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IESUS

O Desafio das Doenças Emergentes e a


Revalorização da Epidemiologia Descritiva*

Rita de Cássia Barata Barradas


Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

Resumo
Este artigo trata das doenças emergentes e re-emergentes apresentando seu conceito, as
principais ocorrências nos últimos 25 anos, e os determinantes dessas ocorrências. Trata
também da epidemiologia descritiva e sua utilização na investigação desses problemas de
saúde apontando a importância de sua recuperação pelos epidemiologistas. Finalmente,
são mencionados os desafios que as doenças emergentes colocam para a prática em Saúde
Coletiva e também para o desenvolvimento metodológico da epidemiologia descritiva.
Palavras-Chave
Epidemiologia Descritiva; Doenças Transmissíveis; Doenças Emergentes.
Summary
This paper focuses on emergent and re-emergent diseases, presenting their definition, patterns
of ocurrence during the last 25 years, and the determinants of this ocurrence. It also
emphasizes the importance of descriptive epidemiology and its use in the investigation of
these health problems, especially in view of epidemiologists’ tendency to give less attention
to it. Finally, it mentions the challenges that emergent diseases bring to the practice of
Public Health and also for the methodological development of descriptive epidemiology.
These challenges are considered in three fields: biosecurity, surveillance systems and
descriptive epidemiology techniques.
Key Words
Descriptive Epidemiology; Transmissible Diseases; Emergent and Re-emergent Diseases.

* Publicado originalmente na Revista de Saúde Pública: Barata Barradas, R. de C. O desafio das doenças
emergentes e a revalorização da epidemiologia descritiva. Revista de Saúde Pública: 31(5): 531-7, out. 1997.
Reprodução autorizada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, editora da Revista de
Saúde Pública.

Informe Epidemiológico do SUS, 8(1):7-15, 1999.


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IESUS O Desafio das Doenças Emergentes e a Revalorização da Epidemiologia Descritiva

Introdução Ao mesmo tempo, na Epidemiologia,


As décadas de 40 e 50 assinalam, na o interesse dos investigadores desloca-
América, o momento da transição do perfil se, cada vez mais, para as doenças
de morbidade das doenças infecciosas e crônicas, desaparecendo progressivamen-
parasitárias para problemas crônicos e te, dos livros textos e publicações da área,
degenerativos. Na Epidemiologia, essa a referência à epidemiologia descritiva.
transição se fez acompanhar de uma Durante o período que vai do início
intensificação no desenvolvimento dos dos anos 70 ao início dos 90 o mundo
aspectos metodológicos, consolidando os passa por uma série de transformações,
chamados estudos analíticos, princi- extremamente rápidas, principalmente nas
palmente os estudos de coorte e caso- regiões não desenvolvidas da América,
controle, como os mais apropriados para Ásia e África, caracterizadas por intenso
a investigação dos fatores de risco processo de urbanização que resulta no
presentes na causalidade dessas doenças.1 aparecimento de grandes centros urbanos
Os sucessos obtidos, nas primeiras com mais de um milhão de habitantes em
décadas deste século, no controle das áreas onde anteriormente não haviam tais
doenças infecciosas e parasitárias através adensamentos populacionais; fluxos
dos programas de imunização em massa, migratórios decorrentes desse mesmo
do controle de vetores e do saneamento processo ou associados a guerras civis e
“Uma nova epidemia ambiental pareciam indicar que o perseguições políticas; incorporação
pode estar sendo conhecimento disponível era suficiente desordenada de tecnologias, que muitas
incubada agora para o manejo das doenças transmissíveis. vezes desestruturam formas tradicionais
mesmo em uma mega de enfrentamento dos problemas, sem que
A metodologia de inquérito epidemiológico
cidade, sem haja o correspondente desenvolvimento
saneamento e
e as técnicas da epidemiologia descritiva
utilizadas na caracterização desses social para sustentá-las; inúmeras
superpovoada, do oportunidades de comunicação, comércio
mundo não problemas, no âmbito populacional,
pareciam não necessitar de maiores e interações entre países de áreas
desenvolvido ou nas
anteriormente relativamente isoladas.3,4
florestas remotas da refinamentos.
África, América do A campanha de erradicação da Krause inicia seu artigo sobre as
Sul ou Ásia - regiões varíola, desenhada com base na novas e velhas epidemias afirmando que
esparsamente experiência adquirida durante a década de “Uma nova epidemia pode estar sendo
povoadas que 50 no programa de erradicação da incubada agora mesmo em uma mega
recentemente têm malária, auxiliou a incorporação das cidade, sem saneamento e superpovoada,
sido alteradas pela do mundo não desenvolvido ou nas
técnicas de vigilância epidemiológica aos
civilização florestas remotas da África, América do
moderna”.5
programas de controle de doenças
transmissíveis em todo o mundo. A Sul ou Ásia - regiões esparsamente
Agência norte-americana criada durante povoadas que recentemente têm sido
a campanha de erradicação da malária no alteradas pela civilização moderna”.5
sul dos Estados Unidos foi transformada Todas essas condições de
em Centro de Controle de Doenças e se transformação resultam em modificações
encarregou de implantar o sistema de no perfil de morbidade acarretando o
vigilância epidemiológica no país.2 aparecimento de novas doenças e agravos
À medida que as doenças à saúde e a alteração no comportamento
transmissíveis, sujeitas à vigilância vão epidemiológico de antigas doenças
se tornando mais raras, a importância tornando mais complexo o quadro
política desses órgãos destinados ao sanitário e, até certo ponto, derrubando a
controle também vai diminuindo. Assim, idéia de uma transição epidemiológica
na década de 80, sob o impacto de pensada como simples sucessão de fases
administrações republicanas nos Estados decorrentes fundamentalmente do
Unidos e no contexto da crise fiscal dos processo de envelhecimento populacional.
governos ocidentais, o corte das verbas Este ensaio tem por objetivo
destinadas à Saúde Pública promove um recolocar a importância da epidemiologia
progressivo desmantelamento dessas descritiva como ferramenta de
estruturas. conhecimento epidemiológico, face à

