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1.1. Realidade e verdade — a plurivocidade da verdade Usamos, no nosso quotidiano, uma série de expresses realidade esta presente: = Nao concordo! Devemos estar a falar de duas realidad: = Qual é, na realidade, a nossa missao? Estes so apenas alguns dos exemplos em que © aplicado na linguagem comum. Na maioria das como sinénimo de verdade. Mas sera que reali mesma coisa? 0 surgi le sao uma ea Realidade é um conceito distinto de verdade, embora ambos mante- nham uma relacao estreita entre si Realidade — vulgarmente, tudo aquilo que efectivamente existe ou 6, por oposigdo a uma simples aparéncia, a um desejo ou projecto. Equi- vale, portanto, a ser ou a existente, que, como tal, se impée e resiste a todas as tentativas de esquecimento ou negacao. Tanto pode designar um ser em particular (uma realidade), como o conjunto de todos os seres em geral (a realidade) (... A realidade designa tudo aquilo que existe independentemente da consciéncia que a pensa ou conhece, ou tudo quanto existe na natureza, por oposi¢do ao que subsiste apenas ideal ou intencionalmente na cons- ciéneia (... Manuel da Costa Freitas (1992), “Realidade”, in AVY, Logos ~ Enciclopedia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 4, Lisboa, Editorial Verbo, pp. 599-600. A realidade surge como algo imutavel e uni- dimensional, que esta ai para ser conhecido. Mas se a realidade é tudo 0 que existe indepen- dentemente da nossa consciéncia, as grandes questdes que se podem colocar serao, portan- to, as seguintes: = Havera uma Gnica realidade, ou varias perspectivas da mesma? = Qual das perspectivas é a mais verdadeira? =O que 6a verdade? = A razdo humana tera possibilidade de ace- _ Fonte: ABC da mente humana, Selecgdes do Reader's der a um conhecimento verdadeiro da rea- Digest Esta imagem pode ser vista ora eomo uma pal- sagem difusa, ora como se contivesse, se Ihe prestar lidade? mos mais atenca, um animal que caminha. storia da filosofia, a noco de realidade ou ser tem assumido signifi- cados distintos. De facto, segundo Ortega y Gasset, na obra O que é a Filoso- fia?, para os antigos, realidade, ser, significava «coisa»; para 0s modernos, ser significava «intimidade, subjectividade»; para nés, ser significa «viver» — portanto, intimidade consigo e com as coisas. Qualquer que seja a definicao de realidade, ser prudente considerar- mos a nossa perspectiva como a Unica possivel? O texto que se segue res- ponde a esta questa. ‘As nossas idcias quotidianas ¢ tradicionais acerca da realidade sio iluses que procuramos fundamentar durante grande parte das nossas vidas, mesmo correndo o consideravel risco de tentar encaixar os factos na nossa definigao de realidade em vez. de fazer 0 contrario. Aquilo que de facto existe sio varias perspectivas diferentes da realidade, algumas das quais contradit6rias, mas todas resultantes da comunicagio ¢ nao reflexos de verdades eternas e objectivas Acreditar que a nossa propria perspectiva da realidade é a tinica rea- lidade, é a mais perigosa das ilusdes e torna-se ainda mais perigosa se estiver associada a um zelo missionario de ihuminar 0 resto do mundo, quer o resto do mundo deseje ser iluminado ou nao. ( Apés oito anos de ados, marido e mulher descreveram uma das suas primeiras discussdes. Esta ocorreu na segunda noite da lua-de-mel. Estavam ambos sentados no bar do hotel quando a mulher comegou a conversar com um casal sentado perto deles. Para seu grande espanto, 0 marido recusou-se a tomar parte da conversa, manteve-se amuado, tristo- nho ¢ contrariado, tanto em relagao a ela como em relacio ao casal. Ao aperceber-se da sua disposigao ela zangou-se com ele por ter provocado uma situagao social muito desagradavel e por a ter feito sentir desampara- da. Ambos se descontrolaram e acabaram por ter uma amarga discussio na qual cada um acusou 0 outro de falta de consideracio. (...) Para a mulher, a lua-de-mel era a primeira oportunidade que tinha para praticar a sua recém-adquirida posigdo social: «Nunca tinha tido uma conversa com outro casal como esposa. Era sempre como “namo- rada”, a “noiva”, a “filha” ou a “irma”», A interpretagdo do marido acerca da «lua-de-mel» era, no entanto, a de um periodo