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ANÁLISE E CRÍTICA DO LIVRO “EU SOU CAMILLE

DESMOULINS”, de Hermínio C. Miranda e Luciano dos


Anjos.

Observação1: os grifados, sublinhados, negritos,


nas citações de textos de outros autores, são de
nossa autoria. Textos [entre colchetes] são
inserções explicativas, de nossa autoria.
Observação2: algumas citações ilustrativas são
relativamente longas. A intenção é mostrar
claramente o pensamento do autor, evitando
distorções, o que é comum ocorrer com
referências curtas.
Observação3: alusões à reencarnação e
mediunidade são inevitáveis na presente análise.
Conseqüentemente, referências ao espiritismo
também serão inevitáveis. Não há qualquer
intento em agredir crenças, as quais respeitamos
com muita seriedade. Discutimos, sim, idéias,
proposições, teorias.

OBJETIVO: analisar a alegação de que as recordações


experienciadas por Luciano dos Anjos, sob o acompanhamento de
Hermínio Miranda, demonstram um autêntico caso de
reencarnação.
COMENTÁRIOS INICIAIS

Os protagonistas da obra sob apreciação são Hermínio Correa de


Miranda e Luciano dos Anjos. O evento teria ocorrido durantes alguns meses,
no ano de 1967 e, segundo os autores, foi gravado em fita e das gravações
produziu-se o livro.

Tanto Hermínio quanto Luciano são pessoas dotadas de elevada cultura.


Hermínio domina quatro ou cinco idiomas, escreveu muitos livros, nos quais
mostra familiaridade com variados assuntos. Luciano atuou como jornalista por
longo tempo e também escreveu diversas obras. Portanto, estamos lidando
com pessoas do mais alto gabarito, cuja formação intelectual é inatacável e, ao
que tudo indica, são figuras ilibadas, não dadas a dissimulações ou fraudes
conscientes.

Desse modo, as apreciações que faremos não têm por objetivo denegrir
a imagem dos autores, sim avaliar a experiência de regressão que, segundo
defendem, atestaria indubitavelmente um evento reencarnacionista. O objetivo
deste trabalho é verificar se tal declaração é suficientemente firme para ser
acatada sem receios.

Antes de falarmos da experiência propriamente dita, necessário se faz


conhecer a metodologia utilizada, bem como a base teórica que ampara a
prática regressionista, nos moldes praticados por Hermínio Miranda. Estas
estão detalhadas na obra “A Memória e o Tempo”, de autoria de Hermínio, na
qual, logo no início, se lê:

Regressão da memória é o processo espontâneo ou provocado, por


meio do qual, o espírito encarnado ou desencarnado fica em
condições de retornar ao passado, na vida atual ou em existências
anteriores, próximas ou remotas.

Estou bem certo de que a definição proposta pressupõe aceitação de


alguns dos preceitos básicos da doutrina espírita, organizada por
Allan Kardec na segunda metade do século XIX, na França. (p. 13,
14)

Aqui deparamos um dificultador: para se aceitar a definição proposta


por Hermínio necessário se faz aceitar pressupostos da doutrina espírita.
O que constitui um problema e uma limitação. Hermínio Miranda assevera que
a melhor maneira (e talvez a única aceitável) de explicar o fenômeno seja por
meio da teoria espírita. Como se pode ver no trecho a seguir:

“Os pressupostos implícitos na definição oferecida não são...invenção


do espiritismo nem surgiram de revelações transcendentais
revestidas de caráter místico ou dogmático, a exigir sustentação da fé
cega. São princípios eminentemente lógicos que podemos aceitar sem
nenhuma forma de violência à razão e que têm sido exaustivamente
pesquisados e confirmados por inúmeros investigadores qualificados.
(...)

Sugerimos, portanto, aos mais renitentes e obstinados negadores que


os aceitem, provisoriamente, como hipóteses de trabalho e os
submetam aos testes e aplicações que julgarem necessários. Ainda
que não os aceitem, porém, não há como negar que eles estão
implicitamente contidos na visão integrada do fenômeno da
regressão da memória.

Estão, assim, embutidos na estrutura do fenômeno os seguintes


conceitos fundamentais que aqui alinhamos como premissas básicas:

- existência do espírito, ser consciente em evolução.

- existência de um corpo energético, organizador biológico, a que


chamamos de perispírito.

- preexistência do espírito à sua vida na carne.

- sobrevivência do espírito à morte do corpo físico.

- sua permanência por algum tempo numa dimensão que escapa aos
nossos sentidos habituais.

- seu retorno em novo corpo físico para nova existência na carne.

- sua responsabilidade pessoal pelos atos praticados, no bem ou no


mal. (p. 14)

Essas “exigências” dificultariam ao investigador não-espírita a


averiguação do caso, pelo menos dentro da abordagem realizada pelo autor.
Praticantes do regressionismo, não adeptos da doutrina espírita, teriam
dificuldades em acatar alguns dos quesitos especificados, notadamente a
existência do perispírito. De certo modo, o que Hermínio Miranda intima é mais
ou menos o seguinte: analisem a experiência de Luciano dos Anjos e
constatem a evidência demonstrada da reencarnação, isso desde que o façam
segundo as suposições seguidas pela doutrina espírita.

A afirmação de que os itens relacionados acima integram o fenômeno


regressionista seria, em parte, aceitável se fosse acatada aprioristicamente a
idéia de que as lembranças são autênticas reminiscências. A investigação que
se pretenda ampla deve levar em conta outras hipóteses. Uma delas seria a de
que as recordações sejam elaborações mentais do paciente, extraídas de seus
próprios conhecimentos, (conhecimentos obtidos na existência atual).

Como forma de melhor compreender o assunto, consideramos


conveniente distinguir três modalidades de regressão:

1. Regressão de memória (que recuperaria lembranças da


existência atual);

2. Regressão ao útero materno (supostas recordações da vida


intrauterina);

3. Regressão a vidas passadas (alegadas lembranças de outras


vidas).

Contudo, Hermínio Miranda utiliza a expressão “regressão da memória”


indistintamente, isto é, sem diferenciar dentre as modalidades aqui referidas.
No presente estudo, estaremos, pois, investigando um episódio de regressão
a vidas passadas.
O MÉTODO

A técnica hipnótica de Hermínio, aplicada para obter lembranças de


vidas passadas, conjuga passes “magnéticos” com sugestões verbais.

A sugestão, por meio de comandos imperativos, na hipnose é prática


consagrada. Há técnicas de indução sem a utilização de instruções verbais –
uma das principais, conhecida por letargia −, contudo, o processo hipnótico
global não prescinde dos comandos ou induções por meio da voz. E é fácil
compreender porque tal se dá: o objetivo de uma sessão de hipnose é obter
determinada reação, seja agir de certo modo, ou avivar a memória, ou
despertar emoções. Tais objetivos se realizam direcionando a mente
hipnotizada com palavras adequadas.

O passe, dito magnético, tem uma função específica. No espiritismo é


utilizado como forma de transmitir energia terapêutica de uma pessoa para
outra. Alguns teóricos espíritas asseveram que, em realidade, o passe não
transfere energia vital do agente ao paciente; em vez disso, promove o
reequilíbrio da circulação energética. O processo se daria pela interseção dos
campos magnéticos dos envolvidos, conforme se vê na declaração de Paulo
Henrique de Figueiredo, na revista Universo Espírita:

“Está equivocado quem imagina a técnica do Magnetismo Animal


como sendo a emissão de um fluido das mãos do médico com o poder
de curar o doente e envolvê-lo. Não é essa a teoria de Mesmer. Por
conseqüência, não é a teoria espírita.” (Universo Espírita, nº 49, p.
37) [Obs. No original consta efetivamente a palavra “médico”,
porém temos a impressão de que o autor pretendia grafar
“médium”]

Nada obstante, a maioria dos que fazem uso do magnetismo espírita o


entendem como transferência de energia. Alguns dos escritos de Kardec
transmitem a idéia de cessão de energia. E este parece ser, igualmente, o
pensamento de Hermínio Miranda, conforme se vê no seguinte trecho de sua
autoria.

Magnetismo, a nosso ver, é a técnica de desdobramento provocado


por meio de passes e/ou toques, enquanto a hipnose ficaria adstrita
aos métodos da sugestão verbal, transmitindo-se as instruções
ordenadamente, em cadência e tom de voz adequados. Ainda mais:
os dois métodos podem ser combinados, simultâneos, cabendo ao
operador transmitir as instruções para o relaxamento ao mesmo
tempo em que satura de energias o sensitivo, com passes
apropriados.” (A Memória e o Tempo. P. 81)

Diversas escolas advogam que passes manuais podem promover


benefícios variados. Sem pensar muito podemos lembrar o johrei, utilizado na
Igreja Messiânica; a prática Reiki; a imposição de mãos em algumas igrejas
protestantes; certos exercícios de magia, que atribuem poderes a gestos
manuais, etc. Ainda que variem as explicações sobre o que seja o passe,
dependendo do grupo religioso que o pratica, todos admitem que o
procedimento acarreta benefícios. A Bíblia fala da imposição de mãos, aplicada
concomitantemente à oração, como se vê em Tiago, capart. 5:

“Está doente algum de vós? Chame os anciãos da igreja, e estes orem


sobre ele, ungido-o com óleo em nome do Senhor;”

Também, no livro de Hebreus, capart. 6, encontramos:

“Pelo que deixando os rudimentos da doutrina de Cristo,


prossigamos até a perfeição, não lançando de novo o fundamento de
arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e o ensino sobre
batismos e imposição de mãos, e sobre ressurreição de mortos e juízo
eterno.”

A realidade, contudo, não mostra que os passes sejam dotados de


poderes extraordinários, quase mágicos, como alguns supõem. Os adeptos
afirmam que a técnica de passes magnéticos é praticada desde o primórdio da
civilização, entre egípcios, caldeus, gregos. Contudo, a imposição de mãos na
antiguidade não estava atrelada à teoria do “magnetismo animal”. O passe
pode ser benéfico em diversas situações, mas os efeitos salutares, inclusive
terapêuticos, são resultado da sugestão positiva que o procedimento induz.

As concepções sobre o passe magnético, no caso espírita, constituem


herança do médico austríaco Franz Anton Mesmer. Esta figura tem uma
história singular. Mesmer contribuiu para erigir um dos pilares do pensamento
kardecista, uma vez que a teoria do “magnetismo animal” foi inteiramente
acatada por Kardec, na qual baseou expressiva parcela de seus
ensinamentos.

Hermínio Miranda, no livro “A Memória e o Tempo”, apresenta ilustrativa


exposição sobre o magnetismo e sobre a hipnose, desde Mesmer até a
atualidade. A explanação de Hermínio é longa para ser reproduzida nesta
apreciação. À medida que nosso comentário evoluir, faremos referências a ela,
principalmente dos pontos que consideramos discutíveis. Em linhas gerais, o
que Hermínio apresentou está coerente com os melhores estudos do assunto;
discordamos do tratamento privilegiado − a nosso ver excessivo e com pouca
base −, que dá à teoria do passe magnético. Recomenda-se aos interessados
em acompanhar o presente estudo, a leitura dos livros citados (A Memória e o
Tempo e Eu sou Camille Desmoulins).

A hipótese do “magnetismo animal” não foi comprovada


experimentalmente. Inexistem evidências de que haja, nos corpos vivos, algo
como uma “circulação magnética”. Apesar disso, tal conjectura é cultivada por
diversos segmentos religiosos. Para o kardecismo, por exemplo, o magnetismo
seria a canalização produtiva do “fluido universal”. Fluido este que permanece
no campo das conjecturas, uma vez que não foi detectado por experimentos
científicos. Hermínio Miranda, por outro lado, tem opinião peculiar a respeito:

“Embora para muitos autores de renome, como Lewis Spence,


magnetismo e hipnose sejam a mesma coisa com nomes diferentes,
preferimos aqui manter a distinção para fins didáticos, embora os
resultados práticos de ambos sejam idênticos ou muito semelhantes.
Magnetismo, a nosso ver, é a técnica de desdobramento provocado
por meio de passes e/ou toques, enquanto a hipnose ficaria adstrita
aos métodos da sugestão verbal, transmitindo-se as instruções
ordenadamente, em cadência e tom de voz adequados. Ainda mais:
os dois métodos podem ser combinados, simultâneos, cabendo ao
operador transmitir as instruções para o relaxamento ao mesmo
tempo em que satura de energias o sensitivo, com passes
apropriados.” (A Memória e o Tempo. P. 81)

Para Hermínio Miranda, os passes permitem ao espírito “desdobrar-se”,


o que significa isso? Segundo certa teoria, em algumas circunstâncias a alma
(juntamente com o perispírito) consegue descolar do “invólucro carnal” e
realizar peripécias que normalmente não lhe estariam acessíveis.

Allan Kardec apresentou amplas considerações a respeito do fluido


magnético em várias de suas obras, o tema tinha para ele importância capital,
ilustramos com a seguinte declaração, extraída de “A Gênese”.

32. - São extremamente variados os efeitos da ação fluídica sobre os


doentes, de acordo com as circunstâncias. Algumas vezes é lenta e
reclama tratamento prolongado, como no magnetismo ordinário;
doutras vezes é rápida, como uma corrente elétrica. ... Todas as
curas desse gênero são variedades do magnetismo e só diferem pela
intensidade e pela rapidez da ação. O princípio é sempre o mesmo: o
fluido, a desempenhar o papel de agente terapêutico e cujo efeito se
acha subordinado à sua qualidade e a circunstâncias especiais.
33. - A ação magnética pode produzir-se de muitas maneiras:

1º pelo próprio fluido do magnetizador; é o magnetismo


propriamente dito, ou magnetismo humano, cuja ação se acha
adstrita à força e, sobretudo, à qualidade do fluido;

2º pelo fluido dos Espíritos, atuando diretamente e sem


intermediário sobre um encarnado, seja para o curar ou acalmar um
sofrimento, seja para provocar o sono sonambúlico espontâneo, seja
para exercer sobre o indivíduo uma influência física ou moral
qualquer. É o magnetismo espiritual, cuja qualidade está na razão
direta das qualidades do Espírito;

3º pelos fluidos que os Espíritos derramam sobre o magnetizador,


que serve de veículo para esse derramamento...

34. - É muito comum a faculdade de curar pela influência fluídica e


pode desenvolver-se por meio do exercício; mas, a de curar
instantaneamente, pela imposição das mãos, essa é mais rara e o seu
grau máximo se deve considerar excepcional...

Em “O Livro dos Médiuns” encontramos outra informação ilustrativa:

131. Esta teoria nos fornece a solução de um fato bem conhecido em


magnetismo, mas inexplicado até hoje: o da mudança das
propriedades da água, por obra da vontade. O Espírito atuante é o
do magnetizador, quase sempre assistido por outro Espírito. Ele
opera uma transmutação por meio do fluido magnético que, como
atrás dissemos, é a substância que mais se aproxima da matéria
cósmica, ou elemento universal. Ora, desde que ele pode operar uma
modificação nas propriedades da água, pode também produzir um
fenômeno análogo com os fluidos do organismo, donde o efeito
curativo da ação magnética, convenientemente dirigida.
Sabe-se que papel capital desempenha a vontade em todos os
fenômenos do magnetismo. Porém, como se há de explicar a ação
material de tão sutil agente? A vontade não é um ser, uma
substância qualquer; não é, sequer, uma propriedade da matéria
mais etérea que exista. A vontade é atributo essencial do Espírito,
isto é, do ser pensante. Com o auxílio dessa alavanca, ele atua sobre a
matéria elementar e, por uma ação consecutiva, reage sobre seus
compostos, cujas propriedades íntimas vêm assim a ficar
transformadas.
Tanto quanto do Espírito errante, a vontade é igualmente atributo
do Espírito encarnado; daí o poder do magnetizador, poder que se
sabe estar na razão direta da força de vontade. Podendo o Espírito
encarnado atuar sobre a matéria elementar, pode do mesmo modo
mudar-lhe as propriedades, dentro de certos limites. Assim se explica
a faculdade de cura pelo contacto e pela imposição das mãos,
faculdade que algumas pessoas possuem em grau mais ou menos
elevado...

Para Kardec e, parece-nos, para a maioria dos praticantes do


espiritismo, o passe magnético teria efetiva aplicação terapêutica. Hermínio
Miranda acrescenta-lhe outra qualidade, conforme dito, o passe teria a
peculiaridade de promover o “desdobramento” do perispírito. À página 70 de
“A Memória e o Tempo” Hermínio explica sua concepção de desdobramento:
(...)separação temporária e controlada entre o perispírito e o corpo
físico, no ser encarnado(...)

Também, à página 92, lemos:


“Seja pelo passe magnético, pela fixação do olhar, pela sugestão
verbal ou pelos outros processos de indução, tanto quanto pela
anestesia química, o fenômeno psicossomático é o mesmo, ou seja, o
desdobramento do ser em seus componentes básicos – desprende-se o
espírito com o seu corpo energético, perispiritual ou que outro nome
lhe tenha sido aplicado, enquanto o corpo físico permanece em
repouso. Como a sensibilidade está no perispírito, e não no corpo
físico, este se torna insensível à dor, se o sono magnético for
suficientemente profundo para produzir a separação adequada.”

Quem conheça um pouquinho das teorias sobre a hipnose notará que a


suposição apresentada por Hermínio Miranda é particularíssima e traz
alegações de difícil defesa. A afirmação de que a sensibilidade do corpo está
no perispírito é deveras complicada. Seria intrincado conseguir-se bons
argumentos para amparar tal idéia. Parece que, para Hermínio Miranda, a
insensibilidade tátil é conseqüência obrigatória da indução hipnótica e seria
demonstração do desdobramento. Nada menos veraz: dependendo da forma
como for sugestionado, o paciente pode apresentar sensibilidade exacerbada,
em vez de analgesia.
Outra idéia confusa é a do “desacoplamento” do espírito, durante a
hipnose. Tal suposição é fruto de antigas conjeturas. No passado era comum a
crença de que, durante o sono, a alma se desprendia do corpo. Os sonhos
seriam a confirmação de que o fenômeno ocorria. Kardec incorporou essa
primitiva idéia à doutrina que elaborou. No entanto, os estudos sobre o sonho
passam longe de tal opinião. É certo que existem agremiações propondo a
capacidade de se viajar no “universo astral”. E parece que essas viagens são
gratificantes, porque não poucas pessoas se dedicam a excursões da espécie.
Entretanto, é fácil demonstrar que o processo se passa inteiramente na mente
do praticante. Alguns testes, relativamente simples, deixam claro o fato. No
caso de regressão de Luciano dos Anjos, o desligamento do perispírito foi
apresentado por Hermínio como um fato inconteste. Em momento algum ele se
propôs a verificar se o espírito do regredido se encontraria efetivamente fora de
sua morada carnal. Adiante, quando examinarmos as regressões, falaremos
mais do assunto.
A nosso ver, não obstante o brilhante trabalho que o livro “A Memória e o
Tempo” representa, encontramos alguns equívocos sérios no pensamento de
Hermínio Miranda. À frente resumiremos o pontos principais, no título “ ALGUNS
PONTOS CONTROVERSOS NO PENSAMENTO DE HERMÍNIO MIRANDA.”

Falemos um pouco a respeito de Franz Anton Mesmer, pois este nome


está ligado ao conceito kardecista de magnetismo (conceito este que, conforme
foi dito, é mantido ainda na atualidade).
MESMER (1733-1815)

O austríaco Franz Anton Mesmer desde tenra idade revelou pendores


intelectuais incomuns. A família esforçou-se para que ele tivesse a melhor
educação possível. O resultado do investimento certamente não frustou os
familiares, Mesmer formou-se em filosofia, medicina e direito. Também estudou
música e era versado em astrologia. Afora essas especializações, que lhe
garantiriam a classificação de sábio segundo os padrões de sua época,
mesmer estava inclinado a descobrir novas formas de praticar a medicina. Ele
se interessara pela teoria de Paracelso (1493-1541), e sucessores, que
postulara a existência de um fluido universal, por meio do qual seria possível
um homem exercer influência sobre outros homens e sobre objetos
inanimados. Paracelso conquistara grande respeito em sua época e, após sua
morte, diversos pesquisadores deram continuidade às suas idéias.
Também a teoria hipocrática de que a doença era resultante do
desequilíbrio dos fluidos orgânicos era simpática ao médido austríaco. Por
outro turno, Mesmer acompanhou o trabalho de certo sacerdote exorcista,
chamado Gassner. Desse contato resultou a aceleração das cogitações do
austríaco e fixou o rumo dos estudos que conduziria a partir de então. Johann
Josef Gassner era um clérico, contemporâneo de Mesmer, famoso pelas curas
que obtinha por meio da expulsão de demônios dos corpos doentes. O
sacerdote, durante os rituais, trajava-se escalafobeticamente e carregava um
enorme crucifixo de metal. Diante de um suposto possesso, Gassner arremetia-
se em direção ao infeliz, vociferando palavras em latim e brandindo o crucifixo,
como se fora uma espada preste a desferir um golpe. Os pacientes ficavam
alucinados, a maioria caía desacordada, outros entravam em convulsão.
Alguns estudiosos da história do hipnotismo creditam a Gassner, e não a
Mesmer, o pioneirismo da prática hipnótica, uma vez que conseguia com muita
freqüência deixar seus pacientes num estado típico dos hipnotizados.
Mesmer analisou o trabalho de Gassner e concluiu que os resultados
que obtinham devia-se à influência do crucifixo metálico. Este conduziria o
fluido universal e provocaria as curas, que, no entender de Mesmer, seriam
erroneamente atribuídas ao ritual de exorcismo.
Contudo, nem todos os pesquisadores concordam que tenha havido um
encontro entre Mesmer e Gassner. Há quem diga que Mesmer conhecia o
trabalho do sacerdote e dele fizera apreciação positiva, ressalvando a
ingenuidade do religioso em atribuir ao sobrenatural o que seria meramente
fenômeno magnético. Segundo se conta, ao desmerecer a possibilidade de
atuação de forças demoníacas, Mesmer favoreceu a decretação, pelo papa, da
censura sobre suas obras.
Seja como for, o que interessa destacar é que a proposta terapêutica
formulada pelo médico austríaco foi um sucesso. Diversas curas incontestes se
relataram e a fama do médico cresceu admiravelmente. Esse fato despertou a
curiosidade e uns e a inveja de outros. Mesmer enfrentou reações contrárias
na Austria, onde iniciara os trabalhos de cura e mudou-se para Paris. Nesta
cidade a popularidade da cura magnética foi acentuada, levando o médico a
criar forma de atender aos pacientes em grupos.
Em síntese, a teoria de Mesmer, conforme foi dito, baseava-se na
existência do fluido universal, que seria parte constituinte de todas as coisas
existentes no universo. Nos seres vivos, notadamente no homem, a perfeita
saúde devia-se ao equilíbrio harmonioso desse fluido. Quando isso não
acontecia, instalava-se alguma doença. Era óbvio, portanto, que para voltar ao
estado saudável, necessário se fazia rearmonizar a corrente fluídica.
Inicialmente, Mesmer trabalhou com imãs, acreditando que esse material
conduziria melhor o fluido universal. Depois, concluiu que algumas pessoas
privilegiadas, que chamou magnetizadores, teria o dom de obter os resultados
almejados e dispensou o uso de instrumentos auxiliares. A doutrina proposta
por Mesmer foi explanada em 27 aforismos, publicados em 1779. Vejamos
alguns deles:
1. Existe uma influência mútua entre os corpos celestes, a Terra e os
corpos animados.
2. O meio desta influência é um fluido universalmente distribuído e
contínuo, sem nenhum vazio e de natureza incomparavelmente sutil,
e por cuja natureza é capaz de receber, propagar e transmitir todas
as impressões de movimento.
3. Esta ação recíproca é subordinada a leis mecânicas que são
desconhecidas até agora.
4. Esta ação resulta em efeitos alternados que podem ser
considerados como fluxo e refluxo.
5. Este fluxo e refluxo é mais um menos geral, mais ou menos
particular, mais ou menos composto, de acordo com a natureza das
causas que o determinam.
6. É por esta operação (a mais universal daquelas apresentadas pela
Natureza) que as proporções de atividade são estabelecidas entre os
corpos celestes, a terra e as partes eu os compõem.
7. As propriedades da Matéria e dos Corpos Orgânicos dependem
desta operação.
8. O corpo animal experimenta os efeitos alternativos desse agente, e
é imediatamente afetado pela penetração da substância nos nervos.
9. É particularmente manifesto no corpo humano que o agente tem
propriedades similares às do imã; pólos diferentes e opostos podem
igualmente ser distinguidos e podem ser mudados, comunicados,
anulados e reforçados; até mesmo o fenômeno de oscilação é
observado.
10. Esta propriedade do corpo animal, que o deixa sob a influência
dos corpos celestes e das ações recíprocas daqueles que o rodeiam,
como demonstrado pela sua analogia com o imã, levou-me a
denominá-la MAGNETISMO ANIMAL.
(...)
23. Se verá a partir dos efeitos, de acordo com as regras práticas que
se há de documentar, que este princípio pode curar desordens
nervosas diretamente e outras desordens indiretamente.
24. Com essa ajuda, orienta-se o médico no uso de medicamentos; ele
aperfeiçoa sua ação, provoca e controla as crises benéficas e tal
maneira que as sujeita.
25. Dando a conhecer meu método, demonstrarei, por meio de uma
nova teoria das enfermidades, a utilidade universal do princípio que
aplico a elas.
26. Com este conhecimento, o médico determinará confiantemente a
origem, a natureza e o progresso das doenças, mesmo as mais
complexas. Evitará que ganhem força e terá sucesso em curá-las, sem
jamais expor o paciente a efeitos perigosos ou conseqüências
desastrosas, independentemente da idade, do temperamente e sexo.
Até mulheres em trabalho de parto gozarão desses benefícios.
27. Conclusão, esta doutrina permitirá ao médico determinar o
estado de saúde de cada indivíduo e salvaguardá-lo de males a que
estaria sujeito. A arte curativa alcançará, assim, seu estádio final de
perfeição.
(Fontes: http://www.levir.com.br/inst-022.php e
http://web.archive.org/web/20040710162753/http://www.unbf.ca/psychology/likely/readings/mes
mer.htm)

Observa-se que Mesmer tinha em alta conta a teoria que elaborou. Para
ele, o caminho que conduziria a medicina à excelência estava descortinado
com o advento do magnetismo animal. Lamentavelmente, passados mais de
duzentos anos de promulgada a hipótese do fluido universal, este permanece
tão sutil e evasivo às investigações quanto na época de Mesmer. O médico
afirmava que as leis que regiam o fluido universal eram, até então,
desconhecidas. Tal afirmação, pressupunha que, pelo trabalho contínuo de
pesquisa, essas leis se tornariam futuramente conhecidas. Contudo, a
existência de tais leis permanece nebulosamente hipotética desde que foi
elaborada.
Boa parte dos pacientes de Mesmer, durante a aplicação do
magnetismo, entravam em convulsão. Esse efeito era desejado e incentivado,
pois, segundo a pensamento do médico, a crise acelerava a cura. Contudo,
outros não convulsionavam, em vez disso, apresentavam-se como que
sonolentos. Mesmer registrou essa reação, para ele diversa da esperada, mas
entendeu que a lassidão constituía falha do tratamento, visto que era
necessário haver crise para que a doença fosse extirpada. Tempos mais tarde,
um discípulo de Mesmer, atuando por conta própria, passou a dar valor ao
efeito sonambúlico das magnetizações. Podemos dizer que Mesmer roçou a
ponta do que seria futuramente a prática hipnótica, mas não lhe deu a devida
atenção.
Franz Mesmer é figura polêmica até os dias de hoje, alguns o qualificam
como santo, outros, charlatão. Buscando um meio-termo, entendemos que foi
um homem de seu tempo. Tinha uma teoria e buscou pô-la em prática,
intentando demonstrar a veracidade do que postulava. Foi um pioneiro e, como
tal, cometeu erros e acertos.
Na atualidade, a teoria magnética é defendida em setores mais ligados à
religiosidade, que à ciência. A hipótese do fluido universal foi perdendo força,
uma vez que nenhum experimento de cunho científico logrou confirmá-la. As
teorias modernas que procuram explicar o processo hipnótico – que é o
sucedâneo do magnetismo – dispensam, por desnecessária, a conjectura de
uma força universal, pretensamente responsável pela ocorrência do fenômeno.

As Experiências

Até o capítulo 5 de “A Memória e o Tempo” Hermínio Miranda discorre


sobre o método, a teoria e considerações complementares, que embasam a
prática regressionista, conforme as concepções por ele defendidas. No capítulo
6 são apresentadas experiências objetivas de regressão.
Ao falar das experiências que conduziu, Hermínio tem o cuidado de
esclarecer que o “esquecimento” de outras vidas é a regra. Lembranças
somente as que estivessem “autorizadas”. Autorizadas por quem? Caberia a
pergunta. A resposta não é dada diretamente, podemos supor que seriam
entidades espirituais, das quais se diz que acompanham atentamente o
trabalho de regressão, as responsáveis por controlar o que pode ser lembrado
ou não. Em outros trechos acena-se com a hipótese de que algum mecanismo
interno, de origem desconhecida, libere o permitido e bloqueie o proibido.
Leiamos alguns trechos do livro:
“Este livro começou com uma experiência de regressão na qual
tivemos o relato de um processo de iniciação no antigo Egito – [a
regredida afirmou ter sido sacerdotisa no tempo de Ramsés II e narra o
processo de iniciação de um sacerdote, cuja fase final consistia em
passar a noite numa tumba, onde conheceria suas vidas passadas].
Como o procedimento normal do mecanismo da memória é esquecer
para reduzir a faixa de atrito do ser com a sua realidade íntima... por
que então, provocar lembranças que aparentemente estaria mais
seguras nos porões da memória, no que chamamos de arquivo
morto?

De fato, a regra geral é essa, sempre respeitada pelos iniciados que


manipulavam tais conhecimentos e operavam os delicados controles
psíquicos do ser encarnado. Note-se, porém, que a finalidade da
pesquisa na memória integral não se propunha à mera satisfação de
curiosidade inconseqüente ou malsã. (...)

Isso explica por que a regressão da memória era a última etapa no


vestibular da iniciação. Somente aquele que houvesse demonstrado,
sem a menor hesitação ou dúvida, que reunia em si as condições
mínimas para o aprendizado, era então submetido às técnicas
adequadas, a fim de ‘saber tudo o que já fora’. (...)

O conhecimento das vidas anteriores é, pois, um privilégio, por certo,


mas uma responsabilidade muito grave e não deve ser buscado senão
por motivos relevantes, por operadores competentes e equilibrados,
por pessoas que tenham demonstrado inequivocamente as condições
mínimas exigidas para suportar os impactos que usualmente causam
certas revelações. Do contrário, poderão sobrevir crises emocionais
de vulto, capazes de desencadear processos de desequilíbrio mental e
desajustes graves de personalidade. Aliás, não poucas perturbações
emocionais são provocadas por interferências de memórias
anteriores no fluxo das vivências atuais. Disfunções psíquicas de
certa gravidade podem resultar de regressões espontâneas a
memórias de outras vidas, nas quais o doente se imagina, por
exemplo, um general de Napoleão ou uma condessa medieval. Seus
gestos e sua postura externa podem, ao olhar desatento e cruel,
parecer cômicos, mas e se ele for mesmo um general napoleônico
reencarnado ou ela uma condessa poderosa que voltou para
resgatar?” (A Memória e o Tempo. P. 59,60)

“Aliás, essa foi sempre uma das tônicas do nosso trabalho: nada
forçar, para não provocar roturas, cujas conseqüências poderiam ser
imprevisíveis. Se a regra geral em questões atinentes à memória é
esquecer; é porque há razões bastante sólidas para isso, como já
discutimos alhures, neste livro. Já em outros casos, revelações dessa
natureza são recebidas com serenidade e até contribuem para
explicar certas incongruências íntimas, mediante nova arrumação de
conceitos.” (A Memória e o Tempo. P. 255)

Hermínio mostra prudência e seriedade em seu trabalho. No entanto,


uma questão preocupante daqui se depreende: supondo-se que tenha sido
descoberto método que permita vasculhar a mente, em busca de memórias de
outras vidas, quem controlará o uso da técnica, visto que está disponível para
quem queira usá-la? A idéia de que existam entes espirituais monitorando o
processo, pode ser satisfatória para alguns, porém, muitos regressionistas
induzem recordações em seus pacientes, sem qualquer cogitações relativas a
tais entidades, ou mesmo referências a restrições espirituais.
Se Hermínio Miranda e outros são criteriosos ao induzir regressões,
pode-se supor que existam os que tão-somente a pratiquem por curiosidade ou
por motivos menos nobres. Ninguém poderá impedir que essa utilização,
digamos, espúria, seja buscada. Alegar que a prática desautorizada acarreta
prejuízos é muito vago, uma vez que os regressionistas que não seguem os
ditames referidos por Hermínio também afirmam obter resultado positivos.
Lembrar ou não lembrar?

Esta questão permanece polêmica, principalmente, no meio espírita.


Mesmo sem adentrarmos, por enquanto, na questão de serem ou não as
lembranças autênticas recordações, existe bastante discussão sobre a
liberdade de lembrar.
Quem levar ao pé da letra as recomendações de Kardec, fatalmente terá
de afastar-se da prática regressionista. O codificador foi taxativo ao declarar
que as lembranças estão vedadas, sendo possível conhecê-las somente em
circunstâncias muito especiais e, quase sempre, de forma espontânea.
Na época de Kardec, uma das objeções mais incisivas à doutrina da
reencarnação era a não-reminiscência das vidas pretéritas. Os oposicionistas
argumentavam: se vivemos outras vidas, então deveríamos recordá-las. Esta
objeção não foi plenamente resolvida, mas Kardec elaborou esclarecimento
logicamente aceitável, afirmava ele: se as lembranças fossem franqueadas,
problemas muito graves e de toda a espécie surgiriam, oriundos dessas
recordações.
Em termos objetivos, a proposição de Kardec é coerente. Imaginemos a
esposa descobrindo que o marido é reencarnação de quem a assassinara em
outra existência? E a mãe informada que o filho a estuprara noutra vida? E o
pai sabendo que filha fora esposa anteriormente? Enfim, toda a sorte de
encrencas aflorariam na hipótese de haver liberação geral das lembranças.
Assim, o codificador fechou as portas às recordações, só admitidas em
situações especialíssimas.

“Esquecimento do passado

11. Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se


possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus
entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso
vantagem. Com efeito, a lembrança traria gravíssimos
inconvenientes. (...) Em todas as circunstâncias, acarretaria
inevitável perturbação nas relações sociais. Freqüentemente, o
Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de
novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que
lhes haja feito. Se reconhecesse nelas as a quem odiara, quiçá o ódio
se lhe despertaria outra vez no íntimo... Para nos melhorarmos,
outorgou-nos Deus, precisamente, o de que necessitamos e nos basta:
a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva-nos do que nos
seria prejudicial. Ao nascer, traz o homem consigo o que adquiriu,
nasce qual se fez; em cada existência, tem um novo ponto de partida.
Pouco lhe importa saber o que foi antes: se se vê punido, é que
praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o que lhe resta a
corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar-se toda a sua
atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente,
nenhum traço mais conservará.

Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea.


Volvendo à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do
passado; nada mais há, portanto, do que uma interrupção
temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante o sono,
a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que
tenhamos feito na véspera e nos dias precedentes.

E não é somente após a morte que o Espírito recobra a lembrança do


passado. Pode dizer-se que jamais a perde, pois que, como a
experiência o demonstra, mesmo encarnado, adormecido o corpo,
ocasião em que goza de certa liberdade, o Espírito tem consciência de
seus atos anteriores; sabe por que sofre e que sofre com justiça. A
lembrança unicamente se apaga no curso da vida exterior, da vida de
relação. Mas, na falta de uma recordação exata, que lhe poderia ser
penosa e prejudicá-lo nas suas relações sociais, forças novas haure
ele nesses instantes de emancipação da alma, se os sabe aproveitar.”
(O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO)

___________________________

“(...) Gravíssimos inconvenientes teria o nos lembrarmos das nossas


individualidades anteriores. (...)

395. Podemos ter algumas revelações a respeito de nossas vidas


anteriores?

Nem sempre. Contudo, muitos sabem o que foram e o que faziam. Se


se lhes permitisse dizê-lo abertamente, extraordinárias revelações
fariam sobre o passado.

396. Algumas pessoas julgam ter vaga recordação de um passado


desconhecido, que se lhes apresenta como a imagem fugitiva de um
sonho, que em vão se tenta reter. Não há nisso simples ilusão?

Algumas vezes, é uma impressão real; mas também, freqüentemente,


não passa de mera ilusão, contra a qual precisa o homem por-se em
guarda, porquanto pode ser efeito de superexcitada imaginação.” (O
LIVRO DOS ESPÍRITOS)

___________________________

“290. Perguntas sobre as existências passadas e futuras

15ª Podem os Espíritos dar-nos a conhecer as nossas existências


passadas?

Deus algumas vezes permite que elas vos sejam reveladas, conforme
o objetivo. Se for para vossa edificação e instrução, as revelações
serão verdadeiras e, nesse caso, feitas quase sempre
espontaneamente e de modo inteiramente imprevisto. Ele, porém,
não o permite nunca para satisfação de vã curiosidade.

a) Por que é que alguns Espíritos nunca se recusam a fazer esta


espécie de revelações?

São Espíritos brincalhões, que se divertem à vossa custa. Em geral,


deveis considerar falsas, ou, pelo menos, suspeitas, todas as
revelações desta natureza que não tenham um fim eminentemente
sério e útil.

b) Assim como não podemos conhecer a nossa individualidade


anterior, segue-se que também nada podemos saber do gênero de
existência que tivemos, da posição social que ocupamos, das virtudes
e dos defeitos que em nós predominaram?

"Não, isso pode ser revelado, porque dessas revelações podeis tirar
proveito para vos melhorardes. Aliás, estudando o vosso presente,
podeis vós mesmos deduzir o vosso passado." (O LIVRO DOS
MÉDIUNS)

Outros autores também se pronunciam contrários às lembranças, um


exemplo:

“Se reencarnamos para ressarcir dívidas, não seria interessante


guardar a lembrança delas? Não haveria maior facilidade em aceitar
sofrimentos e dissabores que ensejam o resgate?

O objetivo primordial da existência humana é a evolução. O resgate


de dívidas é apenas parte do processo. Quanto ao esquecimento,
funciona em nosso benefício. Seria impossível incorporar, sem
perturbador embaralhamento, o rico, o pobre, o negro, o índio, o
branco, o amarelo, o analfabeto, o letrado e tudo mais que já fomos,
em múltiplas encarnações. É ilustrativo que muita gente vai parar
em hospitais psiquiátricos simplesmente por sofrer a pressão de
pálidas lembranças, envolvendo acontecimentos pretéritos.
(Reencarnação: Tudo o que você precisa Saber - Richard Simonetti)

Curiosamente, Kardec afirma que as lembranças “em todas as


circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais”; no
entanto, para Hermínio, o esquecimento tem a finalidade de “reduzir a faixa de
atrito do ser com a sua realidade íntima...”. Parece-nos que são visões distintas
e, talvez, difíceis de conciliar.
ALGUNS PONTOS CONTROVERSOS NO
PENSAMENTO DE HERMÍNIO MIRANDA

A fim de não nos alongarmos nesta exposição inicial, uma vez que o
objetivo principal é a avaliação da experiência regressionista de Luciano dos
Anjos, apresentaremos a lista de alguns dos pontos controvertidos no discurso
de Hermínio. Em seguida iniciaremos o trabalho principal, que é a avaliação da
suposta reencarnação de Luciano.

1. O conceito de memória defendido por Hermínio Miranda não está de


acordo com as boas pesquisas sobre o assunto. Para ele, a memória
é “extracerebral”, uma vez que estaria localizada não na estrutura do
cérebro, sim no perispírito. Acontece que as investigações atuais
sobre essa questão, encaminham-se mais e mais no sentido de
comprovar taxativamente que a memória é resultado de complexas
interações das conexões neuroniais, ou seja, fenômeno
indubitavelmente cerebral. Na página 40 de “A Memória e o Tempo”
é apresentada a forma esquemática do que Hermínio entende seja o
funcionamento da memória. Ele trabalha com a concepção freudiana
de inconsciente, a qual amplia ao seu arbítrio, para que agasalhe a
suposição de que memórias de vidas passadas estejam
armazenadas nesse hipotético segmento da mente. A discussão
sobre o pensamento de Hermínio a esse respeito, ensejaria trabalho
específico. De momento, deixamos registrado que o que ele entende
por memória não encontra respaldo seja na psicologia, seja na
neurologia.

2. A idéia de instinto apresentada por Hermínio carece de reparos. O


escritor segue a definição apresentada em “A Gênese”: “o instinto é
a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos espontâneos e
involuntários, tendo em vista a conservação deles” e acrescenta, “todo
ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação,
deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é”. (A Memória e o
Tempo, p. 42). Essas declarações contêm vários equívocos.
Primeiro, o instinto não tem nada de “força oculta”, instinto é um
impulso automatizado, que varia de espécie para espécie, cuja
principal função é preservar o espécime contra ameaças
inesperadas. Também são instintivos os incitamentos biológicos que
induzem à perpetuação da espécie. Outra questão é que as
declarações, tanto de Kardec, quanto de Hermínio, classificaria como
instinto coisas que não o são, por exemplo, o hábito é um ato
maquinal, mas não é instinto.

3. A possibilidade de conhecer o futuro. Logo ao início do livro “A


Memória e o Tempo”, Hermínio defende que seria possível “recordar”
o futuro, do mesmo modo que é possível rememorar o passado. Na
página 26, encontramos: “Só nos resta uma inevitável conclusão, por
mais que ela se choque com os nossos conceitos e preconceitos: se
podemos ver hoje algo que acontece mesmo daqui a dois dias, seis meses
ou trezentos anos, então é porque esses eventos já existem hoje, lá no
futuro...”. Acontece que essa convicção de Hermínio Miranda, além
das discussões que pode ensejar, tanto no campo filosófico, quanto
científico, entra em conflito com o que declarou Kardec a respeito:

“Alguma coisa nos pode ser revelada sobre as nossas existências


futuras?”.

"Não; tudo o que a tal respeito vos disserem alguns Espíritos não
passará de gracejo e isso se compreende: a vossa existência futura
não pode ser de antemão determinada, pois que será conforme a
preparardes pelo vosso proceder na Terra e pelas resoluções que
tomardes quando fordes Espíritos. Quanto menos tiverdes que
expiar tanto mais ditosa será ela. Saber, porém, onde e como
transcorrerá essa existência, repetimo-lo, é impossível(...)"

7ª Podem os Espíritos dar-nos a conhecer o futuro?


Se o homem conhecesse o futuro, descuidar-se-ia do presente. É esse
ainda um ponto sobre o qual insistis sempre, no desejo de obter uma
resposta precisa. Grande erro há nisso, porquanto a manifestação
dos Espíritos não é um meio de adivinhação. Se fizerdes questão
absoluta de uma resposta, recebê-la-eis de um Espírito doidivanas,
temo-lo dito a todo momento.

8ª Não é certo, entretanto, que, às vezes, alguns acontecimentos


futuros são anunciados espontaneamente e com verdade pelos
Espíritos?
Pode dar-se que o Espírito preveja coisas que julgue conveniente
revelar, ou que ele tem por missão tornar conhecidas; porém, nesse
terreno, ainda são mais de temer os Espíritos enganadores, que se
divertem em fazer previsões. Só o conjunto das circunstâncias
permite se verifique o grau de confiança que elas merecem.

9ª De que gênero são as previsões de que mais se deve desconfiar?


Todas as que não tiverem um fim de utilidade geral. As predições
pessoais podem quase sempre ser consideradas apócrifas. (O LIVRO
DOS MÉDIUNS)

4. Hermínio Miranda confunde memória com inteligência. Na página 47,


lemos: “E, logicamente, quanto maior o volume de dados no banco de
memória, mais vasta e brilhante a inteligência”, e, na página 45: “Creio,
pois, que se pode admitir, tranqüilamente, que inteligência é informação
armazenada, ou, examinando-a sob outro aspecto, a medida do seu vigor é
a amplitude da memória integral... Assim como Platão ampliou o conceito
de aprendizado, considerando-o função da recordação, a doutrina dos
espíritos amplia o conceito bergsoniano da função da inteligência, ou seja
da memória”. A memória, sem dúvida, é suporte da inteligência,
contudo uma não se confunde com a outra. Há casos de pessoas
dotadas de excelente memória e de parca inteligência. Um conceito
tradicional sobre a inteligência estabelece que seja a interação de
três aspectos: memória, imaginação e juízo, portanto, a memória,
isoladamente não pode ser tomada pela inteligência.

No que tange à Platão, quando o filósofo afirmou que “aprender é


recordar”, não estava ampliando o conceito de aprendizado,
conforme declara Hermínio, sim atrelando-o a uma concepção
reducionista. Na fase madura de seu pensamento, o próprio Platão
substituiu o “aprender é recordar” pela “ciência dialética”. Para o
filósofo na maturidade, aprender não mais significava recordação do
que fora visto, sim, o trabalho de esmiuçar as hipóteses,
desbastando-as daquilo que teriam de falso, ou desnecessário, num
processo contínuo, até que se atingisse um ponto de certeza, ou pelo
menos, de convicção mais amplo que a existente ao início do debate.

Outras questões poderiam ser apresentadas, fiquemos por ora com as


presentes objeções. Nos comentários seguintes faremos referências a idéias
de Hermínio que nos pareçam passíveis de crítica.
LUCIANO DOS ANJOS ou CAMILLE DESMOULINS?

Considerações iniciais

Na primeira parte da obra “Eu Sou Camille Desmoulins” encontra-se a


narrativa da experiência, acompanhadas de considerações de Hermínio
Miranda. A partir da página 301 estão as explanações de Luciano dos Anjos
sobre o que vivenciou. (Trabalhamos com a 1ª edição do livro)
Do que nos foi dado conhecer da produção escrita de Hermínio Miranda,
concluímos que o autor aprecia defender questões polêmicas. Logo ao início
do livro ele afirma: (lembramos que os destaques são de nossa autoria)
“...o que temos nos compêndios de história...é uma espécie de
imitação da vida, uma interpretação pessoal dos fatos e não os fatos
em si mesmos. Vemos múmias humanas, figuras empalhadas e
cobertas pela venerável poeira histórica, e ficamos a nos perguntar
como seriam realmente aquelas pessoas...Em suma, vemos cópias de
cópias de retratos e não temos meios pra checar os originais, conferir
e questionar, avaliar para concluir. Ou temos?

A resposta é sim, temos.

A literatura espírita vem apresentando, pelo menos no decorrer do


último século, respeitável acervo de depoimentos de personalidades
históricas, basicamente por via mediúnica.(...)

Tanto faz a gente crer como não, o fato é que muitos espíritos têm
tido a oportunidade de trazer depoimentos póstumos da maior
importância. São inúmeros os exemplos e podemos tomar qualquer
um deles entre os de indubitável credibilidade, como o famoso caso
de Patience Worth... A Sra. Henry H. Rogers, médium
americana...manteve, durante vinte e cinco anos, equilibrado e
proveitoso intercâmbio com uma entidade desencarnada que se
assinava Patience Worth. Este espírito, que se identificava com uma
jovem puritana que vivera no século XVI, escreveu através da Sra.
Curran obra literária de inquestionável valor...
O relacionamento Sra. Curran/Patience Worth manteve-se como
verdadeiro mistério para certos cientistas e pesquisadores que
estudaram o fenômeno. Contudo, para os que se acham informados
da realidade espiritual, e a aceitam, a verdade é simples e clara,
como sempre: um espírito desencarnado que veio trazer a
contribuição do seu depoimento pessoal. (...)

É possível, portanto, obter dos próprios espíritos depoimentos de


suas experiências pessoais e retificar a História...” (Eu Sou Camille
Desmoulins – p. 11,12,13)

Apesar de respeitarmos, e admirarmos, o pensamento de Hermínio


Miranda, a idéia de que a mediunidade é capaz apresentar versão mais
completa da História não se confirma na prática. Ainda que alguns médiuns
apresentem informações de boa qualidade, as quais atribuem à comunicação
interespiritual, estas não substituem, tampouco complementam, a pesquisa
convencional. Se o que Hermínio afirma fosse veraz, muitas das questões
históricas de difícil elucidação, senão todas, estariam plenamente explicadas.
Cabe indagar, qual a contribuição da mediunidade no esclarecimento da
origem e da cultura de povos antigos, de cuja existência se encontraram parcos
indícios? Investigadores se esforçam em busca de respostas, infelizmente não
surge qualquer mensagem mediúnica que ajude nesse mister. E o que dizer
das línguas faladas por povos passados, das quais existem boa quantidade de
escritos, mas que não puderam ser traduzidas, por mais que sábios se
empenhem? Por que os espíritos não dão uma mãozinha? A mediunidade
poderia prestar grande apoio não só à História, também a outras ciências, se
possuísse a imaginada capacidade revelativa que lhe atribui Hermínio Miranda.
Durante muitos anos, sábios de diversas nacionalidades se desgastaram na
decifração da escrita egípcia antiga. Não fosse o esforço de Champollion, que
empenhou toda sua energia e talento na gloriosa missão, provavelmente, até
hoje estaríamos tentando imaginar o que os egípcios haviam registrado nos
hieroglifos. A espiritualidade se manteve completamente ausente nessa tarefa.