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crescente desvalorização que a mesma aumento ou decréscimo da doença ao


vem sofrendo quando cotejada com as longo dos anos; se uma área geográfica
técnicas da chamada epidemiologia tem freqüência da doença mais alta do
analítica. As investigações, nas quais a que outras e se as características das
caracterização da distribuição dos casos pessoas com a doença ou condição sob
segundo as categorias de tempo, espaço estudo distinguem-se daquelas sem ela”.
e pessoas foram determinantes para o Com o aprimoramento da metodo-
esclarecimento de doenças emergentes e logia dos estudos observacionais,
re-emergentes, exemplificam a impor- progressivamente, a epidemiologia
tância que a abordagem da distribuição descritiva foi perdendo lugar nos
das doenças deve ter no pensamento principais veículos de divulgação
epidemiológico. científica da área, embora permanecesse
Epidemiologia descritiva dominante em revistas de doenças
infecciosas. Os manuais de epidemiologia
Segundo Juan Samaja6 o principal
apresentam um conjunto de técnicas de
pressuposto de toda investigação
análises destinadas à mensuração de
científica é que o objeto de estudo seja
inteligível. Este a priori de inteligibilidade riscos, estudos de associação entre
contém, pelo menos, dois momentos fatores de risco e risco de doenças e
básicos: a descrição do objeto que visa formas de controlar confundimento e
identificar os componentes e caracterizá- interação. A mesma atenção não é dada
los, e a possibilidade de reelaboração às técnicas de análise de tendências
conforme um padrão de assimilação temporais e nem às técnicas de análise
compatível com a razão humana. espaciais, úteis para os estudos
Para poder descrever de maneira descritivos e de agregados ecológicos.
científica a realidade é preciso explicitar As abordagens descritivas, muitas
de que modo é feita a sua fragmentação, vezes são tratadas como “menos
segundo que categorias. Um enunciado científicas” e com menor grau de
descritivo tem duas finalidades: serve para sofisticação analítica. Entretanto, as
individualizar um elemento ou questões teóricas, conceituais e
componente do objeto e para atribuir-lhe metodológicas implicadas nesses estudos
certa propriedade. As proposições são tão ou mais desafiadoras do que
descritivas tem como valores conceitos aquelas relativas aos demais tipos de
classificatórios, conceitos comparativos, desenhos de investigação utilizados em
conceitos métricos, etc... 6 estudos epidemiológicos.
Na epidemiologia um passo Doenças emergentes e reemergentes
essencial no estudo de uma doença é
“descrever precisamente sua ocorrência O Centers for Disease Control
na população”. 7 Essa descrição tem (CDC) define doenças emergentes como
como categorias básicas a distribuição aquelas doenças infecciosas cuja
temporal, a distribuição espacial e a incidência aumentou nas duas últimas
distribuição segundo atributos pessoais décadas ou tendem a aumentar no futuro.
visando identificar o padrão geral de No sentido de especificar melhor essa
ocorrência e os grupos sob risco. A definição, um tanto vaga, são mencionadas
descrição metódica do comportamento da diferentes circunstâncias que podem
doença permite a elaboração de hipóteses caracterizar a emergência de novos
“causais” com base na ocorrência usual problemas de saúde.9
de doenças conhecidas e possibilita o uso A primeira dessas circunstâncias
da analogia tanto no estudo das doenças corresponde ao surgimento ou identifi-
novas quanto na explicação de doenças cação de novos agentes etiológicos,
anteriormente conhecidas. anteriormente desconhecidos, como por
Segundo Lilienfeld8 “o epidemiolo- exemplo, o vírus da síndrome de
gista está primariamente interessado na imunodeficiência adquirida (HIV). Outra
ocorrência da doença por tempo, lugar e situação também enquadrada nessa
pessoas. Ele tenta determinar se houve definição é a relativa ao aumento da

