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Nº 118 - Ano 2010

ISSN 0103-8109

A V A L I A Ç Ã O D E P R O J E T O S D E L E I

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS – 3

N OTAS posiciona-se, nesta edi-


ção, contrariamente ao con-
teúdo do Programa Nacional de
Cada um dos “eixos orienta-
dores” desdobra-se em diver-
sas diretrizes, e cada uma
Direitos Humanos, objeto de de- dessas comporta, por seu
creto emanado da Presidência da turno, “objetivos estraté-
República. gicos”. Por exemplo, o pri-
Posiciona-se contra o espírito meiro eixo orientador, Inte-
que orientou a formulação do Pro- ração Democrática entre Estado
grama, por entender que o mesmo e Sociedade Civil, tem três
constitui nítida tentativa de subs- diretrizes, sendo a primeira
tituir os legítimos canais de repre- delas denominada “Interação
sentação popular por comitês de democrática entre Estado e
“atores sociais” sem qualquer le- sociedade civil como instru-
gitimidade para tal. mento de fortalecimento da
Posiciona-se, igualmente, contra democracia participativa”, com-
aspectos específicos do Programa, portando os objetivos estra-
por entender que esses aspectos tégicos (I) Garantia da partici-
põem em risco o Estado de Direito pação e do controle social das
sob o qual vivemos – e sob o qual políticas públicas em Direitos Hu-
pretendemos continuar a viver. manos, em diálogo plural e trans-
O Programa Nacional de Di- versal entre os vários atores
reitos Humanos, em sua terceira sociais, e (II) Ampliação do
versão, foi elaborado pela Secre- controle externo dos órgãos
taria Especial dos Direitos Hu- públicos.
manos da Presidência da República A segunda diretriz, Fortale-
e lançado em dezembro último. cimento dos Direitos Humanos
Desde então, vem recebendo crí- como instrumento transversal das
ticas, quer em sua totalidade, como políticas públicas e de interação Humanos e construção de meca-
em aspectos específicos. democrática, tem, por seu turno, nismos de avaliação e monito-
O Programa é ambicioso. os objetivos estratégicos (I) Pro- ramento de sua efetivação, com-
Abrange seis “eixos orientadores”, moção dos Direitos Humanos porta os objetivos estratégicos
assim denominados: interação como princípios orientadores das (I) Desenvolvimento de mecanis-
democrática entre Estado e socie- políticas públicas e das relações mos de controle social das políticas
dade civil; desenvolvimento e direi- internacionais e (II) Fortalecimento públicas de Direitos Humanos,
tos humanos; universalizar direitos dos instrumentos de interação garantindo o monitoramento e a
em um contexto de desigualdades; democrática para a promoção dos transparência das ações governa-
segurança pública, acesso à justiça Direitos Humanos. mentais, e (II) Monitoramento dos
e combate à violência; educação e Finalmente, a terceira diretriz, compromissos internacionais assu-
cultura em direitos humanos; e Integração e ampliação dos sis- midos pelo Estado brasileiro em
direito à memória e à verdade. temas de informação em Direitos matéria de Direitos Humanos.
Seria ocioso pretender co- ternos” aos órgãos dos três po- A revisão da Lei da Anistia
mentar nesta edição de NOTAS deres, legítimos porque previstos
todos os pontos do PNDH-3. na Carta Magna. Substituí-los Os propósitos de revisão da Lei
Ocioso e cansativo. Trata-se de constitui violência à Constituição da Anistia constam do proposto no
um decreto com 73 páginas que e aos cidadãos que elegeram Eixo Orientador VI: Direito à
propõe a edição de 27 leis. Suas os constituintes e ao próprio Memória e à Verdade. Como em
consequências são mais abran- Congresso, que, de tempos em todo o documento, a redação é