Tomemos o caso do médium considerado o melhor do Brasil, talvez do


mundo: Chico Xavier psicografou centenas de livros, a maioria narrativas
romanceadas e poéticas, mas, alguns trazem abordagens históricas, outros
discorrem sobre temas científicos. Pois nessas produções não se encontram
conteúdos que enriqueçam o conhecimento nos campos desses saberes. É
indiscutível que Chico possuía singular talento para a escrita, sendo que o
aspecto mais forte de sua criatividade era a poesia. Nas obras de cunho
científico a qualidade da produção cai a olhos vistos. Vejamos, como exemplo,
o livro “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, onde o suposto
espírito de Humberto Campos apresenta piegas narrativa da história do Brasil.
Provavelmente, em vida, Humberto Campos jamais assinaria produção tão
ingênua, porém, no outro lado se viu constrangido a emprestar seu nome a tal
trabalho. Em linhas gerais, “Coração do Mundo” constitui a visão
Xicochaveriana do que teria sido a caminhada histórica de nosso país: eventos
coloridos, fatos dulcíssimos, plena harmonia, planos celestiais infalíveis, com
direito a hostes angelicas de permeio e uma sucessão de luzes, sorrisos,
alegrias, tudo no intuito de defender a tese de que a nação foi vocacionada,
pelo Alto, para propagar a doutrina espiritista. Não se vê nas linhas do livro
análise madura dos acontecimentos passados. O melhor médium do mundo,
quando muito, adocicou o processo histórico nacional; em termos de
cooperação efetiva ao conhecimento dos eventos, nada...

A obra atribuída a Patience Worth, o espírito que supostamente visitava


Pearl Curran, surpreende pela riqueza e qualidade do material originado. Pode-
se dizer que é um dos pouquíssimos casos em que o resultado é rico o
suficiente para ensejar pesquisas de maior vulto. Se fosse efetiva ocorrência
mediúnica, dada as singularidades e qualidade dos escritos, seria circunstância
única, não comparável às multiplas mensagens que pululuam pelo mundo,
todas, quase sem exceção, aquém daquilo que seria esperado de contatos
espirituais. Como não conhecemos estudo aprofundado a respeito de Pearl
Curran, nada de mais significativo podemos dizer. Seja como for, a pessoa de
Patience Worth jamais foi identificada, o que leva à suspeita de que tenha sido
criação da própria mente de Curran.

Pelo sim, pelo não, o campo está aberto: os espíritos podem ainda se
redimir das inumeráveis comunicações pobres de conteúdo e enviar
elaborações que façam jus à procedência. Isso, além de prover de fortes
argumentos a tese da comunicação entre vivos e mortos, também ajudaria no
trabalho de cientistas e pesquisadores. Esperamos que aconteça...
LUCIANO DOS ANJOS

Ao início deste estudo declaramos que votamos tanto a Hermínio


Miranda, quanto a Luciano dos Anjos, o maior respeito. Ainda que discordemos
das conclusões que apresentam, relativamente às regressões, isso em nada
modifica o fato de os termos em alta estima, visto que que são pessoas que
conduzem com muita seriedade os trabalhos aos quais se dedicam.

No livro, Luciano dos Anjos se encarrega de descrever as qualidades


que o habilitaram como figura ideal para uma regressão coalhada de detalhes
curiosos. No início da parte que lhe coube escrever Luciano traça sua trajetória
profissional, narra peripécias variadas, algumas jocosas, outras arriscadas,
redigidas em estilo agradável, temperadas com fino humor e entremeadas com
doses de vaidade. Em meio ao relato, apresenta considerações sobre
identificações reencarnativas, não só dele próprio, como de várias pessoas
conhecidas. Nessas apreciações, Luciano deixa claro que, mesmo antes do
encontro com Hermínio, trazia consigo a convicção de já ter vivido na França,
conforme ilustram os trechos a seguir:

“Sempre acreditei, sendo espírita, que houvesse vivido na França,


tanto pelo amor que lhe sentia, como, mais tarde, por uma oblíqua
insinuação do querido médium Francisco Cândido Xavier. (...)
Quando, cerca de dois anos depois, eu mesmo estive com o Chico
aqui no Rio e em São Paulo, durante a célebre campanha jornalística
em defesa das memoráveis materializações de Uberaba, através da
médium Otília Diogo, discretamente tentei obter dele o nome da
personagem. Ele apenas confirmou, sorrindo, que estive lá −[na
França], naquela época...
...o confrade Ismael Nunes Tavares...me trouxera convite da D.
Chiquita...espírita encantadora, médium de muitos recursos... vi-me
pela primeira vez frente com D. Chiquita... ela me olhava espantada,
denotando violentíssimo impacto. (...)
− Eu conheço o senhor. Estivemos juntos, na época da Revolução
Francesa. Assim que o senhor entrou eu o vi, senti isso... (Eu Sou
Camille Desmoulins. P. 341, 342)

Diante desse quadro, uma coisa é patente: Luciano possuía a bagagem


necessária para revivenciar existência na França, no período da Revolução. A
dúvida, neste ponto, é se a idéia de que fora Camille Desmoulins, mesmo antes
de iniciar as regressões com Hermínio Miranda, já estaria em sua mente, ainda
que de forma semi-consciente. Deixemos que o próprio Luciano diga o que
pensa sobre isso:

“Jamais, jamais me passou pela cabeça ser Camille Desmoulins.


Mas, curiosamente, eu sentia inexplicável sabor (o termo é esse
mesmo: sabor) nas raríssimas vezes em que pronunciava esse nome.
Afora isso, pouco me preocupava, como já disse, com a
personalidade passada que eu tinha vivido. Nunca parei para pensar
muito nisso.” (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 369)

Sem querer pôr em xeque o testemunho de Luciano, é possível supor


que, ao menos no subconsciente, sua ligação com Desmoulins estivesse
rascunhada. Ele declara que não pensava muito no assunto, ou seja, não
manifestava maior interesse em descobrir qual teria sido sua personalidade
passada, entretanto, a própria narrativa que nos apresenta mostra que havia
nele viva curiosidade por identificar tal personagem. No trecho que citamos
anteriormente, vimos que pedira a Chico Xavier que o informasse, entretanto,
o médium fugiu ao assunto. Mais tarde, D. Chiquita revela tê-lo conhecido
durante a Revolução. Luciano também relata encontro que teve com o médium
Homero Lopes Fogaça, o qual garantiu que o jornalista vivera na corte francesa
e autorizara a “morte de algumas pessoas”. E Luciano arremata: “Tudo isso
me intrigou sobremaneira”. Ora, como jornalista − por vocação inquiridor e
curioso −, era de esperar que partisse para a pesquisa meticulosa de sua
identidade pregressa. Luciano dos Anjos, hábil reconhecedor de
personalidades pretéritas – mais adiante falaremos desse talento do jornalista
−, que descobriu a identidade de André Luiz (conforme declara com muita
firmeza), ao se ver perante a notícia de que fora figura ativa na época da
Revolução, quedou-se despreocupado em descobrir quem seria esse alguém...
assertiva que nos soa dúbia, por isso, acreditamos ser factível desconfiar que
estivesse presente na mente do homem de imprensa, ainda que de forma não
clarificada, sua identificação com Camille Desmoulins.

Não vamos, porém, exaurir a dúvida a ponto de desqualificar a


declaração de Luciano de que não sabia, anteriormente ao encontro com
Hermínio, de sua suposta identidade pregressa. Vamos lhe conceder voto de
confiança sobre o que declarou, ou seja, que até realizar a experiência com
Hermínio não sabia ter sido Camille Desmoulins.

O que nos interessa deixar claro, por ora, é que Luciano dos Anjos
estava previamente preparado, e bem preparado, para lucubrar criativa
recordação de vivência no período da Revolução Francesa.
É importante destacar que o vivenciado pelo jornalista pode ser
qualificado como “regressão” de boa qualidade. Mesmo se comparadas com as
melhores de que temos conhecimento. Se a cotejássemos com o “caso Bridey
Murphy” diríamos que as lembranças de Luciano “dão de dez a zero” nas
obtidas por Virginia Tighe, a protagonista do caso. Apesar de Bridey Murphy ter
obtido repercussão muito mais ampla que o caso Camille Desmoulins, em tudo
é inferior a este.

Morey Bernstein, que conduziu as sessões hipnóticas com Virgínia, era


um hipnotista amador, e bem sucedido comerciante da cidade de Pueblo, nos
Estados Unidos. Nas horas vagas se divertia hipnotizando amigos.
Gradativamente, porém, conforme relata, passou a buscar mais
conhecimentos. Chegou a entrevistar Joseph Rhine e acompanhar o trabalho
que o pesquisador conduzia, na Universidade de Duke. Rhine lhe passou
diversas sugestões, as quais impressionaram o curioso homem de comércio.
No entanto, parece que o professor não mitigou o anseio místico que Bernstein
trazia consigo e que o fez enveredar por outro rumo, até topar com a herança
ocultista de Edgar Cayce.

Cayce, por quem Hermínio demonstra grande admiração − dele faz


diversas referências alvissareiras em “A Memória e o Tempo” −, era um sujeito
meio esquisito, especializado em “leituras mediúnicas”, por meio das quais
revelava vidas passadas, os talentos e, ainda, falava da saúde dos
interessados. Caía em sono dito profético e falava muitas coisas. Após o
despertamente garantia nada recordar do que dissera durante o transe.
Obviamente, alguém tinha de anotar as declarações do profeta. Uma das
tônicas dos vatícinios de Cayce, alcunhado “profeta dorminhoco”, era desvelar
experiências de seus consulentes na lendária Atlântida. Praticamente todos os
que o buscavam recebiam informes de existências passadas no continente
perdido. Escusado dizer que o discurso de Cayce não casava com o explanado
por Platão sobre a Atlântida; tampouco harmonizava com afirmações de outros
alegados “conhecedores” dos imaginados segredos da ilha-continente.

Na atualidade, os seguidores de Edgar Cayce dão prosseguimento ao


seu trabalho, realizando o que chamam “astrologia cármica”, que conjuga a
configuração astral do consulente na data do nascimento, com perfis
anteriormente estabelecidos pelo profeta. Essa “fórmula”, afirmam, mostra as
potencialidades do interessado e lhe revelam aspectos de existências
anteriores. Por curiosidade, encomendei um desses estudos, ao preço de
R$48,00. Então, descobri muitas coisas a respeito de minhas “vidas passadas”
e também sobre minhas capacidades atuais.

Neste trabalho, “Cayce”, além de revelações genéricas, aplicáveis


indistintamente a quem quer que seja, tipo: “você demonstra ser um indivíduo
dotado de mente elevada”, assegurou que me darei bem como escritor, que
tenho facilidades com idiomas e, devido à minha existência mercuriana, tenho
pendores para exercer cargos de autoridade. Diz, ainda, que minha mente é
clarividente, mas não informa se se trata de capacidade paranormal, ou de
clarividência no sentido comum de “ver com clareza”. Assevera que tenho
dificuldade em distinguir o que é fato e o que é ficção e muito mais.

O caso é que se eu possuísse tais qualidades (e algumas ele parece ter


acertado, mas não se animem, quem atira em todas direções acaba atingindo
alguma coisa), pois então, se eu possuísse os dons que Cayce me atribuiu de
pouco me valeria a “revelação”, uma vez que as qualidade já seriam de meu
conhecimento. Desse modo, o “trabalho” que poderia ser reputado profícuo
realizado pelo “profeta” é o que tange às vidas passadas. Nesse segmento
descobri coisas muito interessantes.

Conforme informou Cayce, vivi no planeta Mercúrio. Também estive no


planeta Saturno. Em minhas entrevidas morei em Urano. E, não poderia faltar,
tive uma existência como atlante, na qual fiquei em meio às disputas dos
adeptos de Belial contra os asseclas da Lei do Um. Apesar de não ter
informação a respeito dessas agremiações, suponho que deva considerar a
experiência de alta relevância, para o quê não sei...

Pensam que acabou? Nada. Acompanhei Alexandre, o grande, em suas


conquistas (logo eu que detesto guerras). Também devo ter sido um viking (ele
não deu certeza quanto a isso), participei da construção da pirâmide inca, vivi
no Egito antigo e provavelmente habitei nas terras que hoje constituem a
Austrália. Ufa, isso é que é excursão cármica!

Eram coisas semelhantes a essas que Edgar Cayce transmitia aos


incautos que o procuravam! E este foi um dos gurus que levou Morey Berstein
ao mundo mágico das vidas passadas. Ressaltamos, Hermínio Miranda
considera Cayce um grande médium...

Outro caso de regressão, este mais recente, cujo relato em livro vendeu
milhões de exemplares, é o apresentado por Brian Weiss, intitulado “Muitas
Vidas, Muitos Mestres”. Semelhantemente à Bridey Murphy, as regressões
feitas por Brian Weiss em Catherine, são em muito inferiores à aventura de
Luciano dos Anjos.

Brian Weiss, era conceituado psiquiatra quando vivenciou inusitada


experiência com paciente refratária ao tratamento convencional. Segundo
assevera o médico, o encontro com Catherine o levou a descobrir autêntica
panacéia. O Dr. Brian foi muito criticado por ter deixado de lado esmerada
formação, a fim de abraçar teorias de fraca fundamentação. Ele deve ter tido
motivo$$ para isso, o que respeitamos. Mas, não se pode deixar de constatar
que no regressionismo Brian Weiss tem proferidos discursos que beiram o
ridículo. Conforme se depreende da afirmação seguinte:

“Avaliei o propósito terapêutico da exploração das vidas passadas de


Catherine... Há nesse campo algum poder curativo muito forte, um
poder que parece muito mais eficiente do que a terapia convencional
ou a medicina moderna...” (Muitas Vidas, Muitos Mestres)

Qualificar a terapia de vidas passadas como terapeuticamente superior à


medicina moderna só mesmo na cabeça de Brian Weiss: será que se o Dr.
Brian sofresse um infarto agudo do miocárdio buscaria socorro na TVP?

Podemos afirmar que a avaliação da experiência de Luciano dos Anjos


significa aferir um dentre os melhores relatos regressionistas. O aspecto mais
destacado na história dessa regressão é a proclamada fidedignidade dos
relatos históricos, notadamente a citação de detalhes da vida de Desmoulins,
que nem mesmo estudiosos versados conheciam. Desse assunto, Hermínio dá
sua apreciação.
“Fui bom aluno de história nos bancos escolares e continuei a ler
história por prazer e curiosidade, nas quatro ou cinco línguas em que
posso fazê-lo. No entanto, naquela primeira sessão de 19 de maio de
1967, se alguém me perguntasse minutos antes de seu início qual o
nome completo de Camille Desmoulins, onde ele nascera e em que
dia, eu só poderia responder com um honesto e bem sonante Não
sei...
...conferimos os informes principais logo após a primeira sessão-
surpresa. Realmente, tal como dissera Luciano, o homem chamava-
se Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins, nascera em Guise, no
Aisne, em 2 de março de 1760.
...mesmo César Burnier, autoridade em história – especialmente a da
Revolução −, confessou posteriormente que também ele ignorava que
Camille tivesse aqueles outros nomes...”

(Curiosa a declaração de Hermínio, “nas quatro ou cinco línguas em que


posso fazê-lo”. Será que ele não sabe ao certo em quantas línguas é capaz de
ler?)
Grande destaque é dado à capacidade mnemônica de Luciano, que
recordava minudências da vida de Desmoulins, as quais talvez a maioria dos
estudiosos não lembrasse, como foi a citação do nome completo de Camille
Desmoulins. O próprio César Burnier, apresentado como especialista na
Revolução, confessou que desconhecia o informe. Entretanto, saber do nome
inteiro de Desmoulins não tem grande significado. Certo que é de estranhar
que Burnier não o soubesse, visto que se apresentava como perito na matéria.
Ainda que não recordasse, deveria ao menos saber que Desmoulins tinha
vários nomes. Podemos comparar isso ao caso de estudioso da história do
Brasil que não consiga lembrar todos os nomes pelos quais D. Pedro II foi
registrado, de qualquer modo, deverá saber que o imperador possuía outros
epítetos além de Pedro de Alcântara. (Para quem se interessar, a titulação
completa do imperador era, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador
Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga –
ganha um doce quem o disser de um fôlego só).
Modernamente, o conhecimento de minúcias das vidas de personagens
históricos é tido por secundário no aprendizado. Este tipo de informação,
quando muito, demonstra a capacidade memorativa do estudioso. O mais
importante é a compreensão das circunstâncias que envolvem os fatos
históricos. Por exemplo, em vez de simplesmente decorar as datas de
nascimento e o nome completo de todos os personagens da Revolução, o bom
estudante esforçar-se-á por entender o porquê dos acontecimentos que
ocasionaram o levante e as decorrências deles advindas.
Entretanto, a dúvida permanece: a citação do nome completo de
Desmoulins, bem como da data de aniversário e o local de nascimento, podem
ser consideradas relevantes para classificar a lembrança como autêntica
recordação de vida passada?
Para alguns, a resposta seria sim, e o raciocínio que ampara tal
suposição pode ser assim apresentado: se uma pessoa, que não é
especializada em história, de repente passa a revelar muitos detalhes da vida
de algum personagem do passado, sem tê-los pesquisado, e se, além das
lembranças, essa pessoa demonstrar emoções que mostram laços indeléveis
com a tal figura, então temos indícios seguros de que se trata de legítimo caso
de reencarnação!
Não é preciso refletir muito para perceber que esse pensamento, em
termos de investigação científica, é de frágil sustentabilidade. Ele pode ser
válido para uso em âmbito religioso, pois a fé acrescenta força aos pontos
débeis da inferência, mas seria muito difícil levar adiante pesquisa baseada em
ditames científicos partindo de tal proposta. Por isso, é preciso saber se além
das boas lembranças existe algo mais a ser oferecido.
Contudo, é necessário considerar que as lembranças de Luciano dos
Anjos não se restringiram a acertos relativos à idade, nome, endereço e
questões correlatas. O jornalista também referiu-se, e corretamente, a assuntos
específicos daquela época: sabia o preço de jornais; como a moeda estava
dividida (neste caso, sabia mais ou menos, pois cometeu erros); o salário do
trabalhador e outros. Como, então, explicar isso, sem considerar a hipótese de
legítima lembrança de vida passada? Pois é o que tentaremos apreciar nas
linhas seguintes. Começaremos a analisar as reuniões, que aconteceram
durante o ano de 1967, buscando nelas elementos que nos auxiliem a entender
melhor o caso.
A EXPERIÊNCIA DE LUCIANO: NOSSA
INTERPRETAÇÃO

A fim de facilitar o entendimento do que será exposto no decorrer deste


estudo, anteciparemos nosso entendimento do que foi a experiência
regressionista do jornalista. A presente apreciação, acreditamos, ficará
demonstrada pelos comentários que seguirão. De antemão, é importante que
os leitores conheçam a linha argumentativa que seguiremos.

Entre Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos foi firmado acordo tácito,
no sentido de garimparem personalidade da qual muitos detalhes
historicamente corretos pudessem ser revelados. Não dizemos que tenham
articulado ostensivamente o plano, se assim fosse não seria acordo tácito;
afirmamos, sim, que ambos buscavam experiência cujos resultados fossem
superiores ao que normalmente se obtêm nos exercícios regressionistas. Em
outras palavras, nas cogitações de cada um estava patente que poderiam
explorar criativamente as perspectivas alvissareiras que o trabalho conjunto
prometia.

Explicando, ainda, de outro modo: Hermínio Miranda intuía que Luciano


dos Anjos fosse capaz de recuperar lembranças comparáveis às melhores já
formuladas. Ambos estavam igualmente motivados nessa busca, as
perspectivas eram em tudo promissoras. Por outro turno, Luciano precisava de
alguém com quem pudesse atuar em plena harmonia, a fim de descobrir o
personagem que acreditava ter sido, de cuja identidade talvez ainda não
tivesse clara consciência. A convicção, presente em cada um, de que haviam
encontrado a “pessoa certa” deve ter tomado forma após o primeiro encontro −
apesar de não ser possível estabelecer com certeza quando de fato ocorreu
esse primeiro encontro, conforme veremos adiante.

Em suma, Luciano estava intimamente persuadido de ter vivido na


França revolucionária; Hermínio, certo de que era possível recuperar tais
recordações. Em momento algum, qualquer dos dois aventou a hipótese de
que lembranças da espécie pudessem ser explicadas por outros mecanismos,
em outras palavras: partiu-se do pressuposto de que lembrança de vidas
passadas é fato. O intento da dupla, assim nos parece, era obter
demonstração cabal do processo reencarnatório, pelo reconhecimento
inequívoco de um vivo da identidade que tivera em existência pregressa. Por
isso, neste comentário não abordaremos em profundidade as inconsistências
da hipótese de que existam legítimas lembranças de outras existências.
A suposição que ora apresentamos não significa que enquadremos
como fraudulenta a aventura de Luciano, nada disso, a aventura, cremos, foi
real. A interpretação é que pede reparo. Nosso intento é deixar antevisto ao
leitor o panorama que a história descortina. No decorrer dos comentário esse
quadro ficará clarificado e devidamente ilustrado com declarações dos próprios
envolvidos constantes do livro.

As sessões conduzidas por Hermínio Miranda com Luciano foram em


número de dez, incluído aí o primeiro encontro, que pode ser reputado como
reunião preliminar. As estas se somam mais duas, havidas após o término dos
trabalhos, as quais intitularemos “especiais”. No total, foram doze encontros.
Comentaremos os acontecimento por nos julgados de maior interesse.
REUNIÃO PRIMEIRA e as dúvidas dela decorrentes

UMA NOITE DE MAIO DE 1967 (p. 19-22)

Deste encontro não há muito o que dizer. Teria sido a primeira vez que
Luciano dos Anjos se submetia a uma sessão de hipnose com Hermínio
Miranda. O resultado deixou Hermínio positivamente surpreso, pois o paciente
se revelou facilmente hipnotizável. Rapidamente, atingiu transe profundo, o
que, na visão de Hermínio, favorece boas regressões. Destacamos a
expressão “na visão de Hermínio” em virtude de haver regressionistas
afirmando dispensar o transe hipnótico, estes tão-somente induziriam os
candidados ao estado de relaxamento, − o que poderia ser classificado de “pré-
hipnose” −, o que é por eles considerado mais adequado para que as
lembranças fluam.

O registro curioso desse evento aconteceu após o despertamento.


Vejamos o que sucedeu, de acordo com relato de Hermínio Miranda.

“Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa porção de


bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida levantou-se,
deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como se não tivesse
pernas. Na excitação do momento, havíamos sido imprudentes e
precipitados – era necessário esperar alguns minutos em repouso até
que seu espírito reassumisse totalmente os controles do corpo físico
antes de empreender qualquer movimentação maior. Assim como o
desprendimento se realiza por etapas, também a reintegração no
corpo tem seu ritmo próprio e suas fases bem definidas...” (Eu Sou
Camille Desmoulins. P. 21, 22)

Registrem, por favor, a seqüência dos eventos: 1) despertou; 2) devorou


porção de bolo; 3) levantou-se; 4) desmoronou no tapete. Mais adiante
destacaremos incompatibilidade entre esta narrativa e o que Luciano fala sobre
tal encontro.

A explicação dada por Hermínio para o episódio está concorde com a


idéia que defende, de acoplamento e desacoplamento do perispírito como
conseqüência do processo hipnótico, e que nos parece concepção muito vaga
para ser admitida; mesmo levando-se em conta as parcas explicações dadas
por Hermínio, a conjetura nos parece incerta. Outros praticantes do hipnotismo
não teorizam nada parecido com tal suposição. No entanto, o motivo do tombo
tem elucidação trivial e passa distante da suposição de que a hipnose promova
o desgrudamento do espírito: tendo em conta que Luciano atingiu o
relaxamento profundo e assim esteve por bom tempo, a musculatura ficou
completamente descontraída. É compreensível, portanto, que as pernas não
reagissem de pronto. Era necessário que aguardasse alguns minutos, não
para que o “espírito reassumisse o comando”, sim para que os músculos
recuperassem a tonicidade. Por que buscar explicação complicada, quando se
pode esclarecer o caso de forma simples e satisfatória?

Conforme foi dito, o livro “Eu Sou Camille Desmoulins” foi escrito
conjuntamente por Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos. Parece-nos claro
que cada qual teve a liberdade de narrar os fatos da forma como entendeu e
sentiu. Isso, a princípio, mostra que não houve “acerto”, para que contassem
exatamente a mesma história. Em tese, trata-se de aspecto positivo, pois
demonstra que o trabalho foi executado de forma espontânea, sem arranjos
destinados a elidir pontos que jogassem dúvidas sobre a interpretação que os
autores apresentam. O que dissemos a respeito de um “acordo tácito” entre
Hermínio e Luciano, linhas atrás, não se aplica aqui.

Pois bem, Hermínio declara que a primeira experiência hipnótica a que


Luciano se submeteu, sob seu auspício, ocorreu nesta reunião de maio de
1967, na qual pouca informação útil se obteve. Neste encontro, Hermínio
Miranda informa que Luciano mostrava-se cético quanto à possibilidade de ser
hipnotizado. Isso porque tentara outras vezes, com diversos operadores, sem
resultados produtivos. Estava quase convicto de que não era candidato
adequado para se submeter a investigações por esse processo, mas decidiu
realizar nova tentativa. Qual não foi a surpresa de ambos, Luciano rapidamente
entrou num sono hipnótico de excelente qualidade, conforme narra Hermínio
Miranda (adiante veremos que Luciano diz coisa diferente a respeito desse
estado hipnótico). Entretanto, a “facilidade” que Luciano encontrou para ser
hipnotizado por Hermínio nos leva à seguinte indagação: por que Luciano, que
mostrava-se resistente à hipnose, em diversas experiências, sob a direção de
técnicos variados, com Hermínio obteve sucesso?

A resposta que nos parece mais adequada, reforça a suposição que


apresentamos anteriormente, sobre Hermínio e Luciano terem encontrado um
no outro a condição de levar à frente o projeto reencarnacionista que
acalentavam. Luciano dos Anjos não se deu bem com os demais operadores
porque na ocasião inexistia motivo que o estimulasse a cooperar. Os
praticantes da hipnose, em geral, informam que toda hipnose, em verdade é
uma auto-hipnose, ou seja, se o indivíduo não se sujeitar ao processo
dificilmente poderá ser hipnotizado. Diante de Hermínio Miranda, Luciano dos
Anjos se entregou à indução, tendo em vista o forte clima de confiança entre os
dois e o interesse mútuo pelas regressões.

Precisamos, agora, nos atermos aos pontos controversos nos relatos.


Em primeira leitura, esses pontos tendem a passar despercebidos, mas se
cotejamos os testemunhos elaborados pelos protagonistas, logo as
divergências saltam à vista. Comecemos pelo discurso de Hermínio Miranda.

“Um grupo do qual eu participava empenhava-se em algumas


experiências exploratórias nos abismos da memória integral.
Naquela noite de maio de 1967 estávamos reunidos num
apartamento amplo e confortável em Copacabana. (...)

À reunião daquela noite compareceu Luciano dos Anjos, desejoso


que estava de observar nossas experiências e debater nossos
“achados”. Estávamos já habituados a receber, seletivamente,
alguns amigos que manifestavam interesse em observar nossos
trabalhos. A certa altura Luciano aquiesceu em submeter-se aos
testes de suscetibilidade...

Luciano, que contava então 34 anos de idade, acomodou-se


confortavelmente num sofá... sem ser negativa, sua atitude era de
moderado ceticismo, não ante o fenômeno em si da regressão ou,
mais amplamente, quanto à reencarnação... Sua dúvida era quanto à
sua própria suscetibilidade às induções hipnóticas ou magnéticas.
Em várias tentativas anteriores, com diferentes operadores, não
conseguira atingir nem mesmo os estados superficiais do transe
anímico. Não custava, porém, tentar mais uma vez...

Após as instruções preparatórias e os esclarecimentos de


praxe, ele fechou os olhos, relaxou o corpo... enquanto os passes eram
aplicados lentamente, sem tocá-lo. Diria que a indução foi
fulminante. Em escassos minutos percebia-se que ele mergulhara
fundo no transe. (...)

Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa


porção de bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida
levantou-se, deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como
se não tivesse pernas. Na excitação do momento, havíamos sido
imprudentes e precipitados – era necessário esperar alguns minutos
em repouso até que seu espírito reassumisse totalmente os controles
do corpo físico antes de empreender qualquer movimentação maior.
Assim como o desprendimento se realiza por etapas, também a
reintegração no corpo tem seu ritmo próprio e suas fases bem
definidas, embora variáveis de pessoa para pessoa. Usualmente os
primeiros músculos a se movimentarem são os das pálpebras; em
seguida, os dedos das mãos ou dos pés, braços, pernas, até que todo o
corpo esteja novamente sob controle da vontade. É freqüente
observar nos sensitivos em despertamento a concentração da
consciência na área específica da cabeça – nenhuma outra sensação
física, nem mesmo senso de orientação quanto ao posicionamento do
corpo. É como se todo o ser estivesse na cabeça, fosse apenas a
cabeça. (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 19-22)

Neste trecho, quem relata é Hermínio Miranda. Nota-se que o autor


privilegia o passe, chamado “magnético”, como principal ferramenta indutora do
transe, referência alguma faz a comandos verbais, os quais constituem o
procedimento comum em hipnose. Agora, vejamos o que Luciano dos Anjos
tem a nos dizer de seu primeiro encontro hipnótico com Hermínio.

“Quando começamos, eu e Hermínio, nossas sessões, em casa


de E.V., em Copacabana, não me passara jamais pela cabeça que
pudesse chegar a conclusões tão surpreendentes... Ouvindo-o falar,
rapidamente, desse trabalho, sobre o qual me refiro com mais
detalhes no Capítulo 3 da Segunda Parte deste livro, é que me
entusiasmei e resolvi vê-lo de perto. O Hermínio contou-me as muitas
pesquisas já realizadas nesse setor, algumas surpresas, diversos casos
especiais, as variadas manifestações e os excelentes benefícios muitas
vezes conseguidos. Disse-me, por alto, que empregava o método do
Coronel De Rochas... Falamos dos métodos clássicos de regressão de
memória e das diferentes hipóteses que inclusive no espiritismo são
levantadas para explicar a fenomenologia do processo.

Recordamos o que nossos mentores espirituais nos têm


ensinado nesse matéria e, por fim, marcamos o início das sessões.
Confessei-lhe, com absoluta consciência da razão por que o
confessava, que, lamentavelmente, não haveríamos a meu respeito,
de chegar a nenhum resultado positivo, pois outras vezes eu tentara
ser hipnotizado e nada conseguira. Cerca de dez anos antes, em casa
do Dr. Aloísio Gonçalves, no Jardim Botânico, eu me entregara a
várias sessões e não cheguei a ser hipnotizado. O máximo que se
conseguiu foram alguns movimentos automáticos de braço, mas
muito pouco significativos. O Dr. Aloísio Gonçalves, meu velho
amigo, é autoridade indiscutível na matéria, capaz de conduzir seus
clientes, em frações de segundo, ao mais profundo sono hipnótico.
Mas comigo nem bastaram a água açucarada, a música, o disco
visual... E o Dr. Aloísio me explicava esperançoso, que ás vezes são
precisas até setecentas (!) tentativas para se conseguir inibir o córtex
de uma pessoa.
(...)
Uma tarde, eu e o Hermínio conversávamos em seu gabinete
de trabalho... Dizia-me estar fazendo interessantes sessões de
regressão da memória e me contava os casos mais significativos.
Também eu lhe dizia dos meus sucessos e fracassos, narrando-lhe
exemplos maravilhosos de materializações ou fraudes
grosseiríssimas, que eu flagrava através do aparelho ótico, emissor
de raios infravermelhos, de propriedade do cientista norte-
americano Dr. Andrija Puharich... Ficou devendo o Hermínio uma
visita, à minha sessão, e ele, em retribuição, estudaria uma
oportunidade de eu também conhecer a dele. Mas o tempo corria e
nunca cumpríamos nossos compromissos recíprocos. (...)

Assim... resolvi efetivar, afinal, nosso encontro. Estávamos em


setembro ou outubro do ano de 1966. Marcamos a primeira sessão
para uma segunda-feira, quando Hermínio me apresentaria à Sra.
E.V., em cuja casa se realizariam os trabalhos... Quando os trabalhos
com uma sensitiva terminaram, o Hermínio perguntou se eu não
queria ser testado. Concordei e me deitei no sofá. Deixamos o
ambiente em penumbra, e o Hermínio iniciou seu trabalho... ligava o
gravador, sentava-se ao lado do paciente, na poltrona, e procurava
induzir-nos ao sono, enquanto fazia a imposição das mãos, segundo o
método de De Rochas. Eu − conforme já disse − não tinha nenhuma
esperança e me mantinha estirado, de músculos completamente
relaxados, menos por conhecimento prático do exercício do que por
total descrédito quanto aos efeitos. Ouvia-lhe a voz monótona... Tudo
conforme a boa técnica, mas já tão usado antes comigo sem qualquer
resultado positivo. Foi nessas cogitações interiores − ou quem sabe,
por causa delas! − que, depois de muitos minutos (a paciência de
Hermínio é chinesa), aconteceu o inesperado: perdi a consciência! O
Hermínio conseguira! (...)

Assim, ao lado da alegria, uma espécie de decepção me tocou:


e eu? Contudo, pelo menos alguma coisa nova acabava de acontecer
comigo. Restava prosseguir para vermos até onde chegaríamos.
Aguardei mais uma semana e, na segunda-feira seguinte, voltamos ao
apartamento da Sra. E.V. (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 305, 306 e
352-354)

O relato de Hermínio começa com o encontro propriamente dito; Luciano


faz referência a contatos preliminares. Luciano estava curioso quanto ao
trabalho que seu amigo conduzia e decidira acompanhar uma dessas reuniões.
Só que as narrativas contêm discordâncias graves. Se fosse apenas questão
de estilo redativo, ou mesmo a observação de certos acontecimentos sob
óticas diversas, nada de sério poderíamos objetar. No entanto, as
discrepâncias vão muito além. Primeiramente, as datas não batem: vários
meses separam a primeira reunião informada por Luciano, do que seria o
mesmo encontro, relatado por Hermínio (Luciano fala em outubro de 1966;
Hermínio em maio de 1967). Segundo declara Hermínio Miranda, Luciano
entrou em estado hipnótico quase automaticamente; entretanto Luciano afirma
que Hermínio necessitou de muita paciência, até obter resultado. Luciano não
faz menção ao cômico tombo que sofreu. A queda é comentada em outro
encontro, o qual não coincide com o que Hermínio dele descreve. Ou
ocorreram reuniões não noticiadas no texto de Hermínio, ou os autores estão
falando de coisas diferentes.
Vamos tabelar as informações, para facilitar a compreensão.

OS FATOS Por HERMÍNIO Por LUCIANO DOS OBSERVAÇÃO


MIRANDA ANJOS
Data do 1º encontro Maio de 1967, Setembro, ou outubro, de Divergência. As
[provavelmente sexta- 1966, em uma segunda- datas não conferem
feira] feira (p.353)
(p.19)

Local do encontro Amplo e confortável Imenso apartamento, da Parece ser o mesmo


apartamento, em Sra. E.V., no 6º andar do endereço
Cobacabana, (não prédio, de frente para o
informa o nome do mar, (não informa o bairro)
proprietário) (p.19) (p. 353)

Dificuldade ou Realizara várias tentativas Idem (p. 354) Relatos coincidentes


facilidade pré- sem sucesso (p.20)
existente para
vivenciar o transe
hipnótico

Método utilizado Passe magnético. Somente Passe magnético, Divergência.


por Hermínio para depois do transe atingido é concomitantemente com Hermínio privilegia
obter o transe que aplicou comando de comandos verbais (p. 354) excessivamente o
voz (p. 20) passe. Luciano
noticia o uso
concomitante do
passe e do comando
verbal

Resultado da Os passes obtiveram Somente após muita Divergência. Na


tentativa inicial de resultado imediato, insistência, por meio de opinião de um, a
atingir o estado classificado pelo operador comandos verbais, indução foi rápida; o
hipnótico como “indução finalmente atingiu-se o outro afiança que
fulminante” (p.20) estado hipnótico (p. 354) demorou bastante.
Hermínio atribui aos
passes o resultado
positivo; Luciano
parece conferir
maior valor ao
comando de voz

Atitude do Mostrava-se em pânico. Muita agitação e pouca Divergência. O


hipnotizado Respondia informação. Citou um relato perde a
durante o processo monossilabicamente. nome francês, que não coerência ante a não
Citou Necker, ministro de ficou claro na gravação (p. referência ao nome
finanças de Luiz XVI 354) de Necker por
(p.21) Luciano, que teria
sido a única
informação
consistente conforme
afirma Hermínio

Após despertar Sentiu-se faminto, comeu O tombo no tapete, para Divergência.


bolo, tentou levantar-se e Luciano, ocorreu em outra
desabou no tapete. reunião.

Pode ser que os autores estejam a falar de eventos diversos. Talvez


cada qual tenha classificado como “primeiro encontro” acontecimentos não
coincidentes. Seria discrepância muito grande as variações de datas, caso
estivessem falando dos mesmos episódios. Se entendermos que se tratam de
casos distintos, outro problema surge: significa que ocorreram encontros entre
Luciano e Hermínio, que este não relatou. Nesta hipótese, fica prejudicada
toda a narrativa concernente à inexperiência de Luciano no que tange às
regressões e, em decorrência, toda sorte de suposições podem ser levantadas.
Outro ponto que deve estar bem destacado é o resultado da indução: desde a
sessão inicial que Hermínio garante ter Luciano entrado em estado hipnótico
quase que imediatamente. Por outro turno, Luciano assegura de resistiu
bastante até ceder. Não só nesta reunião ocorreu dificuldade para atingir o
estado hipnótico, na que seria a segunda sessão, conforme o cronograma de
Luciano − que não bate com o de Hermínio −, ele diz que levou entre “dez e
quinze minutos” para ser vencido.
Mais adiante, apresentaremos os relatos por inteiro, para que possam
ser comparados.
RESUMO DAS REUNIÕES, NAS NARRATIVAS DE
HERMÍNIO E DE LUCIANO

A fim de tentarmos entender como foi que cada protagonista vislumbrou


os episódios regressionistas, faremos nova tabulação, especificando as datas
de todos os encontros, as coincidências e as discrepâncias. Talvez assim
tenhamos possibilidade de compreender os motivos que ocasionaram os
desacordos narrativos. Hermínio nomeou o primeiro encontro como reunião de
testes e começou a numerar as sessões a partir da 2ª, quando os encontros
passaram a ser realizados na residência do autor. No quadro, numeramos
linearmente, nominando “1ª sessão” a acontecida em maio de 1967 (no
cronograma herminiano), portanto, o que está na tabela a seguir, registrado
sob o título “1ª sessão” corresponde à sessão de testes; a 2ª sessão
corresponde à primeira de Hermínio. Assim foi feito como tentativa de
parametrizar os relatos, dada a não convergências das informações fornecidas
por um e por outro.

EVENTOS PRINCIPAIS Data e local


SESSÕE Conforme Conforme Conforme Conforme
S HERMÍNIO LUCIANO HERMÍNIO LUCIANO

1ª sessão É hipnotizado Demora a ser Maio/1967 – Setembro/outubro/1966
rapidamente. Pouca hipnotizado. Pouca (sexta-feira) (3) - -(segunda-feira)(3) -
informação útil; informação útil; apart. em apart. da Sra. E.V.
citou o nome de falou nome francês Copacabana (p.19) (p.353)
Necker (2); sente não identificado;
muita fome e come não fala da queda.
bolo, em seguida, Presença do
tenta erguer-se e cai Edson.(4)
no tapete. (1)
Nenhuma
referência ao
Edson (4)

19/5/1967 (sexta-
2ª sessão Foi rapidamente ao Entra em transe feira) – apart. de Segunda-feira seguinte
transe (P. 23). após 10 ou 15 Hermínio (p.23) à reunião acima – apart.
Revela que seu minutos (p.355). da Sra. E.V. (p.354)
nome é Lucie Ao despertar tenta
Simplice Benoist ficar de pé e cai no
Camille tapete, depois sente
Desmoulins. muita fome e come
bolo. (p.360) (1)
Nenhuma
referência ao Presença do
EVENTOS PRINCIPAIS Data e local
SESSÕE Conforme Conforme Conforme Conforme
S HERMÍNIO LUCIANO HERMÍNIO LUCIANO

Edson (4) Edson (4)

26/5/1967 (sexta-
3ª sessão Revela que a esposa Afirma que Necker feira) – não Segunda-feira seguinte
de Desmoulins é fará besteira (2) informa mudança à reunião acima – não
atualmente sua (p.362) no local da reunião, fala de mudança no
filha! (p. 47) supõe-se que local da reunião, supõe-
continuasse no se que continuasse no
apart. de Hermínio. apart. da Sra. E.V. (p.
361)
4ª sessão Não faz referência à A gravação desse 9/6/1967 (sexta- Ocorreu na “semana
perda da gravação, evento se perdeu feira) - não informa seguinte” (p.365), na
narrada por (Hermínio gravou mudança no local segunda-feira (p.367) -
da reunião, supõe-
Luciano, ao outra sessão por não fala de mudança no
se que continuasse
contrário, afirma cima) (p.365). no apart. de local da reunião, teria
que o “tape” existe Trabalhos Hermínio. continuado no apart. da
(p. 65). Não relata suspensos (p.367). Sra. E.V.
(5)
suspensão dos Para Luciano,
(5)
trabalhos. esta seria a
penúltima reunião,
depois fala do
último encontro em
1/9/1967, o qual,
pelo cronograma de
Hermínio, é o
penúltimo.
5ª sessão Só existe relato de Sem registro. 16/6/1967 (sexta- Sem registro.
Hermínio desse feira). Apart. de
encontro Hermínio.
6ª sessão Só existe relato de Sem registro. 23/6/1967 (sexta- Sem registro.
Hermínio desse feira) Apart. de
encontro Hermínio.
7ª sessão Só existe relato de Sem registro. 7/7/1967 (sexta- Sem registro.
Hermínio desse feira) Apart. de
encontro Hermínio.
8ª sessão Só existe relato de Sem registro. 14/7/1967 (sexta- Sem registro.
Hermínio desse feira) Apart. de
encontro Hermínio.
9ª sessão Só existe relato de Sem registro 21/7/1967 (sexta- Sem registro.
Hermínio desse feira) Apart. de
encontro Hermínio.
10ª sessão Final das sessões de Sem registro 4/8/1967 (sexta- Sem registro.
regressão feira) Apart. de
Hermínio.
11ª sessão 1ª Sessão “especial” Último encontro 1/9/1967 (sexta- 1/9/1967
EVENTOS PRINCIPAIS Data e local
SESSÕE Conforme Conforme Conforme Conforme
S HERMÍNIO LUCIANO HERMÍNIO LUCIANO

(p.248) (Hermínio informa feira) Apart. de Apart. de Hermínio.
ter havido mais Hermínio.
outra reunião).
12ª sessão 2ª Sessão “especial” Sem registro 8/9/1967 (sexta- Sem registro.
(p.233) feira) Apart. de
Hermínio.

Observações:

1)
Na queda de Luciano a seqüência dos acontecimentos está divergente:
Hermínio diz que Luciano comeu o bolo e depois tombou sobre o tapete;
Luciano declara que caiu no tapete e depois devorou o bolo. Além disso, a
queda teria ocorrido em datas distintas, nas versão de cada um! Pode ser
considerado confusão banal, que não afeta o essencial do caso. Vamos
admitir que seja assim, de qualquer modo, isso demonstra que os
participantes não observaram corretamente alguns dos acontecimentos, o
que pode levantar suspeitas sobre a existência de outras discrepâncias que
não foram anotadas.
2)
Segundo Hermínio, no 1º encontro Luciano referira-se vagamente ao
nome de Necker; contudo, no relato de Luciano a citação a esse
personagem é mais ampla e aparece no 3º encontro.
3)
As reuniões conduzidas por Hermínio, todas elas, são noticiadas às
sextas-feiras; Luciano afirma que foram às segundas-feiras!
4)
O “misterioso Edson”. Segundo Luciano o referido teria participado de
pelo menos dois encontros, nos quais deu sugestões e aplicou passes.
Hermínio, em momento algum, faz menção a esta pessoa!
5)
Ao final da 4ª sessão, no cronograma de Luciano, ele informa ter havido
suspensão dos trabalhos, fato não relatado por Hermínio. O jornalista
declara que precisava reavaliar se seria adequada a continuidade do
experimento. Então, consultou o “alto”, recebeu mensagem mediúnica que o
estimulava a seguir adiante e, a partir de então, as sessões reiniciaram.
Contudo, ele não descreve o que houve nas sessões seguintes, nem diz por
quanto tempo perdurou a suspensão.

Luciano assevera que expõe literalmente o que consta na fita (“vamos


acompanhar cada passo, cada momento, cada gesto” – p.352). Vimos que o
primeiro encontro de um e de outro estão completamente diferentes. Se
desconsiderássemos a 1ª reunião informada por Luciano e a comparássemos
os encontros seguintes, alguns pontos encaixam, porém outras contradições
permanecem e surgem novas. A verdade nua e crua é que os relatos são
desarmoniosos e repletos de pontos contraditórios entre si.
Se o prezado leitor estiver sentido dificuldades em acompanhar esses
desencontros, fique tranqüilo, nós também ficamos perdidinhos, e ainda não
nos achamos por inteiro. O que estamos fazendo é uma tentativa de dar
coerência ao que foi dito pelos envolvidos. Caso alguém, que tenha acesso à
obra, puder ajudar a esclarecer essas dúvidas, por gentileza, que o faça, pois
do jeito que a coisa está a fidedignidade do relato fica ameaçada.
A seguir, apresentaremos alguns dos diálogos por inteiro, bem assim as
avaliações que cada um dos protagonistas realizou. Apesar de os textos serem
longos, vale ser lido por quem estiver interessado em estudar o assunto.
Intercalamos alguns comentários de nossa autoria, entre [colchetes], em cor
vermelha, a fim de facilitar a visualização dos pontos controversos.
Luciano dos Anjos relata quatro sessões e depois a reunião de 1/9/1967.
Seguiremos a ordem por ele estabelecida e tentaremos encaixar as descrições
de Hermínio de forma coerente. Desse modo, o que Luciano diz ter sido o 1º
encontro, conforme o registro de Hermínio corresponderia à sessão preliminar,
a qual consta no capítulo 2, da primeira parte, intitulado “O Sempre e o Agora”
− assim nos parece, pois a esta altura já não temos mais certeza de nada!
Ver-se-á que, ora no texto de Hermínio, ora no de Luciano, abrem-se
espaços entre parágrafos. Assim foi feito na tentativa de alinhar os poucos
pontos similares encontrados. Quando não é possível qualquer identificação
comum, os textos seguem paralelos.

RELATO DA 1ª REUNIÃO
HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS
2. O SEMPRE E O AGORA p.353...