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incidência e disseminação de doenças que populacionais submetidos a inúmeros


anteriormente estavam controladas como risco, tais como os moradores de rua, os
a cólera. Outras doenças têm sua migrantes e refugiados das guerras civis,
incidência aumentada em decorrência do os usuários de drogas e grupos
crescimento dos grupos expostos, tais marginalizados dos grandes centros
como, imunossuprimidos, idosos, urbanos, etc...
pacientes institucionalizados, moradores Alguns exemplos de doenças emergentes e
de rua, migrantes, crianças em berçários o papel da epidemiologia descritiva em sua
e escolas maternais, pobres em geral. elucidação
Agentes microbianos resistentes aos
desinfetantes como cloro e aos Ainda no início da década de 60, a
medicamentos representam outro ocorrência de um surto de febre
conjunto de doenças que podem ser hemorrágica no interior da Bolívia
definidas como problemas emergentes. chamou a atenção dos pesquisadores do
Completam a relação as doenças CDC levando à identificação de um novo
produzidas pela exposição a animais tais agente etiológico: o vírus Machupo. As
como, a infeção por hantanvirus e a investigações conduzidas naquela época
doença de Lyme; a disseminação das permitiram a identificação do agente mas
doenças tropicais como a malária, o não foram capazes de esclarecer
dengue, a tripanosomíase americana; e, totalmente o mecanismo de transmissão.
aquelas doenças cujo aumento de Aparentemente haviam indícios de
incidência decorre diretamente de uma transmissão direta de pessoa a pessoa. 2,11
vigilância epidemiológica ineficiente ou Em 1967, um novo surto provocado
insuficiente.4,9 por outro vírus causador de doença
O CDC (Centers for hemorrágica é descrito em Marburg, na
Disease Control) Os novos agentes etiológicos têm,
Alemanha. A investigação epidemiológica
define doenças provavelmente sua origem nas amplas
demonstrou que as fontes de infecção
emergentes como transformações sociais observadas nos
desse novo agente eram macacos
aquelas doenças últimos 25 anos, acompanhadas de
importados de Uganda para propósitos
infecciosas cuja alterações importantes em vários
incidência aumentou
científicos. A transmissão ocorreu por
ecosistemas. As transformações na
nas duas últimas contato dos casos primários com sangue,
dinâmica populacional decorrentes do
décadas ou tendem a tecidos e secreções de animais
processo de envelhecimento, do
aumentar no futuro. infectados, e os casos secundários foram
crescimento populacional em determina- observados em profissionais de saúde que
das condições, da mobilidade e da trataram dos casos primários. Em 1975,
diferenciação e exclusão de determinados novo surto da doença é identificado em
grupos contribuem para o surgimento de Johanesburg. 2,12
novos agentes etiológicos com caracte- No segundo semestre de 1975 nova
rísticas insuspeitas de infectividade, epidemia de doença hemorrágica aparece
patogenicidade e virulência.10 no Zaire e em seguida no Sudão. A
Os novos comportamentos investigação epidemiológica conduzida
epidemiológicos observados para doenças por pesquisadores da Organização
antigas, por sua vez, indicam alterações Mundial de Saúde (OMS) e do CDC
importantes na resistência, infectividade concluiu tratar-se de uma nova doença
e patogenicidade de vários agentes produzida por um vírus que recebeu a
etiológicos, relacionadas a habilidade e denominação de Ebola, nome do rio
versatilidade genética de gens carregados existente na região onde a doença
por elementos extracromossômicos tais apareceu. Duas outras epidemias
como plasmídeos e fagos, transferidos de ocorreram em 1986 e 1995 no continente
organismo para organismo por conju- africano. A investigação realizada permitiu
gação, transdução ou transformação, a caracterização da doença, do agente
acelerando assim as mutações. 5 Outro etiológico, do mecanismo de transmissão,
aspecto as ser considerado na mudança a identificação dos grupos de risco, mas,
das características epidemiológicas de até o momento, não foi possível
várias doenças diz respeito a novas esclarecer qual é o reservatório do vírus
situações de vida de segmentos na natureza.2,13