de convivio exclusive, uma «oportunidade de ouro para ignorar o resto do mundo e simplesmente nos explorarmos um ao outro», P. Warzlawick (1991), A Realidade é Real?, Lisboa, Relogio d’ Agua, pp. 7, 8 ¢ 16. Pela leitura do texto, facilmente se poderd perceber que cada um dos elementos do casal interpretou a realidade de modo diferente, atribuindo significagdes distintas a lua-de-mel. Por conseguinte, devemos admitir uma pluralidade de leituras possiveis da realidade - esta assume um estatuto multidi- mensional. Se sao varias as leituras possiveis da mesma realida- de, entao a realidade para um cientista sera diferente da realidade para um filéso- fo, para um poeta, ou mes- mo para um artista plastico Cada um apreende uma das suas miltiplas dimensGes res, 1828, Por vezes, pessoas muito préximas desenten: ito diferentes da realidade. E como se cada um esti- ia verdade. Existem muitas realidades: a realidade p: sico € diferente, por exemplo, da realidade para um filésofo ou um pe Os fisicos cha- mam «realidade» a tudo o que, de uma m: ou de outra, conse- guem observar com os seus instrumentos. Os fil os poetas cha- mam , Fiolhais (1994), Universo, Computadores e Tudo o Resto, Lisboa, Gradiva. p; Se existem tantas realidades quanto as diferentes perspec- tivas que dela se pode ter, entao ser legitimo afirmar que uma leitura é mais verdadeira que outra? Responder a esta pergunta implica uma incursao no pro- prio conceito de verdade, isto é, nao podemos afirmar se a perspectiva do filésofo é mais verdadeira que a do fisico, se nao soubermos 0 que 6a verdade Einstein (1879-1955) Impée-se, deste modo, uma clarificac3o do préprio conceito de verdade Com efeito, entramos num dos grandes problemas que tem animado diver- sos fildsofos ao longo da historia da filosofia. Saber 0 que é a verdade cons- titui um dos grandes desafios e horizontes da filosofia. A ideia de verdade é, para cada um de nds, a0 mesmo tempo familiar € misteriosa (...). Tem a dificuldade da polissemia da palayra com que a exprimimos. Podemos facilmente formular uma série de frases em que 0 significado de cada uma, embora tenha algum parentesco com os demais, é todavia diferente, por exemplo: «O que estas a dizer é verda- de»; «Este anel é de ouro verdadeiron; «A verdade dos factos é indes- mentivel>; «Na vida importa caminhar na verdade>. Isso significa, a partida, que a ideia de verdade nao é univoca mas andloga. Nao ter isso em conta, como de facto com frequéncia aconte- ce, mesmo entre fildsofos, é cobrir do nevoeiro da confusao a problema- tica da verdade. Pensar sobre a verdade implica ter em conta quer a plu- ralidade dos significados da palavra com as suas diferengas quer 0 denominador comum que esta em todos. Jorge Coutinho (2003), Filosofia do Conhecimento, Lisboa, Universidade Catdlica Bditora, p. 89. M.C. Escher, Subir e descer, 1960. Observando em pormenor, os individuos esto a subir... ou estao a descer. Qual serd a verdade? 0 texto sublinha a pluralidade de significados da palavra verdade, a sua plurivocidade. Este conceito tem estado subjacente aos diversos temas que foram objecto de estudo até aqui e foi abordado nas suas miltiplas acepcoes: ~ verdade ontoldgica; -verdade Logica; ~verdade como utilidade; - verdade como consenso; -verdade como perspectiva. a) Verdade como correspondéncia ou adequacao — verdade ontologica ‘A concepcao da verdade como correspondéncia é, historicamente, a mais antiga e a mais intuitiva. Quando alguém diz estd a chover, classifica- mos intuitivamente 0 enunciado como verdadeiro ou falso se corresponder ou nao a realidade. Por conseguinte, a verdade sera a correspondéncia entre a proposic3o e a realidade Embora antes de Aristételes ja se tivesse concebido a verdade como propriedade de certos enunciados, a mais celebrada formula a este res- peito é a que se encontra em Aristételes: «Dizer do que é que nao é, ou do que nao é que é, € 0 falso: dizer do que € que é ¢ do que nao é que nao é, € 0 verdadeiro.