Um grupo do qual eu participava Assim, estupefato diante da sua própria


empenhava-se em algumas experiências história, resolvi efetivar, afinal, nosso
exploratórias nos abismos da memória integral. Na-
quela noite de maio de 1967 estávamos reunidos encontro. [seria este, pois, o primeiro
num apartamento amplo e confortável em encontro] Estávamos em setembro ou
Copacabana. outubro do ano de 1966. Marcamos a
[esta 1ª sessão é a única onde Hermínio não primeira sessão para uma segunda-feira,
especifica data, as demais, todas, cairam às quando o Hermínio me apresentaria à Sra.
sextas-feiras, podemos inferir que também tenha E.V., em cuja casa se realizariam os
sido o caso desta, apesar de Luciano declarar trabalhos.
que ocorreu em outro dia]
Já não me lembro quantos seríamos – não [Todos os encontros relatados por Luciano
mais que doze pessoas –, homens e mulheres,
teriam ocorrido às segundas-feiras; as
datas noticiadas por Hermínio caem todas
jovens, adultos e idosos. Diria que o nível intelectual
às sextas. Observe, ainda, a enorme
e cultural estaria situado razoavelmente acima da
discrepância entre as datas: Hermínio
média. A conversa era inteligente, a curiosidade
informa que ocorreu em maio de 1967,
sadia, o clima emocional de moderada excitação Luciano diz que foi em outubro de 1966!].
ante as eternas atrações do desconhecido, do
mistério, do ignorado. Para alguns de nós o Ali chegando conheci, também um médium
fenômeno da regressão da memória mantinha sua chamado Edson, que vai, depois, ter seu
aura de mistério, mas não era teoricamente pequeno papel no desenrolar das nossas
desconhecido ou ignorado, dado que, mesmo antes reuniões. Ele era médium já desenvolvido,
da explosão publicitária que projetara, em 1956, o experimentado, aparentando certa
livro de Morey Bernstein nas manchetes (The tranqüilidade muito útil.
Search for Bridey Murphy), estávamos familiarizados
com as famosas e inexplicavelmente esquecidas [este Edson, apesar de, para Luciano, ter
pesquisas do eminente coronel, engenheiro e Conde uma certa importância nesta e na reunião
Albert de Rochas d’Aiglun, na França, aí pela seguinte, não é citado em momento algum
primeira década do século XX. por Hermínio.]
Além do mais, o núcleo central do grupo era
composto de pessoas que estudavam com Quando os trabalhos com uma sensitiva
assiduidade o espiritismo e o praticavam, terminaram, o Hermínio perguntou se eu não
procurando utilizar seus conceitos básicos como queria ser testado. Concordei e me deitei no
sofá. Deixamos o ambiente em penumbra, e
princípios ordenadores da vida. De há muito a
o Hermínio iniciou seu trabalho. O
prática mediúnica confirmara para nós postulados
apartamento era imenso. A sala onde
essenciais do espiritismo, tais como a sobrevivência
estávamos tinha bem uns cinqüenta metros
do ser a doutrina das vidas sucessivas, ou quadrados. O Principal ornamento era um
reencarnação. retrato, em tamanho gigante, do falecido
[conclui-se que não havia ânimo entre os marido da Sra. E.V. Uma varanda grande
participantes para analisar criticamente contornava o apartamento, que ocupava todo
questões atinentes a essas matérias, a intenção o sexto andar de onde se observava uma vista
era buscar eventos demonstrativos das crenças maravilhosa da praia. Havia, sempre, uma
acalentadas pelo grupo] aragem muito fresca entrando pelas janelas.
À reunião daquela noite compareceu E por todas as paredes viam-se quadros,
Luciano. dos Anjos, desejoso que estava de enfeites, cortinas, etc., um mundo de
observar nossas experiências e debater nossos recordações e de relíquias da longa vida da
“achados”. Estávamos já habituados a receber, Sra. E.V.
seletivamente, alguns amigos que manifestavam
interesse em observar nossos trabalhos. A certa Não se ouvia ninguém, não se escutava nada,
altura Luciano aquiesceu em submeter-se aos testes senão os ruídos que vinham lá de baixo da
de suscetibilidade, como sujet, ou sensitivo. Duas
técnicas predominavam nesse grupo: a da sugestão rua, ou do vento soprando de leve. O
verbal, caracterizada especificamente como Hermínio ligava o gravador, sentava-se ao
hipnose, e a magnetização por meio de passes lado do paciente, na poltrona, e procurava
longitudinais, empregada pelo coronel de Rochas. induzir-nos ao sono, enquanto fazia a
Era comum a utilização combinada dessas duas imposição das mãos, segundo o método de
técnicas, ou da preferência de uma à outra, segundo De Rochas.
a natureza do sensitivo.
[nos comentários iniciais deste estudo falamos [note que a imposição de mãos é aplicada
sobre as fragilidades desta concepção de concomitantemente ao comando de voz. No
Hermínio a respeito da hipnose]
relato de Hermínio ele prefere destacar os
passes, como se fossem estes os que
Como este assunto é estudado em outros
levaram o paciente ao sono hipnótico]
escritos de minha autoria (ver, por exemplo, A
Memória e o Tempo), escuso-me de repetir aqui
considerações que nos tomariam muito tempo e
espaço.
Luciano, que contava então 34 anos de
idade, acomodou-se confortavelmente num sofá,
após livrar-se dos sapatos e afrouxar o cinto e o
colarinho. Sem ser negativa, sua atitude era de
moderado ceticismo, não ante o fenômeno em si da
regressão ou, mais amplamente, quanto à
reencarnação, de vez que era (e é) profundo
conhecedor da doutrina dos espíritos e participava
ativamente do movimento espírita, principalmente
como escritor, aproveitando-se da sua experiência
como jornalista profissional. Sua dúvida era quanto
à sua própria suscetibilidade às induções hipnóticas Eu - conforme já disse - não tinha nenhuma
ou magnéticas. Em várias tentativas anteriores, com esperança e me mantinha estirado, de
diferentes operadores, não conseguira atingir nem músculos completamente relaxados, menos
mesmo os estados superficiais do transe anímico. por conhecimento prático do exercício do
Não custava, porém, tentar mais uma vez ... que por total descrédito quanto aos efeitos.
[no que se refere à dificuldade em atingir o
Ouvia-lhe a voz monótona... Tudo conforme
a boa técnica, mas já tão usado antes comigo
transe hipnótico, as narrativas coincidem
sem nenhum resultado positivo.
plenamente. Infelizmente, é uma das poucas
partes em que encontramos harmonia entre os
relatos]
Após as instruções preparatórias e os
esclarecimentos de praxe, ele fechou os olhos,
relaxou o corpo e passou a respirar regularmente,
enquanto os passes eram aplicados lentamente,
sem tocá-lo. Diria que a indução foi fulminante. Foi nessas excogitações interiores - ou, quem
Em escassos minutos percebia-se que ele sabe, por causa delas! - que, depois de
mergulhara fundo no transe. Pouco depois, muitos minutos (a paciência do Hermínio é
vencendo as inibições e dificuldades típicas de chinesa), aconteceu o inesperado: perdi a
quase todos os sensitivos nas suas experiências consciência! O Hermínio conseguira! O
iniciais começou a responder às primeiras perguntas ciclo do processo parecia ter-se completado!
do magnetizador. Estava literalmente em pânico, [Note a grande discrepância entre as
desconfiava de tudo e de todos, como que acuado, narrações! Um diz que a indução foi
temendo alguma tragédia iminente e pessoal. As fulminante; o outro afirma que o operador
respostas eram sumárias, quase monossilábicas, precisou de muita paciência para obter o
revelando extrema agitação íntima. Vivia, resultado!]
obviamente. um momento de grande tensão
emocional e sob pressões insuportáveis, cujas Do que houve, só vim a saber mais tarde,
origens e motivações recusava-se obstinadamente a quando o gravador foi religado e pude ouvir
revelar. Tornou-se, por conseguinte, muito difícil, meu primeiro diálogo com o Hermínio.
senão impraticável, formular um juízo avaliador Havia mais agitação do que qualquer outra
sobre aquele amontoado um tanto incoerente de coisa. A certa altura, eu disse:
frases soltas. Um só elemento identificador emergiu,
- Você me abandonou.
afinal, daquele confuso estado de espírito: a
referência a Necker. Luciano em transe falava no
Não sei que sentido isso tinha e muito pouco
famoso ministro das Finanças de Luís XVI não como
mais foi possível ser entendido. O Hermínio
uma personagem embalsamada nas páginas de um ficou em dúvida e pediu a opinião do Edson,
texto histórico, mas como alguém vivo e atuante, ali ao lado. Este admitiu que se tratasse não
cujas decisões estavam influindo ali, naquele do meu espírito, mas de simples
momento, no fluxo de relevantes acontecimentos manifestação mediúnica, o que, em princípio,
políticos. o próprio Hermínio também aceitou.
Esse importante elemento informativo nos
levava ao contexto da Revolução Francesa, Embora sem segurança, concluímos, porém,
identificava um período histórico, mas era muito que a manifestação tinha ligação com a Sra.
pouco para se manter sobre ele uma hipótese Isabel, que me precedera na poltrona, cujo
plausível. Era, contudo, uma indicação preliminar marido, um inglês, desencarnara em desastre
suscetível de ser prudentemente explorada. Pelo de aviação e, na espiritualidade, estava
menos esta especulação era válida: estaria Luciano supondo que ela o abandonara, por casar-se
revivendo cenas ou situações que testemunhara no em segundas núpcias. Ele apresentou um
período da Revolução de 1789? Era cedo para nome francês, que não conseguimos apurar
tirarmos conclusões, mas, preliminarmente, a bem na gravação. Reclamava de qualquer
hipótese servia para entender seu agitadíssimo pressão na altura dos rins. Os dados pareciam
estado emocional. Estávamos todos bem
encaixar-se bem e devo dize que nunca havia
visto antes aquela senhora, nem lhe conhecia
conscientes, contudo, de que a fragmentária
a história, que só mais tarde o Hermínio me
experiência suscitava mais perguntas do que as que
contaria.
tentara responder.
Para não prolongar indevidamente sua
[neste ponto, as narrativas tomam rumos
agitação, ele foi logo despertado com palavras diversos. Hermínio informa que houve
tranqüilizadoras. Lembro-me muito bem que ao referência a Necker, o que levaria a
regressar do sempre para o agora ficou ainda por pesquisa ao contexto da Revolução
alguns segundos entre uma situação e outra, já de Francesa; Luciano declara ter proferido
olhos abertos, olhando-me fixamente, ainda uma frase solta, que teria ligação com o
assustado, como se buscasse decidir, com toda a problema de uma pessoa presente ao
rapidez possível, se eu era amigo ou inimigo, se encontro, nada sobre a Revolução!]
estava ali para ajudá-lo em alguma coisa, olhá-lo
com indiferença ou arrastá-lo sumariamente para
alguma masmorra infecta, onde faria o vestibular da
guilhotina. Logo, porém, me identificou
corretamente: eu era um sujeito pacífico, seu amigo
pessoal, não lhe apontava nenhuma arma
ameaçadora. Graças a Deus, deve ter pensado com
seus botões...

[no relato de Luciano, relativo à sessão seguinte,


neste ponto o Edson teria interferido, aplicando
passes revigorantes. Hermínio parece
desconhecer a existência dessa pessoa...]
Despertou faminto, devorou rapidamente uma
generosa porção de bolo e pediu mais, sem a
mínima cerimônia. Em seguida levantou-se, deu um
[este episódio do tombo no tapete Luciano o
passo incerto e desabou no tapete macio, como se
situa no encontro seguinte, não neste.]
não tivesse pernas. Na excitação do momento,
havíamos sido imprudentes e precipitados – era
necessário esperar alguns minutos em repouso até
que seu espírito reassumisse totalmente os
controles do corpo físico antes de empreender
qualquer movimentação maior. Assim como o
desprendimento se realiza por etapas, também a
reintegração no corpo tem seu ritmo próprio e suas
fases bem definidas, embora variáveis de pessoa
para pessoa. Usualmente os primeiros músculos a
se movimentarem são os das pálpebras; em
seguida, os dedos das mãos ou dos pés, braços,
pernas, até que todo o corpo esteja novamente sob
controle da vontade. É freqüente observar nos
sensitivos em despertamento a concentração da
consciência na área específica da cabeça –
nenhuma outra sensação física, nem mesmo senso
de orientação quanto ao posicionamento do corpo. É
como se todo o ser estivesse na cabeça, fosse
apenas a cabeça.

Conclusão imediata: Há nítido contraste entre o testemunho de Hermínio e o de


Luciano: as datas não coincidem, os acontecimentos são diferentes e, até
mesmo nos trechos onde se encontram alguns pontos em comum, detectamos
discordâncias, como é o caso do processo hipnótico, que para um foi fácil de
ser obtido e para outro custoso. Sigamos, avaliando o 2º encontro, para vermos
se deparamos conformidade nos depoimentos.

RELATO DA 2ª REUNIÃO
HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS
3. O AGORA QUE JÁ PASSOU p.354...
De tudo isso, uma conclusão era
evidente por si mesma: Luciano apresentava
condições de suscetibilidade que justificavam
o aprofundamento da pesquisa.
Foi o que decidimos fazer, não em
reunião mais ou menos aberta como aquela,
na qual realizamos os testes, mas sob Assim, ao lado da alegria, uma espécie de
condições que nos assegurassem o decepção me tocou: e eu? Contudo, pelo menos
adequado grau de privacidade e segurança alguma coisa nova acabava de acontecer comigo.
para um trabalho mais amplo. A primeira Restava prosseguir para vermos até onde
reunião com estas características foi marcada chegaríamos. Aguardei mais uma semana e, na
para a noite de 19 de maio de 1967, em meu segunda-feira seguinte voltamos ao apartamento
apartamento. da Sra. E.V.

[19/5/1967 caiu numa sexta-feira. Segundo [se formos seguir rigorosamente o que foi dito
Hermínio, houve mudança no local da por Luciano, esta reunião teria acontecido em
reunião, no relato ao lado, Luciano afirma outubro de 1966, numa segunda-feira. Também
que o encontro realizou-se no mesmo o local do encontro não confere, Hermínio
local anterior] noticia que foi em sua casa, para Luciano
continuaram a reunir-se no apartamento da Sra.
E.V.]

Eu estava apenas entre desanimado e curioso,


enquanto o Hermínio me consolava:

-Bem em última análise, teremos conseguido


comprovar, mais uma vez, que nesse tipo de
trabalho é possível, de permeio, surgir uma
manifestação mediúnica. Nosso tempo não estará
perdido nem foi gasto em vão. E sempre uma
contribuição que teremos dado à pesquisa.

Porém a segunda sessão nos pareceu bem


melhor.
Como da primeira vez, Luciano foi
[vê-se que ambos falam que este seria o
rapidamente ao transe. Sua primeira palavra
segundo encontro]
(vento) me pareceu uma queixa quanto ao
desconforto causado pela brisa que soprava Entrei novamente no estado de inconsciência,
pelas janelas abertas do décimo andar, onde após dez ou quinze minutos de indução.
estávamos. Levantei-me para fechá-las e [os desacertos entre os dois continuam: para
retomamos o diálogo que se iniciava. Hermínio o transe foi rápido, para Luciano
precisou de tempo]

O que se segue é uma transcrição


desse diálogo, com o mínimo de correções,
para conservar-lhe o frescor da
espontaneidade e o tom de autenticidade que
ficou nos tapes. A primeira fala é minha.
(...)
[Eliminamos o trecho no qual Luciano
[Na transcrição de Hermínio − veja comentário
narra episódios da vida presente,
ao lado − aparece Luciano inicialmente
conforme o relato de Hermínio, uma vez
recordando eventos de sua existência atual e
que o jornalista a ele não faz referência no
depois Hermínio o induz a falar do passado
que diz ser a narrativa desse encontro.
remoto. Luciano, não faz referência a esta
Estas podem ser conferidas no livro,
recordação preliminar, começa já dentro da
capítulo 3, “O Agora que Já Passou”.
rememoração de outra vida. A princípio isto
Contudo, nesta parte omitida há uma nota
não seria considerado contradição −
inserida por Luciano dos Anjos, que
supostamente um quis relatar toda a gravação,
reproduzimos a seguir]
outro teria privilegiado a parte que julgou mais
interessante. Mesmo assim, deveria Luciano ter
“Na segunda parte deste livro o leitor
noticiado a existência da outra parte, porém
encontrará, com todas as suas minúcias,
não vamos ser severos neste quesito. A maior
o desenrolar dessa primeira experiência,
dificuldade é que, mesmo nas lembranças
bem como toda a sintomatologia
relativas a existência francesa os relatos não
registrada antes, durante e após o
batem.]
desdobramento. (Nota de Luciano dos
Anjos.)”
Houve, então, entre mim e o Hermínio um longo
[O problema é que não encontramos, na diálogo, ainda entremeado de agitação, mas muito
parte escrita pelo jornalista, qualquer mais substancioso, o qual passo a transcrever,
relato que lembrasse o que foi descrito ipsis litteris, sem quaisquer correções, isto é, tal
por Hermínio Miranda.] qual ficou na fita magnética:
- que esta se passando com você?
- Estou vendo uma sala ...
- O que tem aí na sala?
- ... uma sala muito grande ... Umas
pessoas conversando, em pé, em volta duma
mesa. Eu estou parado na porta. Discutem...
discutem ... com uns papéis. Parecem querer
minha opinião. Mas não me pedem. Não querem
Ele se mostra um tanto agitado e diz
que eu fale. Estou com a mão no queixo, na
ter medo.
porta ... parado... olhando, acompanhando,
[provavelmente, aqui dramatiza, para dar
calado ...
mais ênfase ao personagem que
- Mas que local é esse?
representará]
- Não. Uma sala grande ... Parece um
gabinete.
Intensificamos os passes e as sugestões
tranqüilizadoras. Após algum tempo em
silêncio, volta a falar, com voz lenta e
apagada. É ainda Luciano e está em casa.
Está com dois anos e a regressão prossegue,
enquanto sua voz como que se apaga num
murmúrio ininteligível. No momento seguinte,
parece tomar fôlego, assumindo imediata-
mente uma personalidade adulta, confiante,
segura de si e consciente das circunstâncias
que o envolvem, com pleno domínio do
contexto em que se encontra.
– Onde você se encontra no
momento? – pergunto.
– Aqui.
– Quem é você? Como você se
chama?
Breve hesitação, e depois:
– Camille.
[revela o nome. Observem que na - Como é que você se chama?
narrativa ao lado isso não se dá] - Não sei se devo... Não interessa isso ...
– Qual é sua idade? [resiste em revelar o nome. Hermínio diz que,
– 25 anos. após breve hesitação, o nome foi proferido]
– Onde você mora? - Está bem. Não é necessário que você
– Paris. diga. Qual é sua função? O que você faz aí?
– O que você faz aí? - Alguma coisa esperam de mim.
– Vim estudar.
[vê-se que o rumo dos diálogos é
completamente diferente]

- Sei... Vá ver então o que são os papéis?


- Eu sei o que são.
- De que eles tratam?
- Política.
- Quem são esses homens que estão
examinando os papéis?
- Um é baixo... Os outros não distingo
direito.
- Como é que chama esse homem baixo,
aí? (Longa pausa. Hesitação.) Você quer evitar os
nomes?
- Quanto menos se fala, mais se vive.
- Exato!
- É um perigo falar em nomes. Não se sabe
o dia de amanhã.
- Mas, em que ano estamos, aí?
- Não sei, mas posso ver a folhinha.
– Em que ano você nasceu? - Então veja.
– 1760. - Está atrás. Não tem o ano ...
– Onde você nasceu? - Vá até à folhinha e veja.
– Em Guise. - ... janeiro, 1781.
– Onde é isso? [as datas não são as mesmas, o que deixa clara
A manifesta ignorância de seu que os relatos se referem a encontros
interlocutor parece irritá-lo um pouco. diferentes. No entanto, apesar das narrativas
Responde com certo enfado: quase que totalmente divergentes, ambos
– Na França! Em Aisne! garantem estar falando do 2º encontro!]
– Você veio estudar o quê? - 81? As coisas estão ficando mais claras
– Advocacia. Por quê? LC-1 para você, agora?
O interrogatório começa a incomodá- - Por quê?
lo. Por que tanta pergunta? - Você não está distinguindo melhor as
– Quero saber. Queria que você me pessoas e os objetos?
informasse essas coisas. - Não sei... "Eles" querem que eu dê uma
Longa pausa. Em seguida: palavra de orientação. Eu sei o que eles querem.
– Estranho! - Então procure saber o que aconteceu
– O que você está achando estranho? depois disso ...
– Você. Quem é você? - Mas eu não devo... Não devo... Sei o que
– Sou um amigo seu. querem. Não devo.
Longo silêncio. Parece buscar algo - Você está aí num momento especial da
nas profundezas da memória. sua existência; mas o que aconteceu depois disso?
– Engraçado! Acho que te conheço... Qual foi o acontecimento em que você tomou parte
Não me lembro de onde... Você não é de que precipitou alguma coisa?
Guise? Você não nasceu em Guise? - Não sei. Alguma coisa muito grave deve
– Não. Acredito que não. Você sabe estar acontecendo.
que vivemos uma porção de vidas? - Você sabe. Está tudo guardado na
Nova pausa. memória do seu espírito.
– Não sei o que é isso... [clara indução, para que o paciente responda
– Temos muitas vidas. Vivemos uma conforme a teoria advogada pelo operador]
existência, morremos e tornamos a nascer. - Sei, mas não devo falar. Prudência,
– Por que isso? Por que essa nessas horas, é a melhor companheira. Querem
conversa? que eu fale. Eu nem sei de que lado estou. . .
– Se você pesquisar na sua memória - Sei. Então, vamos deixar esse período aí.
encontrará lembranças de outras existências. Recuemos um pouco mais, na sua memória, para
– Por que isso tudo? – pergunta você relembrar-se de fatos menos tensos, menos
evidentemente irritado. – O que você quer? cheios de preocupação. Procure recordar-se do
– O que você está fazendo aí? tempo em que você era ainda jovem e procurava
– Vim estudar! abrir caminho na vida, para assim guardar uma
– Mas no momento o que você está lembrança melhor e rememorar.
fazendo? - Há um riacho... estou brincando, numa
– Andando... Passeando... subida ...
– Onde? - Quantos anos você tem?
– Na França! Em Paris! -Uns 17 ... 18...
– Em qual rua? - Em que ano você nasceu?
– Saint Honoré... - Não me lembro bem ... 1721 ... Acho que
– Onde você mora? é isso.
– Em Paris! Aqui... - Onde você nasceu? Em que cidade?
Como insisto em saber o nome da rua - Lyon.
em que fica o colégio dele, sua impaciência - Procure lembrar-se. Você dispõe, neste
vai num crescendo. momento, da sua memória integral.
– Ora... que coisa! Por quê? [Aqui vemos, nitidamente, Hermínio Miranda
– Gostaria que você me dissesse. conduzindo o paciente a responder conforme a
– Não vejo razão. teoria da “memória integral”, por ele defendida.
– Você diz que tem 25 anos. Quando Aliás, a leitura das sessões mostra que
vai concluir seu curso? freqüentemente Hermínio como que força o
– Agora. Este ano. regredido a acatar os postulados que abraça.
– Em que ano estamos? Em vista de Luciano comungar as mesmas
Outra pergunta que lhe soa crenças que Hermínio Miranda não ocorrem
absolutamente imbecil. Como é que alguém conflitos. Seria interessante acompanhar um
com quem conversamos não sabe o ano em trabalho hipnótico em alguém que rechaçasse
que nos encontramos? Responde de má essas suposições. Ainda assim, Luciano não
vontade: responde placidamente ao que lhe é imposto:
– 1785. Por quê? muito pouco da suposta memória integral
[Ver-se-á na narrativa de Luciano, ao lado, apregoada por Hermínio foi exibida pelo
que nenhuma das datas citadas jornalista. Em outro trecho, ele insiste com o
coincidem] regredido: “Você sabe. Está tudo guardado na
– Queria saber. Estou procurando memória do seu espírito”. Porém, a resposta é
localizar bem a gente no tempo e no espaço. pífia.]
Você acha estranho isso tudo? - O corpo está girando... ficando leve ...
- Como é que se chamava seu pai?
Certamente tudo é estranhíssimo para - Antoine ...
ele. Vejamos bem o quadro: um jovem - E sua mãe?
estudante de Direito passeia em pleno ano de - ...
1785 pela rua Saint Honoré, em Paris, [lembra o nome do pai, mas não consegue
quando é interceptado por um sujeito não dizer o nome da mãe! A propalada memória
menos estranho que lhe dispara uma série de prodigiosa aqui falha dramaticamente!]
perguntas perfeitamente idiotas. E o pior é
que ele tem a impressão de que conhece tal - Você é capaz de vê-lo, agora? Ver o seu
pessoa de algum lugar. O que estaria pai? Procure lembrar-se de uma época em que ele
acontecendo, afinal de contas? ficou mais bem gravado na sua memória. A figura
[Há alguma coisa não bem explicada nesta dele... o seu pai, em plena atividade, realizando
explanação de Hermínio Miranda, vejam alguma coisa que você tenha presenciado.
só: a narrativa indica que Luciano Longa pausa.
estivesse revivendo sua vida como - Ele foi covarde ...
Desmoulins, na França. Neste caso, não - Por quê?
seria mais ele, Luciano, quem estava - Não sei direito.
presente, sim Camille, poder-se-ia concluir - Você está fugindo às lembranças ou elas
que Luciano se apagara e fora substituído é que fogem de você?
por Desmoulins (afinal ela estaria - Não sei. .. diz que foi covarde ...
passeando pela Paris do século XVIII). A - Você vê alguém aí à sua volta?
questão é que o jornalista não responde - Não.
plenamente como Desmoulins, um - Onde é que você se encontra no
“pedaço” de Luciano se mantém ativo. O momento?
que ambos parecem não perceber é que - Em casa de um amigo.
Luciano tinha de estar presente para que o - Descreva o que vê.
diálogo fluísse. Se a identidade atual - Uma sala grande. .. muitas janelas. ..
“sumisse” por completo, Hermínio teria de muitas... muitas. Passadeiras, quadros.
manter conversação com uma pessoa do - Não tem mais ninguém aí?
séc. XVIII em todos os sentidos! Peripécia - Não. Estou esperando alguém.
que nos parece muito difícil de ser - Aguarde um pouco até que a pessoa
realizada! O que supomos estar chegue. O que você foi fazer aí?
demonstrado nessa cena é o esforço de - Acho que tínhamos um encontro. Agora já
Luciano em representar o que ele julgava chegou.
fosse a personalidade de Camille - Como é esse amigo?
Desmoulins. O único modo que reputamos - É uma mulher.
viável de conceber-se que Luciano - Como se chama?
“desaparecesse” e fosse substituído por - Therese.
Desmoulins, conforme parece nos dizer - O que você foi discutir com ela?
Hermínio Miranda, seria que a conversa - Acho que vim pedir alguma coisa.
transcorresse no contexto daquele - Que é, então?
período: Hermínio e Luciano/Desmoulins - Está sorrindo... de branco ... Abriu a porta,
teriam que dialogar no francês do séc. entrou. Estou de pé, encostado na outra
XVIII, fazendo uso dos maneirismos da extremidade da sala, apoiado na parede, mão no
época. O que se pode dizer dessa suposta queixo, olhando ela chegar. Ela está rindo.
revivência é que a personalidade atual - Sobre o que vocês conversaram?
estivesse recessiva, atuando em segundo - Ela vem pedir por alguém.
plano, mas não apagada. Desse modo, a - Procure lembrar-se, especificamente, o
sugestão que Hermíno nos dá torna-se que é.
inaceitável −(Vejamos bem o quadro: um - Acho que é uma chantagem o que estou
jovem estudante de Direito passeia em pleno fazendo.
ano de 1785 pela rua Saint Honoré, em Paris, - Bem, se é uma lembrança desagradável,
quando é interceptado por um sujeito não não é necessário que você insista nela.
menos estranho que lhe dispara uma série de - Therese. É minha amiga; ou noiva... ou
perguntas perfeitamente idiotas.) Na irmã... não sei... de um amigo meu. Não sei o que
descrição que Luciano faz da indução que fui fazer ali.
experienciou, o recesso da consciência, - Você, o que realizou nessa vida? Você se
em vez de apagamento, fica patente. Na dedicou mais a quê?
parte escrita por Luciano, ao lado, consta - Eu era homem de confiança. .. Há alguma
essa narrativa, observemos um trecho. coisa que está para acontecer, que eu não sei. ..
“A voz do Hermínio era poderosa, Eles pensam que eu sei tudo. Eu sei, mas não
imperativa, ecoava como uma posso dizer. Eles sabem que eu sei.
imposição absolutamente férrea. - Mas, agora que os acontecimentos já se
Minha ausência de controle psíquico passaram, você poderá recordar-se disso sem
era total, o clima psicológico parecia nenhuma agitação, não é? Você está apenas se
infundir-me uma desarmonia geral no lembrando desses acontecimentos. Você está, já,
meu sistema interior e, quando afinal o em outra existência e perfeitamente tranqüilo.
paroxismo do pânico me envolveu, Pode recordar-se disso sem afetar seu sossego.
perdi a consciência! Seguiu-se o - Às vezes eu tenho medo.
diálogo que vimos acima, o qual durou - Você está com medo?
cerca de uma hora”. - Às vezes... A gente nunca sabe quando
Apesar de ser um testemunho vai cair numa cilada.
dramatizado, percebe-se que a - Mas isso são fatos do passado. Você já
consciência do paciente vai, aos poucos, passou por tudo isso, não há razão para se afligir.
recolhendo-se, até que a suposta - Não sei... não sei... É preciso desconfiar
personalidade de Camille tome a dianteira, de todo mundo. Não sei de que lado fico.
passando Luciano a atuar - Bem, vamos saltar por cima desse
subliminarmente. período de indecisão. O que foi que aconteceu?
Não se pode esquecer que a suposição de - Preciso sobreviver ...
que a real personalidade do paciente - Você sobreviveu, evidentemente.
possa se apagar e ser substituída por - Sobreviver... que as coisas parece que
outra consciência − mesmo que se trate vão mudar. Preciso ver de que lado sopram os
de uma dita encarnação pregressa − ventos ...
contraria as boas teorias da hipnose, as - Muito bem, acho que por hoje é bastante.
quais postulam que o hipnotizado nunca Vamos despertar ...
fica completamente sob o controle do
operador. Por isso é que os que se Antes de entrar na análise desse diálogo
submetem à hipnose, em certos casos, devo descrever, pormenorizadamente, todos os
rechaçam os comandos que lhe são sintomas que me acudiram durante o processo
dados: a consciência, recessiva mas hipnótico (ou puramente magnético?).
vigilante, não acata qualquer imposição. Fechei os olhos e me estendi na poltrona,
Se a sugestão significar ofensa, agressão, procurando relaxar todos os músculos do corpo.
ou algo que o paciente entenda perigoso Até as pálpebras, procurei deixá-las como mortas.
para si, ele rejeitará.] Em meu pensamento passavam, às vezes,
algumas idéias de descrédito pelo êxito; procurei
– Há alguma pessoa aí perto de você? afastá-las sistematicamente, preocupando-me,
– Não. Estou sozinho. para isso, em cuidar de ouvir apenas a voz mo-
– Como você vê as coisas? Está bem nótona do Hermínio, enquanto fixava o interior
claro o ambiente? Está escuro? Como é? negro de minha própria visão.
– Sozinho... passeando... andando... [Observa-se que Luciano destaca a indução
– Você não está vendo ninguém na verbal como ferramenta que o levou ao estado
rua? hipnótico, neste ponto, sequer faz menção ao
– Não. Não reparei. É. Tem gente por passe magnético]
aí. Lá longe, ali, lá... Comecei, depois de dez minutos, a ficar
– É dia, ou noite? ligeiramente tonto, mas (por descuido, pois não
– É dia. Está claro. deveria) admiti, de longe, que isso fosse normal,
– E o que você vai fazer? Somente dada a total paralisação dos meus músculos e
passear? tensões.[tendões?] A tonteira, porém, foi
– Só. Por quê? aumentando e a respiração tornando-se cada vez
– E depois você volta para o colégio? mais difícil. Eu ofegava. A cabeça passou a girar.
– Volto. Primeiro, devagar; depois, vertiginosamente.
A situação é incongruente, ridícula, Poderia parar aquele estado "crisíaco"? Não quis
absurda e ele continua a buscar na memória tentar. Porque não desejava ou, talvez... porque já
a identidade perdida do seu interlocutor. Es- não pudesse. Ainda ouvia, ao longe, agora bem
boça um sorriso e repete: mais distante, a voz do Hermínio pedindo calma,
– Conheço você. Não me lembro de calma, calma ... As mãos então começaram a
onde... Você estuda onde? formigar ligeiramente; depois, mais e mais.
Formulo uma resposta evasiva. Que O formigamento foi subindo e, na medida
outra coisa poderia dizer? em que atingia outras partes do corpo, deixava as
– Estou apenas procurando conversar anteriores anestesiadas, completamente mortas,
um pouco com você. insensíveis, passíveis de serem alfinetadas ou
Mas ele insiste: queimadas sem que me desse conta disso. O
– Você estuda onde? formigamento, afinal, chegou ao plexo solar,
– Não estudo aqui, não. invadiu os intercostais, ganhou os peitorais e,
– Hmm. nesse instante, julguei que alguma coisa muito
– Você se lembra de ter-me visto em grave estava acontecendo. Descontrolei-me
algum lugar, não é? interiormente, tive medo, agitei-me ainda mais,
– Conheço você. Lembro bem. porém... não fossem mesmo os estertores da
– Descreva, então, meu tipo. desencarnação (aquele medo, é claro, só podia
– Como você é? Por quê? É você, provir da crença nessa iminência), eu teria
como você é... desencarnado, porque não tinha mais condições
– Diga como estou vestido... qual a de reagir.
minha aparência física. [Tem-se a impressão de que o paciente
– Igual a mim... umas roupas... vivenciou algo semelhante a uma crise
(interrompe e emite uma enorme histérica, desencadeada pelo interesse em
exclamação). Ahnnnnnnnn! Engraçado! Você dramatizar a experiência hipnótica, a fim de dar
não é parisiense... Não usam essas roupas maior veracidade à regressão.
aqui. Geralmente, quando o paciente atinge o nível
– São antigas, não é? Qual a idade de relaxamento muscular conforme relatado,
que você me atribui? corpo e mente quedam-se inertes e agradável
– Isso é que eu não entendo, porque... sensação de leveza predomina. Do que Luciano
Engraçado! Que coisa esquisita! Eu fazia diz, depreende-se que seria um paciente
idéia de um garoto, e você é um homem. incomum: ao mesmo tempo que se entrega ao
Devo me lembrar de você com uns 10 anos... comando hipnótico, a ele resiste. Outra
11... um garoto. Não estou entendendo bem questão é a sensação de morte, que diz ter
isso. Que coisa esquisita! Agora você deve experienciado: temos dúvidas se alguém se
estar com uns... 30 anos... Não sei... manteria sob sugestão ante sensações tão
Esquisito! Ou então não é você! É muito drásticas. A nosso ver, o autor quis teatralizar
parecido. Muito parecido e não sei por que eu a experiência.].
conheço... A voz do Hermínio era poderosa,
Está realmente perplexo. Há um imperativa, ecoava como uma imposição
baralhamento inexplicável, incompreensível absolutamente férrea. Minha ausência de controle
na seqüência do tempo. psíquico era total, o clima psicológico parecia
– Você pode identificar minha infundir-me uma desarmonia geral no meu sistema
ocupação pela roupa? Um militar? Um interior e, quando afinal o paroxismo do pânico me
sacerdote? envolveu, perdi a consciência! Seguiu-se o diálogo
– Não! Eu diria que é um autêntico que vimos acima, o qual durou cerca de uma hora,
irlandês. (Ri.) Mas que coisa engraçada essa! em seqüência do que, teve início o processo de
Você... Deixe-me ver se me lembro, meu retorno.
Deus... Onde é que eu o vi? Onde foi? (Longa Aqui, também, vale a pena conhecer suas
pausa.) Ah! Meu Deus! Eu me lembro! Você é etapas. A primeira coisa que me aconteceu foi
filho... Não... você é sobrinho... sobrinho... voltar a ouvir a voz do Hermínio, que me mandava
Ah! Eu me lembro! Sobrinho de uma moça, despertar. Mas isto não foi tarefa muito fácil. Eu
de uma moça... Como é, meu Deus? estava novamente consciente, mas só tinha noção
Era de uma parenta, de uma irmã... Espera da própria cabeça. Do pescoço para baixo, eu
aí... Meu Deus do céu, que coisa! Você nada sentia, embora me mexesse um pouco, sem
tinha... você...Você não tem...? Seu pai não agitação. Essa sensação me trouxe novo pânico.
se chama...? Você não tem uma tia... Não... Eu não sabia o que houvera acontecido durante
um tio que era casado... Um tio chamado... aquela hora decorrida, e pensava que ainda estava
Rueben? tudo por começar, em plena fase inicial. O medo
– Como é o meu nome? voltou, principalmente porque eu ouvia o Hermínio
– Como era o seu nome, meu Deus? repetir: “Vamos despertar”; mas, estranhamente,
Você era... Você... Deixe-me ver... Ora... sentia-me flutuando a uns trinta centimetros acima
você... havia um problema na família. Seu tio do sofá, sem capacidade de me justapor a mim
veio a Paris. Agora! Seu tio veio a Paris, você mesmo outra vez. O pânico interior cresceu,
era ainda um garoto e ele trouxe você. Foi porque pensei, por um instante, que houvesse
isso. Engraçado! Que coisa! Seu tio... desencarnado, que minhas duas partes não se
Rubens?Acho que era Rubens Brau ... "colariam" mais(7). Agitei-me e confesso que falei
– O que ele fazia, esse tio? para o Hermínio, em tom de súplica:
– Ele foi arranjar um negócio de - Ajude-me, Hermínio. Eu estou passando
dinheiro com o Mira... Não. (Pausa.) Você muito mal.
conhece o Mirabeau? O Hermínio deve ter logo compreendido
Outra pergunta embaraçosa. A todo o quadro e sorriu, respondendo:
resposta é curta e sem compromisso. - Não é nada, Luciano; isso vai passar. É
– Sim. assim mesmo.
– Ele esteve em Londres ... Quando [Evidente dramatização. Luciano apenas se
foi? Foi uma história que eu não estou imaginava fora do corpo. Não há qualquer
lembrando. Mas havia um amigo que indício de que a hipnose tenha o poder de
interferiu. Está meio confuso, meu Deus do deslocar a alma do corpo, aliás, parece-nos que
céu! Está confuso, porque você era um em hipótese alguma tal descolamente seja
garoto. Como era o nome de seu pai, meu possível, a não ser em caso de morte − ainda
Deus? (E para mim:) Como é o nome de seu assim, levando-se em conta a suposição de
pai? que exista uma alma a ser desligada, coisa da
– Robert? – arrisco eu. Ele explode: qual não se tem plena certeza, pois pode ser
– Robert! Ah! (Ri de satisfação. que as coisas aconteçam de forma diferente da
Desvendou o mistério.) Era irmão do seu pai qual comumente se supõe. Mesmo sem
(o tio): Rueben (Ri descontraidamente, com adentrarmos em discussões sobre o dualismo
gosto.) Você tinha acabado de nascer. É... e o unitarismo, podemos destacar que os que
Mas como pode? Isso não tem sentido! Ele admitem a existência de duas estruturas
tinha ido a Londres fazer o quê? Negócio de diversas coexistindo harmoniosamente durante
dinheiro. O Mirabeau tinha ido. E Rueben a existência terrena − corpo e alma −, mesmo
também! E você veio a Paris depois... Tinha estes concebem que enquanto a vida se
uns 10 anos, não mais que isso, com o seu mantém estas estruturas são inseparáveis.
tio. Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos, não
– E foi aí que você me conheceu? mostram teoria consistente, capaz de
Como é que foi essa história? demonstrar como se daria esse descolamento
– Foi com o Mirabeau. Era meu da alma, sem que o ente entrasse em
amigo. Mirabeau é meu amigo! Íntimo... E desagregação. Eles apenas informam que teria
havia uma amizade com a mulher do seu tio. acontecido dessa forma e ponto final. Ora, tudo
LC-2 leva a crer que se trata de representação
– Mirabeau era amigo da mulher de psíquica de uma crença em vez de fenômeno
meu tio. real!]
– É. E me apresentou... não... ele
esteve lá antes e depois voltou e você esteve Lembro-me, então, de que chamou o Edson
lá... Um garoto... tinha uns 10 anos... (o Hermínio não é médium) e pediu-lhe que me
– Isso foi em 1791. desse alguns passes. O Edson começou a
– É... Noventa, talvez... Mas não tem trabalhar. Sem me aperceber (não sei se teria
sentido nada disso... porque... Não tem, não conseguido acompanhar como ocorreu a coisa), de
pode ter! Uma confusão total! Seu tio... repente me senti em mim novamente, embora com
Agora! Seu tio pediu não sei o quê e eu as pernas ainda inertes anestesiadas e as mãos e
interferi junto ao meu sogro. o plexo formigando muito, numa espécie de
– Quem era seu sogro? inversão paulatina do processo, fase por fase. O
– Claude. Claude Etienne Laridon- fato de sentir-me "dentro" de mim acalmou-me o
Duplessis... Interferi porque seu tio precisava espírito e pude ter certeza de que não
de alguma coisa, não me lembro o quê. Fiz desencarnara, e quase jurei, baixinho, que não
um favor. O Mirabeau pediu e eu ajudei. Mas tentaria outra vez de forma nenhuma.
isso é incrível! Depois... é, depois ele me [dramatização!]
apresentou a você... Era sobrinho... LC-3
Pausa. Em seguida, quase em pranto, [destaque para a informação que Luciano nos
tal é o desespero para entender de maneira traz: “chamou o Edson (o Hermínio não é
ordenada toda essa novela anacrônica: médium) e pediu-lhe que me desse alguns
– Ó, meu Deus! Isso é tão confuso... épasses”. Esta miúda frase põe grande parcela
de uma confusão total... Meu Deus do céu!... de dúvida sobre muito do que é declarado por
LC-4 Hermínio Miranda. Conforme atesta Luciano,
– Quer dizer que você não está mais devido a não-mediunidade de Hermínio ele
com 25 anos? precisava de assistente para aplicar os passes.
– Não sei... Coisa esquisita! Eu Porém não encontramos em lugar algum
julgava que... estava no colégio. Não estou. Hermínio fazendo comentários sobre isso!]
Passou a Revolução? Mas como? Então eu
estava recordando ali... lembrando ali... Que Ao procurar levantar-me, não achei as
bobagem, meu Deus do céu; e você me pernas e acabei tombando, espetacularmente, do
acompanhou até aqui agora? Que coisa, meu sofá, numa cambalhota que só o tapete pôde
Deus. Você viu? amaciar. O Hermínio e o Edson tomaram-me pelos
– Qual foi seu papel nessa braços e colocaram-me sentado na poltrona menor
Revolução? Que foi que você fez? enquanto me recomendavam que [não] tentasse
O tom agora é de indisfarçável ainda ficar de pé.
orgulho:
– Ah... você não sabe? Engraçado... Então, depois de quinze a vinte minutos, no
não sabia que você havia voltado. Que silêncio, pensando naquilo tudo, meditando no que
estava aqui. Você não viu as coisas? Não viu acontecera, ainda cansado, num pequeno
o que aconteceu? Agora é ... é outro! Agora processo enfisematoso, registrando aguda
acabou a Monarquia. Não se pode deixar a taquicardia, fui pouco a pouco melhorando, até
Revolução pela metade! Não pode. Ah, vocês sair completamente daquele estado pós-hipnótico.
ingleses... Que coisa! Um outro fenômeno curioso adveio logo depois. Eu
– Mas como é mesmo seu nome? devo ter queimado açúcar em grande quantidade
Diga. porque fui acometido de indescritível fome. O bolo
E ele muito solene e com novo toque e o cafezinho da dona da casa pareciam não
de orgulho: bastar, e só de vergonha não saí para o terceiro
– Lucile Simplice Benoist Camille avantajado pedaço. Mas, já na rua, com o
Desmoulins! LC-5 Hermínio, catamos um bar onde comi um
sanduíche de presunto com refrigerante. Se viesse
LEITURA COMPLEMENTAR uma feijoada ou um cozido, também iriam,
certamente ...
[desta “leitura complementar” suprimos
as partes que não julgamos passíveis de [É interessante comparar como Hermínio relata
comentários. Ressaltamos que no relato este episódio da queda, comparem:
de Luciano não constam comentários “Despertou faminto, devorou rapidamente
complementares] uma generosa porção de bolo e pediu mais,
LC1 – Advocacia sem a mínima cerimônia. Em seguida
levantou-se, deu um passo incerto e
desabou no tapete macio, como se não
Camille entrou para o Colégio Louis- tivesse pernas”.(versão de Hermínio)
le-Grand em outubro de 1771. Em setembro
de 1784 colou grau como bacharel em Direito Um relato lembra vagamente o outro − a queda
e em março de 1785 conseguiu a licenciatura. e o bolo são concordantes − mas há bastante
Prestou juramento na Grande Câmara do diferenças: na narrativa de Hermínio o
Parlamento, em Paris, e não em Guise, como regredido desperta, come bolo, tenta levanta e
desejava o pai dele. patchbum! desaba no tapete.
“Seus mestres”, escreve Raoul Na versão de Luciano, o patchbum! vem em
Arnaud, “lhe haviam dito em tom profético: primeiro lugar, ou seja, ele tomba, depois
‘Tu serás Marcellus!’” Ele não duvidava da descansa uns vinte minutos e então é tomado
promessa de triunfo que lhe era feita, e por medonha fome, que o leva a devorar o bolo.
sentindo-se capaz de assombrar o mundo e Há um intervalo relativamente longo entre o
de o dominar, via o futuro abrir-se diante dele bolo e a queda, que Hermínio Miranda não
mais pleno de certezas do que de narrou.
esperanças. Pode-se alegar que essas divergências não têm
Marcellus, ou melhor, Claudius grande relevância ante a questão principal
Marcellus, aristocrata, orador eloqüente, foi que estamos a analisar, ou seja, a experiência
cônsul romano em 51 a.C. Inveterado regressionista. É certo que “o caso do bolo”
adversário de Júlio César, tudo fez para não desqualificará os encontros
destruí-lo. Prevendo, talvez, a fulminante regressionistas, nem as interpretações que
carreira política do brilhante general, propôs, deles nos dão os envolvidos, mas há um ponto
em março de 49, destituí-lo do comando do importante a ser levado em conta: os
Exército. Mais tarde chegou mesmo a protagonistas confundem acontecimentos
declarar guerra aberta a César, mas não banais e deles apresentam interpretações
possuía Exército preparado para isso. Em 46 divergentes, o que nos leva a supor que em
– César no apogeu de seu poder – o Senado situações outras, e talvez em questões de
apelou ao imperador pleiteando o perdão maior importância, possam ter ocorrido
para Marcellus, ocasião em que Cícero deturpações difíceis de ser identificadas.
pronunciou um dos seus famosos discursos: Lamentavelmente, a sombra da suspeita se
Pro Marcello. César concedeu o perdão torna presente]
solicitado. Marcellus foi, portanto, um
intelectual ambicioso e meio quixotesco. Ao Vejamos, agora, o que se poderia dizer do
que parece, e isto é mera especulação diálogo. Não há dúvida de que a época é anterior à
minha, a chamada “profecia” dos mestres de Revolução Francesa, não apenas pela informação
Desmoulins seria antes uma identificação de do ano visto na folhinha - 1781 -, mas algo existe
Camille com Marcellus. Para dizer de outra no clima retraído. Seria eu próprio, na
maneira: não seria surpresa se me dissessem personificação de Camille Desmoulins? Não é
que Camille era Marcellus reencarnado. possível se afirmar. Creio, mesmo, que não o fosse
[não obstante ressaltar que se trata de ainda. Perguntado pelo nome de meu pai, respondi
suposição especulativa, Hermínio ser Antoine. Ora, o nome do pai de Camille
transforma uma declaração nitidamente Desmoulins era Jean; como verificamos mais
figurativa em hipótese reencarnacionista! tarde. Mas, curioso: meu pai atual se chama
Os mestres de Camille disseram “tu serás Antônio. Teria havido, aqui, alguma confusão nas
Marcellus”, especificando o simbolismo duas figuras? A nacionalidade de ontem teria
que aplicavam à sentença, pois se fosse afrancesado o nome do meu pai hoje? É
alguma revelação reencarnatória, teriam possível ... Por outro lado, Desmoulins não nasceu
dito: “tu fostes Marcellus!] em 1721, nem em Lyon. Mas essas informações
foram ditadas com muita insegurança. Acho que é
É impressionante a fixação de isso. Quanto à casa descrita, não está muito
Desmoulins nos tempos romanos, distante do sonho que tive com o Abelardo.
especialmente em torno da gigantesca figura Contudo, é bom registrar que toda casa daquela
histórica de César. Ele cita abundantemente época teria, sem dúvida, "passadeiras", "muitas
os homens e os feitos daquela época. portas", "quadros", "muitas janelas", etc. O nome
Essas especulações, por mais Therese não parece ser de grande significação.
fascinantes que sejam, são meras suposições O Hermínio estava propenso, duas ou três
e nos levariam longe demais. Não resisto, semanas depois, a admitir que não se tratava do
porém, ao impulso de citar mais algumas meu próprio espírito, mas de simples manifestação
delas. Supondo mesmo que Robespierre mediúnica, possível ou permissível, dadas as
tenha sido Catilina, como nos diz César minhas ligações anteriores com gente da época da
Burnier que Marat tenha sido Sila, Revolução. Todavia não é absurdo aceitar, já
companheiro de Marius, e Danton na agora que conhecemos outras informações, tratar-
personalidade de Marius, teríamos a mesma se de mim mesmo, embora confundindo muito os
equipe da Revolução Francesa reunida em fatos todos, devido à inexperiência no processo.
diferentes épocas, na Roma Antiga, onde não Ou devido a qualquer outro motivo que
faltaria nem mesmo Júlio César, renascido desconhecemos e que jamais conheceremos. (Eu
em Napoleão. Sou Camille Desmoulins. P. 355-361)
[O que pode ser dito disto? Qual seria a
[Luciano informa que não tem certeza, neste
técnica que permitiria obter a
diálogo, se é a personalidade de Desmoulins
identificação de encarnação anterior com
se manifestando, admite que poderia ser
tanta facilidade? Em encontro que
“outro” espírito tomando carona na sua
analisaremos adiante, ver-se-á essa
regressão. A condição que permitiria a almas
suposta capacidade levada ao extremo.
“caroneiras” se infiltrarem nas regressões
Veja no “Comentário Complementar”,
hipnóticas não é esclarecida pelos envolvidos.
abaixo desta tabela, avaliação desse
Parecem que aceitam a possibilidade sem
“poder” identificativo.]
quaisquer ponderações, como se fora algo
muito natural. Como não apresentam
Durante as regressões Luciano explicações teóricas adequadas, ficamos sem
lembrou-se vagamente de uma existência em ter como opinar a respeito. A questão nos
Roma, mas parece que não estávamos parece confusa. Desse assunto, Hermínio
autorizados a ir até lá... É curioso ainda Miranda apresenta comentário que, a nosso
observar sua má vontade (de Camille ver, mais complica que esclarece.]
Desmoulins) com relação a Napoleão, jovem
oficial que em 1789 tinha apenas 20 anos. “Este fenômeno ocorreu com certa
Perguntado sobre ele, Luciano/Desmoulins freqüência em minhas experiências.
diria apenas com um muxoxo de desprezo: Sempre que o sensitivo tinha algo a
“General era Dumoriez, Dillon, Boyer...” dizer, não de sua própria elaboração
Resíduo de algum remoto desacerto entre mental, mas de origem mediúnica,
eles? espiritual, provinda de companheiros
desencarnados ali presentes, o texto
aparecia diante dos olhos e era lido. Foi
LC-5 Camille
assim mais uma vez.” (p. 76 - )
Luciano despertou sem a mínima
lembrança do que havia ocorrido nos trinta ou
quarenta minutos da nossa conversa de há
pouco. Estava curioso por saber o que se
passara, pois tinha a impressão de não haver
conseguido alcançar o transe. Assim que
tudo voltou à normalidade, nossa primeira
atitude foi conferir os poucos dados concretos
de que dispúnhamos.
[indício de que o conhecimento que
Luciano já possuía sobre a Revolução foi
acrescido com leituras ocorridos no
período da experiência, à medida que
“conferiam” o que fora dito sob transe,
Luciano incorporava novos conhecimento
sobre a época em que acreditava ter
vivido. Mais adiante falaremos
detalhadamente desta questão]

Verifiquei, desalentado, que, a


despeito da minha antiga paixão pela história,
não tinha ao meu alcance nenhuma obra de
fôlego sobre a Revolução Francesa ou sobre
seus líderes. Salvou-nos a respeitável e
competente Enciclopédia Britânica. A primeira
surpresa foi quanto ao nome – não tínhamos
idéia de que Desmoulins tivesse todos aque-
les nomes que a Britânica confirmava. Como
também confirmava que Camille nascera em
Guise, no Departamento de Aisne, em 1760.
[valorização excessiva do conhecimento
de um detalhe da vida de Desmoulins. Em
outro episódio ver-se-á Cesar Burnier,
apresentado como especialista na história
da Revolução, alegando que nem ele
conhecia essa informação. Mas a euforia
em torno de conhecimento detalhado da
vida de um personagem, por parte do
regredido, não tem tanta importância
como se pretende. Em primeiro lugar, o
fato de Hermínio, nem Cesar Burnier ter tal
conhecimento, não significa que outros
estudiosos não o tenham, ou seja, o
especialista pode ter faltado à aula onde
se discorreu sobre o nome completo de
Desmoulins. É muito provável que
estudantes da vida do republicano
revolucionário saibam disso. Por outro
lado, existem pessoas que se comprazem
em aprender dados numerosos sobre
personagens por quem nutrem admiração,
sem serem grandes conhecedores do
processo histórico. Este parece ser o caso
de Luciano, que ao tempo em que
demonstrou bom conhecimento sobre
eventos da Revolução, não exibiu
conhecimento crítico dos acontecimentos
relativos àquele período em que se
imaginara encarnado noutra vida.]
A hora já se adiantava e Luciano
ainda precisava ir para casa. Lemos
rapidamente o verbete biográfico da Britânica
e ele partiu. Era emoção suficiente para uma
só noite.