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Entre julho de 1979 e abril de 1981 quadro hemorrágico e também


foram registrados 11 casos graves de investigações epidemiológicas que possam
pneumonia por Pneumocystis carinii em esclarecer as circunstâncias nas quais tais
jovens residentes em New York, sem epidemias surgem. 21 Outra doença
referência a quadros anteriores de relativamente conhecida que vem
imunodeficiência. Esses indivíduos eram merecendo atenção é a infeção pelo vírus
usuários de drogas injetáveis e/ou da hepatite B, principalmente sua
homossexuais.14 Entre novembro de 1980 ocorrência entre homossexuais mascu-
e novembro de 1981 foram comunicados linos, usuários de drogas endovenosas e
cinco casos de pneumonia por P. carinii profissionais de saúde, com especial
em indivíduos homossexuais não referência aos cirurgiões dentistas.22,23,24,25
relacionados entre si, residentes em São A questão da resistência a drogas
Francisco. 15 A publicação desses casos antimicrobianas constitui-se em um dos
no MMWR do CDC em dezembro de motivos mais importantes de alteração do
1981 chama a atenção para a possibilidade comportamento epidemiológico de
de que uma nova doença estivesse doenças, acarretando aumento de
atingindo a comunidade de homossexuais prevalência e letalidade para uma série de
masculinos, e dá início a investigação que problemas que anteriormente eram
levará à caracterização da síndrome da considerados sob controle. Desde a
imunodeficiência adquirida (AIDS). constatação da existência de Staphilo-
Muito embora o vírus só tenha sido coccus aureus resistentes, na década de
identificado em 1984, as investigações 50, vários surtos de infeções hospitalares
realizadas a partir do início dos anos 80 e em comunidade, tem sido associados a
levam ao esclarecimento dos mecanismos bactérias, vírus e parasitas resistentes. 26
de transmissão mais importantes. Em A resistência aos antimicrobianos
abril de 1983 é publicado um estudo sobre está associada à propensão à troca de
o acúmulo de casos nos bairros com material genético entre cepas, resistência
maior população “gay” em São Francisco, intrínseca de parte das cepas, capacidade
reforçando a caracterização inicial de de sobrevivência em ambientes diversos,
transmissão entre homossexuais ocupação de novos nichos ecológicos,
masculinos.16 No ano seguinte é publicado aumento da infectividade e maior
um estudo de “clusters” reforçando a capacidade de colonização por parte de
idéia de uma doença transmissível; 17 e, certos agentes. Ao lado dessas questões
outro contendo as primeiras evidências relacionadas com os próprios agentes há
de transmissão por transfusão aquelas relativas ao “ambiente” e que
sangüínea.18 Após a identificação do HIV incluem a presença de fontes de infeção
e o desenvolvimento dos primeiros testes de cepas resistentes, uso prolongado de
sorológicos, são publicados estudos antimicrobianos, uso de subdosagens de
sobre a disseminação da infeção em antimicrobianos, introdução constante de
populações africanas, para as quais o novas drogas. Finalmente, cabe destacar
perfil epidemiológico mostra-se diferente, o comportamento dos hospedeiros e suas
evidenciando a importância da características de vida que favorecem
transmissão heterossexual e por uso de infeções e dificultam o tratamento
agulhas contaminadas.19,20 adequado tais como as aglomerações
Além das doenças cujos agentes intradomiciliares, os moradores de rua,
etiológicos são desconhecidos, as doenças o envelhecimento populacional, uso de
emergentes incluem velhas doenças que drogas injetáveis, desnutrição, destruição
apresentam novos comportamentos da infraestrutura de saúde pública.26
epidemiológicos. Dentre elas algumas Um dos problemas emergentes que
adquirem especial relevância nos últimos mais tem preocupado as autoridades
30 anos, como as epidemias de dengue sanitárias é o aumento da incidência da
hemorrágico em países asiáticos e na tuberculose, em diferentes grupos
América Central, motivando inúmeras populacionais socialmente excluídos
investigações visando o esclarecimento como os usuários de drogas injetáveis e
dos mecanismos fisiopatológicos do os moradores de rua, mas também nos