gentes que a extensão física do tempos e quando necessário, tem vazada de forma a parecer que se
decreto. Ficam criadas, caso o emendado a Constituição para está diante de um fato novo, a ser
Congresso Nacional temeraria- adequá-la às novas necessidades. objeto de um decreto presidencial
mente aprove o documento e edite Pela abrangência do decreto, e de propostas de legislação espe-
a legislação correspondente, mais NOTAS limita-se a tratar dos temas cífica, a ser votada pelo Congresso
de 10 mil instâncias burocráticas, Nacional.
como conselhos, ouvidorias e co- Obviamente, ninguém está inte-
mitês. Os gastos com a divulgação ressado da abolição do “reconhe-
de um programa dessa natureza “O PROGRAMA cimento da memória e da verdade”
constituiriam fato novo, do ponto NACIONAL DE DIREITOS – quer como direito humano, se
de vista orçamentário, na história HUMANOS, EM SUA assim se quiser tratar do assunto,
do País. TERCEIRA VERSÃO, FOI quer como simples obrigação do
A simples transcrição do con- Estado para com os cidadãos.
ELABORADO PELA SECRE-
teúdo programático do primeiro Como tal, é parte do direito da
dos “seis eixos orientadores”, suas TARIA ESPECIAL DOS cidadania saber dos atos do ente
diretrizes e objetivos estratégicos, DIREITOS HUMANOS que custeia com seus tributos.
já deixa claro que estamos diante DA PRESIDÊNCIA DA O texto fala que “o Brasil ainda
de uma tentativa especial de REPÚBLICA E LANÇADO processa com dificuldades o res-
formulação de políticas públicas. gate da memória e da verdade
EM DEZEMBRO ÚLTIMO.
Na maior parte dos casos, sobre o que ocorreu com as
pretende o decreto delegar a con- DESDE ENTÃO, vítimas atingidas pela repressão
selhos, ouvidorias e comitês atri- VEM RECEBENDO política durante o regime de 1964.
buições do Congresso Nacional. CRÍTICAS, QUER EM SUA A impossibilidade de acesso a
Esse é o caso, por exemplo, de TOTALIDADE, COMO EM todas as informações oficiais im-
atribuir aos “atores sociais” o ASPECTOS ESPECÍFICOS.”
pede que familiares de mortos e
controle das políticas públicas em desaparecidos possam conhecer os
direitos humanos, atribuição que fatos relacionados aos crimes
hoje repousa naqueles que legiti- praticados e não permite à socie-
mamente exercem mandato eletivo de maior alcance ali contidos. São dade elaborar seus próprios
conferido pelo voto popular. Nesse eles a revisão da Lei de Anistia, a conceitos sobre aquele período”.
exemplo ilustrativo — mas disse- reintegração de posse em pro- Contudo, o que se está preten-
minado em todo o documento — priedades privadas e a criação de dendo é escamotear com essa
pretende-se substituir a legiti- uma comissão para monitorar o redação o outro lado da moeda: se
midade da representação popular conteúdo editorial das empresas de escamoteou até hoje o reconhe-
pela escolha corporativa dos comunicação. Isso não implica que cimento da memória e da verdade
“atores sociais”. Não foi para isso, os demais temas tratados no de- daqueles que combateram uma
contudo, que se restabeleceu a creto sejam de importância menor insurreição armada, cujo objetivo
vigência plena do regime demo- ou constituam ameaça mais branda era substituir o Estado de Direito
crático no País. ao Estado de Direito. Implica e as instituições democráticas pelo
O mesmo pode ser dito da apenas a impossibilidade, dada a autoritarismo de tipo soviético ou
ampliação do “controle externo” limitação de espaço de que se cubano.
dos órgãos públicos. Para esse dispõe, de tratar de cada um dos Se o objetivo dessa revisão
efeito já existem controles “ex- aspectos elencados no Programa. unilateral, porque só trata dos atos