COMENTÁRIO COMPLEMENTAR: visto que os episódios narrados, como


relativos ao 2º encontro, são completamente diferentes, concluímos que
tenham havido reuniões que Hermínio não narrou. As implicações dessa
constatação para o estudo são muito sérias, uma vez que não podemos ter
segurança sobre o que sucedeu fora dos relatos que nos são apresentados.
Podemos, preliminarmente, concluir que as narrativas não guardam
fidedignidade plena com os fatos. Sem dúvida, a não ser que haja explicação
plausível para essa constatação, a experiência fica comprometida.
No que se refere à habilidade de reconhecer reencarnações, retornamos
à declaração de Hermínio Miranda:
Não seria surpresa se me dissessem que Camille era Marcellus reencarnado
(...)
Essas especulações, por mais fascinantes que sejam, são meras suposições e
nos levariam longe demais. Não resisto, porém, ao impulso de citar mais
algumas delas. Supondo mesmo que Robespierre tenha sido Catilina, como
nos diz César Burnier que Marat tenha sido Sila, companheiro de Marius, e
Danton na personalidade de Marius, teríamos a mesma equipe da Revolução
Francesa reunida em diferentes épocas, na Roma Antiga, onde não faltaria
nem mesmo Júlio César, renascido em Napoleão

Descreve-se, em diversos pontos do livro, atitude que reputamos sui


generis, exibida pelos protagonistas e por alguns participantes secundários:
hipotética capacidade, mal explicada, de identificar reencarnações. Hermínio é,
de certo modo, ponderado ao apontar tais encarnações passadas: geralmente
adverte tratar-se de suposição. Já Luciano é mais atrevido, dele encontramos
declarações surpreendentes:
Sei, por exemplo, que Danton, o grande tribuno francês, está aqui no Rio, em
Copacabana. Sei que Mme. Stäel está em Matão. Que Frei Joseph du
Tremblay, a "Eminência Parda", é um grande médium e reside em Salvador.
Que Marat viveu no Rio e foi mais uma vez cassado. O Abade Bérardier, que
foi diretor do famoso College Louis-Ie-Grand, tem consultório no Rio e é filho de
um dos maiores presidentes da Federação Espírita Brasileira (FEB). O Papa
Sixto V mora na Muda, aqui no Rio, bem perto de mim. Roberto Browning (pai)
tem domicílio em Botafogo, também no Rio. O famoso poeta do mesmo nome,
filho do precedente, é conhecido médium. O Cardeal Charles de Guise, e
depois Professor Charles Bossut, almoça comigo freqüentemente.[!] Joana, a
Louca, está em Uberaba. Helena Blavatsky dirigiu, até à desencarnação, um
Centro Espírita em Ipanema. Carlos VII dirige um grupo, no Méier. Louis de
Rochefoucauld, também já desencarnado, trabalhava numa corretora de título.
Hérault de Sechelles era procurador do Ministério da Fazenda e morava em
Jacarepagua. Maria Antonieta vivia, há pouco, em São José do Rio Preto. Anna
Bolena é uma psicóloga atualmente residindo em Pato Preto. Benevenuto
Celini, o notável artista do cinzel, é médium da FEB, dos mais evangelizados
que conheço. Lavoisier reencarnou em Minas Gerais e vive em São Paulo;
como engenheiro, continua pesquisando, agora na área espírita. Elizabeth I
reside num simples apartamento no Méier. Lucile Desmoulins estuda na
Faculdade Celso Lisboa. E Camille Desmoulins, que é o mesmo Charles d
Orléans, poeta do século XV, agora é pai de Lucile.
De minha parte devo afirmar, embora correndo o risco de ser acusado de
pretensioso ou de ridículo, que em matéria de espiritismo filosófico, científico ou
religioso concedo-me o qualifIcativo de homem sério. (P. 303,304).

Não duvidamos da seriedade de Luciano, porém a indagação que


fizemos antes, cabe ser reprisada aqui: qual seria o mecanismo que permite a
Luciano dos Anjos e a outros identificar encarnações com tanta facilidade?

Vejamos o que se consegue com o terceiro encontro. Como se notará pela


leitura, a narrativa de Hermínio é bem mais longa que a de Luciano.

RELATO DA 3ª REUNIÃO
HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS
4. O ANTES E O DEPOIS p. 361...

A segunda sessão de pesquisa foi realizada em 26


de maio de 1967. Vamos examiná-la a seguir,
Os sete dias que decorreram até
transcrevendo-a dos tapes do nosso arquivo.
à segunda-feira seguinte
[Hermínio nomeia este encontro como “segunda sessão”,
serviram-me para duas
contudo corresponde à terceira reunião, isso porque,
conforme vimos, a primeira vez foi classificada como importantes coisas: afogar o
“reunião de teste”] medo e aliciar minha
As primeiras impressões são ainda as da sua
curiosidade. Aliás, é sempre
infância como Luciano. Está com 5 anos e diz que precisa ir assim que acontece. Na hora do
para casa, pois se encontra na rua e está ficando tarde. perigo, prometemos não repetir
(Alguma escapada durante a qual teria fugido à vigilância de jamais o risco que lhe deu
sua mãe? É o que parece, pois ele se mostra um tanto origem; depois, recuperamos a
assustado.) Prosseguimos com os passes até que ele relaxa calma, a serenidade, e já nos
e se acalma. Quando retoma a palavra, sua voz é adulta e acha: mos fortalecidos para
firme. nova experiência. E - frisemos -
e assim que acabamos
vencendo os medos... Por outro
lado, eu tinha visto crescer meu
desejo de saber quem falara por
mim e por que falara; conhecer
de vez, enfim, a história que se
ocultava por detrás daquelas
experiências. Não sei se para
iludir-me ou por sentir ser
óbvio, procurei convencer-me,
acima de tudo, de que os
mentores espirituais, meu
e do Hermínio, de todos,
enfim, deveriam estar
atentos e prontos para
ajudar-nos, se necessário.
Parti, pois, resoluto para a
terceira sessão.

Chegamos à casa e logo


iniciamos os trabalhos. Desta
vez o processo transcorreu um
pouco menos agitado.
Conseguida a inconsciência,
gravamos o seguinte diálogo,
que foi muito mais demorado
– Onde é que estou? – pergunta.
do que possa parecer da sua
– Você mesmo pode descrever. O que você vê à sua leitura, pois era intercalado de
volta? longas paradas, repetições de
– A minha casa – diz ele, após longa pausa. Rue du palavras, tautossilabismos, etc.,
Theâtre Français. que, evidentemente, não estão
– Quem mais está aí na sua casa? copiados abaixo.
– Agora estou sozinho.
Eis como se passou a sessão:
– Com quem você mora aí?
- Alguma coisa vai acontecer.

- Por que você está preocupado


– Com minha mulher. Ela deve ter saído. Estou com o que vai acontecer? Você
deitado. Quem é você? sabe, como espírito, que esses
[Neste ponto, os relatos coincidem, em ambos o fatos a que está se reportando,
personagem encontra-se em decúbito] no momento, já ocorreram em
– Novamente o baralhamento na seqüência tempo e sua existência anterior, de
modo que você pode, agora,
no conceito de espaço físico.
– Você já me conhece. adiantar um pouco mais, no
tempo, e verificar o que
Novo e longo silêncio, e depois:
aconteceu e libertar-se da
– Tenho uma idéia ... condição de aflição. Não há
– Já conversamos anteriormente. necessidade de se tornar aflito.
Ele concorda e pergunta: São fatos já ocorridos.
– Cadê minha mulher? - Às vezes, não sei o que faça.
– Provavelmente ela saiu e não deve demorar. É preciso ter calma ...
É preciso ter cuidado! (Começa a mostrar-se agitado.
É evidente que está vivendo sob terrível pressão - O que é preciso é libertar-se
emocional.) Preciso descansar. Sente aí. (Parece que a dessa condição. Qualquer
necessidade de companhia é tão urgente que ele resolve estado de desprendimento em
ignorar suas perplexidades.) que você entra, vai logo para
– Vamos conversar. Fique calmo. Em que você está esse período em que levou uma
pensando? existência agitada. É necessário
que você procure pesquisar, na
– Tudo. Nisso tudo... Às vezes penso se não seria
melhor largar tudo pra lá e viver para a minha família, pra
sua memória integral, outros
meu filho. Largar tudo... Estou com dor de cabeça. LC6 fatos e não apenas esses.
E depois: - Mas, às vezes, dá medo. ..
– Preocupando todo mundo... Ah, meu Deus! Enfim, vontade de fugir... mas, é
alguém tem de fazer alguma coisa. Cansado... . preciso ter coragem e ficar ...
Peço-lhe que faça recuar sua memória para uma
época em que se tenha sentido mais feliz e mais tranqüilo, a - Onde é que você está, no
fim de que possamos conversar descontraidamente. Os momento?
passes continuam. Longo silêncio. Quando retoma a
palavra, me identifica com indisfarçável alívio. - Na cama.
– Ah! É você... [a cena parece ser a mesma,
pois em ambas narrativas o
– Outro dia nós conversamos... Lembra-se?
personagem encontra-se
– Lembro. Aqui mesmo. deitado]
– Você conseguiu lembrar-se do tempo em que eu
era um garoto e achou tudo muito confuso. - Em que você pensa?
– Nós aqui de novo... – diz ele com um sorriso.
- Amanhã... Nec... Necker...
– Por que você acha que estamos aqui depois de Necker vai fazer uma besteira.
tantos acontecimentos passados? Está confuso ainda?
– Não sei... - Que dia é amanhã?
– Durante sua existência você sempre foi descrente
da sobrevivência do espírito? Você nunca admitiu a
- Seis ...
possibilidade de o espírito sobreviver?
– Bom... não. Embora dê o direito a outros de
acreditarem, eu respeito o ponto de vista de um Rousseau,
que parece acenar com algumas hipóteses que custo, de - O que ele vai fazer?
fato, a aceitar.
– Acho que nem você nem seus amigos aceitam a - 28. .. 29... Qualquer dia, não
hipótese da sobrevivência. importa ...
– Não. Sim... Não; mais não, quase não... É difícil.
Há uma série de aspectos nesse problema que desanimam
- Mas não se agite fisicamente.
a gente. Olha a vida, olha a miséria, olha o clero, a Deixe seu corpo tranqüilo, sem
aristocracia, olha nós... Não! agitação. E preciso, apenas, que
você, como espírito, encare
– Como é que você explica que esteja aí, lembrando-
se da Revolução como uma coisa do passado? com maior naturalidade esses
fatos e não se agite mais por
Longa pausa para pensar. Não tem a menor idéia de
eles, porque já se passaram.
sua vida atual como Luciano, e, mais ainda, de nada que
tenha ocorrido após aquele momento ali em que ele se
- Necker está pressionando ...
situa, embora conversando com alguém que está em 1967,
cerca de cento e oitenta anos depois! A saída é pela
Isso não pode dar bom
tangente, e nem poderia deixar de ser! resultado ...
– Posso me lembrar. Isso não vem ao caso.
- Por quê? O que pretende
– Mas você se recorda de todos os acontecimentos? fazer?
– Claro!
- E o problema dos cereais.
– Até que ponto você se recorda?
– Tudo. Eu vivi tudo; eu vi tudo. - Mas por que você está se
É evidente que foge da terrível realidade da morte, e lembrando disso agora? Você
temos de evitar uma confrontação traumática antes de certo apenas leu isso na história?
preparo.
- Não sei. . .
– Até que ponto você viveu?
– Até agora. Daqui para a frente é uma incógnita,
mas acredito que não tenham a ousadia, não tenham o
topete, não tenham a coragem de mexer comigo. - Você se lembra de ter lido ou
Procuro tranqüilizá-lo, mas é óbvio que ele está de ter vivido esses episódios?
entrando em pânico. O clima psicológico daquele momento
é o do temporal que se avizinha. A hora é de decisões [Interessante, aqui Hermínio
graves. A Revolução, como Cronos, começava a devorar decide enfrentar a
seus próprios filhos, e ele começava a temer pela sua sorte, probabilidade de que Luciano
embora ainda esperançoso de que não ousassem eliminá-lo tenha se informado por meio
também, como tantos estavam sendo. de leituras. A resposta é
– Não teriam coragem. Já enfrentei coisa pior. evasiva. O próprio Luciano
– Me conta direitinho o que se passou com você nos deixa em suspenso esta
últimos tempos. possibilidade. Observa-se, na
seqüência do diálogo, que o
– Você não soube de nada?
jornalista rapidinho muda o
rumo da conversa. Ele parece
– Soube da Revolução, soube do seu papel ...
– Você chegou quando? não desejar que o agente
insista nesta questão]
Outra pergunta embaraçosa. A resposta clara e
objetiva lançaria em seu espírito confusão maior do que
suas inquietações do momento. Regredido ao tumultuado
período do Terror, ele não tem o mínimo preparo para uma
avaliação serena da situação a uma distância de quase
- É amanhã. ..
cento e oitenta anos. A resposta é evasiva:
– Preciso explicar isso mais tarde. Reservo-me o Sei. Então vamos avançar sua
direito de falar sobre isso um pouco mais adiante a você. memória para amanhã e ver o
Vamos, agora, procurar despertar na sua memória todos os
que aconteceu.
fatos.
E ele, cauteloso: - Eu dormi... dormi um pouco. .
– Tenho você na conta de amigo, hem? .
Sou seu amigo. Você sabe disso. Confia em mim,
- Sim. Agora, você acordou...
não confia?
durante o dia, e verificou o que
– Espero que possa... aconteceu.
– Você está desconfiado porque vive numa época '
tumultuada, cheia de problemas, mas aqui a coisa é
diferente. - Necker vai fazer bobagem. . .
A observação é reconhecidamente incongruente
para ele, mas parece admissível para o momento, e ele
repete: - O que foi que ele fez no dia
seguinte? .
– Espero que possa...
– Então vamos lá. Sei da Revolução, do que - É uma... uma provocação. É
aconteceu. Queria, porém, que você procurasse se recordar uma taxação. Necker vai
do que houve com você até os últimos acontecimentos. assinar uma taxação.
Estamos andando em círculo, mas estou
conscientemente evitando um questionamento direto. [Vimos que, no relato de
– Até agora? – pergunta ele. – É isso que você vê...
Hermínio, o nome de Necker
apareceu no primeiro
– Não estou vendo direito. Descreva-me.
encontro]
– Eu ainda acreditava um pouco no rei. Ainda
acredito. Ainda tenho um pouco de esperança. Muito pouco. - Escuta uma coisa: depois
LC7 dessa existência, que voce teria
– Em que ano estamos? vivido na França, você teve
A pergunta é séria e parece apanhá-lo desprevenido. alguma outra existencia entre
Agora? Este ano? 1792! Este ano agora... essa e a atual?
Não há como recuar agora, é preciso insistir, a fim de
- Não sei. . .
quebrar o círculo mágico que o mantém prisioneiro do
tempo, estacionado quase dois séculos atrás.
– Bem, mas você pode lembrar-se de
acontecimentos que se passaram depois de 1792. - Não sabe? Está tudo guardado
Longa e perplexa pausa. na sua memória. Por que você
– Depois de 1792? Não. Antes, você quer dizer...
não pesquisa?
– Quero dizer depois... [Hermínio tenta arrancar de
– Antes... Depois? Luciano uma lembrança além
Sobe o nível da agitação dele, que se observa pela
das que seriam oriundas de
respiração e movimentos com a cabeça, enquanto a crise se Desmoulins: ele quer saber se
precipita com todo seu impacto emocional. Ele sabe a essa houvera existência outra entre
altura ser impossível evitar unir as duas pontas soltas na Camille e Luciano.
sua memória sem passar por ali, pelo ponto cruciante da Novamente, o jornalista
sua experiência evolutiva – a guilhotina. Procuro fortalecê-lo frustra o inquiridor. Observe
com a intensificação dos passes e com uma prece, na qual que Hermínio insiste que tudo
peço para aquele momento crítico o amparo e a proteção estaria na memória de
dos amigos espirituais em nome do Cristo.
Luciano, mas o jornalista não
– Vamos passar rapidamente por esse período – reage conforme o operador
digo-lhe – e vamos a uma época em que seu espírito, deseja]
perfeitamente tranqüilo, encontra-se no espaço. Calma.
Tranqüilize-se. Já passou... Calma... - Houve um tumulto muito
É impressionante e dramática a crise que ele revive grande, depois disso.
ali, com o corpo arqueado a emitir um som gutural
inarticulado, como se não tivesse mais como falar por lhe - E que aconteceu com você?
faltar o aparelho. Na realidade, apalpa a região da garganta
onde teria descido a lâmina fatal da guilhotina. Tosse e - Eu... morri...
respira espasmodicamente, como se estivesse vivendo os
primeiros momentos de suprema perplexidade no mundo - Em que ano foi?
póstumo, já decapitado. Não durou tudo mais que alguns
rápidos segundos. Logo ele começa a respirar em ritmo - Era... Havia muita agitação.
adequado, enquanto continuam os passes e as sugestões
Era... era o frio... o frimário...
pacificadoras.
Sua primeira palavra, ainda balbuciante, deve refletir - Em que ano foi isso?
também o último pensamento coerente ao saltar a barreira
da morte: - Frimário. [mês da geada,
– Lucile... Lucile... 23/11 a 22/12]
Chora, enquanto procuro fazê-lo seguir rumo ao
futuro, de modo a deixar para trás o momento mais agudo
- Mas no calendário nosso,
da crise da morte. Murmura algumas palavras ainda comum, que ano era?
incoerentes e depois:
- Era o frimário ... Traidores!
– Lucile, você não merecia...
Miseráveis!
Suspira. Seu corpo está relaxado e ele tem
novamente o controle da situação. [Aqui, tem-se a impressão de
– Foi horrível - diz ele. que Luciano não consegue
– Sim, mas já passou. Você entendeu agora o que
aconteceu com você? fazer a correlação entre o
– Eu morri... calendário da Revolução e o
– Morreu, mas está vivo! Seu espírito sobreviveu.
observado no restante do
Está vendo? Você não está vivo? Está respirando, mundo cristão − (calendário
pensando... Então você é um espírito que sobreviveu à crise Juliano, se não estou
da morte. Você está bem, está calmo, perfeitamente normal. enganado). Isto surpreende,
Está entendendo agora? porque para um intelectual
– Lucile... daquela época esse
conhecimento deveria ser
– Lucile também está viva. Então a gente sobrevive à
relativamente simples.
morte...
Percebe-se que a dita
– Eu estava quase acreditando nisso. formidável memória de
– Mas você ainda tem dúvida? Luciano dos Anjos não é
– Não. exatamente conforme se diz]
– Onde está o espírito dela? Também foi a seu - Mas isso tudo já se passou.
encontro. (Como se sabe, ela foi executada pouco depois,
Não há mais necessidade de
cerca de uma semana.)
ficar aflito por causa
– Está comigo – diz ele. disso. . .
– Bem, apesar de você ter achado absurdo, no
princípio, vamos prosseguir, vamos para a frente na sua - Traidores! É a ditadura... É a
memória. Que aconteceu depois? ditadura!...
Longa pausa. Ele parece ordenar aquilo tudo,
examinando a soldagem das duas realidades numa só. Não - Um momento... um
demonstra ter ouvido minha sugestão. Parece despertar, e momento. Depois disso...
pergunta: Tranqüilize-se.
– Hem? Que foi?
- Eles sabem que eu não
– Que aconteceu depois que você se encontrou com concordo... Eu não concordo! ...
Lucile no espaço, como espírito?
– Não me lembro bem, mas ela ficou de me [aparentemente, está
encontrar. E não o encontrou? teatralizando.]
– Sim.
- Está bem. Você foi para o
– E para onde vocês foram?
mundo espiritual. E daí?
– Para o Brasil. Quanto tempo você passou no
– Fazer o quê? mundo espiritual.
A resposta é breve e eloqüente, e traz em si um
- ...
toque de transcendental poesia. – Viver...
– Renascer, portanto. [Hermínio Miranda tem
– Renascer – confirma ele. interesse em ver a memória de
Luciano ampliada, de modo a
– Com que nome você renasceu?
– Lucie... (Hesita e corrige:) Luciano. narrar outros episódios de
vidas passadas e também das
– E Lucile?
entrevidas, porém Luciano
– Ana Lúcia. (Sua filha.) mantém-se firme na
– Ana Lúcia? Então todos estão novamente elaboração de seu acreditado
reunidos. Não é isso? Está entendendo agora? passado como Desmoulins.
– Luciano – repete ele. – É. Em momento algum ele
incursiona por outras
– E você teve outra existência entre aquela que você
viveu na França e a atual?
existências, a não ser
superficialmente]
Havia ali um bloqueio, e para testá-lo reformulo a
pergunta:
– Da existência que você teve como Camille até a
em que você renasceu no Brasil, como Luciano, há alguma - E depois disso você teve
intermediária? alguma outra existência?
– Não sei – é a resposta.
- Não sei.
– Sabe, sim. Seu espírito sabe. Procure buscar na
memória.
[Mesmo com insistindo
– Depois apagou-se tudo... Não me lembro. Acho Hermínio nada consegue, pois
que não. Estou bem agora. LC-8 o interesse de Luciano está
– Agora você está bem. Entendeu bem o problema. centrado em Camille
Sabe que a morte não existe, que a gente renasce, que os Desmoulins...]
espíritos continuam juntos... Não é isso? Você tem
consciência de sua vida como Luciano agora? - Não sabe? Está bem. Vamos
– Tenho. Não mudei nada... Em tudo sou igual: nas despertar, então?
idéias, na forma, nas vontades...
Nesse diálogo, como vimos,
– Nos ideais também?
estamos agora, em plena época
– Também... Não mudei nada. revolucionária A referência a
Consegui, pois, amarrar as pontas soltas ali, onde Necker, por exemplo, é
havia uma interrupção, um bloqueio. É como se ligasse um extremamente significativa.
plug perdido nos imensos reservatórios da memória integral. Nunca me demorei em grandes
Restou apenas um inexplicado “branco” de cento e quarenta leituras sobre Necker.
anos: entre a decapitação, em 1794, e o renascimento no
Brasil, em 1933. Como espírito, porém, ele sabe o que se
[Observemos a frase, “nunca
passou, como se depreende da sua maneira de colocar a
me demorei em grandes
questão: “Depois apagou-se tudo...”, diz ele. Pelo exercício
deliberado da sua vontade, ele deve ter não “apagado” mas
leituras sobre Necker”, ela
bloqueado e selado num envelope mágico esse período mostra, sutilmente, que
nada agradável, provavelmente para retomá-lo um dia para Luciano confirma ter
reexame e reordenação. Creio legítimo depreender-se isto realizado leituras sobre a
da sua expressão “Estou bem agora”. Donde se conclui, Revolução. Só que, no caso de
ainda, que esquecer, mesmo que temporariamente, é uma Necker, não foram “grandes
bênção oportuníssima em situações extremamente
traumáticas. É o que se observa na experiência diária da leituras”...]
psiquiatria, segundo a qual a pessoa se aliena – no seu
melhor sentido etimológico de isolar-se – sempre que a
pressão de uma realidade penosa se torna insuportável e
acaba por romper as estruturas do equilíbrio emocional. Sabia, tanto quanto o Hermínio,
Observe-se ainda a sinceridade, e honestidade de que ele fora ministro das
sua autocrítica “Não mudei nada...”. Sente-se praticamente Finanças de Luís XVI e
o mesmo Desmoulins, com seus defeitos, virtudes e até a personagem de grande destaque
forma, segundo ele, ou seja, o corpo físico, o que ainda naquela época. Necker iria
comentaremos alhures neste livro.
assinar, ao que se supõe, a
Outra pergunta: taxação dos cereais. Na verdade
– Você pode se lembrar agora melhor do meu ele deve ter assinado muitos
espírito? decretos dessa natureza e nesse
– Lembro. Você me ajudou... Sou grato a você. mesmo sentido. A informação,
portanto, para nós, era muito
– Precisávamos vencer aquela barreira, não é?
vaga, embora em relação
– É. Foi horrível ... Eu tive um pouco de medo. àquela época e à pessoa que
– É explicável. A cena da morte ficou tremendamente falava por mim (se não fosse eu
marcada no seu espírito. De modo que, quando chegava próprio) talvez representasse
naquele ponto, você entrava em pânico. Não tanto pela sua ato de vital importância.
morte, mas pela de Lucile. Mas agora tudo passou.
– Nunca perdoarei a Robespierre! A revolta contra a ditadura é
condizente com o pensamento
– Você precisa perdoá-lo, por que não? Onde está o
espírito dele?
de Camille Desmoulins. Afinal
ele fora executado exatamente
– Não sei. Ele me traiu. Matar minha mulher e meu porque, com Danton e outros,
filho. LC9 (Horace, o filho de Desmoulins, sobreviveu ao
pregou a moderação, a
caótico período da Revolução.)
indulgência, e disso tinha sido
– Isso tudo é passado hoje. Provavelmente o espírito acusado. Detestava a ditadura.
dele precisa tanto de ajuda como o seu precisou, e o meu, Mas sua decapitação não se deu
em outras épocas da vida. Temos de tratá-lo com carinho,
no frimário. E como se verá
fazer uma prece por ele...
mais tarde Camille não sabia
– Eu amava Lucile... ainda que havia morrido.
– E continua amando. Contudo todos esses aspectos
Ri e prossegue: acabaram sendo, depois, nas
semanas seguintes,
Às vezes esqueço que estou com ela.
devidamente explicados, ou
– Então! Você restituiu-lhe a vida. corrigidos, quando as sessões
– Eu que a arrastei a isso! Ela não queria casar passaram a transcorrer em
comigo. clima mais sereno, mas seguro,
– Muito bem, você hoje está em paz, tem um mas objetivo.
conhecimento mais profundo desses problemas. Nisso acho
O Hermínio permanecia por
que você progrediu bastante em relação à existência
anterior, em que você era materialista. enquanto sem convicção sobre
– Não, no final eu tinha dúvidas. Queria acreditar em a natureza do fenômeno. Ele
alguma coisa. achava que não tínhamos ainda
– Sim, mas agora você tem certeza. nada, absolutamente nada de
probante, nem a certeza de que
– Li um livro... Ah! Como era o nome? Livro muito
não se tratava de simples
interessante! Eu estava preso. Ora... livro muito
interessante... De Harvey. Lucile é que o levou para mim na
manifestação mediúnica. Aliás,
prisão. Era... Méditations sur le Tombeau. Eu precisava de sua posição era intermédiária.
alguma coisa. Estava sozinho, tinha um pouco de medo... Ele admitia que estivesse
Somos todos uns covardes ... LC10 havendo uma conjugação muito
– A morte sempre assusta quando a gente não sabe
interessante e rara entre a
o que ela é. regressão da minha memória e,
de permeio, a manifestação de
– Aquilo me animou um pouco. Eu precisava
acreditar em alguma coisa, no Além, numa outra vida...
algum espírito ligado a mim
desde aquele tempo, por isso
– Está aí a prova. mesmo autorizado por mim a
– Coitada de Lucile! manifestar-se naquele
– Ela está bem hoje. Talvez a experiência tenha sido momento.
útil ao espírito dela, como foi ao seu.
[Não podemos deixar de
– Danton... muito mais homem que eu.
registrar o formidável atraso
– Onde está ele? Precisamos depois pesquisar para da narrativa de Luciano em
saber dessas coisas. relação a de Hermínio.
– Não sei. Não sei de ninguém. Naquilo que, para Hermínio,
– E precisamos também mergulhar um pouco mais seria o 3º encontro, Luciano já
nas suas vidas anteriores a essa. havia revelado seu nome e
chorava a morte da esposa
– Danton era um homem! Era meu amigo. Até o fim.
Danton... Gabrielle... (Sorri.)
amada. Para Luciano, nessa
reunião Hermínio Miranda
– E o seu primo?
ainda estava em dúvida se
– Eu tinha tantos! lidava com autêntica
– Falo do que teve também um papel na Revolução. manifestação mediúnica. Se
E que deve ter sofrido decepções tremendas. Qual o nome não houver outra explicação,
dele? só podemos supor que
– Meu primo, meu Deus... (Pausa.) De quem você aconteceram vários outros
fala? encontros, os quais não estão
– Um parente seu, que você colocou e que teve
relatados no livro. Isto
também papel preponderante nos acontecimentos, embora prejudica, mesmo impede, que
secundário. se possa realizar avaliação
adequada!]
– Meu primo?
– Seu parente. Não sei se é realmente seu primo.
– Ah! Você fala de Fouquier-Tinville? Um crápula!
Primo... Não era meu primo. Primo distante. Meu pai o
ajudou. Eu também. Consegui-lhe um lugar. Fouquier... Não
veio me defender. Sofri uma raiva! LCl1 De qualque maneira não
– Sim, mas tudo isso é passado, hoje. O que houve passávamos de conjecturas.
com a Revolução foi que ela destruiu os melhores homens Hoje creio que o Hermínio
que tinha e se esvaziou. tinha muita razão. Seu sentido
– Mas eu não merecia. Meus amigos todos me crítico estava certo, em grande
traíram e me abandonaram. parte. Creio que, na
– Talvez haja uma razão para isso. No estado em segunda sessão, tratava se
que se encontra, hoje, com o conhecimento mais amplo das de mim mesmo, mas falando
coisas, você sabe que, provavelmente, é problema que veio ainda tumultuadamente sobre
de uma existência anterior. muitos fatos diferentes. A
– Não sei... mas não merecia. Lutei... No fundo, eu terceira sessão, porém, deve ter
não queria mal a ninguém. Quis até... Diziam que era uma sido, de fato, a manifestação
posição de exploração política, mas quis defender a todos, e mediúnica de um espírito
me arrependi de muita coisa. Robespierre não me escutou, ligado à Revolução e a mim.
não me entendeu. Danton era muito atirado, o que
atrapalhava um pouco, mas eu queria... Lucile chorava e Quanto à quarta sessão,
achava também que era preciso parar. Coitada! Ela era também desse espírito, trouxe a
linda! Muito linda! Eu era apaixonado por ela. Ela também primeira luz no caminho que
gostava de mim.
nos conduziria à figura de
É fato histórico conhecido que Desmoulins tentou Camille Desmoulins.
parar a tenebrosa e sanguinária máquina do Terror. Era [Vimos, no relato de
sangue demais, mortes demais, sofrimento demais... O Hermínio, que a revelação
apelo à clemência, a que ele e Danton deram forma e
sobre Camille Desmoulins
conteúdo, precipitou o fim deles próprios.
ocorreu no 2º encontro. Aqui,
– Ela também dedicou toda a vida a você. Teve uma estamos na 3ª reunião e
coragem muito nobre nos últimos acontecimentos. A atitude Luciano ainda fala de indícios
que ela tomou surpreendeu até os homens.
que conduzirão a Camille.
– Eu não soube de mais nada. Soube depois. Ela Parece estar um pouco
morreu... Ela disse que estaríamos juntos. Lucile... Ah! atrasado...]
Lucile... Você a conheceu?
– Não devo tê-la conhecido, pois nessa época eu
não estava em Paris.
– Era uma boneca. Magrinha e linda!
– E o seu filho? Não foi logo que se percebeu
– Não soube. Disseram-me que ele estava bem. isso. Mas naquela mesma noite,
– Não soube da história subseqüente dele? recordando os fatos e
meditando seriamente sobre
– Não, quase não estive com Lucile depois.
eles, é que senti estalar a
– Esteve sim. Decorreram aí mais de cem anos. possibilidade. E, muito tempo
– Não. Muito pouco. Depois... depois eu nasci. Mas depois, numa de nossas últimas
aí eu não sei.
– O que você fez nesse espaço de tempo, como reuniões, eu mesmo, solicitado
espírito? Tem alguma lembrança? pelo Hermínio, recapitularia os
– Não me lembro. Lembro-me antes. Até muito
eventos daquele dia e
antes. Antes de nascer, em Guise. confirmaria - agora com calma
e segurança absolutas - terem
– Sim? Onde foi?
falado, através do meu corpo,
– Antes... Onde foi exato? Não me lembro. Acho que alternadamente, eu mesmo,
foi em Reims. Tenho uma vaga idéia. personificando Camille
– O que você fazia nessa ocasião? Qual a sua Desmoulins, e um outro
ocupação? espírito.
– Escrevia.
– Lembra do nome?
– Lembro.
– Pode falar? Ou não quer?
– Valois. .
– Como?
– Não me agrada... Valois.
– Não estou procurando forçar você a dizer.
– Na corte... É... eu escrevia. Fiz coisas horríveis. Na
corte. Prefiro me lembrar de Camille, tentando desfazer
aquilo tudo.
Teríamos oportunidade, mais adiante, de decifrar
esse mistério, quando, na última sessão de regressão, ele
resolveu falar dessa personagem histórica. Por enquanto,
aceitamos suas reticências.
– Você agora está numa posição espiritual na qual
essas coisas são colocadas na exata perspectiva. Você
sabe muito bem, como ser encarnado, pelo estudo da
Doutrina Espírita, que isso tudo tem uma seqüência lógica,
que os fatos vão se encadeando e que a gente vai
progredindo espiritualmente e moralmente. Não é isso?
– Deve ser assim...
– Então os fatos do passado só interessam como
lição.
– Muita coisa eu corrigi como Camille. Outras, piorei.
A gente não pode ser tudo ao mesmo tempo. Tinha de
refazer muita coisa. Eu refiz. Podia ter feito melhor, mas...
(Pausa.) Talvez um pouco de vaidade...
– Esse é um problema muito sério do espírito...
– Meu pai, não o vi mais também. Minha mãe...
Madame Darrone... Não vi mais ninguém.
– Provavelmente esses espíritos estão todos por aí,
em recuperação, em outras lutas, com outros problemas ...
Sorri e repete um nome: Madame Darrone...
– Quem é madame Darrone?
– Madame Duplessis... Eu que a chamava de
Madame Darrone. LC12
– Ah, sim. Sua sogra. Você sabe que ela ficou com
um escrito seu? Um documento que você escreveu na
prisão... uma defesa. Não sei por que razão... Embora você
o tenha atirado aos pés daqueles homens que o
perseguiam, esse documento foi parar nas mãos dela.
– Não me deixaram. Onde está ela? Madame
Darrone... Era linda! Lucile tinha muito dela.
– Seu sogro, o que fazia?
– Trabalhava na Fazenda.
– Era alto funcionário lá?
– Era. Fazenda Pública!
– O que você foi pedir a ele em favor de um tio meu?
– Ah! Um aval.
– Era tio meu, ou irmão?
– Tio.
– Tem certeza?
– Tio.
– Qual o sobrenome?
– Era Browning. Lembro bem. Seu tio.
– Você me viu, depois, em outras ocasiões?
– Deixa-me lembrar como foi. (Pausa.) Foi isso: era
um aval. O Mirabeau, você conheceu, era meu amigo.
Depois, também brigamos, mas no princípio era meu amigo.
Ele é que o conhecia, não e?
– Provavelmente conheceu meu tio e a mim quando
era garoto. Vivi muitos anos naquela existência. Até 1866.
– Fui pedir ao meu sogro... Ele tinha prestígio, tinha
dinheiro...
– Muito bem, Luciano. Por hoje chega.
– Tenho um receio... Estou falando com você do alto.
– Você vê aqui à volta?
– Vejo, mas tenho medo... É que eu estou em cima.
Tenho medo de ficar em cima... (Ou seja, de não retomar ao
corpo físico.)
– Vamos, então, retomar. Você sabe perfeitamente
voltar. Já experimentamos isso mais de uma vez.
– Mas estou muito distante...
Com os passes de dispersão em poucos instantes
ele estava de volta ao corpo físico, na plena posse de suas
faculdades habituais. A vida sem o corpo ainda o assustava,
pelo que se vê. Deve mesmo ter passado horrores no
mundo espiritual...

LEITURA COMPLEMENTAR

LC-6 – “(...) largar tudo pra lá e viver para a minha família


(...)”

Essa regressão parece ir encontrá-lo precisamente


no momento em que está tentando reavaliar tudo aquilo que
faz e vê fazer. Valeria a pena? Os riscos, a agitação, os
rancores, os tumultos, as aflições, as incertezas, os
temores...
Há um momento na vida de Camille que parece ser
precisamente esse. É ele um dos representantes dos
cordeliers na Assembléia, mas começa a rejeitar tudo
aquilo:

Após essa tarefa de ódio, “escreve Arnaud, ao referir-se à


sua violenta e fatal diatribe contra Brissot”, Camille abandonou a
“carreira atlética”. Não participa mais das reuniões da Assembléia
e, não tendo mais jornal, perdeu o hábito de tomar certas
iniciativas. Não era visto mais com a mesma freqüência nos
cordeliers nem nos jacobinos. Não escrevia mais, não denunciava
mais, não insultava mais. Parecia satisfeito em levar vida fácil, em
ambiente confortável, entre a mesa bem servida e seu leito de
damasco azul. Recebia os amigos à rua do Teatro Francês, ia ao
encontro deles no café, levava-os a Bourg-la-Reine para reuniões
festivas, ia jantar com Lucile e a levava aos espetáculos. Parecia
que esse tipo de existência fizera-o abandonar os sonhos de glória
e perder o gosto pelo escândalo e o ruído.

Ele próprio: Luciano/Desmoulins, me diria pouco


adiante que não nascera para aquilo e sim para fazer
versos.

LC-7 – “(...) Ainda tenho um pouco de esperança (...)”

Uma coerência não pode ser negada a Desmoulins:


a de ter sido radical e dec1aradamente republicano desde o
início, mesmo quando muitos, senão todos, só podiam
conceber uma estrutura política renovada, é certo, mas
ainda encabeçada pelo rei.
Em 1792 o sentimento de hostilidade ao rei vai num
crescendo incontrolável e em agosto o povo invade as
Tulherias, e toda a família real é retida como refém. Em
setembro, nova agitação de rua caça a Princesa de
Lamballe, amiga pessoal da rainha, e lhe corta a cabeça,
além de outros horrores inenarráveis. No dia 21 desse
mesmo mês a realeza é formalmente abolida por decreto da
Convenção Nacional em sua primeira reunião. Era o
começo do fim. Em novembro abre-se o processo contra o
rei, que se arrasta angustiosamente até 21 de janeiro de
1793, data em que Luís XVI é guilhotinado às 10h22min.
Que alguém tão profundamente envolvido no
processus da Revolução como Camille Desmoulins pudesse
ainda admitir, em 1792, a possibilidade de manter-se o
regime monárquico constitui inequívoco testemunho de
lucidez política, especialmente porque Desmoulins nunca
fez segredo de sua aversão aos ocupantes do trono, fossem
eles quais fossem.
No seu terrível libelo constante de La France Libre
poucos são os reis que escapam à sua palavra causticante
e demolidora, como se, no dizer de Arnaud, visse “apenas
suas torpezas, rejeitando ou ignorando todas as grandezas”.
Philippe, o Belo, é “um falsário, moedeiro falso, insaciável
de dinheiro e de poder, um tirano (...)”. Seus três filhos e
sucessores são “herdeiros da sua cupidez”. Philippe de
Valois – um dos seus antepassados, ao tempo em que foi o
Duque Charles d’Orléans –, “um assassino e também um
moedeiro falso”, além de “ingrato, violento e insaciável
publicano”. Carlos V, seu antigo avô (de Charles d’Orléans),
é um débil mental, Luís XI, seu primo naquelas remotas
encarnações, “parceiro de carrascos, mandava prender
jovens príncipes em celas pontudas e os retirava de lá, de
três em três meses, para lhes arrancar, um a um, os dentes
(...)”. Francisco I, “príncipe iníquio, simoníaco, déspota,
insolente e orgulhoso, levou a França à beira do precipício
pela sua imperícia, arruinou a com suas prodigalidades e a
corrompeu com seus escândalos”. Henrique II arrasta-se
aos pés de sua envelhecida amante: Francisco II leva o país
à bancarrota. Quem o sucede é Carlos IX, “um monstro que
extermina oitocentos mil súditos e suas esposas”. Preservou
apenas raras imagens históricas, como a de Luís XII, que
fora seu filho, como se verá mais adiante neste livro.

LC-8 – Bloqueio mental

Encontramos nesse ponto um bloqueio que não foi


possível vencer. Tentei algumas vezes, mas decidi não
insistir mais, respeitando as razões da sua recusa,
quaisquer que tenham sido. Parece legítimo supor que o
período inicial, no mundo póstumo, logo em seguida à
decapitação, tenha sido extremamente penoso e alienante.
Ele morria jovem, com a cabeça cheia de sonhos
grandiosos, o coração envolvido nas emoções profundas de
verdadeira paixão pela esposa, também jovem, além de
bonita e inteligente. Ficava ela entregue à sua própria sorte
com um filho ainda infante. Ademais, era simplesmente
caótica a conjuntura político-social. Sentia-se traído,
desrespeitado, humilhado, tratado como vulgar criminoso,
caçado como um facínora por ordem expressa de um dos
seus próprios amigos: o terrível Robespierre. Um espírito
com essa carga emocional não teria mesmo a mínima
condição de sentir-se pacificado, lúcido e feliz no mundo
póstumo. Não seria, pois, de se admirar que permanecesse
por um tempo mais ou menos longo em estado de angústia
e até mesmo de confusão mental. Acontece, porém, que,
sob as mais terríveis pressões de acontecimentos
espantosos, nosso dispositivo de videoteipe continua
implacavelmente a funcionar e a registrar, como temos
testemunhado em inúmeras oportunidades. Além do mais,
Luciano nos evidencia sua lucidez pelo menos ao cabo de
algum tempo, ao contar seu encontro com Lucile também na
condição de Espírito desencarnado, e a decisão que
tomaram de se reencarnarem juntos no Brasil, desta vez
como pai e filha. No meu entender, portanto, ele apenas se
recusa, provavelmente por prudência que respeitamos, a
exibir o replay desse trágico período que se estendeu por
cerca de século e meio.

LC-9 – “Ele me traiu. Matar minha mulher e meu filho (...)”


Robespierre foi implacável com todos os que
sacrificou às suas ambições pessoais ou aos seus rancores.
No mesmo dia em que Camille foi guilhotinado, Lucile foi
presa – 5 de abril de 1794, ou, pelo calendário da
Revolução, 15 germinal. Nove dias após, no 24 germinal, às
6h da tarde, ela foi também executada, juntamente com o
General Dillon e outros.
Horace, nascido em 6 de junho de 1792, não
completara ainda 2 anos de idade. Arnaud relata, com
sobriedade, a melancólica cena no apartamento da família
Duplessis, à noite, logo após a decapitação de Lucile. Lá
estavam dois velhos e duas senhoras, chorando ao lado de
uma criança. Eram o Sr. Desmoulins e o Sr. Duplessis,
Madame Duplessis e Adèle. A criança era Horace. A família
de Lucile, ou melhor, o que dela restou, estava agora atirada
à indigência, segundo expressão do deputado Goupelleau,
que conseguiu do Conselho uma pensão para o filho de
Camille Desmoulins. Pensão, aliás, que nunca foi paga.
Tiveram de vender a amada propriedade em Bourg-la-
Reine.
Os dois velhos não conseguiram sobreviver por
muito tempo à dor. Madame Duplessis e Adele se
incumbiram de criar e educar Horace. O menino matriculou-
se, como seu pai, no Colégio Louis-le-Grand, que se
chamava agora o Prytanée de Paris. Passou depois ao
Santa Bárbara. Após concluir seus estudos de direito e
prestar juramento, “não quis permanecer num país onde seu
pai e sua mãe haviam sido guilhotinados”.

Partiu para a América, “prossegue Arnaud”, instalou-se em


São Domingos, onde, após ter-se casado, morreu em 1825.

No seu livro, publicado em 1928, Arnaud informa que


a viúva de Horace, por nome Zoé Villefranche, vivia ainda
“há cerca de quarenta anos”, ou seja, aí por volta de 1888, e
que suas duas filhas tiveram numerosos filhos.
Por fim, mais uma severa palavra com a qual Arnaud
encerra seu estudo biográfico:

Como Horácio, que aceitou a condecoração do Lys (Lírio,


símbolo da realeza em França), eles não devem saber
exatamente como foi a vida turbulenta de Camille Desmoulins e
ignoram, sem dúvida, todo o mal que nos vem dele, o pouco de
bem que, num momento de corajosa clarividência, ele tentou
fazer.

LC-10 – “Somos todos uns covardes (...)”

A despeito da indiferença ante a morte, que aparentava


em seus escritos, “declara a Enciclopédia Britânica”, Desmoulins
demonstrou pouca coragem por ocasião da sua morte, em agudo
contraste com a brava e digna morte de sua esposa uma semana
após.

A linguagem da Enciclopédia é sóbria e discreta,


como convém. Alguns dos seus compatriotas, contudo, não
deram esse tratamento ao episódio. Já nem recorro aqui a
Arnaud, cuja opinião sobre Camille conhecemos. Vejamos,
contudo, Michelet, mais moderado.

Era com o povo mesmo que mais contava Desmoulins,


“escreve ele, à página 807 e seguintes da Edição Plêiade”. O
autor do Le Vieux Cordelier sentia-se amado, bendito. Tinha
consciência de ter sido a voz do povo e sua fé no povo era total.
Deu sobre a carreta o mais extraordinário espetáculo, agitando-se
e obstinando-se em acreditar que jamais a França poderia
abandoná-lo. “Povo! Pobre povo!”, gritava ele. “Enganam-te!...
Matam teus amigos!... Quem te chamou à Bastilha? Quem te deu
a insígnia com as cores nacionais? Eu sou Camille Desmoulins!”

Contudo o espetáculo evocado parece comover o


próprio autor, da mesma forma que comoveu a muitos
populares que não suportaram a trágica cena.

Muitos fugiram, “escreve Michelet”, crendo ver a Pátria


arrancar seu próprio coração.