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profissionais de saúde expostos aos Desafios face às doenças emergentes e re-


contágio. 27 A cada ano há cerca de 8 emergentes
milhões de casos novos e 2,9 milhões de A presença das doenças emergentes
óbitos no mundo. Estima-se que 1/3 da e reemergentes coloca uma série de
população mundial esteja infectada.28 O desafios para a Saúde Pública em geral, e
problema de multiresistência às drogas para a Epidemiologia, em particular. O
veio agravar ainda mais o aumento de primeiro deles diz respeito às normas de
incidência que já vinha ocorrendo, biossegurança. Há um risco de que
agentes etiológicos novos e com alta
acometendo principalmente pacientes
letalidade possam vir a ser utilizados como
com AIDS.29 Cerca de 1/3 dos casos de
armas biológicas em ataques terroristas,
tuberculose em New York são produzidos o que vem mobilizando as forças de
por cepas multiresistentes e a letalidade segurança dos países desenvolvidos. Mas,
entre eles varia de 40 a 60% igualando-se mais importante do que esse perigo é a
àquela observada entre casos não possibilidade bastante real do tráfico
tratados. Estudos realizados pelo CDC, global de viroses em poucas horas, de um
entre 1982 e 1986, identificaram 9% de continente a outro através das viagens
cepas resistentes em pacientes virgens de aéreas.31
Um dos problemas
tratamento e 23% em pacientes Além das questões já mencionadas,
emergentes que mais previamente tratados.28 As novas técnicas a biosegurança tem a ver também com
tem preocupado as de biologia molecular aplicadas em controle da importação de animais para
autoridades investigações de casos e comunicantes de experimentação, principalmente primatas,
sanitárias é o tuberculose, permitem a identificação de que podem ser reservatórios ou fontes de
aumento da muitos clusters que as técnicas anteriores infeção de agentes novos. As condições
incidência da não eram capazes de identificar. Em um de transporte, acomodação e manutenção
tuberculose, em desses animais devem ser objeto de
estudo de 688 casos notificados em São
diferentes grupos vigilância sanitária. Do mesmo modo, o
populacionais Francisco foram encontrados 326
padrões distintos (finger print) dos quais manejo de suspeitos clínicos em hospitais
socialmente excluídos
necessita de regras que protejam os
como os usuários de 44 foram identificados em mais de um
drogas injetáveis e os
profissionais de saúde e o restante da
caso. A investigação desses clusters
moradores de rua, clientela. Restam ainda as condições e
permitiu definir como fatores de risco ser
mas também nos regras de segurança em laboratórios
homem, jovem, negro, residente em um
profissionais de responsáveis pela identificação dos
bairro com altas taxas de pobreza, em
saúde expostos aos agentes etiológicos, visando não apenas a
contágio.27 tratamento para AIDS. Os casos índices segurança dos profissionais e técnicos,
geralmente são pacientes que abandona- mas também a proteção da comunidade.
ram o tratamento e a exposição ocorreu Outro desafio importante é o
em enfermarias ou clínicas de tratamento aprimoramento dos sistemas de
para aidéticos.30 vigilância epidemiológica tornando-os
Em todos esses exemplos a aptos a detectar precocemente o
abordagem da epidemiologia descritiva foi aparecimento de algo inusitado ou as
fundamental para identificar as tendências modificações no comportamento habitual
ascendentes nas taxas de incidência, a de determinadas doenças. Na avaliação da
formação de clusters espaciais ou Federação de Cientistas Americanos 3 a
relacionais, os grupos mais afetados, os capacidade existente para vigilância
mecanismos de transmissão envolvidos, epidemiológica nos EUA é fragmentada,
etc... A epidemiologia descritiva cumpre descoordenada e organizada apenas com
mais do que a etapa exploratória da vista às doenças conhecidas. Entretanto,
pesquisa. As distribuições temporais, o CDC esteve envolvido na maioria, senão
espaciais e segundo atributos pessoais em todas, as investigações de novas
permitem caracterizar o comportamento doenças nos últimos 30 anos, em todo o
da doença evidenciando suas alterações mundo.2
ao longo do tempo e indicando novas O fortalecimento dos programas de
estratégias de controle. vigilância epidemiológica implica

