteve dados de mais de 1.000 outros jamais haviam apresentado ao doutor qualquer pessoa que
índios Bannock-Shoshoni e sua pesquisa "não conseguiu gaguejava. Zimmerman e sua equipe relataram que os Ban-
encontrar um só índio 'puro-sangue' que gaguejasse" (Snide- nock-Shoshoni “se sentiam constrangidos por ter em suas
cor, 1947, p.493). Além disso, ele relatou que a língua da famílias pessoas que gaguejavam” (Zimmerman, 1983,
tribo não possuía nenhuma palavra para gagueira. Sua con- p.316). Parte desse constrangimento e estigma resultava de
clusão foi que os Bannock-Shoshoni não gaguejavam. uma lenda folclórica dos Bannock-Shoshoni “que atribuía a
A conclusão de Snidecor foi publicada no jornal Quarterly causa da gagueira a uma gestação mal concebida, fruto de
Journal of Speech, em 1947. Esta data é quase tão importante um desempenho sexual fraco de casais inexperientes” (Ibi-
quanto suas descobertas, porque na década de 1940 havia dem, p. 317). Portanto, como uma derivação de sua contra-
uma teoria popular sobre as causas da gagueira do desenvol- parente ocidental (a teoria diagnosogênica), a teoria dos
vimento, e os dados de Snidecor — dando conta de que os Bannock-Shoshoni também atribuía a gagueira aos pais, só
Bannock-Shoshoni não gaguejavam — ofereciam suporte a que com uma instigante pitada folclórica de sexo e paixão.
essa teoria. A teoria diagnosogênica finalmente foi invalidada à me-
A causa proposta para a gagueira do desenvolvimento dida que foi se tornando evidente que a gagueira do desen-
que estava em voga em 1940 era a “teoria diagnosogênica” volvimento não decorria de recriminações paternas pressio-
da gagueira. Os defensores dessa teoria acreditavam que a nando a criança para falar fluentemente. Agora, com os ín-
gagueira começava quando os pais erradamente “diagnosti- dios Bannock-Shoshoni oficialmente incluídos na lista, sabe-
cavam” seus filhos como crianças gagas. Por esta teoria, os se que cerca de 1% de toda a população mundial gagueja —
pais erravam não apenas uma, mas duas vezes. Primeiro, ao o que representa 60 milhões de pessoas atingidas pela ga-
diagnosticar erradamente como gagueira disfluências nor- gueira do desenvolvimento em todo o mundo.
mais que as crianças tinham enquanto estavam aprendendo a
falar. E depois, ao reforçar o erro inicial com outro, adver-
tindo seus filhos para controlar a gagueira. Essas advertên- REFERÊNCIAS
cias — não importa quais fossem — seriam vistas pela crian- Snidecor JC. Why the Indian does not stutter. Quarterly Jour-
ça como uma prova de rejeição. A criança então tentaria nal of Speech (1947); 33:493-95.
reconquistar a aprovação de seus pais tentando falar fluen- Zimmerman G et al. The Indians have many terms for it:
temente. Isso causaria tensão na criança e a tensão levaria ao stuttering among the Bannock-Shoshoni. Journal of Speech
desenvolvimento da gagueira patológica. and Hearing Research (1983); 26:315-18.
Há dois elementos na pesquisa de Snidecor sobre os Ban-
nock-Shoshoni que dão suporte à teoria diagnosogênica:
1) como os Bannock-Shoshoni não tinham uma palavra para *Nathan Lavid é médico, estudioso da gagueira e autor do livro
gagueira, eles não poderiam diagnosticar e repreender as Understandig Stuttering (Compreendendo a Gagueira).

Você também pode gostar