Desmoulins diria, cento e setenta e três anos depois,


já mergulhado na vida como Luciano, que “todos somos uns
covardes (...)”. Em realidade, porém, não era só covardia,
era também a revolta, a angústia do desespero, a frustração
da impotência, a decepção ante a indiferença do povo pelo
qual ele estava certo de haver lutado tanto... “O povo é
ingrato e esquece depressa” – ele me diria ainda, em outra
oportunidade. O problema, porém, é que ele morria ainda
muito jovem, deixando entregues à sanha de seus
implacáveis adversários a esposa amada e o filho infante.
Deixava também seus sonhos, suas esperanças e aquilo
que, a seu ver, era uma das maiores contribuições à história
da França, quiçá do mundo. Em vez de ficar imortalizada no
panteão da glória em bustos de bronze, sua cabeça ia rolar
em poucos minutos dentro de um cesto sangrento...

LC-11 – “Fouquier... não veio me defender. Sofri uma raiva!”

Antonie-Quentin Fouquier-Tinville foi uma figura


tenebrosa. Nasceu em 1746, em Hérouel, mesmo
departamento de Aisne onde nasceria, quatorze anos
depois, seu primo, em segundo grau, Camille Desmoulins.
Gérard Walter entende que ele foi “apenas o lacaio
obediente do governo”, o que praticamente o redime de sua
longa série de horrores.
Para ficarmos, contudo, ao abrigo de opiniões
extremadas, seja para agravar suas culpas, seja para
exculpá-lo, vejamos o que diz dele a Enciclopédia Britânica:

Ele era tão implacável e incorruptível como o próprio Robespierre;


ninguém o demovia de seus propósitos, seja pela piedade, seja
pelo suborno. Sua desapaixonada impassibilidade fez dele eficaz
instrumento do Terror. Não tinha eloqüência jurídica, mas a fria
obstinação, com a qual expunha suas acusações, era mais
convincente do que qualquer tipo de retórica, e raramente ele
deixou de conseguir uma condenação.

Por isso, agüentou dezessete meses no seu posto,


um verdadeiro recorde naquela época angustiante. Durou
até que Robespierre fosse também preso, julgado e
condenado com a mesma rotineira frieza de sempre. Junto
com Robespierre veio um homem que Fouquier detestava
cordialmente, por nome Dumas, que, no dizer de Walter,
“Robespierre transformou de obscuro advogado na própria
encarnação do Terror”. O mesmo Walter diz que Fouquier
“deve ter experimentado particular satisfação em requerer
contra ele (Dumas) a aplicação da lei”.
Fouquier foi investido de poderes praticamente
ilimitados pela Assembléia e pela Comuna. Embora as
prisões se fizessem sempre mediante decreto do Poder
Legislativo Revolucionário, cabia a Fouquier o exame prévio
do dossiê de cada um, na sua qualidade de Acusador
Público.
Competia-lhe, “escreve Walter no segundo volume da Histoire de
Michelet (à página 1.385 e seguintes)” dar a palavra final, uma vez
que era quem decidia, após examinar o dossiê, se o suspeito
deveria ou não ser levado ao tribunal revolucionário.

Além disso, acompanhava o julgamento, ou melhor,


aquele lamentável ritual que levava esse nome. Podia
interferir no diálogo sempre que lhe parecesse oportuno e
necessário, ou interpelar o acusado e as testemunhas. Se o
júri decidia pela confirmação da culpa – real ou imaginária,
não importa –, cabia-lhe tomar as providências decorrentes,
ou seja, pôr em ação a tremenda rotina da execução
pública. Gostava sempre de saber se haveria bastante
gente na praça para assistir ao espetáculo... Se o acusado
era julgado sem culpa, o que raramente acontecia, ele tinha
poderes para impedir sua libertação, mantendo-o preso
como medida de segurança.
Em 1º de agosto de 1794, quatro meses após
providenciar diligentemente o julgamento e a execução de
seu primo Camille, ele próprio foi preso. Cometera um erro
fatal ao propor, logo após a morte de Robespierre, seu
próprio nome para o cargo de Acusador Público na
reestruturação que então se cogitava para o Tribunal.
Pensava, com isso, agradar os novos donos do poder,
mesmo porque, obviamente, gostava da sua função. Parece
que os novos líderes temiam-no também, por saberem que
a qualquer tempo Fouquier poderia mandá-los para a
guilhotina com a mesma dura e fria eficiência.
Mas ele não foi julgado imediatamente. Nos oito
meses que ainda passou preso, escreveu suas memórias,
com o objetivo principal de justificar-se, defendendo a
mesma tese que apresentaria perante o Tribunal: “Fui
apenas uma engrenagem dócil e submissa à ação do
mecanismo do governo.”
O julgamento, afinal, perante o novo Tribunal durou
quarenta e um dias, segundo a Britânica, ou trinta e nove
conforme Walter. Fouquier portou-se com a mesma frieza
de sempre. Defendeu-se com notável habilidade, presença
de espírito e sangue frio. Sustentou seu depoimento com
inabalável firmeza perante um auditório hostil, e discutiu e
chicanou minuciosamente cada acusação ou testemunho.
Perante a guilhotina, após ter sido insultado à
vontade pela multidão enfurecida, escreve Gérard Walter...

(...) esperou imperturbavelmente a queda da décima


quinta cabeça. Em seguida, subiu os degraus com passo firme,
apertou a mão do carrasco (seu velho companheiro) e acomodou
a sua própria (no cepo).

Segundo informa César Burnier, com o apoio


mediúnico de Chico Xavier, Fouquier teve uma breve
encarnação de quatorze anos no Brasil, “encarcerado na
imbecilidade e na paralisia”. Ao morrer, em Pedro Leopoldo,
lhe teria sido concedida uma “moratória de cinqüenta anos
no espaço, após o que voltará à Terra em nova jornada”.
A História ficou em dúvida quanto ao engajamento
de Fouquier como “engrenagem obediente e submissa” do
Terror, ou seja, como ele conseguiu chegar lá. Gérard
Walter acha possível que tenha sido Camille Desmoulins,
seu primo, quem lhe proporcionou essa oportunidade,
quando de sua função de Secretário-Geral do Ministério da
Justiça, ao tempo de Danton.
Como Luclano espontaneamente confirmou essa
versão, creio decidida a incerteza histórica. Não é, pois, sem
razão que Desmoulins se lembraria, ainda com horror e
amargura, da gelada indiferença de Fouquier pelo seu
destino.
Ao que parece, ele nem soube da carta que seu pai
escreveu a Fouquier. Embora Camille tenha tido seus
problemas com o velho Desmoulins, pai é sempre pai!
Vejamos o texto que consta do livro de Ferdinand Laboriau:

Cidadão compatriota,
Camille Desmoulins, meu filho, digo-o por convicção
íntima, é um republicano puro, um republicano por sentimento, por
princípios e, por assim dizer, por instinto. Ele era republicano na
alma e por gosto antes do 14 de julho de 1789; ele o tem sido,
depois, por efeito. O perfeito desinteresse e o amor à verdade,
suas duas virtudes características, por mim inspiradas desde o
berço e por ele praticadas invariavelmente, sempre o mantiveram
à altura da Revolução.
Será verossímil, não será mesmo absurdo, acreditar ter
ele mudado de opinião e renunciado ao seu caráter, às suas
afeições pela liberdade, pela sabedoria do povo, ao seu sistema,
ao sistema de seu coração, no momento em que o voto dele, bem
conhecido e pronunciado, tinha os mais brilhantes sucessos; no
momento em que havia combatido e vencido a cabala dos Brissot;
no momento em que ele desmascarava Hébert e seus aderentes,
autores da mais profunda conjuração; no momento em que devia
acreditar a revolução terminada ou prestes a sê-lo, e a sua
República estabelecida pelas nossas vitórias sobre os inimigos
dela, tanto do interior como do exterior?
Bastariam essas inverossimilhanças para afastar de meu
filho até a sombra de desconfiança e, entretanto, ele sofre os
horrores de uma acusação tão grave, que creio caluniosa.
Preso ao meu gabinete pelas minhas enfermidades, sou
aqui, pelos cuidados que tomam todos em mo ocultar, o último a
saber deste acontecimento próprio a alarmar o mais franco
patriota.
Cidadão, só te peço uma coisa, em nome da justiça e da
pátria, pois o verdadeiro republicano só elas reconhece: é
perscrutares por ti mesmo, e fazer perscrutar pelos jurados, toda a
conduta de meu filho, e a de seu denunciante, seja ele quem for;
saber-se-á logo quem é o mais verdadeiramente republicano. A
confiança que tenho na inocência dele faz-me acreditar que essa
acusação será um novo triunfo tão interessante para a República
quanto para ele mesmo.
Saúde e fraternidade da parte de teu compatriota e
concidadão Desmoulins, que ate aqui se tem honrado de ser o pai
de Camille, tido como o primeiro e mais inabalável republicano.

O comovente apelo foi totalmente inútil, mas


ninguém lhe negaria os qualificativos de eloqüente, sincero
e digno. Note-se que o velho Desmoulins não invoca o grau
de parentesco nem os favores que o tenebroso primo lhes
devia.
Tudo inútil. O julgamento é uma farsa dolorosa. A
despeito de seu temperamento desabrido e dos erros que
cometeu, ninguém poderia negar a Camille Desmoulins a
nitidez de sua postura republicana, desde a primeira hora.
Uma das aflitivas ironias daquela época trágica está
precisamente em haver sido Camille condenado e
executado sob a acusação de ter traído os ideais
republicanos.

LC-12 – Duplessis

Claude-Etienne Duplessis-Laridon era casado com


Anne-Françoise Marie Boisdeveix Duplessis-Laridon, pai de
duas filhas encantadoras – Anne-Louise ou Anne Lucie ou,
melhor ainda, Lucile, futura Madame Desinoulins, e Adèle,
com a qual Robespierre desejou se casar.
O Sr. Duplessis era alto funcionário do Ministério da
Fazenda. Gérard Walter informa o título oficial: “Prémier
commis du Contrôle général des Finances”. Embora num de
seus artigos – no número 6 de Vieux Cordelier – Camille se
refira ao sogro como “le citoyen Duplessis, bon roturier, et
fils d’un paysan, maréchal ferrant du village” (“o cidadão
Duplessis, bom plebeu, e filho de um campônio, ferreiro da
vila”), o certo é que a família tinha suas aspirações, senão à
nobreza o nome Duplessis foi adotado por essa razão –
pelo menos à burguesia de mais elevado status.
Dizia-se maldosamente que ele devia sua confortável
posição burocrática aos encantos de sua belíssima esposa,
e até que Lucile nem era sua filha legítima. Que Madame
Duplessis era bela e que tinha muitos admiradores
fervorosos – inclusive o próprio Camille Desmoulins – não
há dúvida, mas seu comportamento parece irrepreensível. O
problema é que seu marido era bem mais velho do que ela e
não tinha o mínimo gosto pelas frivolidades sociais, os
saraus lítero-musicais tão em moda naquele tempo, e, por
isso, dedicava-se inteiramente ao seu trabalho e, quando
em casa, encerrava-se nos seus aposentos, enquanto a
Sra. Duplessis recebia amigos e amigas nos salões
iluminados para uma conversa inteligente, um pouco de
música e poesia. No dizer de Arnaud, era “um velho
rabugento” que não entendia bem o temperamento de Lucile
e nem sequer fazia questão de entender. Quanto a Camille,
foi ainda mais hostil e resistiu à idéia de concordar com o
casamento dele com a filha.
Sejamos tolerantes com o velho Duplessis. Camille
era de fato uma figura estranha. Mesmo a Enciclopédia
Britânica, que se esmera em informar sem opinar, diz isto de
Camille: “Seu sucesso profissional não era grande; seus
modos, violentos, sua aparência, sem atrativos, e sua fala,
prejudicada por uma penosa gagueira.” Algo aturdido
quando viu Camille a seus pés, num gesto dramático, a
pedir-lhe a mão de Lucile, acabou concordando
hesitantemente, com o que não estava de acordo Madame
Duplessis. Por fim ambos cederam, já que Lucile também
acabara aceitando Camille que, a princípio, ela nem soube
entender, apesar da sua impressionante precocidade
intelectual.
Mesmo concordando, porém, e atribuindo à filha um
dote sensacional de 100 mil libras (francesas), equivalente a
125 mil dólares de 1967, o velho Duplessis fez questão de
todas as formalidades legais e tradicionais para o
casamento, como consentimento expresso e autenticado em
cartório, dos pais de Camille, casamento religioso (católico),
tudo rigorosamente segundo os costumes.
Suas exigências causaram não poucos dissabores a
Camille, como ainda veremos, principalmente porque o
jovem revolucionário era visceralmente anticlerical e alguns
sacerdotes mais formais aproveitaram-se da ocasião para
submetê-lo a alguns vexames, exigindo abjuração de seus
escritos e confissão de fé.
Com o tempo, não obstante – e como foi curto esse
tempo! –, o Sr. Duplessis tornou-se não apenas mais
compreensivo em relação ao seu turbulento genro, mas até
mesmo seu admirador. Quando, em momento de grave
crise política, Camille escapou para a propriedade da
família, em Bourg-la-Reine, o Sr. Duplessis, já nomeado
oficial da Guarda Nacional, declarou que defenderia
militarmente qualquer tentativa de seqüestro contra Camille
c seus amigos ali abrigados.
Já bem idoso – não consegui apurar a data de seu
nascimento –, sobreviveu juntamente com Madame
Duplessis à filha e ao genro, ficando nas mãos do desolado
casal o neto Horace, com menos de dois anos de idade.
Arnaud informa que mme. Duplessis não gostava do
nome do marido – Laridon –, e foi ela que o teria levado a
acrescentar o Duplessis, muito mais distinto. Em algumas
oportunidades, ela assinou Laridon-Duplessis, mas desde
que se casou fez questão de ser unicamente Madame
Duplessis.

Vejamos a 4ª reunião:

RELATO DA 4ª REUNIÃO
HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS
5. O QUANDO E O ONDE p.365...

Vejamos, porém, o
desenrolar da quarta sessão.
Estamos na semana seguinte.
A reunião seguinte foi realizada em 9 de junho de
E foi quando, afinal, surgiu o
1967. O tape guarda o diálogo que a seguir
reproduzimos, com os comentários habituais. acontecimento mais
importante, no quadro até
– Está se sentindo bem, Luciano? – pergunto
eu. – Onde você se encontra no momento?
aqui traçado.
Lamentavelmente, não temos
– A um metro mais ou menos de nós. Acima...
Não posso olhar para baixo; às vezes, uma espécie de
a gravação dessa sessão.
atração me deixa inseguro.
– Você já sabe que o processo não oferece Tendo o Hermínio ido,
riscos. naquela mesma semana, a
– Parece que vai descer e depois sobe. Volta Redonda, gravou, por
É claro que ele ainda experimenta algum temor descuido, outra sessão em
em afastar-se do corpo, provavelmente devido à cima da faixa do nosso
traumatizante experiência da decapitação. Ele próprio diálogo.
tenta explicar:
– É que eu estou numa situação diferente. [Temos uma questão
– Sim, é uma situação nova para o espírito. (O confusa aqui. Luciano diz
desprendimento consciente.) que a gravação deste
– Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. encontro se perdeu,
(Isso é verdadeiro também, porque nos estados Hermínio cita textualmente
superficiais a consciência fica como que dividida, ou a existência do “tape”.
melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.) Apesar de que, há grande
– Devo ficar calmo – diz ele para se incerteza sobre se os autores
tranqüilizar. – Deus nos ajudará. estão falando do mesmo
As sugestões apropriadas são dadas. encontro, tamanha a
– Você vai readquirir o conhecimento discrepância entre o que é
acumulado sobre a existência anterior e vamos dito por um e outro. Seja
desenvolver o plano que combinamos, segundo o qual como for, a palavra de
você vai relatar desde a infância essa existência, para
que possamos coligir o material para um trabalho sério,
Luciano só traz mais
um trabalho importante. confusão a esse quadro já
tão desordenado!
Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos
surpreendidos com inexplicável fenômeno de gaguez.
Fala com dificuldade, espaçando muito as palavras e É certo que na reunião de
hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam 1/9/1967, que será
maior obstáculo. comentada adiante, ambos
– Não tenho uma clareza muito grande. Prefiro concordam que o gravador
que você pergunte e vou localizando, senão tumultua. apresentara falha, mas
Novas sugestões de relaxamento e Luciano fala aqui, neste 4º
tranqüilidade, simultaneamente com os passes encontro, que a gravação
longitudinais. Ele sabe que, seu espírito está preso ao fora realizada e depois
corpo físico por fortes laços magnéticos.
perdida acidentalmente,
– Não vejo (isso) – diz ele. – Mas Deus vai nos coisa da qual Hermínio
ajudar.
Miranda não faz qualquer
Declara ainda não ver os amigos espirituais menção.]
que nos ajudam na tarefa, mas está convicto da
presença deles.
– Essa coragem, pelo menos, eu tive –
comenta ele.
Não obstante, num esforço de
Damos início, pois, às perguntas. memória conseguimos
– Onde é que você nasceu? recordar, em resumo, seus
pontos essenciais. Isto veio a
Antes – explica ele – eu estava nos locais e
era mais fácil e mais rápido. Agora, você tenha um ocorrer posteriormente, em
pouco de paciência se me demoro mais, porque tenho
que recordar. Agora é diferente. Tenho tudo, tudo,
uma de nossas derradeiras
tudo, na memória. Tenha paciência. reuniões, enquanto me
Destaco sua observação de que nas duas
achava inconsciente. Recapi-
sessões anteriores – bem como naquela primeira à tulei, conforme já disse,
qual consideramos mero teste de suscetibilidade – ele durante novo transe e a
estava lá, mas agora se vê obrigado a recorrer aos pedido do Hermínio, os
arquivos da memória. Este ponto, de fundamental
lances principais da sessão
importância, é reiterado em várias oportunidades de
nossa pesquisa, como ainda veremos, mas não perdida.
constitui novidade, pois o mesmo fenômeno foi
observado nas pesquisas do coronel de Rochas, Logo ao estirar-me no sofá,
conforme consta de sua excelente obra Les Vies iniciou o Hermínio seu
Successives, extensamente comentada por mim no comando. Depois dos
meu livro já citado A Memória e o Tempo. Escuso-me,
pois, de repetir aqui considerações que nos afastariam
minutos habituais, comecei a
do nosso roteiro específico. Basta ressaltar, para que entrar em transe, de mistura
fique bem claro, que há uma diferença fundamental com algumas imagens que
entre estar lá e recordar-se Por isso, na parte me iam aflorando à mente.
meramente especulativa de meu livro, lembro que o
tempo é também um local, ou, para dizer de outra
maneira, a memória fica na interseção de tempo e
Pela primeira vez eu estava
espaço, ou ainda, conforme lemos em A Grande vivendo um processo um
Síntese: “no ponto em que o onde se transforma em pouco diferente dos três
quando”. anteriores.
Voltemos a Luciano. [confirma que esta é a 4ª
– Por que você sabia antes e não sabe agora, reunião]
senão com um esforço maior? A que você atribui isso?
– Eu estava no local. Agora estou aqui,
lembrando-me do local. Entende? A não ser que eu vá É que, antes mesmo de entrar
lá. Mas não queria, por enquanto. Nasci em Guise, na inconsciência, pude
departamento de Aisne, na França Setentrional. Sabe mentalizar, perfeitamente,
onde é? Foi lá que eu, nasci. Data? Deixe eu lembrar...
2 de março de 1760.
enquanto se iniciava o
formigamento e a
Como ele enfrenta grande dificuldade para
falar, advirto-o com uma palavra de cautela:
insensibilidade progressiva, a
seguinte cena: alguém estava
– Você acha que está fazendo muito esforço
para isso? Não podemos cansá-lo.
deitado numa cama. Parecia
doente. Muito mal. Eu o
– Não me cansa. Não sei o que é... Porque eu
falo do alto...
estava observando, meio
preocupado e nervoso. O
– E tem que transmitir ao corpo.
ambiente era de tensão, de
– É. Isso sim que faz... não sei por quê. expectativa, de necessária
– Descanse um pouquinho agora. À medida cautela, talvez mistério. O
que formos progredindo no trabalho você irá doente parecia, de vez em
aprendendo a controlar o processo de tal maneira que
vai melhorar seu sistema de comunicação.
quando, diz-me alguma coisa.
– O corpo reage, mas não sinto. Pode espetar Súbito senti-o como se a cena
(agulha) se você quiser. Pode espetar.
fosse real e estivesse
– Mas não podemos exagerar para você não transcorrendo naquele exato
se cansar fisicamente. Vamos prosseguir. Então foi em
Guise, no Aisne, em 2 de março de 1760 que você
momento -, alguém bateu à
nasceu. Como se chamava seu pai? porta. Ele se mexeu,
ligeiramente, no leito e ficou
– Jean Nicolas Benoist Desmoulins. Minha
mãe? Marie Madeleine Godart. de ouvido atento. Voltei a
cabeça em direção à porta e
Intensifica-se a inibição da gagueira, ou
melhor, não uma gaguez daquelas que ficam a repetir me levantei para ir abri-la.
a mesma sílaba, mas de outro tipo, que se demora na Nesse ato de levantar,
primeira letra de cada palavra e de repente solta o aconteceu a surpresa: a
resto num esforço espasmódico. Assim: MMMMMM... imagem se evaporou comple-
arie MMMMM... Madeleine ...
tamente e só vim a saber do
– O que fazia seu pai? resto através da fita
– Era advogado da Corte, em Guise. magnética.
– O que fazia um advogado da Corte naquele
tempo? [Vimos, linhas atrás, que a
– Meu pai era do Bailliage. Sabe o que é? Uma fita se perdera. Aqui ela
jurisdição. Era Lieutenant Général. Você não entende, reaparece. Pode ser que
você não conhece. É que havia uma jurisdição, Luciano esteja se referindo
entende? E os problemas jurídicos da Corte, nos
departamentos, eram entregues a uma espécie de
a outra fita magnética, pois
delegados. LC-13 ele informa que ao final da
– Sei. Como você falou em “tenente-general”
experiência gravaram sessão
pensei que ele tinha também um posto militar. especial, na qual ele, em
transe, recordou os
– Não. É que era um général, geral.
principais pontos deste
Ou seja, a palavra general, aí, é mesmo
encontro. Mas, há uma
francesa e se traduz em português por geral.
Desmoulins-pai era, portanto, um magistrado da Corte coisa estranha aqui: a frase
em Guise. de Luciano não parece
– Geral, civil... Era uma divisão... – prossegue referir-se à pretensa fita
ele. – Os Lieutenants podiam ser geral, civil, ou policial. gravado em segunda mão.
Meu pai era Lieutenant Général Civil. O jornalista, aparentemente,
– Sim. Vamos repousar um, pouco. (Pausa.) esqueceu do que disse há
Ele tinha fortuna própria, era homem de recursos, ou pouco e fala da fita perdida
mais modesto? que, neste ponto, não está
– Não, meu pai tinha algum dinheiro, não mais perdida... Não
muito. Mas era muito... muito... como se diz, muito queremos insistir muito
seguro. Não gostava muito de dar, mas tinha recursos,
sim.
nesta linha de raciocíno,
para evitar sermos acusados
Em outras palavras, o velho Desmoulins era
um tanto pão-duro...
de excessiva severidade na
análise. De qualquer modo,
– Você tinha outros irmãos?
que está confuso, isso está!]
– Tinha. Éramos... (Conta mentalmente em voz
baixa:) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete ... Sete! Passei a falar como se fora o
LC-14
enfermo! Isto é, "no lugar" do
– Sete com você ou você e mais sete? enfermo, vivendo o papel do
– Não. Havia uma que morreu muito pequena. enfermo. Estava aflitíssimo e
Henriette. Tinha 9 ou 10 anos quando morreu. Ficamos indagava se era o Dr. Richard
sete.
o visitante que acabara de
– Eram todos homens? chegar. Perguntava, nervoso,
– Não. se o Hermínio era o Dr.
– Você é capaz de dizer os nomes? Richard.
– Ah, sim! Henriette Angélique morreu de um
“ramo de ar”. Tinha mais Marie-Toussaint, que me [Esse Dr. Richard aparece
chamava de Preto. na sessão seguinte, no relato
– Chamava você de Preto? Como era isso em de Hermínio Miranda]
francês?
– Crayon, Preto.
O Hermínio acabou dizendo
que não, mas que era "um
– Esse espírito não foi sua irmã depois,
novamente?
amigo do Dr. Richard". O
espírito estava convicto de
A pergunta parece tomá-lo de surpresa.
que o Hermínio era a pessoa
– Não sei. Quando morri ela ainda vivia. que batera à porta e que
– Por que então esse nome de Preto passou entrara na casa. Mas ele
para esta vida? Curioso isso, não é? também se dirigia a um outro
– Porque eu tinha os cabelos e os olhos muito personagem que... estava
pretos. sentado ao seu lado' na beira
Interessante que você renasceu com cabelos e da cama e com quem, até
olhos pretos e ficou com o mesmo apelido. Não é isso? então, parecia conversar.
Faz uma longa pausa para pensar, e acaba Pe:guntou ao Hermínio por
concluindo: ele, pois tinha sido quem
– É a Primerose! abrira a porta ao Dr. Richard
Primerose é sua irmã atual.1 (mais precisamente, ao
– Bem. Depois vamos investigar isso. Vamos
"amigo" do Dr. Richard: o
prosseguir com seus irmãos. E possível que seja o Hermínio)., Insistiu para
mesmo espírito, mas não queremos afirmar. saber onqe tinha ido essa
Sobe novamente o nível das suas emoções pessoa; tinha Um recado a
ante o impacto da conexão Marie-Toussaint/Primerose dar-lhe. E, afinal, declinou o
e ele diz, um tanto aflito: nome dela: Camille
– Me deu um nervoso... Marie-Toussaint Desmoulins. O recado era
Desmoulins... para que Camille publicasse
– Vamos prosseguir. Qual o outro irmão em em seu jornal uma
seguida? advertência sobre nova lei
– Armand, Anne, Lazaré e Clément. que estaria prestes a ser
assinada. Não me lembro se o
1
– E depois?
– Lucie. espírito referiu essa lei. O
– Ah, sim. Você era, então, o quarto ou o Hermínio (o "amigo". do Dr.
quinto? Richard) prometeu dar o
– Não, eu sou o primeiro. O mais velho. recado. O diálogo se
Clément era o caçula. prolongou ainda por alguns
– Henriette foi a que morreu com 9 ou 10 anos minutos, acabando o espírito
com um golpe de ar, provavelmente uma pneumonia, por xingar o Hermínio, pois
como se diria hoje. Não é? começou a desconfiar de que
– É. Ramo de ar... (Parece intrigado com a se tratasse de algum inimigo,
expressão, que continua a repetir.) Eu pensava que simulando ser amigo do Dr.
fosse outra coisa. Que fosse ataque da cabeça. Richard, pronto para delatá-
– Fale-me de sua mãe. Ia. e que o Hermínio tentou
– Cuidava da casa. Coitada! Eu me esqueci saber o nome do enfermo e
muito dela... isso o deixou desconfiado.
– Mas parece um nobre espírito. Dizia, então, em meio a
– Ela... Deixe-me lembrar. (Longa pausa.) Meu
grande ódio;
Deus! Não me lembro... Coitada! Eu estava sendo
preso e não soube que ela morreu. Coitada! Ainda - Seu porco! Você quer me
fiquei mais preocupado naquela hora. Ó meu Deus... entregar!
Eu a esqueci muito! Meu pai era um tanto culpado...
LC-16 Acabou a sessão e despertei,
– Você saiu de casa muito jovem? como de hábito (embora mais
– Saí. Acho que tinha uns 13 para 14 anos. prevenido e mais preparado),
LC-17 Saí para estudar em Paris. Eu queria sair de sentindo os mesmos sintomas
Guise. Só tinha o castelo. de sempre. O Hermínio me
– Você visitou o castelo alguma vez? contou, ain
– Fui em criança. Castelo histórico! Defesa da
cidade! Mas eu não queria Guise, e depois, eu queria da (isto não aparecia na gra-
estudar. Eu queria Paris! LC-18 vaçao), que o final foi
– Onde você foi estudar? horrível, pois o espírito se
– No Clermont... Clermont, não. No Louis-le- comportara como se acabasse
Grand. Clermont era antes, o nome. de ser guilhotinado! Achou,
– O colégio chamava-se antes Clermont, mas também, que o Impropério
quando você foi lá era Louis-le-Grand? "porco" teria sido
– Louis-le-Grand – confirma ele. LC-19
silabicamente articulado em
portugues, mas a idéia
– Lá você conheceu muitas pessoas. Figuras
eminentes saíram daquele colégio.
original do espírito era em
francês: "Cochon." cuja
– Rue Saint Jacques. Você sabia...?
acepção difere um pouco da
– Quais foram seus amigos lá no colégio? nossa, no Brasil. Vale
– Léon... Não me lembro o sobrenome. Léon... acrescentar, como vimos na
Ah! Ó... (Pausa.) Robespierre! (Longa pausa.) Primeira Parte deste livro,
É evidente que a lembrança de Robespierre o
desarmoniza. É como se, ao encontrar novamente
aquele vulto ali, na sua memória do Colégio Louis-le- que meu atual pai, Antônio
Grand, tropeçasse nele e perdesse o rumo. Tento
contornar o problema que, por certo, o aflige.
dos Anjos, viveu, como
médico, na época da
– Você guarda ressentimento de Robespierre,
mas não é necessário isso. Você sabe, como espírito,
Revolução, e se chamava Dr.
que são acontecimentos passageiros e, de certa forma, Richard. Certamente, há de
necessários a nosso progresso espiritual. Ele ser o mesmo de que estamos
provavelmente também passou pelas suas angústias e falando aqui.
sofrimentos, e nem sabemos onde ele está hoje. Você
sabe?
Analisemos, pois, o detalhe
– Ele era padrinho do meu filho. Demos mais curioso, e que foi o
Horace aos seus cuidados. (Longa pausa. Faço uma
ponto de partida da nossa
pergunta que ele parece não ouvir. Em seguida, como
se despertasse:) O que foi que você disse? caminhada na direção da
figura revolucionária de
– Vamos voltar ao período da sua infância.
CamilIe Desmoulins. Antes
Mas ele continua retido na figura de seu ex-
de entrar no estado de incons-
colega de colégio.
ciência, era eu quem estava
– Robespierre já estava lá.
ali, na beira da cama,
– Já estava no colégio quando você chegou? conversando com o doente.
Era de uma turma mais adiantada do que a
Quando este se manifesta,
sua?
depois que caio em sono
– Era.
profundo, ele pergunta pela
– Mais velho do que você também? pessoa que estava ao lado e
– Era. que fora abrir a porta,
– Foi um aluno brilhante no colégio? identificando-a como sendo o
Jornalista francês CamilIe
– Foi.
Desmoulins. Mas eu estou
– Era estimado?
certo de que quem foi abrir a
– Não muito, porque se isolava da gente. porta fui eu! Como se teria,
– Era muito introvertido, não? então, processado o
– Era. Diziam até que ele... (Faz um muxoxo e fenômeno? Talvez de forma
conclui:) Bobagem... bobagem... Ele era muito auto- muito simples: antes de ficar
suficiente, mas era estudioso, dos melhores alunos. inconsciente, eu me vi na
Era um apaixonado de Rousseau. Eu também, mas ele
encarnação passada, naquela
não o seguiu. No final, não. Eu segui.
cena mentalizada. Ocorrida a
– Sim. Vamos falar a seu respeito. Quantos hipnose, meu espírito se
anos você esteve nesse colégio?
afastou e o do outro, que
– Até... espera aí, deixa eu ver... Até 1784. E estava enfermo, deitado na
mais um ano depois, para colar grau.
cama, manifestou-se através
– O que você estudou? do meu corço somatico.
– Direito. Paris! Assim, tivemos, de início,
– E depois que você se formou, o que foi uma visão do passado;
fazer? depois, uma manifestação
– Foi meu primo por parte de mamãe que
arranjou para eu ser advogado (exercer). mediúnica que confirmava a
– Como se chamava esse primo? visão anterior. Essa foi, aliás,
– Era... Espere um pouco... Era Viefville conforme já disse, a
Desessart. explicação dada por mim
Cometo aqui um ato de burrose (burrice mesmo, posteriormente,
eventual, não crônica) e pergunto se não havia um durante outra sessão.
general com esse nome, ao tempo de Napoleão.
Lembro-me, depois, que a confusão se estabeleceu Mas depois dessa reunião
entre o nome Desessart e Dessaix, mas a pergunta
cretina serve para uma resposta genuinamente
duas coisas obrigaram-nos a
coerente: suspender temporariamente
– Napoleão quase que eu não vi.
nossos trabalhos:
– Sim, porque ele começou a aparecer quando
a Revolução já havia passado. Surgiu, como se diria
[Hermínio Miranda não
hoje, na crista da Revolução. Mas, de qualquer relata ter havido suspensão
maneira, seu espírito no espaço não pôde tomar dos trabalhos. Passemos
conhecimento dos acontecimentos posteriores porque uma vista d’olhos nas datas
você deve ter permanecido num período de muita
das reuniões, conforme a
agitação depois da sua execução, que foi algo muito
cruel numa idade em que você era ainda muito jovem, versão de Hermínio:
cheio de esperanças e de vida. Não é isso? (Antes que 1) Maio/1967 (sexta-feira) −
ele se agite novamente, apresso-me em acrescentar:) apart. em Copacabana
Mas isso hoje é acontecimento passado, superado.
2) 19/5/1967 (sexta-feira) –
Isso não o perturba mais, não é mesmo? Conseguimos
apart. de Hermínio
vencer a barreira que existia. Você agora está calmo,
tranqüilo... 3) 26/5/1967 (sexta-feira) –
Mesmo assim ele parece recair naquele terrível apart. de Hermínio.
clima emocional, e diz: 4) 9/6/1967 (sexta-feira) −
– É porque... você não pode imaginar. Por apart. de Hermínio.
mais que a gente queira ser homem, é horrível! Mas o 5) 16/6/1967 (sexta-feira) −
Hébert teve mais medo do que eu! apart. de Hermínio.
– O medo diante da morte é muito natural –
6) 23/6/1967 (sexta-feira) −
digo eu para consolá-lo. – Especialmente para você,
apart. de Hermínio.
naquela época.
– Ele gritou feito um medroso! – conclui ele. 7) 7/7/1967 (sexta-feira) −
apart. de Hermínio.
– Quem é Hébert?
8) 14/7/1967 (sexta-feira) −
– Hébert era um brissotista! – diz ele com
evidente desprezo. – Mas eu não podia... Lucile, apart. de Hermínio.
coitada! 9) 21/7/1967 (sexta-feira) −
– Você deixava muita coisa para trás e é apart. de Hermínio.
evidente que não queria morrer.
10) 4/8/1967 (sexta-feira) −
– Danton foi incrível! Desde a prisão... Incrível! apart. de Hermínio.
Ele gostava também de Lucile, mas ela não ligou! LC-
20 11) 1/9/1967 (sexta-feira) −
apart. de Hermínio.
– Mas por motivos diferentes dos seus. Vocês,
preliminarmente, não acreditavam, na sobrevivência do 12) 8/9/1967 (sexta-feira) −
espírito. Achavam que, ao morrer, desapareciam. apart. de Hermínio.
– Danton, nada! Eu tinha dúvidas... sobre
Deus. Tinha dúvidas. O resto, não. Tinha dúvidas. Na
Conforme Luciano, a
prisão, eu queria acreditar mais, precisava, porque interrupção dos trabalhos
quando senti que Robespierre não iria ter pena... teria ocorrido no 4º
nenhuma! Como é que pode? Incrível! (Está quase encontro, mas observamos
chorando.) Era preciso acreditar em alguma coisa. Eu
que, de acordo com
queria ler.
Hermínio, não houve nada
– Você me disse que leu um autor inglês...
que se pareça com o que foi
Harvey. Você se lembra do primeiro nome dele? Não
conseguimos localizá-lo. dito. No máximo, ocorreu
intervalo de 15 dias entre
– Harvey. Ficou na prisão (o livro). Era um
escritor inglês. Hervey. um encontro e outro, o que
não seria propriamente
– Não é Harvey, com “a”?
interrupção (a não ser que
– Não. Hervey... H-E... Era John Hervey!
Luciano assim o considere).
– Vamos procurar o livro. Você diz que o livro Mesmo assim, do 4º para o
era Méditations sur le Tombeau. 5º encontro, a seqüência
– Méditations sur le Tombeau – repete ele. – E semanal foi mantida.
mais dois livros. Le Nuit, de Young. (Com grande Luciano parece falar de algo
esforço e detestável pronúncia consegue fazer-se
entender, dizendo:) Edward Young (diz, Édouard
que efetivamente não
Yang). LC-21 aconteceu.]
Corrijo a pronúncia no meu inglês – modéstia
de lado, muitíssimo melhor – e comento:
– Vocês, franceses, pronunciam tudo à sua
primeiro, a necessidade de o
maneira.
Hermínio participar de outras
– Le Nuit... Horrível, o livro.
atividades espirituais, nas
– Qual era o terceiro? segundas-feiras, as quais
– Esses, quando me prenderam, apanhei na houvera interrompido pela
minha biblioteca. O outro, tinha comprado numa livraria ausência de companheiros em
pouco tempo antes e pedi a Lucile que me levasse na
férias; segundo, porque
prisão. L’Immortalité. Este... deixa eu ver. Era um
poeta. Eram poesias... Tinha uma capa... Você aquela última sessão, com os
conheceu? Um livro... um poema trágico. agônicos reflexos sobre mim
– Era traduzido para o francês ou você lia
próprio, das vascas de um
inglês? homem guilhotinado,
– Não, eu não sabia inglês. Muito pouco. Era a
reacenderam-me as
primeira tradução para o francês. Desenterrou a filha! E preocupações e o receio, e eu
o Danton também! Desenterrou Gabrielle. Coitado do não estava, de novo, muito
Danton! Gabrielle... Você a conheceu? Conheceu apressado em continuar.
Louise...? Gabrielle foi antes. Depois Louise. Gabrielle
Pensava nos meus filhos e na
morreu. Era amiga de Lucile. Muito amiga. Morreu. E
Danton desenterrou. cautela com que devia agir,
com que devia entregar-me
– Para quê?
– Estava maluco! Completamente louco,
coitado! Totalmente. Tirou do túmulo! Alucinado, àquelas pesquisas.
coitado!
– Era um homem de grandes paixões. Mas essa relação que fizemos
– Foi. Gabrielle... Você conheceu? Era sobre as duas fases da última
baixinha, bonita. Charpentier. LC-22 sessão embora só nos
– Você nunca mais voltou a Guise, depois que ocorresse algum tempo
saiu de lá, com 14 anos? depois - e não imediatamente,
– Voltei. Nas férias eu não ia para lá. No verão como pode o leitor ter
eu ia para Bourg-la-Reine. LC-23 julgado -, já naquela época
– Bourg-la-Reine? Que é isso? me intrigara bastante e,
– Era a fazenda de mon beau-père (meu passado algum tempo,
sogro). Bourg-la-Reine. (Está gaguejando espicaçara-me a curiosidade.
aflitivamente.) Esta, por seu turno, acabou
– Onde ficava isso? por recobrar-me o ânimo e a
– Bourg-la-Reine fica no sul de Paris. coragem. Todavia, para não
cometer imprudências,
– Em que época você conheceu Lucile?
Quantos anos você tinha?
lembrei-me de fazer uma
coisa simplíssima: consultar
– Quando eu era estudante.
o Alto sobre o assunto. Ouvir
– Como foi isso? o Plano Superior e ser
– Foi uma felicidade grande, mas difícil! LC-24 aconselhado sobre a
– Ela era uma jovem de família importante e conveniência de prosseguir
você um estudante mais ou menos desconhecido, daí ou não. Foi o que fiz, e em
a dificuldade para você vencer a barreira social. muito boa hora. Através de
– É... Foi no Luxembourg. um, médium altamente
– Numa festa? evangelizado, cujo nome não
– Não, no jardim. No Jardim de Luxemburgo. quis que eu declinasse,
Eu ia saindo do colégio e ficava passeando, e lá vi uma indaguei aos nossos mentores
moça antes de Lucile. Uma moça bonita também. Uma espirituais sobre se valia a
moça. Fiz uns versos para ela, mas... Lucile, sim. pena continuar nas pesquisas
Depois, Lucile... um dia... Você quer mesmo saber
disso?
e, no caso afirmativo, como
proceder daqui por diante.
– Vamos saber, sim, porque isso interessa à
nossa pesquisa. Além disso, é uma recordação
Recebi a mensagem que o
agradável para você. Hermínio já transcreveu na
Primeira Parte deste livro, no
– É! Lucile ia brincar com a irmã dela.
Capítulo O Quando e o Onde,
– Ela era mais jovem que você?
LC-24.
– Era. E com Madame Darrone. No jardim.
Luxemburgo. Madame Darrone... Você a conheceu? Pedi, ainda, a um outro
Eu é que a chamava de Darrone... Foi um apelido que
eu botei.
médium idêntica orientação.
Desta feita ao confrade
– Qual a razão desse apelido?
Abelardo Idalgo Magalhães.
– Darrone é patrone. É gíria.
– Argot? Sua mensagem ficou perdIda.
– Argot. Patrone... Patrone... (Experimenta a Contudo, ele conseguiu
pronúncia de várias maneiras, até que parece recordá-la, em tese. Guillon
encontrar a entonação adequada.) Patrone. Ribeiro (meu querido amigo
– Você é capaz de falar francês agora? da espiritualidade)
- Oui. Patrone. Francês... não repercute bem, recomendava o
embaixo. (Ou seja, no corpo físico.) LC-25 prosseguimento dos
– Ah, sim. Você pode pensar lá em francês que
trabalhos. Assim, não me
chega aqui, sai em português. É um fenômeno restou mais dúvida de que a
interessante. Está bem. Vamos continuar.2 palavra de ordem era
3
Penso tal qual o Hermínio, quanto à continuar, devendo, muito em
linguagem utilizada durante o transe. No breve, surgir, ao que me era
mais, nesse caso específico, o emprego do anunciado, algum fato
francês não teria acrescentado muita coisa.
"maravilhoso, do qual eu
Eu o falo razoavelmente bem. Não me seria
difícil a utilização e, portanto, nada teria nunca estivera "tão perto" ...
acrescentado á pesquisa, em matéria de
comprovação. (Nota de Luciano dos Anjos.) As mensagens serviram-me
de bálsamo encorajador e -
– Patrone é patroa! Confunde-me tudo isso,
por que nega-lo? -
mas eu dou um jeito. E Darrone é argot (gíria). Muito despertaram-me ainda mais a
boa, Madame Duplessis. Muito boa... Annette. LC-26 curiosidade. Levei-as ao
– Ela, levou, então, Lucile para brincar Hermínio. Ele gostou, achou-
juntamente com a outra irmã? as muito sensatas e, por sua
– Ela se sentou ao meu lado e Lucile brincava vez, tambem se reanimou.
com Adèle. Marcamos o reinício dos
– Adèle é a irmã? trabalhos e daí por diante, os
fatos foram paulatinamente
– Adelette. Adèle, Adelette. Era mais jovem.
Jogavam, brincavam. Duas crianças lindas! se acumulando se
justificando, se encaixando,
– E você conversava com Madame Darrone...
se comprovando, se
– Eu me sentei no vestido dela! Pedi
revelando, afinal, naquele
desculpas. E começamos a conversar. Ela era linda
também! Mas Lucile era minha Loulou... Era linda! "maravilhoso" prometido
Fréron gostava dela também. E Paul também... E pelo Alto e que mais não era
Claude também... (E num sussurro:) Mas ela gostava do que meu reencontro
de mim! comigo mesmo, na sombra
Pelo que se vê, Lucile era uma criatura do passado longínquo há
encantadora e tinha um séquito de admiradores; como, quase, duzentos anos, em
aliás, a Sra. Duplessis.
meio à agitada França
– Como então começou o romance? Você revolucionária de LUlS XVI
estava conversando com madame Darrone no parque,
no Luxemburgo, e daí ficou conhecendo Lucile.
e encarnando a figura do
jornalista CamilIe
– Elas chegaram... Madame Darrone me
2
apresentou. Conversamos, e ficamos amigos.
– Quantos anos você tinha aí? Desmoulins! (p.365-368 –
– 22... 23... Não mais. cap. 4 – 2ª parte)
– E Lucile?
– Garota. Uns 15 anos...
– E daí você passou a freqüentar a casa
deles?
– Custou! Você quer saber?
– Acho que é uma cena que ficou muito
gravada em sua memória, porque em nossa primeira
experiência você se viu numa sala com muitas janelas
e estava ansioso, esperando por alguém. Não sei se já
era sua noiva ou apenas namorada. Você se lembra
disso?
–Sei... Vou contar. Eu inventei um pretexto. Fiz
um libreto... uma ópera. Uma ópera? Não, uma
opereta. Tema? Era um romance frustrado e fui levar.
Madame Darrone e Lucile tocavam piano muito bem.
Lucile não era Lucile. Lucile era apelido.
Atenção para mais um módulo informativo
daqueles a que costumo chamar de a “eletrizante
trivialidade”.
– Ah, o nome dela não era esse?
– Não.
Neste ponto ele interrompe para pedir um
favor: que eu dê alguns passes a mais, o que faço
imediatamente. E como a conversa já se prolonga por
cerca de uma hora, proponho que seja interrompida
para não cansá-lo. E ele:
– Pode continuar, mas devo lhe pedir uma só
coisa. Só uma. Não me importa quanto tempo falemos
assim, que estou bem. Não importa. Ou que você fale
sobre qualquer coisa. Porque temos um compromisso.
Temos que juntar tudo, tudo, tudo... muito depressa.
Mais duas ou três vezes poderei estar conversando
com você.
– Por que isso?
– Porque eu sonhei... Não. Não sonhei não.
Disseram-me aqui... É que confunde. Que temos que
ultimar nossa tarefa nessas condições e prosseguir na
outra, pelo menos comigo, na tarefa da vida de
prisioneiro.
– Isso está muito misterioso. Não estou
entendendo. Você podia explicar melhor? Você diz que
temos mais duas ou três reuniões apenas...
– Eu pediria. Porque devemos... Se você
esperar um instante, vou ler para você o que vai
passar.
Este fenômeno ocorreu com certa freqüência
em minhas experiências. Sempre que o sensitivo tinha
algo a dizer, não de sua própria elaboração mental,
mas de origem mediúnica, espiritual, provinda de
companheiros desencarnados ali presentes, o texto
aparecia diante dos olhos e era lido. Foi assim mais
uma vez.
“Meus caros amigos: louvado seja Nosso
Senhor! Que Ele vos abençoe e vos envolva com a luz
do Seu amor e da Sua paz. A tarefa é grande e,
sobretudo, agradável a Jesus. Por isso, possam os
corações de todos os que nela se acham em trabalho
ouvir e, se quiserem, aceitar nossa sugestão fraterna
para que ela se desenvolva em duas etapas: essa
primeira, propriamente dita, em condições especiais
com o concurso de nossos amigos todos, (através do
recurso do desdobramento e uma segunda, em que se
vejam mais livres e por conta mesma de suas próprias
interpretações e deliberações. Seria um pouco cômodo
a tarefa toda em condições privilegiadas, mas hão de
estar sempre assistidos por todos nós. Depois talvez
sofram um pouquinho, mas Nosso Senhor os
abençoará.” LC-27

A leitura foi feita muito pausadamente, como


se o texto estivesse passando diante dos olhos do
leitor, palavra por palavra, surgindo de um lado e
desaparecendo do outro.
O texto não continha assinatura é certos
aspectos ali mencionados nos parecem obscuros até
hoje, ao escrevermos isto, quatorze anos
depois.Depreende-se, contudo, que a tarefa fora
cuidadosamente planejada e contava com ampla
cobertura espiritual. Lembro-me de que na época não
compreendi muito bem a sugestão de dividir o trabalho
em duas etapas. Percebo hoje, porém, que a idéia era
coletar prontamente os dados nas sessões de
desdobramento e, em seguida, fazer nosso próprio
trabalho de pesquisa, interpretação e exposição. Sobre
esta fase, embora assistidos, diziam os não-
identificados mentores espirituais que não
contássemos com a comodidade de “condições
privilegiadas”, ou seja, tínhamos de fazer nossa parte.
Ficou no ar a advertência sobre algum
sofrimento como causa direta da tarefa. Isto, porém,
era colocado apenas como probabilidade, não como
certeza.3
4
Suponho que eu saiba, hoje, de que
falaram os espíritos ao referirem que
iríamos sofrer um pouquinho. É problema
intimamente ligado à minha família, que
peço licença para manter privado. Ou,
noutra hipótese, breve, infundado e
improcedente percalço com que nos
deparamos, na fase que precedeu o
lançamento deste livro. (Nota de Luciano
dos Anjos.)

– Por isso, o tempo não tem importância –


conclui Luciano –, faremos tudo como você queira.
Encerramos neste ponto a sessão daquela
noite, 9 de junho de 1967. Como percebe o leitor, duas
pontas ficaram soltas por causa da interrupção
(obviamente necessária) para leitura da comunicação
de nossos amigos espirituais. Uma delas foi a narrativa
de como Desmoulins conseguiu aproximar-se da
família Duplessis; a outra foi a questão suscitada pelo
nome de Lucile, que segundo ele era outro. Este ponto
é de extrema importância por causa do
transbordamento do nome verdadeiro dela para a
existência atual.
Veremos isso mais adiante.