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investimentos em infra-estrutura criando excelência capazes de: detectar, investigar


as condições necessárias para a atuação e monitorar patógenos emergentes, as
oportuna, adequada e na amplitude doenças causadas por eles e os fatores
necessária; o estabelecimento de um ou circunstâncias relacionados à
sistema de informações e principalmente, emergência; integrar os conhecimentos
a capacitação técnica. A capacitação clínicos, laboratoriais e epidemiológicos;
técnica abrange pelo menos três tornar disponível a informação necessária
componentes: capacitação clínica para e desenhar estratégias de controle e
identificação sindrômica que possibilite prevenção; capacitar os recursos
desencadear as investigações laboratoriais humanos necessários para a execução dos
e epidemiológicas; capacitação laboratorial programas de vigilância e para as
para diagnóstico de novos agentes investigações de campo.3,4,9
etiológicos na vigência de surtos e Além dessas atividades mais
incorporação de novas técnicas da diretamente voltadas para a execução de
biologia molecular que permitam a um programa de controle vale também
identificação mais refinada dos agentes destacar a necessidade de aprimoramento
etiológicos; e, capacitação epidemiológica das técnicas e métodos da epidemiologia
para realização de investigações de campo descritiva que é a ferramenta intelectual
e monitoramento adequado do comporta- principal na investigação desses
mento epidemiológico das doenças. problemas de saúde. Por epidemiologia
O terceiro desafio que se apresenta descritiva pretende-se designar a
é a revalorização da abordagem da abordagem das características epidemio-
epidemiologia descritiva com o lógicas da doença na coletividade, sem
desenvolvimento de métodos e técnicas com essa denominação estar conotando
de análise mais apropriados. Há um a descrição dos fenômenos destituída da
conjunto de técnicas de análise de devida interpretação.
tendências temporais que podem ser úteis Referências Bibliográficas
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utilização mais freqüente, certamente 1. Macmahon B, Pugh TF. Epidemiology.
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para distribuições espaciais podem de um mundo em desequilíbrio. Rio
fornecer novas ferramentas para a de Janeiro: Editora Nova Fronteira;
descrição de doenças em popula- 1995.
ção.36,37,38,39 O refinamento conceitual das
categorias utilizadas para a caracterização 3. FEDERATION OF AMERICAN
dos grupos mais afetados também poderão SCIENTISTS. Global programm to
aumentar o poder explicativo dos estudos monitor emerging diseases. (mímeo)
descritivos. 1995.
O interesse despertado pelas doenças 4. MMWR Addressing emerging
emergentes pode ser o estímulo para que infectious diseases threats: a
a falsa dicotomia entre estudos descritivos prevention strategy for the U.S.
e analíticos se desfaça. Muitos autores já Executive summary 1994; 43:1-17.
demonstraram a inadequação desses 5. Krause RM. The origin of plagues: old
termos e, principalmente, o empobreci- and new. Science 1992; 257: 1073-
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pesquisa epidemiológica.6,40,41 6. Samaja J. Epistemologia y metodo-
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um sistema mundial de vigilância Editorial Universitaria de Buenos Aires;
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