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da repressão do Estado ao terro- tica pública nº 30). Propõe tam- reconheceram esse direito, desde
rismo então praticado, é a revisão bém “Apoiar proposições legisla- a primeira constituição, de 1824.
da Lei da Anistia, não há como tivas que objetivem dinamizar os Não há liberdade de expressão
compactuar com esse objetivo: a processos de expropriação para onde o Estado de Direito é mera
lei foi votada com o objetivo de fins de reforma agrária, assegu- formalidade e a democracia uma
virar uma página da história, rando-se, para prevenir violências, farsa.
procurando abrir caminho para a mais cautela na concessão de limi- O termo “controle” aparece 46
plena restauração do regime de- nares” (política nº 31). vezes nas 73 páginas do docu-
mocrático, o que veio a ocorrer Ora, ambas as medidas, de ca- mento. Essa presença dever ser
depois de sua promulgação e sob ráter nitidamente ideológico, têm indicativa do espírito que presidiu
o qual vivemos até os dias de hoje. por único objetivo dificultar a sua redação, qual seja, a de que
Não cabe, portanto, qualquer desocupação de terras invadidas, já cabe a grupos organizados a
revisão da lei, que abrange os dois que as invasões, por sua própria incumbência de controlar ações
lados que combateram durante os natureza, constituem ato de violên- tanto do próprio Estado, como dos
governos militares. cia contra direito assegurado pela particulares.
própria Constituição. O que pode Já apontamos anteriormente
A reintegração de posse de provocar o conflito no campo é o que o País dispõe, em seu aparato
propriedade privadas desrespeito ao direito de proprie- institucional, de instrumentos
dade, não a legítima defesa pelo legítimos e suficientes de controle
A Constituição reconhece na proprietário do que legitimamente da ação do Estado. Se as autori-
sua Declaração de Direitos a pro- é seu. A medida, além de dificultar dades não se valem desses instru-
priedade privada. Invasões de a desocupação de terras invadidas, mentos, como na apuração do
propriedades legitimamente adqui- conflita com legislação que impede chamado “mensalão”, para ficar
ridas e atos de vandalismo prati- a desapropriação para efeito de apenas em um exemplo, o faz ao
cados nessas propriedades têm se reforma agrária de propriedades arrepio da lei e cometendo ato de
tornado uma chaga em nosso invadidas. prevaricação.
Estado de Direito. Não cabem na Não é possível aceitar que se Não cabe, contudo, em uma
proteção, ainda que parcial, do venha a propor medidas que con- sociedade que optou e lutou para
direito de propriedade, submetido trariem a disposição legal de reinte- viver sob o Estado de Direito, o
que está ao seu denominado “uso gração de posse dos legítimos controle dos meios de expressão.
social”, porque a definição desse proprietários com a devida pres- Não é possível a criação de uma
uso social não prescinde do devido teza que requer o Estado de Comissão que tenha por objetivo
processo legal, segundo as normas Direito. Justiça tardia não é justiça, monitorar o conteúdo editorial das
prescritas na legislação pertinente. diz a sabedoria popular. Por sua empresas de comunicação. Indo
O Programa prevê, no capítulo vez, limitar o judiciário na con- além, propõe-se que sejam im-
dedicado a políticas públicas para cessão de liminares é violência postas penalidades sob a forma de
proteção e promoção dos direitos dupla, contra o direito de proprie- multas, suspensão da programação
humanos no Brasil, sob o inapro- dade e contra o Judiciário. O que e cassação para empresas de co-
priado título de “Luta conta a pretende a proposta de política nº municação, sempre que o governo
Impunidade”, “Propor projeto de 30 é simplesmente incentivar as considerar que o exercício da
lei para tornar obrigatória a pre- atividades criminosas de bandos de liberdade de expressão pelas em-
sença no local do juiz ou do repre- invasores agindo ao arrepio da lei. presas de comunicação viola di-
sentante do Ministério Público, à reitos humanos.
ocasião do cumprimento de man- Monitoramento do conteúdo Ora, essa é exatamente a con-
dado de manutenção ou reinte- editorial das empresas de dição sob a qual vivem nossos
gração de posse de terras, quando comunicação vizinhos venezuelanos. Não é a si-
houver pluralidade de réus, para tuação vigente em Cuba, simples-
prevenir conflitos violentos no cam- A liberdade de expressão é mente porque naquele país não há
po, ouvido também o órgão admi- pedra de toque do Estado de Di- empresas particulares de comuni-
nistrativo da reforma agrária” (polí- reito. Nossas constituições sempre cação. Onde elas existem, contudo,