Considerando que Luciano apresenta relatos até a 4ª reunião e depois


narra o encontro ocorrido em 1/9/1967, deixaremos de fora os demais
encontros relatados por Hermínio Miranda e nos concentraremos neste.

O ENCONTRO DE 1/9/1967

Esta é a única sessão na qual a data coincide, e sobre a qual não resta
dúvida de que tanto Luciano quanto Hermínio se referem ao mesmo episódio.
Achamos que desta vez seria possível efetuar comparação dentro dos moldes
desejados. Infelizmente, ver-se-á que os narradores tomaram rumos distintos
em suas explanações e a mesma dificuldade que relatamos nos diálogos

3
anteriores aqui também se fez presente. Para não alongar demasiadamente
este estudo, muitas passagens dos relatos deixamos sem apreciações, mesmo
assim, apresentamos os escritos por inteiro, para que os leitores possam
visualizar corretamente o que foi dito pelos participantes.

RELATO DE HERMÍNIO MIRANDA RELATO DE LUCIANO DOS ANJOS

13. CONTRIBUIÇÃO DE CÉSAR 6 INFORMES PERIFÉRICOS DE


BURNIER (p.248...) REENCARNAÇÕES PARALELAS

Estudaremos a seguir a contribuição de Nesta altura devo fazer uma longa


César Burnier e de outros companheiros digressão. Trata, esta obra, do exame de
a este fascinante estudo. provas e circunstâncias que levam à
identificação de minha encarnação
Tal como nos recomendara a
anterior, na personalidade de Camille
comunicação mediúnica que Luciano nos
lera numa das sessões, havíamos Desmoulins. Entretanto, conforme o leitor
decidido encerrar a fase de coleta de pôde verificar - e terá de compreender
dados na sua memória para dar início à desde logo -, durante as pesquisas surgiram
segunda fase, e que teria de consistir em variados informes periféricos, não apenas
complementar as pesquisas com sobre pessoas que conviveram comigo
informaçoes documentadas, arranjar todo àquela época mas, também, sobre outras
o material de forma coerente e encarnações, minhas mesmo. Não obstante,
apresentá-Io racionalmente, num relato tais informes são de muita significação,
como este em que a história fluísse alusivos ao Hermínio Corrêa de Miranda
ordenadamente, a fim de que todas as (Robert Browning), ao médium Abelardo
suas Implicaçoes pudessem ser
Idalgo Magalhães (Charles Bossut), ao
apreciadas.
permanente líder César Burnier Pessoa de
A notícia do nosso trabalho, contudo, Mello (Danton), ao político Carlos Lacerda
circulara entre alguns amigos mais (Marat), ao procurador Roberto Jauréguiber
íntimos e houve certa curiosidade - sadia, (Hérault de Sechelles), ao médico Luiz
por certo - em examinar de perto as Guillon Ribeiro (Bérardier), ao meu pai
condições sob as quais estávamos Antônio dos Anjos (Richard Ansiette), à
trabalhando. minha irmã Primerose Pinto (Marie
Toussaint) e à minha querida filha Ana
Por essa razão combinamos para a noite Lúcia Martino dos Anjos (Lucile Duplessis
de 1.° de setembro de 1967 uma reunião Desmoulins). Já aludi, mais ou menos
de trabalho para estudo e debate do demoradamente, nos capítulos precedentes,
assunto. a algumas dessas pessoas. Também o
Hermínio referiu-as. Retornarei a elas e
[as datas coincidem perfeitamente. De
farei a introdução de outras não citadas até
todos os relatos, este é o único onde
os testemunhos estão corretamente
aqui. Mas antes de tudo cumpre deter-me
situados no tempo] nos informes que revelaram minhas
encarnações anteriores à de Desmoulins
A coordenação dessa reunião ficou a tais como as de Charles d’Orleans (1391-
cargo de nosso amigo comum, Abelardo 1465), de Jean-Charles e de Luís. Em
Idalgo Magalhães, havendo de nossa seguida, alinharei uma série de fatos e
parte apenas a restriçao de que teria de acontecimentos sobre personagens ligadas
ser um grupo muito reduzido de pessoas, tanto a Charles d'Orléans quanto a Camille
de absoluta confIança. Eu próprio não Desmoulins.
sabia quem viria à minha casa para essa
tarefa. No dia 1.o de setembro de 1967
realizamos a longa reunião de que nos fala
Compareceu o Dr. Armando de Oliveira o Hermínio, em capítulo da Primeira Parte
Assis, então vice-presidente da deste livro. Como vimos, por lamentável
Federação Espírita Brasileira - FEB - descuido, o gravador nesse dia não
(posteriormente seu presIdente), pessoa funcionou. E para que os lances principais
de elevado conceito tanto nos meios
não ficassem esquecidos, o Hermínio fez,
espíritas como na vida pública, no
desempenho de funções da maior logo ao término dos trabalhos, nova
responsabilidade técnica e social. Veio gravação, com o testemunho dos
Abelardo Idalgo Magalhães, que já participantes, em especial o do César
conhecemos. Também o Dr. Jayme Burnier, que foi, no caso, com quem mais
Cerviño, médIco competente e estudioso conversei durante o desdobramento, e
da fenomenologia, autor de um llvro já quem tivera a maior ligação comigo nos
em segunda edição, na FEB, sob o título idos de 1789.
Além do Incons ciente. Veio José Salomão
Mizrahy, amigo e confrade de todos nós. [a falha no gravador está concorde nas
(Mais tarde viemos a saber que ele fora duas narrativas, porém Hermínio não
um dos destacados parentes de Luciano
relata ter havido outra gravação ao
na existência que este viveu como
Charles d'Orléans... O leitor término dos trabalhos, na qual teria
compreenderá as reticências.) E, afinal, constado o testemundo de César Burnier,
estava conosco um cidadão mais idoso que é o que assegura Luciano dos Anjos.
do que nós; estatura elevada, figura Contraditoriamente, Hermínio joga o
imponente, que comparecia como testemunho de Burnier para vários anos
especialista em história da Revolução, adiante..]
com o objetivo de formular algumas per-
guntas para Luciano, já em transe: Anote-se, como fator
Chamava-se César Burnier Pessoa de importantíssimo: eu estava sendo
Mello, advogado, alto funcionário
apresentado a ele naquela noite, naquele
aposentado do Ministério da Fazenda,
filho de conceituada família mineira,
instante, e nunca tinha, ouvido falar nem
amigo pessoal de Chico Xavier, com o em seu nome e menos ainda em seu
qual conviveu intermitentemente por passado reencarnatório. No entanto ele ali
dezenas de anos. César me causou estava, especialmente convidado porque
profunda impressão. Quando lhe apertei era, nada mais nada menos, do que o
a mão, ao ser-lhe apresentado, pude Danton reencarnado! E, pela lógica, tinha
perceber a força do seu magnetismo que ser reconhecido por mim, pois fomos
pessoal, e por um desses palpites inexpli- intimamente ligados, como, de resto, a
cáveis, ocorreu-me - mas não o disse a própria história o registra.
ninguém - que ele tinha algo a ver com
tudo aquilo que estávamos fazendo ali. O
[Encontramos no trecho sublinhado
grupo se completava, naturalmente, com
Luciano e eu.
acima a síntese do pensamento falacioso
de Luciano, no que tange às
Acomodados todos, e após a troca inicial identificações reencarnativas. Vê-se que o
de impressões, fiz uma exposição jornalista recorre à “lógica” como forma
sumária da situação das pesquisas até de ratificar a inferência. Avaliemos o que
àquele ponto, e comentei aiguns ele declara, dito de outro modo:
aspectos dos "achados" históricos.
Respondidas algumas perguntas 1. Luciano (travestido
suplementares, Luciano foi posto em hipnoticamente como Desmoulins)
transe, como de hábito, por meio de reconheceu em Cesar Burnier a
reencarnação do amigo Danton;
passes, e iniciamos os trabalhos.
2. a identificação teria de acontecer,
pois a própria história registra que
Lamentavelmente, nosso gravador
falhou naquela noite crítica. Temos, ambos eram intimamente ligados;
porém, um relato que César Burnier 3. Portanto, ficou provada a correta
escreveu meu pedido, com base em suas identificação de que Burnier era
notas pessoais então colhidas. Danton redivivo!
[observa-se sensível diferença entre o
É com esse raciocínio torto que Luciano
que Luciano diz ter acontecido e a
informação de Hermínio: o jornalista
dos Anjos pretende demonstrar a
fala que houve nova gravação ao final capacidade de reconhecer reencarnações
do encontro; Hermínio Miranda diz passadas. Mas, o que têm nas declarações
que baseou-se nas notas de Cesar do jornalista, durante a sessão hipnótica,
Burnier, a qual foi elaborada seis anos que sejam capazes de corroborar a
após o encontro!] existência de um fictício mecanismo
reconhecedor de encarnações?
Ao elaborar este trabalho solicitei - e
obtive - permissão de César para A resposta é: nada, absolutamente nada!
incorporar seu relato a este livro.
Esse óbice, nenhum dos participantes do
Ei-Io: encontro parece ter percebido. O fato de
Luciano dos Anjos, sob hipnose, realizar
"Prezado e distinto amigo Dr. Hermínio afirmações que os registros históricos
Miranda.
ratificam, apenas, e tão-somente,
demonstra que o jornalista, quando
Rio de Janeiro, 30 de março de 1973.
hipnotizado, exibe bons conhecimentos de
Grave enfermidade me reteve durante eventos históricos do período da
longo tempo nos hospitais do Rio, motivo Revolução. A inserção de declarações
por que só agora posso me manifestar reencarnacionista nesse quadro é
sobre o seu esplêndido artigo inserido na gratuita! Teriam de haver outros
revista Reformadornº 8, de agosto findo, e elementos que permitissem supor que o
em que meu nome é citado por mais de discurso identificativo faz sentido e seja
uma vez. oriundo de algum dom especial com o
qual o jornalista foi aquinhoado. A
Julgo-me, por isso mesmo, na obrigação correlação entre o discurso do regredido e
de dar testemunho de tudo quanto a história reencarnativa de César
ocorreu durante as sindicâncias Burnier, a qual é apresentada como
científicas que o distinto amigo realizou, à
legítima, está apoiada no vazio.]
minha frente, na faixa daquilo que
denominamos 'regressão da memória'.
Vimos que o Hermínio quis recuar ainda
De início, confirmo, plenamente, as mais no tempo e investigar-me outras
afirmações feitas pelo amigo às páginas encarnações. Surgiram, então, aquelas
197-206 do Reformadorde agosto. personalidades já referidas, sendo que a
primeira e mais antiga se chamava Charles
[Hermínio esqueceu de transcrever o d'Orléans. Quem era? Confessei-o eu
que disse em O Reformador. Ficamos mesmo e os dados históricos, depois,
sem saber o que é que Cesar Burnier confirmaram que se tratava de um duque,
estaria confirmando...] sobrinho do Rei Carlos VII e pai de Luís
XII. Poeta, casado quatro vezes, prisioneiro
Devo mencionar, também, que todas as dos ingleses durante longos anos. Devo
pessoas que tomaram parte nas aludidas sublinhar, aqui, detalhe importantíssimo:
experiências eram absolutamente ele era um Valois! Depois é que ganhou o
desconhecidas de mim, incluindo, entre ducado de Orléans e passou a chamar-se
elas, o prezado e muito distinto amigo, a Charles d'Orléans. Ora, esse - se o leitor
quem fui apresentado no momento em
não esqueceu -, tinha sido, precisamente,
que dei entrada no cômodo onde as
pesquisas iriam ser feitas com a sua um dos raros detalhes fornecidos pelo
supervisão. Ê certo que o jornalista L.A. medium Francisco Cândido Xavier sobre
(Luciano dos Anjos) - seu paciente - já minha existência anterior: que, eu fora um
me havia sido apresentado quando exibi, Valois, escritor, e vivera na França durante
no salão da ABI (Associação Brasileira o período revolucionário.
de Imprensa), o filme de longa metragem
rodado por mim em Pedro Leopoldo, em [Luciano “ajeita” a revelação falhada de
1946, tendo por objetos a pessoa e a Chico Xavier, para que fique concorde
mediunidade de Chico Xavier.* com sua postulação de ter sido Camille
Desmoulins e, antes disso, um Valois!
* Sinceramente, não me
recordo, ainda hoje, do
prévio encontro com Cesar
Mas, o que Chico Xavier dissera sobre a
Burnier. Acho que não encarnação francesa de Luciano? Que ele
estive na ABI naquele dia a fora um “Valois, escritor”. Vamos ver o
que ele se refere. (N o ta de que Luciano escreveu, na terceira parte
Luciano dos Anjos.) de seu escrito, sob o título “A Forte
Presença do Passado Francês”:
Mas essa apresentação não passou de
um simples aperto de mão e troca de “Sempre acreditei, sendo espírita, que
palavras amáveis. Ninguém, entre os houvesse vivido na França, tanto pelo
componentes do seu grupo, sabia dos amor que lhe sentia como, mais tarde,
estudos que eu vinha fazendo desde por uma oblíqua insinuação do querido
1940 no campo da história e com base médium Francisco Cândido Xavier.
na reencarnação, fato que eu escondia Mas nada me autorizava a afirmá-lo
dos espíritas, com exclusão do médium positivamente. Eis que, um dia, os
Xavier e de um pequeno grupo de confrades Aberlardo Idalgo
amigos, isso a conselho dos próprios Magalhães, José Salomão Mizrahy e
espíritos, conselhos e advertências Henrique Russo Olivier vão a Uberaba,
filtrados por aquele magnífico médium em visita àquele incansável
mineiro, conforme mensagem em meu medianeiro, e me trazem dele
poder.
informação mais aclaradora: Chico
Xavier informara-lhes que eu
Conclusão: minha modesta adesão às
realmente vivera na França, na última
pessoas estudiosas que formavam o seu
encarnação, durante o período
grupo foi inspirada em virtude dos meus
revolucionário, E – eis, agora, um
conhecimentos da história francesa e, em
detalhe que, em princípio, parece
particular, da grande revolução de 1789.
Não Ignorava eu, entretanto, que as suas equívoco, mas que o tempo se
experiências Consistiam nas sondagens encarregou de confirmar, como já
regressivas da memória. O confrade que vimos neste livro – que eu tinha sido
me dera essa informação acrescentara um Valois, escritor! Ora, não era um
que o paciente - o jornalista L.A. que lhe médium qualquer quem o afirmava,
'servia de cobaia' (perdão pela era o mais completo médium do Brasil,
expressão) - teria sido o célebre Camille quiçá do mundo inteiro, no campo da
Desmoulins, da Revolução que deu fim fenomenologia intelectual. Agora, por
conseguinte, eu estava diante da
ao 'direito divino dos reis'. Rejubilei-me: possibilidade real de entreabrir o
Camille era alguém cujo rumo certo eu surpreendente livro do meu passado!
procurava desde o começo das minhas Mas, quem fui eu, afinal? O Abelardo,
pesquisas. Nao nego que por várias o Henrique e o Salomão colocavam a
ocasiões pensei tê-Io descoberto por mão no queixo e respondiam: “Não
palpite, jamais por indicação tácita dos sabemos... Ele não disse.”
espíritos, ou arrimado em prova que me
convencesse categoricamente. Meras Sigamos com a leitura, de modo a deixar
desconfianças! Tão logo cheguei ao seu
bem claro o procedimento do jornalista]
apartamento, ouvi do prezado amigo o
mais completo relatório de todos os
trabalhos realizados até então. A informação, por conseguinte, era
duplamente exata. O que me faltou, na
Um possante gravador completou, ocasião, foi calma (e maior interesse, pois
durante mais de uma hora, todos os eu estava muito despreocupado do assunto)
pormenores da sua exposição. para analisar e separar a informação.

[Cesar Burnier introduz uma terceria [Luciano “conclui” que pensara estar
versão dos acontecimentos, não fala diante de uma única informação, mas
de falha alguma na gravação e depois percebeu que eram duas! Desse
assevera que o encontro foi registrado modo, quando Chico Xavier garantira
normalmente pelo aparelho! Temos que Luciano fora um Valois escritor, em
pois, em cada relato, uma visão, não
realidade estaria declarando que o
só diferente, mas conflitante!]
jornalista tinha sido (1º) um Valois; (2º)
Inteirei-me de tudo. Submetido o
um escritor, portanto, dois, em vez de um.
jornalista ao transe hipnótico, um médico
não-espírita16 constatou que o transe era Com base em quê chegou a tal ilação?
completo: relaxamento dos músculos, Por conta de uma vírgula, que ele,
pupilas dilatadas, alterações do estrategicamente, inseriu na mensagem
metabolismo e do ritmo cardíaco. verbal, a qual transformou numa
Confesso que não esperava grande conjunção aditiva e, com um pouco de
sucesso, porquanto sou bastante cético. esforço, converteu em duas asserções!
16
É engano de César que, Os amigos de Luciano, ao retornarem do
como disse de início, ele encontro com o médium, apresentaram a
próprio desconhecia os
seguinte informação: “ele disse que você
presentes. O Dr. Jayme
Cerviño, aliás desencarnado foi um Valois escritor e viveu na França
tão jovem, foi espírita no período revolucionário”.
militante e participou de
grupos da chamada O caso é que depois que se descobriu a si
juventude espírita, quando mesmo como Camille Desmoulins,
estudante. Luciano ficou com um problema a
elucidar, pois a informação dada
Iniciados os trabalhos, o amigo anunciou anteriormente pelo médium não fechava
ao paciente que havia uma visita na sala com a recém-descoberta. Camille, é certo,
e perguntou-lhe se a conhecia (pergunta vivera no período revolucionário, mas
habitual em todos os trabalhos desse não fora Valois. E agora, quem poderá
gênero). Resposta: 'Sim, eu a conheço. É
me defender? Deve ter se perguntado o
M a riu s ’.
jornalista. Súbito, idéia luminosa o
A resposta deixou os assistentes em
envolveu: e se a revelação fosse duas,
confusão. A mim, todavia, imensamente embrulhadas na mesma embalagem?
interessou: Marius era o nome que Lucile Ante esta inspiração, reservou a parte
Desmoulins aplicava a Danton, na sua “período revolucionário e escritor” para
intimidade com o ardoroso convencional, Desmoulins e partiu em busca do Valois
de quem Camille fora secretário. Eu que fora.
havia lido dezenas de biografias de
Danton e Desmoulins. Entretanto
somente numa delas - a de Hermann Só que Luciano esqueceu que a
Wendel, à pág. 334 - encontrei essa informação completa dizia: “fora um
citação, colhida numa carta que Lucile Valois, escritor e vivera na França no
escrevera a Fréron e na qual se queixava período revolucionário”. Esta seria a
da lassidão de Danton, exausto pelas imagem completa da encarnação francesa
lutas revolucionárias e amargurado com de Luciano, que ele desmembrou, para
os homens da Revolução. Lucile achava tornar o discurso de Chico Xavier
Danton muito parecido, política e coerente. Em verdade, ele deveria estar a
psicologicamente, com aquele famoso buscar um Valois com tais características
político romano. De um salto, depois
(escritor, que tivesse vivido na época da
dessa curiosa citação, e depois de
confirmar aos presentes o seu inegável
Revolução). Só que para tanto, teria de
acerto, pus-me a interrogar o paciente abandonar a identidade de Camille
através do caríssimo amigo, de cuja voz Desmoulins e isso ele não faria de jeito
me utilizei, porquanto, estando o paciente algum!
em rapport com você, não poderia ouvir-
me de maneira alguma. (Outro indício do A adaptação reencarnatória feita por
seu estado de transe.) Incontáveis Luciano esbarra no próprio escrito do
perguntas dirigi ao paciente, todas elas jornalista. Vejam o seguinte trecho:
capciosas, difíceis de serem respondidas
em conjunto. Chico Xavier informara-lhes que eu
realmente vivera na França, na última
[nota-se o empenho de Burnier em encarnação, durante o período
valorizar a boa memória de Luciano, revolucionário... que eu tinha sido um
diz que dirigiu ao paciente Valois, escritor!
“incontáveis perguntas”, numa
reunião com pouco mais de uma hora Ora, é mais do que claro que Chico
de duração seria muito difícil Xavier se referira à última encarnação,
conseguir tal feito] portanto fora uma só vivência e não
duas!]
Inquiri-o quanto ao nome da velha ama-
de-leite da família de Danton (ela o O médium, dissera: "Viveu na França: na
acompanhou até à sua morte). Camille e última encarnação, durante o período
Lucile eram comensais do tribuno.
revolucionário, e que tinha sido um Valois,
Provaram muito com as pessoas que o
cercavam. A resposta não tardou: escritor."
Margueritte Hariot.
E a outra empregada, a
que esteve presente ao casamento do É claro que ele se referira às duas
tribuno na cour de Commerce? Danton personalidades: a de Desmoulins e a de
casou-se, na segunda vez, com Louise d'Orléans! Na França, ambos haviam
Gelly. A resposta veio exata: Marie vivido − certo; na última encarnação,
Fougerot. (Ver a biografia de Danton - durante o período revolucionário -, também
autor Dr. Robinet, página 249.) Essa certo, na personalidade de Desmoullns; e
Marie Fougerot e uma outra doméstica - tinha sido um Valois escritor - certo,
Catherine Motin - foram as pessoas igualmente, na personalidade de Charles
encontradas pelas autoridades - Louis
d'Orléans. Absolutamente certo, correto,
Thuller, juiz de Paz da Seção do Teatro exato. Só não sei se o Chico sabia da
Francês, quando esse juiz se dirigiu à distinção e não quis dizer, ou se ele mesmo
residência da falecida Antoinette também a ignorava. Neste caso, sabia agora
Gabrielle Danton para fazer o que, mais uma vez, sua mediunidade não
arrolamento dos seus bens, na ausência falhara, o que, de resto, não surpreende a
de Danton, enviado pela Convenção à
ninguém ...
Bélgica em desempenho de grave
missão junto de Dumoriez. (Ver peça
justificativa nº 6, intitulada 'Apposition des [Parece que o único que não se
scelles chez Danton, Le 12 Février 1793' surpreende com esse nó indesatável é o
- constante das folhas 234, do livro respeitável jornalista!! É bem conforme
Danton, edição 1884, da autoria do Dr. alguém declarou: com um pouco de
Robinet17). Não contente de todo com as criatividade tudo se ajeita!]
respostas dadas, formulei numerosas
outras perguntas vazadas no mesmo O leitor deve estar lembrado também que
estilo. falei, no mesmo capítulo 3 desta Segunda
17
Parte do livro, da informação que me dera,
Foi ao retomar dessa
o médium Homero Lopes Fogaça dizendo
viagem que Danton mandou
desenterrar GabrieIle para
que eu “Vivera na França, fora membro da
se certificar de que ela corte, era assim magro como hoje e
estava mesmo morta. no autorizei a morte de algumas pessoas”.
episódio a que aludiu Estava, portanto, igualmente certíssimo.
Luciano em transe. Não devo deixar passar a ocasião para
assinalar que, pelo menos quanto à
O paciente, vencidos os esforços encarnação como Camille Desmoulins,
naturais, saiu-se esplendidamente. recebi, também, por mais de uma vez, a
confirmação de outro extraordinário
O físico do jornalista L.A. é médium: Divaldo Pereira Franco. Se
absolutamente idêntico ao de Camille quiserem o arremate decisivo, ei-lo:
Desmoulins. Seu cacoete (ligeira Olímpio Giffoni, médium do Grupo Ismael,
gagueira ou tropeço) continua o da Federação Espírita Brasileira, e dos mais
mesmo.18
evangelizados que se conhecem (antena
18 psíquica das raras e sublimes mensagens de
A gagueira só se verificou no estado de
transe. mesmo assim foi eliminada com o Ismael à Terra), e que me confirmou, da
tempo. Luciano não apresenta a menor mesma maneira, essa encarnação.
dificuldade em falar em seu estado de
viglília. E até, a respeito dela, deu-me
muitos conselhos pessoais ... Vamos
[Burnier esforça-se por demonstrar adiante! Entre as vidas de Charles
que existiriam indícios na constituição d'Orléans e de Camille Desmoulins,
corpórea e nas atitudes de Luciano renasci; ainda na França, por mais duas
que o caracterizariam como vezes, ambas exercendo um ofício que
Desmoulins. Porém, é fácil perceber nunca, nenhum de nós, houvéramos ouvido
que exagera: “o físico do jornalista falar: vinagreiro, isto é, vendedor
L.A. é absolutamente idêntico ao de
ambulante de vinagre. Vidas duras,
Camille”, declara em sua euforia. E
ressalta que a gagueira seria outra difíceis, árduas, cheias de tropeços. E foi
comprovação. Hermínio não vê me referindo a uma delas que aflorou, nas
alternativa senão refrear a excessiva nossas pesquisas, a figura do Cardeal
empolgação do visitante: em verdade, CharIes de Guise, sobejamente conhecido
Luciano não é gago, exibia a gagueira da nossa história universal. Quem era ele?
apenas quando representava Camille. Exatamente, como já contou o Hermínio, o
Na sua generosidade identificativa, confrade e amigo atual Abelardo Idalgo
Burnier acaba criando uma nova Magalhães.
vertente na doutrina da reencarnação:
a de que os reencarnados apresentam
O surgimento do nome do Abade
as características físicas e
psicológicas de seus antecessores.
Bossut, acontecido durante aquela mesma
Parece-nos que Kardec não veria essa reunião, tem implicações especialíssimas.
idéia com bons olhos... Também, seria Naquela mesma semana, ninguém sabia,
o caso de perguntar: e César Burnier, ainda, com precisão, de que se tratava;
teria o mesmo físico que Danton? sequer como se escrevia o nome Bossut.
Pena que não dispomos de fotos de Mas o Abelardo Idalgo Magalhães, por via
Burnier para comparação. No relato de de sua própria mediunidade, chegou, mais
Luciano, veremos que ele comunga a depressa do que podíamos esperar, às
mesma idéia de Burnier, mas com conclusões que buscávamos. Em sua casa,
algumas diferenças nos detalhes] no domingo daquela semana, ele recebera
uma forte intuição no sentido de que
Para ser leal, informo-lhe: até o dia da consultasse o Lello Universal. Ora, nós,
nossa reunião com L.A., eu ignorava que
que já havíamos tentado a Enciclopédia
Camille Desmoulins chamava-se Lucie
Simplice Benoist Camille Desmoulins. Britânica, a fim de localizar o Professor
Esse Lucie Simplice passou a ser uma Charles Bossut, não poderíamos supor que
novidade para mim. (Ver Enciclopédia o LeIlo registrasse alguma coisa. Mas a
Larousse, volume 6, pág. 570.) Não intuição fora absolutamente certa. O
conheço uma só biografia de Desmoulins Abelardo me telefona e me dá notícia da
que cite esse Lucie Simplice que o sua descoberta. Três ou quatro linhas
prezado amigo descobriu na Enciclopédia apenas, mas o bastante para confirmar-se
Britânica. que o abade existira de fato.
Posteriormente, foi mais fácil ampliar a
[Conforme comentamos pesquisa, na Biblioteca Nacional. Então,
anteriormente, a citação do nome apuramos tudo sobre o assunto e os fatos
completo de Desmoulins foi
começaram a casar-se de forma
excessivamente enaltecida. Aqui
observa-se Burnier intensificando o maravilhosa. Fatos que não poderiam ser
valor dessa lembrança. Ele declara imaginados, que não poderiam ser
não conhecer “uma só biografia” que fabricados e que estão acima da
cite o epíteto por inteiro. Observem: possibilidade humana, consciente ou
nenhuma biografia, nem umazinha subconsciente, de serem arrumados. Des-
sequer, na qual o informe constasse! cobrimos, por exemplo, que Bossut foi o
Será que faz sentido tal declaração, primeiro tradutor, na íntegra, de Pascal, por
vinda de especialista na Revolução sinal contra recomendação da Igreja da
Francesa? Indagamos: quantas época, que não queria o trabalho. Ora, as
biografias de Camille o declarante Iigações do Abelardo (médium) com o
leu? Temos uma resposta do próprio
Espírito Pascal são muito anteriores as
Burnier: “Eu havia lido dezenas de
biografias de Danton e Desmoulins”. nossas pesquisas. Bossut foi estudioso de
”dezenas” de biografias, significa de assuntos sobre oceanografia, sobre
vinte para além, e em nenhuma delas construção de diques, de represas, etc. O
o nome completo de Camille Abelardo veio a ser, antes das pesquisas,
aparecia?! Uma coisa é certa, entre auditor de uma das raras firmas constru-
essas mais de vinte biografias, Cesar toras de diques no país. E tanto o cardeal
Burnier não leu a que consta da como o abade se chamavam Charles. O
Enciclopédia Britânica, provavelmente Cardeal Charles de Guise fundara uma
da mais popular das biografias o universidade; o Abade Bossut era professor
especialista olvidou a leitura ... um de matemática; o Abelardo leciona
tanto estranho... contudo o maior contabilidade. Bossut viveu, realmente, à
problema não está aí: as boas época da Revolução Francesa, e teve sua
biografias costumam trazer informes condição de abade cassada. Mas, de fato,
pessoais completos sobre os
salvou-se da guilhotina, pois a história não
personagens que descrevem.
Supomos que Burnier tenha registra em contrário.
examinado material de boa qualidade.
Como então aceitar que em nenhum Assinale-se, ainda, que se o Abelardo não
deles o nome inteiro do revolucionário pede ao Hermínio, durante aquela reunião,
aparecesse? Até em biografia que me fosse perguntado se havia mais
mixurucas a informação está alguém conhecido ali na sala, toda essa
presente. Quem quiser conferir, basta história não teria surgido. Não foi,
jogar o nome “Camille Desmoulins” portanto, uma narrativa espontânea, mas
em ferramentas de pesquisa na provocada por uma pergunta de última
Internet, vão aparecer um montão de
hora.
comentários citando o nome inteirinho
de Desmoulins. (Atenção, antes que
digam que não havia internet na época Quanto ao César Burnier, há muito o que
em que as experiências foram dizer. Repito que não o conhecia, nunca o
realizadas, esclareço: a internet não tinha visto antes. Preveniram-me de que
existia, no entanto as biografias participaria da reunião uma pessoa muito
existiam)] estudiosa da história da Revolução
Francesa e que me iria fazer algumas
Esse fato é mais uma contribuição a perguntas. Concordei, pois àquela altura eu
favor da autenticidade do depoimento já não duvidava de que' em transe seria
obtido do seu paciente em estado de capaz de responder a qualquer indagaçao.
transe, como se não bastasse aquela Não me havia dito, porém, que se tratava
declaração sua de que a Sra. Duplessis-
da reencarnação do Danton. Ora,
Laridon, mãe de Lucile, tinha o apelido de
Madame Darrone, 'coincidência'
Desmoulins tinha de reconhecer Danton e
notabilíssima que o distinto amigo indica esse reconhecimento seria, sem dúvida,
em seu magistral artigo, usando as fator decisivo de comprovaçao. Pois bem,
seguintes palavras: 'Cerca de dois anos os fatos ocorreram tal qual o leitor
depois, ao passar por uma livraria, em verifícou, ao ler o relato correspondente na
companhia de L.A. e de César Burnier - Primeira Parte deste livro, sob a
que desempenha nesta pesquisa responsabilidade de Hermínio C. Miranda.
importante papel -, encontrei num velho
volume da história da Revolução a Acrescento, neste ponto, uma outra
confirmação de que Mme. Duplessis informação que não é oriunda das sessões
tinha o apelido de Mme. Darrone.'
feitas com o Hermínio, mas fornecida, oral-
mente, pelo César Burnier: além de Charles
Realmente essa descoberta se deu de
acordo com a sua exposição de motivos.
d'Orléans, do vinagreiro (duas vezes) e de
Nós nos encontrávamos juntos, por Camille Desmoulins. Eu teria vivido como
'acaso', quando entramos na livraria (o lugar-tenente de Spartacus, líder da célebre
almoço não fora combinado pre- revolta dos Escravos em Roma, no século
viamente), onde o livro esclarecedor foi 71 a. C. César Burnier fora o próprio
encontrado ... Quantos 'acasos!'. . . Spartacus, mui antes, e claro, de reencarnar
como o tribuno revolucionário Georges
Sei que o jornalista L.A. tem uma filha, Danton.
registrada em cartório muitos anos antes
das suas pesquisas, com o nome de Ana - [É certo que dar asas à imaginação não é
Lúcia, o mesmo da infortunada Anne- crime e até dá um certo colorido à
Lucile Desmoulins19; sei, também, que narrativa, porém em nada ajuda a
ambas nasceram no mesmo dia e no explicar a experiência...]
mesmo mês - 24 de abril.

19 Mas, pelo menos quanto a mim, estamos,


Há pequeno engano de
César. aqui. O nome de
nesse passo, no terreno da mera
Lucile era Anne-Louise, especulação. Há quem diga, ainda, que ao
mas era tratada, na tempo do nascente Cristianismo fui
intimidade, por Anne-Lucie Demétrio referido por Emmanuel na sua
ou ainda Lucile. obra Paulo e Estêvão.

Tudo isso o meu distinto amigo relatou no Particularmente, acho possível. Mas
seu brilhante artigo do Reformador de também não tenho provas de nada. E neste
agosto. livro só estamos cuidando de matéria
provada e comprovada cientificamente.3
A leitura da tradução da [?!] [Pena que Luciano dos Anjos não
carta escrita por Camille a quis ampliar a declaração, informando o
seu pai, carta estampada no que, em seu modo de ver, significa
Reformador, constitui
“matéria provada e comprovada
esplêndida prova da
memória regressiva do cientificamente”. Se ele está a se referir à
jornalista L.A.20 sua regressão, e à conseqüente suposição
de que fora Camille Desmoulins, como
20 O fenômeno parece uma matéria cientificamente comprovada,
combinação de memória
então estamos diante de sérias
com vidência, pois ele "via"
a carta diante dos olhos dificuldades. Ressalte-se que nem o
espirituais. próprio Hermínio Miranda ousou emitir
declaração tão contundente! Conforme se
Aliás - é bom precisar aqui -, várias foram vê na nota acrescida por Hermínio ao
as cartas escritas por Desmoulins ao seu declarado pelo jornalista]
progenitor - Nicolas Desmoulins -,
3
homem de muita influência na sua terra Em verdade seria imprudente
natal, porém muito agarrado ao dinheiro. assegurar a identificação de Luciano
Em quase todas essas missivas Camille com Demetrio sem dispor de um mínimo
reclamava ajuda e revelava sua ânsia de de evidências convergentes, como tantas
existentes no caso Luciano/Desmoulins.
querer subir na política. Numa dessas
Certas conotações, no entanto, são
cartas, escritas com letra quase ilegível - singularmente curiosas. Segundo relato
como a de 20 de setembro de 1789 -, de Emmanuel, pela psicografia de Chlco
Camille pedia que se lhe remetessem Xavier, em Paulo e Estêvão, Demétrio
duas camisas e roupas. (Ver era ourives, em Efeso, e tinha
Enciclopédia Larousse - volume 6, pág. consideravel interesse na
570.) comercialização de imagens da famosa
Diana, deusa da mitologia grega que
O Café Procope ainda existe. Seu dono ali se venerava. A pregação da
mensagem cristã, devido ao
chamava-se, de fato, Lopes. Possuo
pioneirismo de Paulo de Tarso, não
ótimos slides coloridos desse café. Nada apenas ameaçava o rendoso comercio
mudou ali. Constatei, através de como, eventualmente, poderia acarretar
informações seguras, que a expressão dificuldades a “toda uma classe de
de que alguém pudesse morrer de 'ramo homens válidos (que) ficava sem
de ar' era comumente usada no velho trabalho", como escreve Emmanuel, se
Portugal daqueles tempos e tinha o ali viesse a implantar-se o culto sem
significado que o meu amigo lhe dá, no imagens do cristianismo nascente.
seu artigo, isto é, o de uma crise de
circulação, ou estupor português." Demétrio viu logo o inconveniente
que aquilo representava para os seus
O longo documento preparado por César interesses pessoais e, por extensão, não
sem certo teor de demagogia – as
Burnier prossegue, expondo fabuloso
implicações sociais, potencialmente
acervo de informações colhidas tanto em explosivas, ante o fantasma do
registros históricos confiáveis, que ele vai desemprego. Foi o bastante para entrar
citando, como no trato com seus em ação com o objetivo de mobilizar a
mentores espirituais, seja através das opinião pública. Promoveu uma reunião
suas próprias faculdades mediúnicas, com seus colegas ourives, que
seja com a valiosa participação de seu concordaram em aliciar e financiar
particular amigo Francisco Cândido arruaceiros e amotinadores que pronta-
Xavier. mente comecaram a espalhar boatos
tendenciosos pelas ruas, fazendo crer
que Paulo e seus seguidores se
César não tem dúvida, assim, em preparavam para tomar de assalto o
identificar Luís XVI o rei que assistiu, templo sagrado de Diana e profaná-Io
impotente, a queda da Bastilha, símbolo com a destruição indiscriminada dos
vivo e sinistro do absolutismo - como objetos do culto.
reencarnação de Carlos V, avô do Duque
Charles d'Orléans, que em 1377 mandara Como Paulo estava programado para
construir a Bastilha, usada, a princípio, falar no teatro local naquela noite,
como fortaleza e, posteriormente, como pequena multidão hostil começou a
prisão política, onde crimes tenebrosos formar-se na praça principal ao
foram· cometidos ao longo dos séculos. entardecer, e a engrossar
constantemente no correr das horas.
Para ele, César, Lucile Desmoulins foi a
reencarnação de Valentina Visconti, Não foi difícil manobrar a turba para
uma verdadeira caçada a Paulo e aos
Duquesa de Milão e de Orléans que
seus. invadiram primeiramente o teatro,
antes de morrer induziu seu filho Charles mas o Apóstolo ainda não estava ali.
- o futuro Camille Desmoulins a - a exigir Prenderam apenas Gaio e Aristarco,
a punição dos assassinos de seu pai e dois macedônios cristãos que estavam
ele próprio a vingar-se de João sem providenciando para que tudo estivesse
Medo. Este, por sua vez, César identifica preparado a tempo e hora para a
com Maximilién Robespierre, como já palestra. Em seguida a multidão saiu na
vimos. (Aliás, até fisicamente eles se direção da pequena oficina de Áquila e
parecem.) César descreve João sem Prisca, onde Paulo tecia suas tendas,
Medo como "homem terrível, hipócrita e pois vivia igualmente do humilde
a· quem Paris temia horrivelmente. O artesanato. Também ali não estava
Paulo, mas a turba exaltada
assassinato de Louis (d'Orléans) ficou
desmantelou a modesta oficina dos
impune, tamanho o medo, o terror que trabalhadores cristãos, atirando na rua
esse João sem Medo inspirou ao povo e teares quebrados e peças de couro. O
ao próprio rei da França - Carlos VII". casal foi preso.

Reunidas, assim, as personagens, só "A notícia espalhou-se com extrema


faltava desenrolar-se o drama, ou melhor, rapidez", narra Emmanuel. "A coluna
a tragédia que, afinal de contas, teve revolucionária arrebanhava aderentes
conseqüências positivas com a em todas as ruas, - dado seu caráter
derrubada do chamado "direito divino dos festivo. Debalde acorreram soldados
reis". É certo, contudo, que poderia ter para conter a multidão. Os maiores
esforços tornavam-se inúteis. De vez em
tido as mesmas conseqüências com
quando Demétrio assomava uma tribuna
muito menos, atrocidades, ou talvez improvisada e dirigia-se ao povo,
nenhuma. envenenando os ânimos." (Os destaques
Voltaremos ao documento de César são desta transcrição.)
Burnier um pouco mais adiante.
Retomemos, agora, o relato sobre nossa Aí está o homem! Se não é o precursor
reunião do dia 1º de setembro de 1967. de Desmoulins, ou o próprio, é muito
parecido ...
Como ficou dito, logo que iniciamos os
trabalhos, Luciano já em transe [Malgrado o respeito que Luciano merece, o
identificou prontamente a presença de perfil de suas encarnações não é muito
um de seus antigos companheiros da lisonjeiro. Demétrio era interesseiro, esperto e
Revolução ou, para ser mais exato, seu oportunista. Não estava preocupado com o
amigo Danton, na pessoa de César culto a Diana, como dizia, sim com o risco de
Burnier. Preferiu, não obstante, chamá-Io perder rendoso negócio, caso a mensagem
por um apelido íntimo - Marius -, que fora pregada por Paulo prosperasse. Camille
colocado por Lucile Desmoulins. Aliás, Desmoulins também não foi lá essas coisas
como tivemos oportunidade de observar, em termos morais: ambicioso em excesso,
Luciano nos dissera, numa das nossas aproveitou rara oportunidade que lhe surgiu
sessões de pesquisa, que Lucile adorava e desposou rica herdeira − talvez, mais tarde
botar apelidos nos amigos. Os casais tenha brotado sincero amor, contudo sua
Desmoulins e Danton eram quase motivação inicial não foi sincera. Ainda que
vizinhos - vIviam ali em torno da cour de Hermínio mostre que existem controvérsias a
Commerce - e, além disso, amigos respeito da real personalidade de Desmoulins,
íntimos que se encontravam com dá a entender que o moço não foi nenhum
freqüência, socialmente. O apelido invo- anjinho. E Luciano em dado momento diz:
cado por Luciano, em transe, oferece “não mudei nada, continuo o mesmo”. O que
dessa forma valioso fator de podemos deduzir desta declaração? A
autenticidade, mesmo porque, ali naquela resposta fica por conta de cada um]
sala, somente César Burnier tinha
condições de saber de quem se tratava. Se é, fazia ali um ensaio que lhe
Foi como que a senha identificadora, a serviria, mil e setecentos anos depois,
centelha que reacendeu a chama da para açular a multidão inconsciente e
botá-la a caminho da Bastilha. Na Paris
velha e sólida amizade, a mola que
daquele final de século XVIII, a tribuna
destravou todo o mecanismo do improvisada eram as cadeiras do Café.
reencontro. Foi, no Palais-Royal. Em Efeso, no
primeiro século, talvez fosse uma
Logo que Luciano disse que Marius banqueta rústica ou um simples bloco de
estava presente ali, César aproximou-se pedra, mas o animus revolucionário era
mais, visivelmente emocionado e atento. idêntico. Por outro lado, era a mesma
Era com ele mesmo... ainda que nós multidão amorfa, sempre plástica,
outros não soubéssemos bem, de início, quando açulada por hábeis manipulado-
res, que lhe dão conteúdo e sentido,
o que estava se passando entre eles
segundo suas ambições.
dois. A essa altura, não eram mais César
Burnier e Luciano dos Anjos, e sim, Geor-
Vemos até um pormenor curioso - o
ges Danton e Camille Desmoulins que se
traço artístico que persiste e transborda
reencontravam, cento e setenta e quatro
quase sempre de vida em vida,
anos depois que se viram pela última
vez, sobre o tablado da guilhotina, ante a manifestando-se nas suas diferentes
multidão agitada, na place de Ia formas de expressão. Em Éfeso, era o
Revolution, em 5 de abril de 1793 (16 ourives. Na França medieval, o
germinal pelo calendário da Revolução.) guerreiro e poeta; na França
revolucionária, o jornalista e poeta; no
E o que pede Luciano a César? Brasil, jornalista e poeta com o talento
Dirigindo-se a mim, diz ele: adicional para o desenho. Atenção,
contudo, para uma ressalva: isto não é
história - é especulação, cujo teor pode
- Pede ao Danton que me dê um beijo ... até ser verdadeiro, mas que não deve
aqui ultrapassar ns modestíssimas
Em verdade, Sanson, o carrasco, dimensões de sedutora e matizada
impediu que os amigos se despedissem fantasia. (Nota de Hermínio C.
com o clássico beijo francês. Danton, Miranda.)
tremendo fazedor de frases, deixou cair
mais uma:
[Um ponto importante, relativo a esse relato
- Que importa, se nossas cabeças se sobre a artimanha de Demétrio: Hermínio
beijarão, dentro de alguns instantes; no atribui a narrativa à revelação mediúnica,
cesto? provinda de Emmannuel. Porém o texto
consta da Bíblia, de onde Chico Xavier,
Era esse o beijo que Desmoulins
reencarnado estava agora a reclamar de representando Emmannuel, o copiou e
seu amigo Danton, também reencarnado. acrescentou alguns passos, por conta de sua
Era a expressão sentimental de um imaginação. Tudo indica que nem Hermínio,
símbolo que reatava as pontas soltas de nem Luciano sabiam disso.
duas vidas.
Para quem quiser conferir, reproduzimos
"César curvou-se respeitosamente", abaixo o texto bíblico, de onde o alegado
escrevi eu em Reformador de agosto de Emmannuel extraiu a história.
1972, "e depositou o beijo há tanto tempo
ATOS [19]
devido sobre a testa do amigo
1 E sucedeu que, enquanto Apolo
reencontrado." Era insuportável a estava em Corinto, Paulo tendo
emoção de todos os presentes, mas atravessado as regiões mais altas,
especialmente dos dois protagonistas chegou a Éfeso e, achando ali alguns
que, no século XX, reatam uma amizade discípulos,
que floresceu tragicamente no século 2 perguntou-lhes: Recebestes vós o
XVIII. Espírito Santo quando crestes?
Responderam-lhe eles: Não, nem
Seguiram-se as perguntas formuladas sequer ouvimos que haja Espírito
por César e as respostas de Luciano, Santo.
conforme já vimos do relato de Burnier há 3 Tornou-lhes ele: Em que fostes
pouco transcrito. batizados então? E eles disseram: No
batismo de João.
Naquela mesma noite Luciano, em 4 Mas Paulo respondeu: João
transe, identificou mais um amigo de administrou o batismo do
outras eras, desta vez na pessoa do arrependimento, dizendo ao povo
nosso companheiro Abelardo Idalgo que cresse naquele que após ele
Magalhães, em quem ele já identificara havia de vir, isto é, em Jesus.
também Charles de Guise, cardeal da 5 Quando ouviram isso, foram
Loraine. Não era ao cardeal, porém, a batizados em nome do Senhor Jesus.
quem ele se referia agora e, sim, a certo 6 Havendo-lhes Paulo imposto as
Charles Bossut, que, segundo ele, fora mãos, veio sobre eles o Espírito
Santo, e falavam em línguas e
seu professor de matemática nos dias de
profetizavam.
estudante no Colégio Louis-le-Grand.
7 E eram ao todo uns doze homens.
Luciano dizia que Bossut fora sacerdote
8 Paulo, entrando na sinagoga, falou
católico, profundo conhecedor de ousadamente por espaço de três
matemática e física e autor de alguns meses, discutindo e persuadindo
livros didáticos, sendo de notar-se um acerca do reino de Deus.
que estudava as leis físicas que 9 Mas, como alguns deles se
governam o movimento dos fluidos. Disse endurecessem e não obedecessem,
mais, que em plena Revolução salvara a falando mal do Caminho diante da
multidão, apartou-se deles e separou
vida de seu antigo mestre fornecendo-lhe os discípulos, discutindo diariamente
um salvo-conduto providencial, com o na escola de Tirano.
qual o velho padre conseguiu escapar à 10 Durou isto por dois anos; de
sanha trágica das matanças do Terror. maneira que todos os que habitavam
na Ásia, tanto judeus como gregos,
ouviram a palavra do Senhor.
Como sempre, isto não é posto aqui
11 E Deus pelas mãos de Paulo fazia
como fato cientificamente demonstrado
milagres extraordinários,
ou sacudindo provas concretas nas
12 de sorte que lenços e aventais
mãos. Andei discutindo alhures em meus eram levados do seu corpo aos
escritos (A Memória e o Tempo) o enfermos, e as doenças os deixavam
conceito de demonstração e prova, bem e saíam deles os espíritos malignos.
como o que constitui prova no contexto 13 Ora, também alguns dos
da fenomenologia psíquica. Não temos, exorcistas judeus, ambulantes,
pois, provas a exibir, mas algumas tentavam invocar o nome de Jesus
evidências são impressionantes. sobre os que tinham espíritos
malignos, dizendo: Esconjuro-vos por
Foi bastante difícil, em primeiro lugar, Jesus a quem Paulo prega.
descobrir referências históricas àquela 14 E os que faziam isto eram sete
obscura personagem - o Abade Bossut. A filhos de Ceva, judeu, um dos
Enciclopédia Britânica, única obra de principais sacerdotes.
consulta de que dispúnhamos ali no 15 respondendo, porém, o espírito
momento, não trazia a mínima indicação. maligno, disse: A Jesus conheço, e sei
Lembro-me de Armando Assis e eu a quem é Paulo; mas vós, quem sois?
procurarmos no índice todas as grafias 16 Então o homem, no qual estava o
possíveis: Bossut, Bossu, Bossy, espírito maligno, saltando sobre eles,
Baussu... Nada! Só algum tempo depois apoderou-se de dois e prevaleceu
conseguimos apurar, em livros franceses, contra eles, de modo que, nus e
que o homem realmente existiu. Um dia, feridos, fugiram daquela casa.
porém, obtive dados mais amplos sobre 17 E isto tornou-se conhecido de
ele. Teria sido por "acaso"? Não sei. todos os que moravam em Éfeso,
Encontrava-me em Barra Mansa - tratava tanto judeus como gregos; e veio
de dentes com um primo dentista que ali temor sobre todos eles, e o nome do
Senhor Jesus era engrandecido.
exercia, com inquestionável competência,
18 E muitos dos que haviam crido
sua nobre profissão - quando me vi com
vinham, confessando e revelando os
uma disponibilidade inesperada de
seus feitos.
tempo. Pois bem, funcionava ali no 19 Muitos também dos que tinham
mesmo edifício onde meu primo dentista praticado artes mágicas ajuntaram
tinha seu consultório Uma sessão da os seus livros e os queimaram na
valiosa biblioteca pública mantida em presença de todos; e, calculando o
Barra Mansa pela prefeitura local. Entrei valor deles, acharam que montava a
sem nenhuma idéia preconcebida e cinqüenta mil moedas de prata.
comecei a ver os livros, paixão antiga e 20 Assim a palavra do Senhor crescia
incurável. Magnífico acervo de obras poderosamente e prevalecia.
preciosas ali estava. Logo dei com 21 Cumpridas estas coisas, Paulo
velhíssimo livro francês, uma espécie de propôs, em seu espírito, ir a
enciclopédia cujo título e características Jerusalém, passando pela Macedônia
não anotei, mas que ainda deve estar em e pela Acaia, porque dizia: Depois de
Barra Mansa. Lá estava um verbete mais haver estado ali, é-me necessário ver
ou menos extenso sobre o nosso também Roma.
caríssimo Abade CharIes Bossut. 22 E, enviando à Macedônia dois dos
Confirmava-se ali a época em que vivera que o auxiliavam, Timóteo e Erasto,
e as suas especializaçêes culturais. Foi, ficou ele por algum tempo na Ásia.
realmente, notável matemático e físico, 23 Por esse tempo houve um não
pequeno alvoroço acerca do
Caminho.
ainda que obscuro, e escrevera os livros 24 Porque certo ourives, por nome
a que Luciano se referira. Sua grande Demétrio, que fazia da prata
paixão foi a matemática. Nos últimos miniaturas do templo de Diana,
tempos de sua pobre existência caiu em proporcionava não pequeno negócio
estado de apatia, do qual não conseguia aos artífices,
livrar-se. Já não falava, nem se 25 os quais ele ajuntou, bem como
interessava por coisa alguma. Alguém se os oficiais de obras semelhantes, e
lembrou de provocar nele uma reação disse: Senhores, vós bem sabeis que
desta indústria nos vem a
qualquer que o reanimasse. Daí a
prosperidade,
pergunta, a única que poderia interessá-
26 e estais vendo e ouvindo que não
lo:
é só em Éfeso, mas em quase toda a
Ásia, este Paulo tem persuadido e
- Professor, qual é o quadrado de 12? desviado muita gente, dizendo não
serem deuses os que são feitos por
E ele, num sopro, quase sem alento: mãos humanas.
27 E não somente há perigo de que
- Cento e quarenta e quatro ... esta nossa profissão caia em
descrédito, mas também que o
Vejamos, agora, o estranho jogo de templo da grande deusa Diana seja
circunstâncias que cercam essas estimado em nada, vindo mesmo a
identificações. Partamos da hipótese ser destituída da sua majestade
inicial de trabalho de que são verdadeiras aquela a quem toda a Ásia e o
tais identificações. mundo adoram.
28 Ao ouvirem isso, encheram-se de
ira, e clamavam, dizendo: Grande é a
Numa existência no século XV o cardeal
Diana dos efésios!
de Guise, poderoso ministro de Catarina 29 A cidade encheu-se de confusão,
de Médicis - que por sua vez seria uma e todos à uma correram ao teatro,
existência anterior do espírito arrebatando a Gaio e a Aristarco,
Robespierre -, socorre o Duque macedônios, companheiros de Paulo
d'Orléans, então reencarnado na pessoa na viagem.
de um humílimo vendedor ambulante de 30 Querendo Paulo apresentar-se ao
vinagre, salvando-lhe a vida num tumulto povo, os discípulos não lho
de rua. Ao que tudo indica, esse tumulto permitiram.
foi o massacre da Noite de São 31 Também alguns dos asiarcas,
Bartolomeu, a 24 de agosto de 1572. sendo amigos dele, mandaram rogar-
Posteriormente - cerca de dois séculos lhe que não se arriscasse a ir ao
após -, revertido de uma existência de teatro.
fausto e poder a outra de humílima 32 Uns, pois, gritavam de um modo,
condição social, o antigo cardeal é agora outros de outro; porque a assembléia
modesto sacerdote e competente estava em confusão, e a maior parte
professor de matemática e física. O deles nem sabia por que causa se
tumulto agora é o da Revolução tinham ajuntado.
Francesa, pelo qual ele seria fatalmente 33 Então tiraram dentre a turba a
tragado. Tinha, porém, um crédito Alexandre, a quem os judeus
cármico. Tivera um gesto de bondade, impeliram para a frente; e Alexandre,
acolhendo um pobre vinagreiro em acenando com a mão, queria
tempos outros. O vinagreiro é agora apresentar uma defesa ao povo.
figura influente na Revolução e um de 34 Mas quando perceberam que ele
seus ex-alunos e lhe dá um 'salvo- era judeu, todos a uma voz gritaram
conduto providencial, com o qual retribui por quase duas horas: Grande é a
o generoso gesto de 1572. Diana dos efésios!
35 Havendo o escrivão conseguido
apaziguar a turba, disse: Varões
Mas a "novela" continua. Segundo efésios, que homem há que não
saiba que a cidade dos efésios é a
soubemos de outras fontes, o antigo guardadora do templo da grande
cardeal, que foi também o Abade Bossut, deusa Diana, e da imagem que caiu
obscuro mas genial matemático, voltou à de Júpiter?
carne, desta vez em 1854, na figura não 36 Ora, visto que estas coisas não
menos genial de Henri Poincaré. O podem ser contestadas, convém que
campo de seu interesse? O mesmo de vos aquieteis e nada façais
antes: matemática, física, astronomia, a precipitadamente.
filosofia da ciência... Nasceu, ou melhor, 37 Porque estes homens que aqui
trouxestes, nem são sacrílegos nem
renasceu em Nancy, deixou mais de
blasfemadores da nossa deusa.
trinta livros e cerca de quinhentos papéis
38 Todavia, se Demétrio e os
do mais alto valor científico. Sua paixão,
artífices que estão com ele têm
porém, continuava sendo a matemática, à
alguma queixa contra alguém, os
qual deixou uma contribuição tribunais estão abertos e há
internacionalmente reconhecida como do procônsules: que se acusem uns aos
maior relevo. Tudo o que fez, foi bem outros.
feito. Até mesmo sua linguagem era 39 E se demandais alguma outra
simples, correta e bela. Tão bom era coisa, averiguar-se-á em legítima
como cientista quanto foi como escritor. assembléia.
Foi um mestre da língua francesa, como 40 Pois até corremos perigo de
diz a Britânica. Chegou, por isso, à sermos acusados de sedição pelos
Academia Francesa, onde foi ocupar a acontecimentos de hoje, não
cadeira deixada vaga com a morte do havendo motivo algum com que
poeta Sully Prudhomme. Morreu em possamos justificar este
1912, cercado de imenso respeito e ajuntamento.
admiração. Em Paris, residiu à rue de 41 E, tendo dito isto, despediu a
Guise, a alguns metros dos portões assembléia.
senhoriais da família que em outros
tempos fora sua.
E Jean-Paul Marat? Eis outra história não
Seu primo, o não menos ilustre Raymond menos fascinante de quantas tenho
Poincaré, advogado, escritor e político relacionado até aqui. Neste caso, cresce o
eminente, chegou a ser presidente da fascínio, pois envolve um dos mais
França. Seria ele - outra especulação
discutidos jornalistas da França
que podemos considerar gratuita, mas
possível -, seria ele a reencarnação do revolucionária, cuja reencarnação no Brasil
famoso Duque de Guise, irmão do antigo atraiu, igualmente, a atenção do povo, das
cardeal e que agora vinha como seu autoridades, dos círculos políticos e
primo irmão? Fica aberta a questão. culturais de todo o país. Por isso mesmo
Talvez algum dia possamos apurar vejo-me no dever de me alongar um pouco
isso ... mais no exame da sua personalidade e da
sua presença nas nossas reuniões, em que
E então, em vez de escrever um Who's pese as referências já feitas pelo Hermínio,
Who (Quem é Quem), escreveríamos um na Primeira parte deste livro. Vamos, pois,
Who was Who (Quem foi Quem). conhecer o retorno de Jean-Paul Marat, o
famosíssimo político e jornalista que,
E já que estamos aqui fazendo algumas incediou a França, às vésperas do 14 de
conexões, voltemos ao relato de César
Julho, durante o período agonizante da
Burnier, de onde faço mais uma
transcrição, de vez que ele me autorizou
monarquia e mesmo após sua queda, até
a utilizar com liberdade todo o material que fosse apunhalado, dentro duma
que generosamente colocou à minha banheira, pela coragem e o sangue-frio de
disposição. Charlotte Corday. Localizado Desmoulins,
era natural que, en passant, esbarrássemos
"Não há palpite nessas afirmações", também na figura de Marat, pois ambos
escreve ele, na já citada carta de 30 de eram amigos (depois romperam), viveram
março de 1973 a mim. "Elas se esteiam quase os mesmos ideais e conviveram no
em pesquisas sérias, estribadas em mesmo momento histórico, embora
lastro de caráter científico. Possuo, Desmoulins fosse bem mais moço. Aliás,
também, várias mensagens mediúnicas
daquela plêiade de revolucionários, Marat
recebidas por Chico Xavier, focando
parte do apaixonante assunto. Quanto à era o mais velho de todos.
figura de Louise Gely - falecida em 1856,
com 80 anos -, sou feliz em declarar que Houve época em que marquei encontro
é ela um dos meus principais mentores com ele, no Rio, e não pude comparecer.
no campo da minha mediunidade de Era meu intento identificá-lo publicamente
colorido histórico. Louise reencarnou no somente depois de ouvi-lo a respeito. Por
Brasil em 19.8.1932 e desencarnou em isso, quando, pela primeira vez, abordei na
31.3.1938, em Belo Horizonte. Foi um imprensa o assunto, fiz a omissão do nome
menino lindo e inteligentíssimo.21 dele. Mais tarde, porém, mantivemos
contato e, em princípio, ele, não
Chico Xavier, ao tempo da 'Grande demonstrou nenhum receio de ser
Revolução', era uma moçoila um tanto
identificado, ainda que não me confirmasse
caiplra da cidade de Arras. Chamava-se
Jeanne d'Arencourt. Jeanne era pro- nem desmentisse a hipótese de ter sido, em
tegida de Andréa de Taverney, Condessa vida anterior, o jornalista francês. Achou-a,
de Charny, que a introduziu na corte de porém, interessantíssima e se entusiasmou
Maria Antonieta. pelo assunto. Seja como for, a ninguém
seria difícil reconhecer o mesmo espírito
[Quem milita no meio espírita talvez em duas personalidades. Basta ler a vida de
possa esclarecer a estarrecedora Marat, que guardou, praticamente, todas as
dúvida, que brota da declaração de suas características, embora não tenha
Burnier: será que a revelação sobre deixado de progredir espiritualmente,
esta reencarnação do médium de dentro das inexoráveis leis evolutivas. É
Uberaba teve a repercussão devida? certo, também, que voltara com
Existem especulações mil sobre as
inteligência, talvez ainda mais brilhante, e
vidas passadas de Chico Xavier.
Numeroso segmento no espiritismo um peso cultural digno, nesse particular,
advoga ter sido ele o própro Kardec tanto do seu passado quanto do seu mais
reencarnado! César Burnier não entra recente presente.
nesta polêmica, prefere desencavar
uma vida modesta, ao tempo da [Luciano não percebe que a “fórmula”
Revolução, na qual Chico Xavier por ele adotada para reconhecer
assumira a identidade de uma mulher! encarnações é completamente subjetiva.
Ao que tudo indica, nem o próprio Com um pouco de paciência e engenho
Chico jamais comentou a respeito criativo é possível encontrar similaridades
dessa suposta vivência, entre duas pessoas, sejam elas quem
provavelmente, o gentil médium
forem. Depois, basta destacar esses pontos
concluiu que Burnier estaria por
demais eufórico e preferiu esquecer o em comum e esquecer as diferenças e,
assunto !] pronto!, temos os perfis
reencarnacionistas estabelecidos. Se se
Sua permanência na corte foi muito curta. pretende levar a teoria reencarnacionista
É que Jeanne, sem jeito e extremamente a sério, esses exercícios de inventividade
acanhada, quebrou logo o protocolo real deveriam ser descartados]
pisando nos pés da rainha. Foi a sua
felicidade. Esse acidente, afastando·a da Conheci-o de perto. Foi figura invulgar,
alta nobreza, evitou-lhe a morte na embora suscitasse sempre controvertidas
guilhotina, mas não evitou que a lâmina opiniões em todos os meios. Trata-se do
desta cortasse a cabeça do seu pai, político e jornalista Carlos Lacerda. Algum
pequeno nobre da terra de Robespierre. tempo antes da sua desencarnação, ele
vinha demonstrando público interesse pelos
21 O menino foi filho do assuntos paranormais, bastando lembrar,
próprio César Burnier, que
por exemplo, a pequena nota saída na
ficou desesperado ao vê-lo
morrer com 6 anos edição de 23.3.72, pág. 10, do Jornal do
incompletos. Brasil, sob o título "Parapsicología" -
Seção Informe JB:
Jeanne era amiga de Danton. Apelou
para o ardoroso tribuno pedindo sua Preso ao leito, com uma basite que
ajuda junto ao 'Incorruptível'. Danton trouxe de Atenas, o Sr. Carlos Lacerda
nada mais tem podido fazer a não ser
levou-a à presença do 'todo-poderoso
intensificar seus estudos sobre
detentor das pulcritudes cívicas'. Durante parapsicologia. Numa dessas noites, em
o trajeto, Danton recomendou-lhe: 'Atire- sua casa, presentes os Srs. José Gueiros,
se aos pés do homem; diga-lhe que seu Nertan Macedo e Roniquito Chevalier,
pai é pessoa moderada, nascida em sua falando sobre a Grécia, fez amplas
terra Arras; chame-o de Citoyen, mostre- considerações sobre o movimento de
se humilde e confiante no seu poder e na liberdade das esculturas gregas. Ficou
sua magnanimidade.' impressionado quando, no dia seguinte,
encontrou num livro de André Malraux
(Psicologia da Arte) um trecho que ele e
Jeanne cumpriu religiosamente os
seus convidados desconheciam e no qual
conselhos do amigo, enquanto Danton se o autor escreveu: "Em face da
dirigia ao Pontífice das Virtudes Cívicas, escravidão petrificada das figuras da
implorando sua piedade para com a Asia, o movimento das estátuas gregas, o
infeliz moça. Robespierre ouviu-o das primeiro que os homens conheceram, é o
culminâncias do seu orgulho. Depois, próprio símbolo da liberdade." O Sr.
num gesto todo seu, atirou a cabeça para Carlos Lacerda ficou vivamente
trás, trincou os maxilares e exclamou: impressionado, porque havia tratado
longamente do tema, na noite anterior, e
depois abre esse livro e encontra
- Minha filha, Robespierre comoveu-se
Malraux tratando do mesmo problema.
com a sua rogativa, mas é o Comitê de
Salvação Pública que está encarregado
dos assuntos da pátria. Todo traidor terá Relacionava-me bem com ele, certamente
de morrer! por extensão natural do relacionamento que
tivéramos, à época da Revolução Francesa.
No dia seguinte o pai de Jeanne perdeu a Em dezembro, sempre me enviava
cabeça na guilhotina, e a moça, banhada cumprimentos natalinos. Por volta de
em lágrimas, fugiu para a Espanha, onde agosto de 1972, Carlos Lacerda voltou a
faleceu, algum tempo depois, vítima da exprimir, na Manchete, seu interesse pelos
tuberculose (Barcelona), na igreja de fenômenos supranormais. E no dia 12 de
Sant'Ana. outubro daquele ano ele regressava da
Europa e me mandava um cartão, onde
Emmanuel, o magnífico guia do Chico, dizia, dentre outras coisas:
fugiu de Paris, do Terror de Robespierre.
Chamava-se Jean Jacques Tourville ou
Turville. Era professor da nobreza e se "Caro Luciano: trouxe o último livro do
refugiou igualmente na Espanha. Arthur Koestler, na tradução francesa,
intitulado Les Racines du Hasard, no
[Aqui encontramos outra original The Roots of Coincidence, um
reencarnação, gerada da inventividade estudo fascinante sobre as relações de tudo
de Burnier, que não conheceu isso com a física e os últimos avanços
qualquer divulgação! Há suposições científicos. Tão logo me desvencilhe das
de que Emmannuel fora Manoel de urgentes tarefas que aqui os dias de
Nóbrega, padre jesuíta. Parece que ausência me absorvem, gostaria de vê-lo e
esta foi confirmada pelo próprio ouvi-lo. Um abraço do Carlos Lacerda."
Chico. Entretanto, da “revelação” de
Burnier não se conhece qualquer
comentário (não ao nível em que Vale repisar que no Brasil apenas
informação dessa importância para as refizemos um velho companheirismo,
lides espíritas mereceria). Qual terá voltando, ambos, tanto eu quanto ele, às
sido o motivo do silêncio em torno de mesmas lides jornalísticas, embora, é claro,
notícia que esperar-se-ia fosse haja me faltado sempre, pelo menos nesta
exaustivamente divulgada? Será que a encarnação, o talento iluminado que fez de
comunidade espírita não levou a sério Carlos Lacerda um dos homens mais
a pretensa capacidade de César brilhantes e mais conhecidos do Brasil e do
Burnier em revelar identidades mundo. De qualquer forma, nas minhas
pregressas?]
limitações não me faltaram, também,
algumas proezas, tais as que o leitor
A citação desses episódios - meu caro
conheceu no Capítulo 2 da Segunda Parte
amigo Hermínio força-me a ir além do
que havia premeditado dizer-lhe quando deste livro. Não fosse a Doutrina Espírita -
iniciei esta carta. Não é aconselhável que costumo repetir -, também teria eu me
eu fique nos prelúdios do passado e envolvido de corpo e alma, mais uma vez,
interrompa a seqüência dos na política, tal como ocorreu a Marat nesta
acontecimentos, por demais significativos última encarnação
para nós, em virtude das suas lições de
aspecto evangélico e cármico. Vou aos Logo depois que Carlos Lacerda recebeu,
fatos. ao lado do Major Rubem Vaz, o célebre
tiro no pé, que originou a dramática crise
Robespierre reencarnou no Brasil na de 1954, recolheu-se ao seu apartamento
figura de uma médica (Minas Gerais). com alguns amigos, muitos políticos e
Seu novo sexo - ao que julgo - deveria
jornalistas, encontrando-me então entre
dar-lhe novas perpectivas da vida,
principalmente na faixa da sentimenta- eles. Já contei que no apogeu da TV Rio,
lidade reparadora. Veio ligada a Saint- Canal 13, em plena efervescência política
Just, seu marido e médico também. do governo de Juscelino Kubitscheck,
Tiveram várias filhas e viveram dirigi naquela televisão um programa ao
pobremente. Toda a velha entourage do vivo, conseguindo fazer a proeza de
'Incorruptível' surgiu de novo em torno colocar à mesma mesa de debates
dos dois. Entretanto a idéia da morte e as personalidades eminentemente adversárias,
velhas correntes do extermínio inclusive CarIos Lacerda.
demonstradas fartamente no 'Grande
Terror' (1794) acompanharam o casal em
O bom relacionamento da França,
lide. Materialistas, inclinados a princípios
negativistas, pressionados por aflições
portanto, esteve sempre vivo, em que
íntimas, encontraram logo um caminho pese, é claro, naturais divergências
salvador: o suicídio. Houve um pacto ideológicas, tanto (naquela quanto nesta
entre eles, cumprido por ele só, o encarnação...
médico. O desespero levou a
companheira às raias da loucura. Devia Marat foi um dos homens mais discutidos
matar-se também e injetar cianureto de da França revolucionária. Jornalista de
potássio nas veias das suas filhas. acutilada visão, não raro acusavam-no de
Todavia afogou-se em lágrimas e escandalizar pelas suas tão disputadas
esperou ... quanto arrepiantes colunas. Caracterizava-
se, principalmente, pela denúncia de
Seu destino ainda não estava cumprido negociatas e conchavos políticos. Porém, às
de todo: faltava-lhe o segundo ato - o vezes, se equivocava. Prometia, então,
conhecimento do Espiritismo e o perdão apresentar provas documentais de seus
do Chico e de outras vítimas suas. doestos, mas acabava não o fazendo, por
absoluta falta delas ou por total desprezo a
Pressionada pelo sofrimento, a médica
seus acusados e acusadores. Notável
lembrou-se de consultar outro médico de
Minas, ex-professor da Universidade de demagogo, Marat era, igualmente,
Minas e inteligência brilhantíssima, talentoso como escritor e vibrante como
quanto aos seus pontos de vista em face orador. Quando encurralado, teatralizava
do intercâmbio entre os vivos e os seus posicionamentos, do alto das tribunas,
mortos. O professor fora materialista e seu verbo retumbante defluía à conta de
intransigente. Entretanto ... impressionante magnetismo pessoal, que
envolvia e esmagava, empolgava e domi-
Entretanto teve que se inclinar diante da nava. Numa ocasião, quiseram cassar-lhe o
evidência dos fatos. mandato, e tudo já estava combinado para
isso. Mas quando Marat começou a discur-
É que em sua carteira guardava um sar para defender-se, foi tal sua retórica que
soneto de Hermes Fontes, dirigido à sua pouco a pouco o clima se modificou, e na
viúva, quando esta senhora,
votação final ele saiu vencedor. Isso
acompanhada pelo médico em apreço e
por outras pessoas, assistira, em Pedro
mesmo veio a acontecer com Carlos
Leopoldo, em virtude de inesperado Lacerda, quando ele era deputado federal.
acontecimento, a uma reunião espírita De outra feita, Marat deixou perplexa a
em que Hermes Fontes produzira nação quando, vendo perigar determinada
esplêndida mensagem (lindo soneto), do tese, sacou um punhal e ameaçou suicidar-
qual somente eu possuo cópia. Nesse se ali mesmo, em plena Assembléia, diante
soneto Hermes faz alusões claras às dos seus pares e do público! Apesar dessas
razões que o levaram ao suicídio, perdoa atitudes extremadas e radicais, era
aos que motivaram esse gesto pessoalmente instável e inconstante.
tresloucado e cita, taxativamente, o nome Diziam dele que não tinha amigos, porque
da sua ex-companheira, sentada ali, ao
a todos traía se sua causa estivesse em
lado do médico, e usando nome
trocado ...
risco. A análise, é claro, é subjetiva, não
faltando, portanto, os que, ao contrário,
O soneto era cem por cento do magnífico vissem nesses comportamentos a imagem
poeta brasileiro, absolutamente seu. A da verdadeira fidelidade a ideais mais altos
surpresa do médico catedrático foi sem que os das amizades pessoais.
limites. Foi ele mesmo que leu, em voz
alta, o soneto, acrescentando-lhe o Indiscutível, porém, era sua fácil mudança
seguinte comentário: 'Estou atônito. Sem de lado, ora surgindo como líder popular
o mínimo esforço recebi, de um instante das esquerdas, ora liderando as hostes
para outro, a mais irrecusável prova da elitistas da direita. Foi alvo de atentados.
sobrevivência do homem. É incrível o que Era temido. Fez da conspiração um hobby.
está acontecendo conosco neste
Seu jornal, L'Ami du Peuple (O Amigo do
momento. Chico não me conhecia
pessoalmente, nem a mim nem à
Povo), nasceu da venda de bônus e fazia
senhora que Hermes Fontes mencionou campanhas de subscrição pública para
neste soneto.' A viúva do poeta soluçava subsistir. Nesse particular Carlos Lacerda
de emoção. nada mais fez do que reeditar seu método,
já que a Tribuna da Imprensa nasceu,
Foi essa peça literária que levou a também, da venda de bônus ao público e
médica (ex-Robespierre), a que eu vinha empreendeu, nos mesmos termos, algumas
me referindo, à presença de Chico campanhas financeiras junto aos leitores, a
Xavier. fim de se manter. L'Ami du Peuple era um
dos veículos mais populares, subversivos e
Por cinco vezes ela perambulou entre escandalosos da época. Quando, devido às
Belo Horizonte e Pedro Leopoldo, sem
suas campanhas, a situação se
poder aproximar-se do nosso querido
Chico. Sérios embaraços afastaram-na convulsionava, Marat se retirava da França
do médium. O destino ou as leis cármicas e ficava esperando que a crise passasse.
exigiam-lhe o recurso que lhe estava "Tantas ele fez que acabou sendo
previamente traçado: minha interferência assassinado! Charlotte Corday, a pretexto
no seu problema sentimental. de fornecer-lhe uma lista de conspiradores
para publicar, conseguiu entrar em seus
Tivemos uma entrevista a sós. Falei-lhe aposentos e apunhalou-o enquanto ele se
sobre a sua tragédia, a beleza dos banhava. Terminava, naquele instante, a
princípios de Kardec, a gloriosa carreira de um dos mais excêntricos
mediunidade de Chico e aconselhei-a a políticos e jornalistas franceses. De lá, veio
que voltasse à casa do Chico ele reencarnar-se no Brasil, onde
imediatamente, pois tinha certeza de que
novamente encontrou o caminho da política
seria atendida nessa sexta vez.
e do jornalismo. Então, repassou quase
Assim sucedeu. Munida de uma todas as suas lutas, aspirações e técnicas,
apresentação do Professor Mello Teixeira contribuindo, não obstante, para o
- o médico que Hermes Fontes enriquecimento da nossa história, em que
traumatizou -, apresentação, aliás, em pese todas as restrições feitas por seus
que seu nome era omitido, a pedido da adversários. Acertando ou se equivocando.
própria interessada, rumou para Pedro não se lhe pode negar o lugar que.
Leopoldo a desolada senhora. conquistou nos fastos da nossa cultura.
Pena que tenha despertado um pouco tarde
Recebeu-a, sob angustiosa sensação, o para as realidades maiores do espírito,
pai do médium, o mesmo indivíduo cujo quando começou a se interessar de perto
destino, em 1794, estava dependendo do pela fenomenologia supranormal.
Comitê de Salvação Pública e para o
qual Robespierre nada poderia fazer,
porquanto 'todos os traidores teriam de Há muitos outros pontos de relação entre
morrer'. Marat e Lacerda, inclusive a alcunha que
aquele recebera de "Ave de Rapina",
Apresentada ao Chico, a senhora negou- enquanto este era chamado de "Corvo",
se a declinar seu nome. O médium, depreciativos que, entretanto, nunca os
perturbado com essa desconfiança, abalaram. Tal é a semelhança de
consultou Emmanuel quanto ao que comportamento que o jornalista David
deveria fazer. A resposta veio imediata- Nasser fez, em artigo publicado em O Cru-
mente: 'Trata-se da Doutora Fulana de zeiro, paralelo que, sem saber, mais não era
Tal, e de seu marido, Doutor Sicrano, do que a expressão da melhor verdade
desencarnado por suicídio. Vou buscá-Io reencarnatória: "Marat-Lacerda".
na lama do seu sepulcro. Esperem um
instante. Voltarei logo.'
Os fatos sobre Marat estão na história. A
Essas declarações de Emmanuel
revelação da sua encarnação no Brasil foi
deixaram a viúva inteiramente arrasada. feita pelo companheiro Camille
Segundos depois Chico Xavier advertia: Desmoulins. Ambos Vieram daquela
'Emmanuel se aproxima 'com um espírito agitada, turbulenta e ImprevisíveI época de
cambaleante, que se contorce de dores Luís XVI, do Diretório, da Comuna e do
no estômago e no esôfago. Ele exclama, Comite de Salvação Pública para se
aflitivamente, o nome das duas pessoas: reencontrarem, afinal, na Terra do cruzeiro
P... e N ... ' do Sul. E se alguma dúvida ainda restasse a
mim ou ao Hermínio, tê-la-íamos desfeito
Na verdade, P ... e N... (cunhado e filha completamente no instante em que
do suicida) foram as pessoas que o
apanhamos a Enciclopédia Britânica e
socorreram no instante em que o médico
entrara em agonia. deparamos com o retrato de Marat.
Incrível! Nem fisionomicamente mudara.
Não pretendo ir além na narração de tudo Era o mesmo ...
quanto aconteceu depois, mas devo
dizer-lhe - distinto amigo Hermínio Agora, algumas palavras sobre Luiz
Miranda - que, poucas semanas após, Antônio Guillon Ribeiro, sobre meu pai e
Chico Xavier reproduziu para mim o que sobre minha irmã.
ouvira do seu guia Emmanuel com
referência à desolada senhora, a quem Luiz Antônio Guillon Ribeiro é filho de um
todos nós socorremos na medida das dos miis notáveis espíritas que o Brasil já
nossas forças. conheceu: Luiz Olimpio Guillon Ribeiro
autor e tradutor de numerosas obras de
Disse-lhe ele: 'Ela teria de receber
peso, entre as quais as de Allan Kardec e
primeiro o perdão de vocês todos: o seu,
o do seu pai e o do César. Daí as de Jean-Baptiste Roustaing, dois bauartes
dificuldades que encontrou para chegar da Doutrina Espírita. Presidiu (o pai) a
até você. Federação Espírita Brasieira formando, ao
lado de Augusto Elias da Silva, que a
Lei de causa e efeito, pois não? fundou, e de Adolfo Bezerra de Menezes,
Cumprimos a nossa tarefa. Que a que foi o grande apóstolo daquela entidade,
beneficiada saiba cumprir a sua ... " um trio evangélico de papel marcante na
longa história do espiritismo. Tenho-o na
Interrompo mais uma vez a narrativa do conta de meu amigo espiritual. Ajuda-me
Dr. César Burnier para lembrar aquilo a constantemente. Socorre-me. Inspira-me.
que costumo chamar de simetrias Supre minhas deficiências, notadamente as
históricas. Na França revolucionária espirituais. Devo-lhe muitíssimo, e não
César Burnier, na figura de Jacques
poucos médiuns o vêem ao meu lado
Danton, leva uma pobre moça aflita a
Robespierre,seu parceiro no poder, para quando escrevo ou quando falo. Não seria
tentar salvar a vida do pai, colhido nas de estranhar, talvez, a amizade que, desde
malhas impiedosas do Terror. longos anos, nasceu também entre mim e
Robespierre nega a vida implorada pela seu filho Luiz Antônio Guillon Ribeiro.
moça, sua conterrânea, aliás. Clinicou, muitas vezes, minha mãe, meu
pai, minha tia. É meu médico, em quem
Volvidos os anos - século e meio -, a confio cegamente. Na hora da dor de
situação é inversa, mas o papel de César barriga, é para ele que apelo. Isso, desde
é ainda o de mediador. Desta vez cabe- todos os tempos, inclusive quando ele
lhe levar Robespierre reencarnado como ainda cooperava com a FEB, dando
uma desesperada mulher que anseia por consultas gratuitas, em sua sede, na
entender melhor os complexos
avenida Passos .. É meu amigo
mecanismos da vida. São muitas e
imprevistas as dificuldades para chegar
incondicional. Orgulho-me dessa amizade.
até Chico, não porque este se recusasse E tanto que o convidei a avalizar meu
a recebê-Ia, mas por circunstâncias contrato de casamento. É dele a assinatura
estranhas à sua vontade e até sem seu que consta, para minha alegria, em nossa
conhecimento. A coisa somente se certidão.
decide com a interferência pessoal de
Danton, já agora na personalidade de Pois bem, durante nossas reuniões, ei-lo
César Burnier. A médica volta pela sexta que surge na personalidade do Abade
vez a Pedro Leopoldo, e quem vem
Bérardier, culto professor, diretor do
recebê-Ia senão aquele mesmo pai cuja
vida ela recusou à filha desesperada?
Colégio Louis-le-Grand, o mais afamado
Por fim, o Chico e a brutal e chocante da época revolucionária. Foi mestre e
evidência produzida por Emmanuel - amigo pessoal tanto de Desmoulins quanto
outra vítima da Revolução - que transmite de Lucile Duplessis. E foi, precisamente,
a Chico, e este à doutora, informes quem lhes celebrou o casamento, ocor-
incontestáveis, como nomes próprios e rendo, então, um episódio curiosíssimo,
situações que Chico ignorava totalmente. que a história narra e que, de certa forma,
Mas, o episódio tem uma seqüência não acabou se repetindo nos tempos atuais.
menos interessante. Para isso, voltemos
à narrativa de César Burnier. Bérardier disse que só celebraria o
casamento se o jornalista abjurasse as
"Perdeu-se, com a morte do Professor
idéias revolucionárias que vinha
Mello Teixeira, o soneto original de
Hermes Fontes. Chico Xavier anseia
difundindo pela imprensa. Desmoulins se
possuí-Io. Fiquei triste com a irreparável negou a fazê-lo. Bérardier, que não estava
perda. Como foi possível isso? Mas o interessado em brigar com o ex-discípulo e
destino, o 'acaso', tem seus caprichos. estimado amigo, buscou uma solução de
Calcule você - Hermínio: vinte e cinco fantasia: faria a celebração se Lucile, que
anos passados fui a uma festa em era católica, abjurasse pelo noivo. " Ora,
Copacabana. Nessa festa, havia muitos um verdadeiro absurdo, pois a abjuração
espíritas, inclusive uma senhora cujo de qualquer idéia só pode ter vaIor se feita
nome ignoro totalmente até hoje. Durante pela própria pessoa. Mas, no caso, o que o
as conversas falei, por qualquer motivo, bom Bérardler queria era uma saída.
no nome de Hermes Fontes. A senhora a
Desmoulins respondeu que a noiva o faria,
que aludo declarou-me, em voz alta, que
sabia de cor um lindo soneto póstumo do
com toda a certeza, e isso, de fato,
apreciado poeta e que o guardara na aconteceu. E o casamento se realizou.
memória, com absoluta fidelidade, posto
tê-Ia lido uma só vez!" Pois bem, embora sem a presença de
Bérardier (Luiz Guillon), esta cena voltou a
Com a curiosidade prontamente ativada, acontecer, em minha vida atual. Minha
César quis saber que soneto era esse, e mulher (Nely) era católica (hoje é espírita
como ela tomara conhecimento dele. A como eu). Fez questão do casamento na
senhora informou que o vira com o Dr. Igreja. Eu lhe disse que para mim não teria
Mello Teixeira. nenhum valor. Mas, é claro, tendo-o para
ela, não seria justo frustrá-Ia. Concordei e
"Não perdi tempo", prossegue César. marcamos a data. Na semana anterior, fui
"Chamei-a para a copa da casa onde chamado à Matriz para instrução do
estávamos e gravei o soneto perdido,
processo. Em meio a um montão de tolices,
que será remetido, agora, ao Chico'
Xavier, conforme lhe prometi. Sim, meu o padre queria que "abjurasse ao
amigo, eu tinha nas mãos um gravador, protestantismo, à Associação Cristã dos
levado à festa sem necessidade alguma!" Moços, ao marxismo e ao espiritismo". Aí
não deu. Os outros três não me importavam
"Muitos confrades me perguntam", em nada, mas abjurar ao espiritismo não
prossegue o relato de César, "por que o era possível. Disse-lhe, então, que eu era
Brasil e o estado de Minas, em particular, espírita e não podia atender àquele item.
foram escolhidos para a divulgação do Ele levou um susto. Olhou-me estarrecido.
Espiritismo, consoante afirmamos em Insistiu. Eu também. Afirmou, então, que
nossos livros e artigos. Não faz muito não podia fazer meu casamento. Apenas
tempo - aduz um desses informantes -, levantei e me preparava para sair quando
Chico Xavier declarou, publicamente, que ele indagou: ''E sua noiva? Abjura pelo
nesses últimos oitenta anos milhares de
senhor?" Respondi-lhe no mais gozador
antigos franceses reencarnaram entre
nós, motivo por que há no Brasil pessoas sorriso íntimo: "Ah, com toda a certeza,
que conhecem mais a história da seu padre ... " Então, paguei os
Revolução Francesa do que a própria emolumentos (que ele pegou bem depressa)
história do nosso país. A resposta tem e o casamento foi marcado.
sido fartamente divulgada pela imprensa
espiritista e pelo médium Xavier, entre Agora, voltemos a Guillon Ribeiro.
outros. Quando ele soube que era o Abade
Bérardier, contou-me este caso muito
Não me envergonho se lhe disser que curioso. Certa ocasião, foi atender a uma
muitas vacllaçoes experimentei quando li doente muito idosa, que o recebeu dizendo:
a obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria "Chegou o abade..." Além disso, Guillon
do Evangelho, psicografada pelo médium
Ribeiro também deu aula de medicina, na
Xavier. Achei esse livro demasiadamente
verde-e-amarelo. Com o tempo e o Universidade do Brasil, e - confessa -
desenvolvimento do meu mediunismo sempre se sentia muito à vontade nesse
comecei a compreender que o livro em mister. Estando em Paris pela primeira vez,
tela foi até muito modesto em suas surpreendeu-se, ele próprio, com o fato de
declarações. Não há dúvida: muitas conhecer os locais sem nunca os ter visto
surpresas sensacionais nos esperam nos antes. Era capaz de adivinhar o que ia
próximos anos." encontrar depois de uma esquina. Acertava.

[Lamentamos que César Burnier não Sem dúvida, só a lei da reencarnação é


detalhe os motivos que o levaram a suficiente para explicar, a contento, todas
mudar de opinião. A primeira idéia tem essas circunstâncias.
mais coerência: de fato o livro é
“demasiadamente verde-e-amarelo”,
para dizer o mínimo. Só nos resta Passemos, agora, a outra personagem: meu
esperar pelas surpresas sensacionais pai, Antônio dos Anjos. Escusado dizer
prometidas! Até o presente, passados que, ao lado de meu filho, é ele meu maior,
mais de trinta anos, as surpresas não verdadeiro e melhor amigo. Já contei que
chegaram...] foi sua fé que me despertou para a Doutrina
Espírita na vida atual. Fora disso, há a
Mais adiante, já na etapa conclusiva de registrar que sempre nos entendemos em
seu valioso trabalho, escreve César: termos incrivelmente amistosos e capazes,
talvez, de provocar algumas ciumadas
"Rogo sua atenção para as transcrições familiares... Pois isso - compreendemos
feitas: todas elas foram colhidas em agora - teve sempre sua razão de ser,
publicações conhecidas, fáceis de serem conforme o leitor já verificou ao encontrar,
confrontadas e ao alcance de qualquer
na Primeira Parte deste livro, o nome do
bolsa. ( ... )
Dr. Richard Ansiette.
Todavia, prevendo que algum embaraço
pudesse surgir, tive a cautela de indicar Ora, todos de minha família e de nossa
as obras é os autores que me forneceram roda de amigos e conhecidos sabem das
a seiva que nutre estes comentários profundas inclinações de meu pai pela me-
elucidativos, apontando páginas e livros. dicina. Suas .preocupações com a saúde da
Nem todos os historiadores são acordes família chegavam a ensejar piadas e muitas
nas suas apreciações dos homens e dos brincadeiras. E não faltaram os de fora que,
fatos. ( ... ) às vezes, iam-no procurar para "consultas"
(que ele dava com a maior sem-cerimônia)
Só admiti aquilo que a lógica me impôs e e cuja medicação...- sempre, é claro, de
os meus guias sancionaram. Evitei, tanto composição - produzia resultados
quanto possível, insinuar pontos de vista
eficazes ... Sorte? Espiritismo? Intuição?
meus com relação aos indivíduos que me
fizeram sofrer no passado e cuja índole
pude devassar muito melhor agora, Por outro lado, minha mãe, que tinha seus
dentro de uma perspectiva extremamente breves momentos de captação mediúnica,
ampla e multissecular ... costumava garantir que na encarnação
passada meu pai tinha sido, realmente,
Muitos dos meus 'heróis' se encontram médico. E, até - aqui o lado triste da
reencarnados - a maioria no Brasil. história -, que ele tinha sido responsável
Ocultei-lhes por elegância moral e para pela morte de uma mulher, fato que lhe
não açular estúpida e ignorante vaidade. marcara duramente a caminhada terrena.
A mim - direi melhor, ao nosso esboço Este episódio deve ser confrontado com a
reencarnacionista - pouco importam os informação constante do Capítulo 4,
indivíduos em si mesmos, salvo como
Segunda Parte, onde analiso a realização da
elementos comprobatórios da multipli-
cidade das existências terrenas. Minha quarta sessão com o Hermínio e durante a
opinião é esta: as reencarnações qual aparece, pela primeira vez, o nome do
interessam pelo seu valor social, humano Dr. Richard.
e pelos exemplos que nos possam trazer
face à Doutrina Espírita que abraçamos. Enfim, meu pai era, à época da Revolução
Através das reencarnações (é o nosso Francesa, o Dr. Richard Ansiette, médico
caso, é a tese que estamos expondo) presumível de revolucionários (princi-
podemos acompanhar, passo a passo, a palmente quando feridos em choques de
evolução de cada ser estudado, suas rua) e, com certeza, de Camille
aquisições psicológicas, suas reações Desmoulins. Desse contato nasceu, sem
emotivas e as incomensuráveis
dúvida, nosso fraterno relacionamento,
sedimentações que vão forrando Os
pisos subterrâneos da sua consciência hoje transformado, além do mais, em pro-
impressentida. Somos poços de águas veitosa ligação paternal. Arrematando: em
claras, mas, embaixo, somos depósitos raríssimos casos e ensejos pensamos
de lixo e lodo espessos. O simples diferente. Nossas idéias sempre foram
movimento de uma vara pode tisnar incrivelmente as mesmas. Meu pai
horrivelmente a claridade dessas águas." trabalhou em teatro, quando solteiro e nos
(P. 248-265) primeiros anos de casado. Redigiu vários
esquetes e usava o nome de Anjos
Muito mais informações contém o Sobrinho. Pertenceu, inclusive, à famosa
depoimento espontâneo e rico do amigo Companhia Leopoldo Froes (que era
Dr. César Burnier Pessoa de Mello, padrinho de meu primo-irmão Leopoldo
Ferreira, filho do casal Plácido e Cordélia
[Anteriormente, Hermínio dissera que
Ferreira, ambos também de teatro e, depois,
“encomendara” o relato a Burnier,
aqui é dito que foi “espontâneo”] do rádio). Pois bem, foi meu pai o
intérprete, em mais de uma oportunidade,
mas seria impraticável reproduzi-lo todo do papel do Cristo na célebre peça O Mártir
aqui, mesmo porque certos aspectos por do Calvário, de Eduardo Garrido. Como
ele abordados, com a erudição histórica pintor, também produziu uma figura do
que todos lhe reconhecem, iriam exigir Cristo, em cópia, que presenteou a vários
extensa coleta e apresentação de dados confrades. como por exemplo ao próprio
suplementares para que o leitor pudesse Hermínio Corrêa de Miranda. Muitos
entendê-Ias em todas as suas trabalhos seus ilustravam o gabinete do
implicações históricas. Ê que, no seu famoso médico Dr. Moncorvo Filho, seu
entusiasmo pelo fascinante tema da amigo e admirador.
reencarnação na história e pelas
inesgotáveis ramificações e
entrelaçamentos das muitas vidas de Prossigamos. Já fiz rápida referência, no
inúmeras personagens, César desvela Capítulo 3, à minha irmã Primerose, a mais
um panorama vasto demais para os velha. Seu nome, como se pode verificar de
propósitos deste trabalho. pronto, é tipicamente francês. Teve por
mim, sempre, desde que encarnei como
Desejo documentar aqui minha gratidão Luciano, uma afeição toda especial, que ela
pela generosa doação de seu tempo e mesma me confessaria, um dia, por escrito:
dos inúmeros dados informativos que ele "Você sempre teve a minha preferência."
colheu pacientemente e com não poucos Enquanto eu era guri, apelidou-me de Pre-
sacrifícios ao longo de toda uma tinho e, depois que cresci um pouco mais,
existência inteiramente devotada aos de Preto. O apelido era em razão dos meus
levantamentos históricos e às conexões
cabelos, olhos e sobrancelhas muito negros.
reencarnacionistas em que se empenha
com um grupo de amigos espirituais. Pois bem, a irmã de Camille Desmoulins -
Marie Toussaint (como o leitor já
Se antes ele fez a história, quase sempre verificou) também lhe dava quase o mesmo
dando a vida pelo ideal da liberdade - apelido e pelas mesmas razões: Crayon.
Spartacus, Danton, Garibaldi entre tantos Entre os desenhistas, a palavra crayon
outros -, agora ele procura reconstituira designa a obra executada totalmente em
história. conceituando-a tal como Arnold preto. Aurélio Buarque de Holanda
Toynbee, como ação visível e dirigida de aportuguesou o termo e verbeteou-o à pág.
Deus através de grupos de espíritos que 400 de seu Dicionário: "Creiom [Do fr.
nascem e renascem com tarefas crayon]S.m. 1. Lápis de grafia. 2. Desenho
específicas a realizar no plano físico. (p. feito com esse lápis."
248-265)
Resta dizer, aqui, neste instante, que meus
irmãos sempre foram muito queridos por
mim. Todos, sem exceção. Aliás, damonos
excelentemente, cada qual se preocupando
com o outro.

Agora vamos projetar-nos para tempo um


pouco posterior à realização de nossas
reuniões. O evento que narro a seguir é ver-
dadeiramente notável, mas ocorrido fora do
apartamento do Hermínio. A convite do
Abelardo Idalgo Magalhães fui até o
Ministério da Fazenda (Rio) para fazer-lhe
companhia. Lá, encontramos um confrade
da Federação Espírita Brasileira. J. B. Anjo
Coutinho que me apresentou ao Dr.
Roberto Jauréguibier Prel, advogado,
procurador do Ministério, já desencarnado.
No instante dessa apresentação, tanto ele
quanto eu sentimos estranha sensação. Por
isso mesmo custamos a soltar nossas mãos.
Nossos olhares, se penetraram
profundamente. Depois, com o correr da
conversa, ele se confessou médium e
passou a descrever fatos da minha vida
passada, bem como do Abelardo. Incrível!
Descreveu-me tal qual se trajava
Desmoulins e caracterizou muito bem a
condiçao do Abelardo. Falamos-lhe, então,
das nossas experiencias e sobre Camille
Desmoulins. Ele se empolgou e, fechando a
porta do seu gabinete, começou a afirmar
que tinha certeza de que convivera comigo
na época da Revolução Francesa. Disse-
me, quase numa súplica, que eu o haveria
de identificar, que eu sabia quem ele tinha
sido. Furtei-me, inicialmente, a qualquer
tentativa. Ele insistiu. Pegou-me as mãos e,
em francês, passou falar-me, emocionado,
da turbulenta época da Revolução. Fitava-
me esgazeado. E me disse, afinal, que
havíamos seguido juntos, na mesma carro-
ça: era a guilhotina! Pediu, insistiu,
implorou que eu o Identificasse (?!). Ele
não parava de falar, falar, num francês
absolutamente escorreito.

[Será que o sujeito estava, naquele


momento, em juízo perfeito? Parece a
descrição de alguém meio fora de si]

Eu lhe respondia, também em francês, que


não me lembrava, que não estava me
lembrando. O quadro era nervoso. Até que,
de repente, vi-o personificando uma
determinada figura. Vi-o muito bem, por
sinal. E lhe disse:

- Vous êtes mon ami, Hérault de Sechelles!

Ele ouviu e serenou. Fechou os olhos, saiu


daquela tensão, deixou cair o corpo no
encosto da poltrona e largou minhas mãos.
Eu também suava um pouco e recostei-me.
Ao lado, calados, o Abelardo e o Anjo
Coutinho testemunhavam tudo. Mais tarde,
fomos ler qualquer coisa sobre aquela
personagem. Tinha sido advogado e uma
espécie de procurador do governo em
algumas províncias da França. O Dr.
Roberto Jauréguibier Prel, conforme já
disse, também era advogado, além de
exercer a função de procurador do
Ministério da Fazenda. Um desenho de
Hérault de Sechelles, estampado no
Larousse, revelou-nos vários traços morfo-
lógicos semelhantes aos do Dr. Roberto
Jauréguibier. Tudo me leva a crer que
eram a mesma pessoa. Muitos outros fatos,
com o correr do tempo, vieram corroborar
essa hipótese.