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quem as controla são os próprios direitos já consagrados na legislação tradas hoje no campo, mas que, a
cidadãos e a concorrência entre as pertinente em vigor, a Secretaria persistir a impunidade dos que
diversas empresas. Um veículo de enxertou no documento diversas praticam tais delitos, eventualmente
comunicação que sistematica- recomendações que, se transfor- se transferirão para as áreas ur-
mente mente em sua cobertura madas em lei pelo Congresso banas, com igual intensidade.
jornalística mais cedo ou mais Nacional, irão ferir gravemente o O poder público tem sido mais
tarde é desmascarado e cai no Estado de Direito vigente no País. que omisso diante de tão patente
ostracismo. Poupamos o leitor da análise atentado à lei: tem se mostrado
O que não é possível aceitar é detalhada de todo o conteúdo do sensível às demandas dos crimi-
o retorno da censura que aqui decreto. Seria enfadonho e retiraria nosos que invadem e depredam
existiu durante a ditadura do o foco de algumas das principais propriedade privada, incentivando
Estado Novo ou durante o regime tais atividades com o dinheiro do
militar, que o documento tanto contribuinte. Não é possível que
critica. agora se venha a propor medidas
Propor que o conteúdo edito- “NOTAS POSICIONA-SE que procrastinem o direito de rein-
rial das empresas de comunicação CONTRARIAMENTE AO tegração de posse dos legítimos
seja monitorado é um eufemismo proprietários de terras invadidas.
CONTEÚDO DA PROPOSTA
para o termo correto, censura. De Finalmente, há também que
novo, não foi para isso que tantos DE PROGRAMA DE denunciar a tentativa de trazer de
lutaram pelo pleno restabele- DIREITOS HUMANOS volta, por vias transversas, a cen-
cimento do Estado de Direito em ELABORADA PELA sura dos meios de comunicação no
nosso país e pelas instituições Brasil. O exercício da liberdade e
democráticas. Estas dependem
SECRETARIA ESPECIAL o regime democrático são incom-
visceralmente da competição no DOS DIREITOS patíveis com qualquer tentativa de
campo das idéias e dos programas, HUMANOS DA PRESI- asfixiar os meios de comunicação a
que somente a liberdade de ex- DÊNCIA DA REPÚBLICA E pretexto de defender direitos
pressão pode assegurar. humanos. Temos um exemplo
O Congresso Nacional não CONSUBSTANCIADO SOB vívido na Venezuela do que significa
pode aprovar tamanha agressão ao A FORMA DO DECRETO para a liberdade o controle do
Estado de Direito, sob pena Nº7.037, DE 21 DE conteúdo editorial dos meios de
perder a legitimidade que foi comunicação. Se o objetivo é
DEZEMBRO DE 2009.”
conferida a seus membros por um simplesmente impedir a difusão de
processo de competição, em que material editorial contrário aos
venceram as idéias e programas direitos humanos — como a apo-
que mais se adequaram às de- proposições das quais NOTAS dis- logia do racismo, por exemplo —
mandas dos eleitores. corda. Preferiu-se concentrar a há legislação suficiente para coibir
atenção em três pontos capitais tais delitos ou punir os infratores,
Conclusões e recomendações que estão no cerne dessa discor- conforme o caso.
dância. Por fim, o documento tenta
NOTAS posiciona-se contraria- O primeiro deles se refere à também desmoralizar as institui-
mente ao conteúdo da proposta de defesa, no documento, do direito à ções, na medida em que propõe
Programa de Direitos Humanos memória, e sua possível trans- que grupetos de “atores sociais”
elaborada pela Secretaria Especial posição para a revisão da lei de substituam os legítimos atores com
dos Direitos Humanos da Presi- anistia que abriu caminho à rede- mandato da sociedade como um
dência da República e consubstan- mocratização do País. NOTAS posi- todo no controle de atos do go-
ciado sob a forma do Decreto ciona-se frontalmente contra qual- verno ou de atividades desempe-
nº 7.037, de 21 de dezembro de quer revisão desse diploma legal. nhadas pelo setor privado. NOTAS
2009. O segundo tema importante diz espera que o Congresso Nacional
Embora a retórica do docu- respeito às repetidas violações do se constitua em efetiva barreira a
mento esteja calcada na defesa de direito de propriedade, concen- essa tentativa.

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