E, a propósito, narro outro episódio, tão


interessante quanto curioso, ocorrido
comigo na noite de 27.9.68. Fui participar,
juntamente com o mesmo Abelardo, de
uma reunião na casa do Roberto
Jauréguibier Prel, na estrada de
Jacarepaguá, 4.783. Através dele se
manifestou um espírito, falando
exclusivamente francês. Conversei com ele
alguns minutos. Culto, inteligente, vivera
na época da Revolução, mas não era
conhecido. Depois que se foi, aconteceu
algo muito estranho. Eu senti irresistível
vontade de escrever. Apanhei, então, o
lápis e coloquei no papel os seguintes
versos:

"Tant que le monde resfera divisé


Tant qu'existeront des barrere et des
confins,
Tant Qu'existeront des drapeaux de
couleurs,
Tant qu'existeront des 'enemies' et des
'étrangers',
Tant qu'existera la femme que tombe par
famine
Tant qu'existera une lute par Ia paix
Tant qu'existera des hommes sans travail,
des enfants sans toit;
Le monde sera un chaos
Et un massacre par si-même."

Ao terminar, assinei: Camille Desmoulins.


O Prel buscou explicar que os versos foram
produzidos por mim mesmo, mas movido
pela outra personalidade, isto é, a do
jornalista francês. Não sei sequer se, antes,
Desmoulins já os teria escrito e se eu,
naquele momento, os estava apenas
reproduzindo. Não fiz a pesquisa. Mas,
repetidos ou criados naquele momento, a
verdade é que quem os escreveu foi
Camille Desmoulins, o que não deixa
de ser fato bastante curioso.

Há uma outra figura de minhas relações


que vale a pena ser assinalada. Trata-se do
confrade e meu muito estimado amigo
Ismael Nunes Tavares sobre quem falei no
Capítulo 3 desta Segunda Parte, quando
contei meu primeiro encontro com a D.
Chiquita, médium da Casa do Coração.

Sempre nos permutamos uma amizade


incomum, rara entre as criaturas humanas.
Pois não é difícil, hoje, identificar as ori-
gens da nossa ligação. O Ismael também
andou pela França, à época da Revolução.
E, obviamente, privamos do mesmo
convívio.

Vivíamos, ainda, o clima das sessões que


estávamos realizando com o Hermínio
quando, certa tarde, em plena avenida Rio
Branco, eu e o médium Abelardo Idalgo
Magalhães nos encontramos Com o Ismael.
Conversamos um pouco. Quando ele
partiu,

Abelardo parou, olhou para mim e disse,


num repente: "Ele é o Rochefoucauld. Em
outro dia fomos saber, com vagar, na
Biblioteca Nacional, de quem se tratava,
pois ele referira a época da Revolução
Francesa, nada tendo a ver, portanto, com o
escritor, do mesmo nome, que viveu no
século XVII. Ora, os dados que levantamos
são, na verdade, de incrível ajuste ao
Ismael Nunes Tavares, notadamente os de
cunho psicológico, temperamental.
Chamava-se ele Louis-Alexandre, Duque
de La Rochefoucauld. Foi membro da
Assembléia dos Notáveis e deputado, nos
Estados Gerais, pela nobreza da cidade de
Paris. Participando sempre dos debates das
grandes questões políticas e sociais,
Rochefoucauld rastreou sua atuação pela
dura oposição ao clericalismo, tendo
mesmo apresentado uma moção
autorizando a cassação dos bens da Igreja
em nome da Revolução. Uma outra moção
de sua autoria, levantando a incompetência
da Assembléia Nacional para considerar o
catolicismo como a única religião cujo
culto público seria autorizado, foi
igualmente aprovada.

Mas o partido de Péthion e Manuel, que


haviam sido suspensos com o voto de
Rochefoucauld, não cessavá de insultá-lo e
persegui-lo. Rochefoucauld não suportou e
se demitiu, pretendendo com isso ser
esquecido. Mas sua atuação o havia
marcado muito. Populares mataram-no a
pedradas, no dia 14 de setembro de 1792,
durante os célebres Massacres de
Setembro, acontecimento sangrento que irá
se transformar, depois, em 1794, na
motivação que levará Danton, Desmoulins
e tantos outros à guilhotina. Rochefoucauld
tinha, então, 60 anos. Referências aos
Massacres de Setembro constam da
Primeira Parte deste livro.

É curioso observar, agora, como o


comportamento psicológico dos espíritos
dificilmente se altera. E, mais do que os
elementos concretos - como parecença
física, recidiva de defeitos anatômicos, etc.
-, os elementos psicológicos atestam muito
mais convincentemente uma reencarnação.
[suposição altamente contestável: difícil,
senão impossível, demonstrar
objetivamente essa tal similaridade de
“comportamento psicológico” do espírito
em suas diversas encarnações! Trata-se
de concepção dependendente de elevada
dose de subjetivismo para poder ser tida
por aceitável. Conforme comentamos
anteriormente, com um pouco de
imaginação pode-se destacar elementos
psicológicos que tornam duas pessoas
muito parecidas, a ponto de justificar uma
pseudo identificação reencarnacionista.
Não obstante Luciano pensar de outro
modo, tal procedimento passa a
quilômetros de distância de investigação
que possa ser denominada científica.]

No caso, Ismael Nunes Tavares é pessoa


que realmente se situa a meio caminho de
inclinações aristocráticas e populares. O
porte é nobre, seus contatos profissionais
são feitos na área da alta esfera financeira,
seus negócios se decidem nos gabinetes
atapetados. Mas sua emoção é popular, seu
impulso é liberal. Rochefoucauld também
se deixara ficar nesse meio-termo. Era
duque, usava punhos de renda, mas acabou
se engajando no movimento
revolucionário. É verdade que integrou o
número dos massacrados de setembro, mas
talvez ali o povo estivesse já cometendo
injustiça. E essa desencarnação violenta é
que ainda hoje faz Ismael desagradar-se
dos grandes conglomerados populares,
enquanto seu anticlericalismo se mantém o
mesmo. Em Vida mais recuada, ele foi
tambem o espanhol Fernando Rojas, autor
de La Celestina. E segundo informações
colhidas da D. Chiquita, encarnou, ainda,
aqui no Brasil, a figura do bandeirante
Matias Cardoso de Almeida, no século
XVII

Eis, leitor, alguns dados que exponho para


testificar, uma vez mais, que são
fundamentais os encaixes psicológicos para
se afirmar, com menor probabilidade de
engano, a reencarnação de alguém.
[Luciano expõe a “metodologia” que deve
ser utilizada na identificação de
reencarnações”. Repetimos: é fácil traçar
perfis psicológicos variados da uma
mesma pessoa. Hermínio Miranda mostra
que diversos biógrafos de Desmoulins o
descreveram de modos mui distintos.
Dessa forma, a probabilidade de
equívocos que, na ótica de Luciano, seria
minimizada com a aplicação de seu
método, em realidade faz com que toda a
sorte de suposições, por mais estapafúrdia
que seja, se torne aceitável]

Sobre o Ismael, aliás, eu já havia publicado


essas informações nas páginas de A Notícia
de 17.10.75, sob o título "Reencarnações
Conhecidas".

Rochefoucauld e Desmoulins se
aproximaram, à época da Revolução, dados
os seus ideais, ainda que um estivesse entre
os nobres e o outro ligado ao Terceiro
Estado. Essa aproximação transformou-se
em algo mais sólido e duradouro, capaz de
vencer a barreira do tempo e chegar ao
Brasil na configuração de uma amizade
inquebrantável.

Quanto a meu filho Luciano dos Anjos


Filho, dele não tive, até hoje, qualquer
informação, pelo menos que apresentasse
uma ligação passada entre nós dois. Terá
existido, com toda certeza, pois não
estamos reunidos, na vida atual, por acaso.
Entretanto nada sei. O médium Chico
Xavier, por mim consultado em 1981,
recomendou, apenas, que ele não se
detivesse muito na mentalização de um
sonho que tivera e no qual participava de
manobras de guerra, num pântano, tentando
desesperadamente salvar uma mulher com
uma criança ao colo. Acabou recebendo um
tiro no rosto. O sonho havia sido muito
nítido, muito real, e ele mesmo queria
informar-se a respeito. Daí minha consulta
ao médium de Pedro Leopoldo. Mas a
guerra era moderna, com todas as caracte-
rística deste século. Nada tinha a ver,
portanto, com as vidas pretéritas por mim e
minha filha vividas, as quais venho exami-
nando neste trabalho. O que também posso
afirmar é que amo profundamente meu
filho, de fato, o maior amigo que tenho. É
indescritível nosso amoroso
relacionamento. Eu o amparo, e ele a mim.
Procuro-o nos meus momentos de
dificuldade, de depressão, de dúvida. Ele
faz a mesma coisa comigo. Sabe de tudo
que me acontece. Conheço-lhe as atitudes
mais recônditas. Amamo-nos, eis tudo!

Um último registro: Nely Martino dos


Anjos, minha atual mulher. Onde ela entra
em toda essa minha longa jornada? Entra lá
atrás, nos idos do século XV, quando eu
era Charles d’Orléans. Pelo menos, até
onde nos foi dado saber.

Eu gostava de uma criatura que, neste século,


veio a reencarnar com o nome de Zulma
Câmara. Apesar de amá-Ia (?), enviei-a à
masmorra. Pois a Zulma era irmã da Nely. Ter-
lhe-ei feito mal, também? Ou ela a mim?
Ignoramos. Certo é que aqui estamos,
novamente juntos, recompondo nosso carreiro
e refazendo nossos passos. Meu
relacionamento com Zulma Câmara, já o contei
através das páginas de A Notícia (números de
10.1.75; 'v 21.1.75; 28.2.75; 7.3.75; 14.3.75;
21.3.75; 4.4.75; 11.4. 75; 18.4.75; 25.4.75 e
2.5.75), do Obreiros do Bem (números de julho
de 1974, janeiro, fevereiro e março de 1975) e
do Jornal Espírita (edições de setembro e
outubro de 1978). (P. 382-399)

[Ao final deste trabalho, incluímos texto de


Luciano dos Anjos, no qual ele explica como
identificou quem fora André Luiz,
acompanhado de comentários nossos. A
leitura mostra muito claramente o
subjetivismo da “técnica” do jornalista]

COMENTÁRIOS COMPLEMENTARES:

Nota-se que poucas informações são comuns aos dois relatos: basicamente
que a reunião ocorreu em 1/9/1967 e o gravador não funcionou.

Logo, logo, começam as contradições: partindo da falha do gravador:

Hermínio diz: Temos, porém, um relato que César Burnier escreveu a meu pedido,
com base em suas notas pessoais então colhidas.
Luciano diz: E para que os lances principais não ficassem esquecidos, o Hermínio
fez, logo ao término dos trabalhos, nova gravação, com o testemunho dos
participantes, em especial o do César Burnier.

Vejam que não se trata de modos diversos de narrar o acontecimento,


os protagonistas estão a dizer que as ocorrências foram distintas! Hermínio
informa que dispôs do testemunho de Cesar Burnier (o qual foi preparado
vários anos após o encontro); Luciano declara que fora realizada gravação
com o depoimento dos participantes ao final da reunião. Muita diferença!
Mesmo que não queiramos, não podemos nos furtar à suspeição de que um ou
outro dos redatores viu coisas que não aconteceram...

Mas não param por aí os relatos conflitantes. Agora é a vez de César


Burnier declarar, no escrito que teria enviado a Hermínio: Tão logo cheguei ao seu
apartamento, ouvi do prezado amigo o mais completo relatório de todos os trabalhos realizados
até então. Um possante gravador completou, durante mais de uma hora, todos os pormenores
da sua exposição.

Conforme o testemunho de Burnier, a gravação fora feita normalmente.


Nítido contraste entre os testemunhos (os três!).

Diante desse quadro, indagamos: podemos estar seguros no que se


refere à fidedignidade dos relatos? Se em questões triviais, os envolvidos se
confundem, onde mais teriam cometido deslizes? Aqui, não se trata de
qualquer má-vontade em analisar isentamente a experiência regressionista,
trata-se de constatação que salta aos olhos de quem ler a obra com um pouco
de senso crítico. Lembramos que foram relatadas muitas outras passagens
desarmoniosas entre os escritos de Hermínio e de Luciano.

Fica, pois, constatado que os envolvidos não disponibilizaram material


de boa qualidade, que permitisse correta análise da experiência. Para fechar o
presente estudo, apresentaremos algumas considerações complementares e a
conclusão.
A REENCARNAÇÃO DE LUCILLE DESMOULINS

O episódio do retorno da esposa de Desmoulins na identidade da filha


de Luciano insere-se no contexto das identificações reencarnativas, tarefa que
Hermínio, Luciano, César Burnier e alguns outros se dizem capazes de
realizar. Linhas atrás expusemos nosso parecer a respeito dessa suposta
capacidade, a qual está mal esclarecida.

No caso da reencarnação de Lucille, que teria retornado como filha de


Luciano, deparamos alguns tópicos que merecem comentários específicos.

O registro desse acontecimento acha-se nas pág. 349-351, da edição


que estamos a utilizar. Transcrevemos o texto: (destaque de nossa autoria)

Eu estava em processo de desdobramento, na sala do Hermínio, em seu


apartamento, quando a informação dada por mim esclareceu a questão:
minha filha, em meu apartamento, no lado oposto da cidade (o Hermínio
morava no Humaitá e eu na Muda da Tijuca), começou a passar
estranhamente mal. Minha mulher se preocupou. Percebeu que ela
estava sob uma influência esquisita, que não sabia sequer descrever
direito. Vomitou, embora não houvesse comido nada que o justificasse.
Meia hora depois, como que por encanto, tudo passava. Ela estava bem
outra vez. É evidente, concluímos todos, que houve naquele momento um
processo qualquer de sintonia entre nossos espíritos, o que terá
motivado o mal-estar dela, principalmente se lembrarmos que também
ela desencarnou sob o cruel cutelo da guilhotina ...
Mas não terminam aí as "coincidências". Um dia - ela ainda era uma
criança -, peguei-lhe entre as mãos a cabecinha, , deitados ambos na
poltrona da minha casa, e lhe disse:

- Minha filhinha, preste atenção ao que o papai vai lhe perguntar. Preste
bastante atenção. Ouça esse nome: Lucile Duplessis; Anne-Lucie Philippe
Laridon Duplessis; Lucile Duplessis - Fiz uma pausa, olhei-a bem no
fundo dos olhinhos muito abertos e meio alegres. Depois, perguntei,
sério: - Quem é ela? Quem é ela?

Respondeu-me como quem não tem dúvida do que respondia: - É a Ana


Lúcia Martino dos Anjos ...

Rigorosamente assim: o nome completo. E me ficou olhando como a


esperar minha reação. Curioso com a resposta, beijei-a na fronte e,
depois de alguns segundos de mudez, fomos tratar doutra coisa.

Coincidência? Efeitos subconscientes? Não creio. Também aqui a lei da


reencarnação parece aflorar, incontestável, se não bastasse minha
própria afirmativa, durante as sessões, de que Ana Lúcia é realmente a
Lucile.

Resta repisar para o leitor aquele conclusivo detalhe: Ana Lúcia nasceu
no dia 24 de abril de 1960; Lucile Duplessis nasceu, também, num dia 24
de abril, de 1771! É coincidência demais, não acham?

Encerrando este capítulo, aqui vão alguns traços pessoais da Ana Lúcia.
Adora música. Desde pequenina tinha mania de tirar, no piano de
brinquedo, de sete teclas, as melodias que ouvia na televisão. Quando
começou a estudar piano, sua professora, Odete Calvet, dizia que ela era
uma pianista nata. Não sei se exagerava para estimulá-la, mas, que o
dizia, isso é verdade. Curioso é que não pára no piano. Abre-o, fecha-o,
abre-o de novo, senta, toca, levanta, senta de novo. Está sempre
irrequieta. Tal qual narra um livro que lemos sobre Lucíle. Gosta também
de escrever solitariamente, da mesma forma que no passado francês. É
alegre, está sempre rindo, não sossega, constantemente inventando
alguma coisa nova para fazer. Formou-se em normalista e agora está na
universidade, fazendo pedagogia. Ama as criancinhas. Ama a vida da
fazenda. Ama cavalos. Está fazendo, agora, patinação, depois de ter
cursado um bom período de pintura com a Professora Marina de Almeida
Pinto, que também a elogiava bastante. É muito decidida, voluntariosa,
indomável. Mas sabe ceder quando o clima é de carinho e amor.

Luciano informa que quando veio à tona a revelação de que Lucile


Desmoulins reencarnara como sua filha, Ana Lúcia, a menina começou a
passar mal. Imediatamente nos veio à mente a declaração de Allan Kardec:

Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. (...) Em todas


as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.
Freqüentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu,
estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de
reparar o mal que lhes haja feito.
Este caso tem tudo para se enquadrar no discurso do codificador da
doutrina. É certo que, em princípio, não haveria mal a ser reparado, mas não
se sabe o que pode ter havido na intimidade do casal ou mesmo nas intenções
de Desmoulins em relação à sua mulher, ou outras questões que não teriam
chegado ao conhecimento público. Luciano considera o mal-estar da filha como
resultado de sintonia espiritual entre ele e a menina, entretanto, outra
interpretação pode ser apresentada: sentir que o pai fora seu esposo em outra
existência foi muito forte para uma menina com sete anos de idade! Imagine-se
o que não teria passado pela cabeça da filha ao descobrir que o pai lhe foi
íntimo em outra existência! E se recordações daquela vida aflorarem à
consciência, quantos grilos não lhe acometeriam? Luciano parece enfrentar
sem sobressaltos tal lembrança, quanto à filha, nada sabemos. Mesmo que
nenhum sentimento desagradável se interponha entre eles, uma coisa não
pode deixar de ser considerada: trata-se de uma situação muito esquisita, a
filha saber que já dormiu com o pai... Não estamos a fazer insinuações
malévolas, sim constatando o que pode ser motivo para muitos problemas. Se
Luciano e a filha convivem bem com esse conhecimento, em outras situações
semelhantes, com outros protagonistas, provavelmente não haveria tanta
harmonia.

O DESACOPLAMENTO DO ESPÍRITO

O medo voltou, principalmente porque eu ouvia o Hermínio repetir:


“Vamos despertar”; mas, estranhamente, sentia-me flutuando a uns trinta
centimetros acima do sofá, sem capacidade de me justapor a mim
mesmo outra vez. O pânico interior cresceu, porque pensei, por um
instante, que houvesse desencarnado, que minhas duas partes não se
"colariam" mais. (p.360)

Afinal, a indução hipnótica possui a capacidade, defendida por Hermínio


Miranda, de decompor o ser em suas hipotéticas partes integrantes, alma,
perispírito e espírito? O que se pode dizer a respeito?

Em termos das teorias mais aceites sobre o fenômeno hipnótico, nem


falar disso. Nenhum teórico do assunto, que não fosse espírita −e mesmo
dentre os espíritas temos dúvidas se o pensamento de Hermínio fosse acatado
unanimemente −, pelo que sabemos, advoga tal hipótese. A hipnose pode ser
descrita como a exacerbação de certa característica existente na mente, que é
a focalização da atenção em torno de um tema. Adequadamente conduzido, o
fenômeno abre caminho para que sugestões possam ser passadas ao paciente
e por ele trabalhadas de forma criativa. Aplicações terapêuticas também são
possíveis, dentro de certos limites.
A idéia advogada por Hermínio Miranda vai muito além dos limites que
se supõe possa alcançar o processo hipnótico. Ele assevera que a indução
hipnótica consegue penetrar no conjetural e elástico campo do insconsciente e
realizar o que nem os espíritos mais poderosos conseguiriam, que é decompor
a estrutura do indivíduo nas partes material e espiritual. Em mais, tudo isso
sem provocar a destruição da vida!

E como comprova que as coisas acontecem desse modo? Com


justificativas ingênuas, oriundas de sugestões que ele próprio passa para seus
pacientes.

No texto apresentado acima, vemos Luciano dramatizando o processo.


Ele acredita, tal qual Hermínio, que o desacoplamento espiritual é realidade,
por isso responde como desejado pelo pesquisador. Mas, seria muito simples
demonstrar que tudo não passa de encenação do subconsciente, pequenos
testes que se realizassem durante a indução comprovariam claramente que
não havia nenhum espírito descolado. Porém, Hermínio Miranda não
demonstra intenção de investigar sua crença. Selecionemos duas cenas em
que Luciano se diz flutuando fora do corpo e vamos estudá-la com um pouco
de atenção.

A reunião seguinte foi realizada em 9 de junho de 1967. O tape guarda o


diálogo que a seguir reproduzimos, com os comentários habituais.

– Está se sentindo bem, Luciano? – pergunto eu. – Onde você se


encontra no momento?

– A um metro mais ou menos de nós. Acima... Não posso olhar para


baixo; às vezes, uma espécie de atração me deixa inseguro. (1)

– Você já sabe que o processo não oferece riscos.

– Parece que vai descer e depois sobe.

É claro que ele ainda experimenta algum temor em afastar-se do corpo,


provavelmente devido à traumatizante experiência da decapitação. Ele
próprio tenta explicar: (2)

– É que eu estou numa situação diferente.

– Sim, é uma situação nova para o espírito. (O desprendimento


consciente.)

– Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. (Isso é verdadeiro também,
porque nos estados superficiais a consciência fica como que dividida, ou
melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.) (3)

– Devo ficar calmo – diz ele para se tranqüilizar. – Deus nos ajudará.

As sugestões apropriadas são dadas.


– Você vai readquirir o conhecimento acumulado sobre a existência
anterior e vamos desenvolver o plano que combinamos, segundo o qual
você vai relatar desde a infância essa existência, para que possamos
coligir o material para um trabalho sério, um trabalho importante.

Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos surpreendidos


com inexplicável fenômeno de gaguez. Fala com dificuldade, espaçando
muito as palavras e hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam
maior obstáculo.

– Não tenho uma clareza muito grande. Prefiro que você pergunte
e vou localizando, senão tumultua.

Novas sugestões de relaxamento e tranqüilidade, simultaneamente com


os passes longitudinais. Ele sabe que, seu espírito está preso ao corpo
físico por fortes laços magnéticos. (4)

– Não vejo (isso) – diz ele. – Mas Deus vai nos ajudar.

Declara ainda não ver os amigos espirituais que nos ajudam na tarefa,
mas está convicto da presença deles. (p.65,66 – cap. 5)

__________________________

A reunião seguinte foi no dia 16 de junho de 1967. O desprendimento


ainda oferece algumas dificuldades operacionais, mas Luciano vai se
tornando mais familiarizado com sua técnica. Habituado a observar
fenômenos de natureza psíquica, ele consegue ser bastante objetivo para
ver e descrever o que se passa com ele próprio.

Vejamos, a respeito, este diálogo inicial:

– O que você está sentindo de diferente hoje? – pergunto eu.

– Estava muito perto – diz ele.

Ou seja, não se desprendera o suficiente do corpo físico a ponto de


libertar-se da sua influência inibidora. (5)

– Você não se tinha ainda desprendido totalmente, não é isso?

– Deve ser. Agora está na posição certa.

– Onde você se encontra no momento?

– Em cima de vocês, a um metro mais ou menos.

– Mas o corpo fica em pé ou deitado?

– Deitado.

– O corpo espiritual também?

– Também. (6)
– Por que você disse vocês? Tem mais gente aí? (7)

– Não. Vocês... sou eu mesmo...

– É porque o corpo nessa posição é como se fosse uma terceira pessoa.

– É. Fico olhando...

Também este fenômeno nada tem de insólito. É bastante comum o


espírito desprendido referir-se a seu próprio corpo físico como se fosse
outra pessoa ou pertencesse a outro indivíduo. Em casos extremos de
rejeição, o espírito nem deseja mais reassumir o corpo, pois equivale a
voltar para uma prisão. Este não era, claro, o caso de Luciano. Mais de
uma vez encontrei, contudo, pessoas que se referiam a si mesmas
empregando a terceira pessoa: ele ou ela, como se o corpo não lhe
pertencesse. Em um caso dramático dos arquivos de Luís J. Rodriguez
(autor do livro God Bless the Devil), uma vez desprendido, o espírito não
queria de forma alguma retomar ao corpo que o mantinha prisioneiro a
uma existência de penúria e angústia. (p.100,101 – cap. 6)

Comentando:

(1) Onde você se encontra no momento?

– A um metro mais ou menos de nós. Acima... Não posso olhar para


baixo; às vezes, uma espécie de atração me deixa inseguro.

Em termos de experiência, Hermínio deveria explorar mais essas


notificações de Luciano, sobre estar flutuando acima deles e as dificuldades
encontradas para olhar para baixo. A explicação é de que Luciano ainda não
dominava o processo, daí o medo que advinha da sensação de estar fora do
corpo. De qualquer modo, esse seria o ponto de partida para a verificação se o
espírito estaria realmente do “lado de fora”.
(2)
É claro que ele ainda experimenta algum temor em afastar-se do corpo,
provavelmente devido à traumatizante experiência da decapitação. Ele
próprio tenta explicar:

Explicação ad hoc, Hermínio faz uma ilação forçada e sem muito


sentido. Mesmo que se admitisse a hipótese de que o espírito de fato estivesse
flutuando, outros conjeturas mais plausíveis poderiam ser apresentadas para
justificar o medo; uma delas seria que decorresse de estar o regredido
vivenciando experiência nova, algo semelhante ao receio que se apossa de
quem está aprendendo a andar de bicicleta. A suposição de que a experiência
de ser guilhotinado fora traumatizante para Desmoulins não só enquanto vivo,
mas para seu espírito, não tem fundamento: quem teve a cabeça cortada foi o
corpo; guilhotina nenhuma, por mais afiada que esteja, consegue decepar uma
cabeça espiritual, se é que existe tal componente na constituição não-física do
ente.
(3)
– Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. (Isso é verdadeiro
também, porque nos estados superficiais a consciência fica como que
dividida, ou melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.)

Consciência dividida... alguém sabe explicar o que significa? O que


Hermínio Miranda parece estar a dizer é que ficaria um pedaço da consciência
no corpo e outro no espírito! Difícil...
(4)
Ele sabe que, seu espírito está preso ao corpo físico por fortes laços
magnéticos.

Hermínio Miranda opta por propor que o espírito se mantém ligado ao


corpo por laços magnéticos (“fortes laços”). É usual, entre os que postulam a
possibilidade de viagens fora do corpo, asseverar-se que a ligação corpo-alma
se faça pelo “cordão de prata”, uma mística idealização que permitiria ao
espírito se desprender do corpo sem risco de desaparecer no éter astral.
Talvez Hermínio dissesse que “é tudo a mesma coisa” − laço magnético seria o
mesmo que cordão prateado. Porém, parece-nos que a preferência pelos
“laços magnéticos” tenha a intenção de dar um ar de cientificidade à suposição.
Entretanto, seja laço, seja cordão, além de não haver evidência que comprove
tal idealização, a suposição não encontra fundamentação em qualquer teoria
que possa, minimamente, ser classificada de científica.

– O que você está sentindo de diferente hoje? – pergunto eu.

– Estava muito perto – diz ele.

(5)
Ou seja, não se desprendera o suficiente do corpo físico a ponto de
libertar-se da sua influência inibidora.

– Você não se tinha ainda desprendido totalmente, não é isso?

– Deve ser. Agora está na posição certa.

Outra concepção não esclarecida, o que seria “influência


inibidora”? Se o autor falasse de atratividade, mesmo não concordando,
poderíamos entender melhor, uma vez que, supostamente, quanto mais
próximo estivesse o espírito do corpo, maior atração este exerceria
sobre a alma fujona. Poderíamos afirmar: o corpo não suporta viver sem
sua alma! Agora, no que tange à “influência inibidora” não conseguimos
dizer coisa alguma. Será que Hermínio quer dizer que o somático
embota a manifestação anímica? Curiosamente, Hermínio induz Luciano
a que confirme sua teoria, mas, para desencanto do experimentador a
resposta é um evasivo “deve ser”.
(6)
– Em cima de vocês, a um metro mais ou menos.

– Mas o corpo fica em pé ou deitado?

– Deitado.

– O corpo espiritual também?

– Também.

A coisa toda é bastante esquisita. Hermínio passa para Luciano sua


suposição de que a alma se desprenda do corpo, durante o processo hipnótico.
Luciano aceita a idéia e a representa quando entra em transe. Até aqui tudo
bem, pois está concorde com o geral da teoria hipnótica, ou seja, de que o
paciente quando acata a sugestão reproduz, da melhor forma que consegue, o
que lhe é sugerido. Como os detalhes de como seria o desprendimento não
foram passados, Luciano faz o que pode. Pela descrição que apresenta, dá a
entender que o corpo perispiritual fica a certa altura, como que deitado de
barriga para cima, olhando para o teto. Isso contraria algumas postulações que
afirmam que a alma, depois de desprendida, não permanece em posição
rígida, ao contrário, pode voar pelo aposento e até rumar para outras plagas,
tal qual nos filmes infantis. Mas, como o objetivo de Hermínio não era fazer
com que a alma de Luciano perambulasse, havia necessidade de que se
mantivesse mais ou menos quieta, para que a exploração da alegada memória
integral se processasse. Caso o espírito em desprendimento fosse dar uma
voltinha, o corpo ficaria inerte e nada responderia. É o que se supõe
aconteceria.

Contudo, a voz que respondia às inquirições de Hermínio Miranda saía


do corpo de Luciano, em vez de provir do teto, onde sua alma estaria. A
explicação herminiana para o fenômeno é de que a alma fala, mas repercute
no corpo, pois as cordas vocais estão nele. Certo, é um tanto estranho, mas
deve fazer sentido, ao menos para quem crê que coisas complexas possam
acontecer com tanta simplicidade...

Falamos que testes simples poderiam ser implementados, no intuito de


confirmar o desprendimento do corpo. Um deles seria o que nominamos
“exame da leitura”, que vamos descrever de forma tosca, sem propostas
sofisticadas, o que aconteceria em experiências controladas e de cunho
científico. O que sugerimos seria tão-somente a verificação de uma possível
resposta do espírito desprendido.

Luciano afirmava que seu espírito encontrava-se acima deles, a um


metro de altura. Pois bem, o próprio Hermínio poderia conduzir a investigação.
Primeiro vendaria os olhos físicos de Luciano. Em seguida, fazendo uso de
escada que tivesse mais de um metro de altura, pegaria um livro qualquer, de
preferência que não houvesse lido recentemente, subiria a escadinha, até um
ponto pouco superior à do espírito e, com a capa do livro voltada para si, de
modo que não pudesse saber do conteúdo, abriria em qualquer página e
pediria que Luciano lesse algumas linhas. Antes que alguém pergunte o porquê
de subir na escada, esclareço: é que foi dito que o espírito do jornalista flutuava
de cabeça para cima, por isso ele poderia alegar impossibilidade de ler o livro
devido à posição em que se encontrava.

Para ser bem sucedido, este exame simples exige que o examinador (no
caso Hermínio), em momento algum, leia o que está escrito na página que foi
aberta. Somente depois do espírito se manifestar é que conferiria se houve
acerto.

Caso Luciano fosse bem sucedido na prova, implementar-se-iam testes


complementares, a fim de reforçar a confirmação de que a alma efetivamente
estava fora do corpo, aí sim, o resultado seria considerado sugestivo,
entretanto nem o básico do básico foi feito.

Notem que não se faria necessário equipamento especial, nem alto


investimento. Apenas um examezinho simplérrimo evidenciaria, ao menos
preliminarmente, o desprendimento do espírito. Infelizmente, nada foi
realizado. O experimentador estava tão convicto que a alma de fato fica do lado
de fora, que nenhuma confirmação achou necessária. Em outras palavras, uma
tese fragílima, que não encontra respaldo nas múltiplas experiências hipnóticas
que se fazem em todos os cantos, foi pelos autores considerada insofismável!
Se fosse firme a tese do desprendimento espiritual, dele haveria relatos em
muitos outros experimentos de indução hipnótica, e não só no contexto
regressionista.

A GAGUEIRA DE LUCIANO/DESMOULINS
Um dos argumentos em defesa da legitimidade da manifestação foi que,
como a gagueira não aconteceu imediatamente após Luciano ter sabido que
Desmoulins era gago, significaria ponto a favor de uma demonstração real da
personalidade de Camille, que gradativamente ia tomando forma, à medida que
as sessões regressionistas evoluíam. Vamos recordar o assunto e acrescentar
nossas considerações.

Sejamos tolerantes com o velho Duplessis. Camille era de fato uma figura
estranha. Mesmo a Enciclopédia Britânica, que se esmera em informar
sem opinar, diz isto de Camille: “Seu sucesso profissional não era
grande; seus modos, violentos, sua aparência, sem atrativos, e sua fala,
prejudicada por uma penosa gagueira.” Algo aturdido quando viu Camille
a seus pés, num gesto dramático, a pedir-lhe a mão de Lucile, acabou
concordando hesitantemente, com o que não estava de acordo Madame
Duplessis. Por fim ambos cederam, já que Lucile também acabara
aceitando Camille que, a princípio, ela nem soube entender, apesar da sua
impressionante precocidade intelectual.

Este é parte de um dos comentários feitos por Hermínio Miranda,


concernentes à sessão ocorrida em 26/5/1967. Duas semanas depois, em
9/6/1967, aconteceu, durante a regressão, a manifestação curiosa. Leiamos:

Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos surpreendidos


com inexplicável fenômeno de gaguez. Fala com dificuldade, espaçando
muito as palavras e hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam
maior obstáculo.

A interpretação dessa circunstância é feita pelo menos de dois modos: o


primeiro, favorável, supõe que a personalidade de Camille foi crescendo em
presença no decorrer das sessões regressionistas. Seria algo semelhante a um
despertar por etapas, até que ocorresse a plena manifestação. Portanto,
estaria explicado porque características de Desmoulins apareceram aos
poucos. Dentro desta hipótese, não teria havido representação inconsciente de
Luciano, tratar-se-ia, sim, de processo “normal” de eclosão gradativa da
personalidade pregressa.

Certamente, tal suposição faz sentido, porém é preciso conhecer o outro


lado e levar em conta algumas ocorrências dignas de nota.

A hipótese concorrente concebe que o subconsciente de Luciano foi


construindo o personagem, conforme ia conhecendo detalhes a respeito
daquele que teria sido. Neste caso, a manfestação da gagueira, foi um trabalho
mental do jornalista – possívelmente inconsciente. Não é necessário aventar-se
que tenha havido fraude consciente, sim resultado do almejo acalentado pelo
paciente de que estivesse experienciando legítima recordação de existência
passada. Dessa forma, em segundo plano e aos poucos, a mente do regredido
aprimorava a imagem que pretendia representar daquele que supunha ser
reencarnação.

Em favor da primeira hipótese temos a gagueira, a qual se manifestou


diversas vezes, como se vê na texto a seguir:

Nosso trabalho teve prosseguimento em 23 de junho de 1967. Proponho-


lhe retomar as pesquisas no ponto em que as deixamos na última
reunião, com o que ele concorda. Observa-se, contudo, às suas primeiras
palavras, que ele recaiu na penosa gagueira, que já várias vezes ocorreu
no decorrer de nossos diálogos. Pressuponho que a dificuldade
manifestada provém de algum mecanismo inibidor inerente mesmo ao
processo de comunicação espírito/corpo, com o qual ele ainda não se
acha bastante familiarizado a ponto de dominá-lo com segurança.
Transmito-lhe, pois, sugestões visando a eliminar a dificuldade que, não
obstante, persiste, enquanto ele se mostra um pouco agitado. Reforço as
sugestões com alguns passes e ele acaba relaxando um pouco mais.

No entanto, algumas situações inclinam-se para a 2ª possibilidade, ou seja, a


da representação inconsciente do personagem. Se examinarmos as reuniões
de 9/6/1967 (na qual a gagueira aconteceu pela primeira vez), a de 16/6 e a de
21/6, notaremos o problema ocorria ora sim, ora não. Pode-se supor que
quando o subsconsciente de Luciano lembrava que Desmoulins era gago, a
característica era exibida. Ora, se este distúrbio, presente em Camille quando
vivo, se manifestasse efetivamente em Luciano sob regressão, ele deveria
surgir sempre que o jornalista entrasse em transe e assumisse o ego de
Desmoulins.

No encontro de 7/7/1967 surge fato novo:

Foi assim naquela noite; logo, porém, conseguimos um controle melhor


do mecanismo da comunicação. Daí em diante o diálogo flui
normalmente.

– Está se sentindo bem agora?

– Ótimo.

– O que você está pensando aí?

– Olhando o corpo – diz ele. – Ele treme um pouco...

– Agora não mais – digo eu. – Estava tremendo, sim, mas você já
conseguiu controlar. Podemos retomar nosso trabalho? Bem, você sabe
que temos algumas dúvidas para resolver. Um dos problemas que
precisávamos esclarecer é quanto à dificuldade que você tinha em falar.
No momento você não a tem mais, não é? Por que isso? Como você
conseguiu controlar isso?

– Não sei... É... não sei.

– Talvez porque você tenha racionalizado o problema e viu que a gagueira


era desnecessária. Ela apresentou um fator muito importante para
controle do nosso trabalho, porque agora sabemos que na existência
anterior você tinha esse problema, inteiramente superado hoje.

O que para Hermínio Miranda foi a solução de um problema, em verdade


significa um dificultador para a teoria de que a regressão era legítima. Ele
precisava explicar porque a gagueira havia desaparecido, e encontra uma
hipótese ad hoc que lhe satisfaz. No entanto, até onde se sabe, Camille
Desmoulins em vida não controlou o problema da gagueira. O que
provavelmente aconteceu é que representar um gago é cansativo e dificulta o
diálogo, então o subsconsciente de Luciano excluiu a manifestação.
Encontramos num pequeno trecho dos relatos o que nos pareceu
demonstração indubitável de que Luciano, entre um encontro e outro,
exercitava a mente na construção do que achava deveria ser a manifestação
de Desmoulins. Leiamos:

Mas você ficou de verificar, durante esta semana, nos seus


desprendimentos, a razão de ser de seu encontro com o espírito de sua
mulher atual e do seu filho. (Cap. 9, 1ª parte, “Os Dois Agoras”)

O que temos aqui é Hermínio cobrando de Luciano a informação que


haviam combinado deveria aparecer no encontro seguinte. De que modo?
Durante a semana Luciano meditaria (“se desprenderia”) até que encontrasse o
informe buscado. Na continuidade do diálogo ver-se-á que a missão não deu
resultado, porém, para nós, demonstra que o jornalista não ficava passivo nos
intervalos dos encontros, ao contrário, estava em contínua reflexão e, talvez
inconscientemente, alimentava a mente com idéias variadas. Durante as
regressões, o resultado dessas cogitações vinham à tona.

CONCLUSÃO
Acreditamos que a experiência regressionista aqui analisada pode ter
sido convincente para Luciano dos Anjos, que aguardava ansiosamente
oportunidade de descobrir sua encarnação pretérita. Louve-se o esforço dos
envolvidos em demonstrar que as lembranças eram verazes.

Em termos gerais, porém, muitas questões ficaram em aberto e o


experimento não evidenciou suficientemente que as recordações fossem
autênticas lembranças de outra vida. O que desqualifica o trabalho como
legítimo evento reencarnacionista.

A “memória integral”, tese que embasa o trabalho regressionista de


Hermínio Miranda, não foi demonstrada, de forma alguma, durante as
experiências. Ao contrário, na maioria das vezes em que Hermínio exigiu do
regredido que recorresse à dita memória, o retorno foi frustrante. Várias
hipóteses discutíveis foram apresentadas para justificar o fracasso.

Ex. de falhas na demonstração da memória integral:

– E você teve outra existência entre aquela que você viveu na França e a
atual?

Havia ali um bloqueio, e para testá-lo reformulo a pergunta:

– Da existência que você teve como Camille até a em que você renasceu
no Brasil, como Luciano, há alguma intermediária?
– Não sei – é a resposta.

– Sabe, sim. Seu espírito sabe. Procure buscar na memória.

– Depois apagou-se tudo... Não me lembro. Acho que não. Estou bem
agora.

(Cap. 4, 1ª parte, “O Antes e o Depois”)

____________________________________

- O que é preciso é libertar-se dessa condição. Qualquer estado de


desprendimento em que você entra, vai logo para esse período em que
levou uma existência agitada. É necessário que você procure pesquisar,
na sua memória integral, outros fatos e não apenas esses.

- Mas, às vezes, dá medo. .. vontade de fugir... mas, é preciso ter coragem


e ficar ...

(Cap. 4, 2ª parte)

____________________________________

– Vamos, então, recomeçar. Queria que você me descrevesse sua


infância, em Guise. Você chegou a estudar lá?

– Sim. Não me lembro muito bem, mas deixe-me pensar. Distante...

– Você sabe que está tudo guardado em sua memória. É questão somente
de procurar o caminho de acesso. Estamos sendo ajudados por irmãos
nossos do mundo espiritual.

– Era um pppppppp... patronato de religiosos. Se ch... ch... chamava...


Era... Ah, meu Deus! Era... Deixa eu ver... Cambrésis. Chateau-
Cambrésis... Eram só meninos. (...)

(Cap. 7, 1ª parte, “O Durante e o Depois”)

____________________________________

- Isso será dado conhecer se for permitido pelos nossos mentores


espirituais. Se interessar ao nosso trabalho e ao nosso espírito. Mas você
ficou de verificar, durante esta semana, nos seus desprendimentos, a
razão de ser de seu encontro com o espírito de sua mulher atual e do seu
filho.

- Não vi... Não sei...

- Por quê? Não teve tempo ou não foi permitido?

- Não sei.

- Isto, então, é um dos pontos em que não devemos insistir mais, porque,
provavelmente, não está incluído no nosso trabalho, pois seu espírito
sabe. Você pode não estar lembrando, mas isso está registrado. Então
não será possível apurarmos isso. O que for possível, remos apurando,
especialmente o destino de seus amigos daquela época. Onde estará
Danton? O que você imagina tenha acontecido a ele? Será que ele está
aqui no Brasil? (Cap. 9, 1ª parte, “Os Dois Agoras”)

____________________________________

- Escuta, e você? Provavelmente teve ligações com esses espíritos,


anteriormente. Procure localizar em sua memória, você tem acesso a ela
agora, onde é que começou essa história?

- Não sei, acho que eles estiveram comigo, sim.

- É quase certo, isso, porque o trabalho que vocês realizaram em conjunto


provavelmente já vinha de trás. Você não consegue lembrar-se assim de
pronto, não?

- Não.

- Escuta: entre sua vida no século XIV e essa, na França, no seculo XVIII,
você teve outra existência?

- Acho que tive - diz ele, após longa pausa.

- Você pode localizá-Ia, pois está tudo guardado aí em sua memória. É um


período muito longo, de quase trezentos anos; não é possível que não
tenha, nesse tempo todo, pelo menos uma existência, ou mesmo duas.

- Mais de uma - confirma ele.

- Foi tudo na França?

- Foi.

- Há quantos séculos, então, você vivia na França? Quanto tempo você


pode recuar sua memória sem prejuízo da sua posição agora?

- Muito tempo. .. Em Roma, também; mas isso é tão longínuo. .. tão


distante.

- Mas você lembra também de Roma?

- Também!

- O que você fazia lá?

- Nada, vivia... Isso é tão distante que a gente fica sem certeza das
coisas .

- Mas não são memórias agradáveis'?

- Dali não tenho certeza.

- Quando é que você começa a ter mais consciência das suas


existências?

- No século XV.

- Nessa existência como um dos Valois? E depois?

- É. Fui vendedor de rua ... (Ambulante.) Tem uma ... acho que era Louis.
Não tem nada.

- É uma vida muito apagada?


- Muito ruim ...

- Difícil?

- É.

- Em que época foi essa? Não dá para ver, não é?

- Ah, isso baralha muito. Eu me vejo na rua, assim ... andando ...

- Foram muitos anos de vida?

- Não sei. Puxava um baldinho, vendendo. .. Não... isso foi depois. Deixe-
me ver. Vinagre. .. Levando vinagre. A gente amarrava um barrilzinho dos
dois lados e ia puxando com uma corda. Vendia vinagre.

O método de transporte do vinagre - um barrilzinho preso pelo 'eixo maior


e rolando pelo chão - ainda se vê hoje aqui mesmo, no Rio de Janeiro, em
alguns bairros pobres, para transportar água.

- Como você se chamava? Essa vida aí está mais perto. Você pode se
lembrar.

- Vinagre. .. Jean. .. (Ri. Parece contemplar a melancólica figura de um


pária social.)

- Quer dizer que você passou uma existência muito brilhante na corte e
depois duas existências muito obscuras ...

- É, sofri muito!

- Foi para aprender a lição da humildade. Daí, então, depois dessas duas é
que você veio como Camille?

- É, depois Camille. .

Novamente faço uma sondagem no desconhecido

- E depoIs de Camille... Você não teve nada aí nesse meio, entre Camille e
Luciano? O bloqueio continua firme.

- Não sei... não consigo. É um vazio imenso... imenso... Uma bola imensa,
vazia. Como se fosse uma bola.

- Provavelmente você foi assistido como espírito, a fim de se recuperar e


retornar agora à vida (na carne).

- É, deve ser ... Não é bom ...

- Felizmente agora você está no caminho certo, procurando corrigir essas


deficiências que todos nós temos, e está preparando um programa de
trabalho para o futuro, não é? (Cap. 10, 1ª parte, “O Perto e o Longe”)
Excessiva valorização foi dada pelos experimentadores ao
conhecimento histórico do regredido. Contudo, não foram levados em conta a
existência de vários equívocos, ou, quando se considerou esses deslizes, as
explicações não foram suficientes. Além disso, existem numerosas
contradições entre as declarações de Hermínio e as de Luciano. Além das que
já foram referidas, apresentamos a que segue.

No início da 2ª parte do livro (na edição utilizada, p. 301), relato de


Luciano, lê-se:

No campo das reencarnações há de tudo. Meu amigo Hermínio Corrêa de


Miranda, que orientou as sessões que vão narradas neste livro, já me
dizia, desolado, que só de Marias Antonietas ele ouviu falar não sabe de
quantas. Os Napoleões estão por aí mesmo. Ninguém quer ser gente
humilde do passado. Parece até que os "apagados" não renasceram
mais ...

Hermínio Miranda toca no mesmo tema, entretanto diz coisa bem


diversa daquilo que o jornalista disse serem suas palavras. Leiamos:

Devo confessar, de início, que a revelação do primeiro momento foi


impactante. É que, à falta de argumentos e, menos ainda, de fatos que
possam abalar a doutrina palingenésica, é comum dizer-se que tudo não
passa de mera fantasia, uma vez que ninguém se lembra de vidas
humildes e anônimas, mas todo mundo quer logo ser Maria Antonieta ou
Napoleão – as duas mais citadas personalidades históricas nesse
contexto.

A observação é de uma puerilidade tão grande que beira o ridículo. Em


primeiro lugar, por não ser verdadeira, e isso nos pouparia até o esforço
de dizer algo mais, como o artilheiro que não pode disparar o canhão por
vinte e duas razões, a primeira das quais é porque não tem pólvora... A
verdade é que o mais comum nas regressões da memória – provocadas
ou espontâneas – é a lembrança de discretas existências, e até penosas,
vividas em penúria e terminadas melancolicamente. Por outro lado,
pessoas inclinadas a propalar levianamente aos quatro ventos possíveis
encarnações em posições de relevo social, político, religioso ou artístico
estão provavelmente desequilibradas ou desarmonizadas e confusas.
Nunca devemos esquecer, contudo, que se vivemos muitas existências
encadeadas – e isto é estritamente verdadeiro –, e no passado viveram,
tanto quanto vivem hoje, personalidades que se destacam no contexto
humano, não é impossível que algumas daquelas personalidades sejam,
aqui e ali, identificadas em alguém reencarnado.

Vejam só, as palavras que Luciano dos Anjos põe na boca de Hermínio,
este declara não serem de sua autoria. Tratar-se-ia da opinião de terceiros,
com as quais não concorda de forma alguma!

A questão mais embaraçosa, no que se refere a possibilidade de uma


boa análise da obra, são os relatos conflituosos de Hermínio e de Luciano,
vários deles apresentados durante o estudo. Não encontramos explicação
satisfatória para tal ocorrência. A possibilidade mais viável que podemos
aventar seria a existência de reuniões que um ou outro “esqueceu” de narrar.
Isso traz sérias implicações na confiabilidade do relato e dificulta a avaliação
adequada da experiência conjunta. Em alguns diálogos parece que os
protagonistas estão a falar de situações somente parecidas, mas em tudo
distintas, tamanha é a quantidade de fatos não coincidentes.

Do que foi exposto, fica demonstrado que, na obra em questão, não


existem elementos suficientes que permitam falar-se em regressão à vida
passada. Se tal fenômeno ocorre, não ocorreu no episódio analisado. Os
defensores da teoria ficam em débito: devem apresentar experiências que
exibam ocorrências seguras de lembranças pretéritas. Até o presente, o que
podemos dizer é que as supostas lembranças são resultante de elaborações
de mentais sob sugestão hipnótica, ou seja, fantasiosas.

A capacidade de Luciano em reconhecer espíritos, cujos fundamentos


são pobres, é um assunto à parte, mas, de qualquer forma, mostra o quanto de
empolgação e pouco de espírito científico suas cogitações apresentam.

Mais poderia ser dito: o material que Hermínio Miranda produziu enseja
trabalho que comportaria páginas e mais páginas de avaliações. O que mostra
que o esforçado pesquisador, mesmo com os equívocos apontados, é um
gigante no estudo e na pesquisa. Deixamos, pois, a presente explanação para
ser avaliada por quem interessado no tema.

Moizés Montalvão.

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