> (...) Para que um enunciado seja verdadeiro é necessario que haja algo do qual se afirme que é verdade: sem a coisa nao ha verdade, mas tio-pouco a ha sé com a coisa. Esta relacdo do enunciado com a coisa enunciada foi logo chamada correspondéncia ou adequi ; a verdade é verdade do enunciado enquanto corresponde com algo que se adequa ao enunciado. Ferrater Mora (1991), Diciondrio de Filosofia, Lisboa, Publicag6es Dom Quixote, p. 412 Este critério de verdade foi adoptado por Platao, Aristételes, S. Tomas de Aquino, por grande parte dos escoldsticos e, mais recentemente, pelos fild- sofos positivistas. b) Verdade como coeréncia — verdade lagica ‘A verdade como coeréncia, também designada como verdade légica, evi- dencia 0 acordo da razao com as suas proprias regras e principios [particu- larmente o da nao-contradicao). Este critério de verdade aplica-se sobretu- do na légica e na matematica Paul Klee, Grande Jogo de Xadrez, 1937. Num jago de xadrez o calculo matemético e légico esté bastan- te presente, dependendo de regras bom definidas. A expresso «verdade légica> tem sido algumas vezes utilizada para designar a verdade como coeréncia ou nao contradi¢o no interior de um sistema de ideias, de coisas ou de simples relacées quantitativas ou como correccio numa operacao légica ou matemética. Sistemas de ideias (ou sistemas l6gicos) s40, por exemplo, boa parte das grandes filosofias, mas também, a seu modo, as diferentes culturas ¢ suas correspondentes «nar- rativas>. Um sistema de coisas (ou sistema real) é por exemplo, 0 motor de um automével. Sistema de relagdes quantitativas é a matematica. © contrario da verdade légica, neste sentido, ¢ 0 erro, enquanto incoeréncia, desajustamento, inoperacionalidade no interior do sistema. Nos sistemas reais costumamos antes designé-lo como defeito ou falha, inoperacionalidade ou infuncionalidade. Jorge Coutinho (2003), Filosofia do Conhecimento, Lisboa, Universidade Catdlica Editora, pp. 98-99. Alguns autores consideram a verdade légica uma verdade derivada da verdade ontolégica. Isto porque, e na perspectiva de Aristételes, a verdade légica pressupoe a verdade primeira do ser. c) Verdade como utilidade A teoria pragmatica parte do principio de que a verdade é uma caracte- ristica do enunciado ou da proposicao em que é util acreditar. Assim, a pro- posicdo é util porque é verdadeira ou, entao, é verdadeira porque é Util (W. James). A teoria pragmatica da verdade [é] 0 ponto de vista, especialmente associado a James, segundo 0 qual a verdade de uma afirmacao pode ser definida em termos da utilidade que ha em aceité-la. Apresentado desta forma tao simplificada, este ponto de vista torna-se alvo facil de objecgées, uma vez que ha coisas que sao falsas, mas que pode ser titil aceitar, e, de forma conversa, ha coisas que podem ser verdadeiras, mas que pode ser prejudicial aceitar. Simon Blackburn (1997), Diciondrio de Filosofia, Lisboa, Gradiva, p. 453. 0 que define a verdade é a possibilidade de produzir um efeito que se deseja, ao servico de um objectivo pratico qualquer. Verdade é, assim, a efi- cdcia, a utilidade e a funcionalidade. d) Verdade como consenso As bases da teoria da verdade como consenso encontram-se na teoria da argumentagao de Perelman e nos estudos de J. Habermas e K.-0. Apel sobre a “ética do discurso”. do de foreas distintas para o acordo dinémica @ interpessaal, como numa danga, conn 16 Sea verdade é a luta de verdades, é também o consenso que permite lutar essa luta, e é ainda o consenso maior ou menor que se obtém, antes e depois da luta, sobre o que esta em uta (...) A verdade é a ret6rica da verdade. A verdade € intersubjectiva e, uma vez que essa intersubjectividade é discursiva, o discurso ret6rico é 0 campo privilegiado da negociagao de sentido. A verdade é, pois, o efeito de convencimento dos varios discursos de verdade em presenga. A ver- dade de um discurso de verdade nao é algo que lhe pertenga inerente- mente, acontece-lhe no decurso do discurso em luta com outros discur- sos num auditério de participantes competentes ¢ razoaveis ( Diz Rorty: «a verdade objectiva nao é mais nem menos que a melhor ideia que temos num dado momento sobre como explicar o que se pas- sa». Ora a melhor ideia nao € nunca a do cientista isolado, é antes a que consensualmente emerge como tal numa discussdo argumentativa (...). © mesmo se deve dizer da concepeao discursiva da verdade em Haber- mas, ¢ este, a0 contrario de Rorty, centra precisamente a sua reflexao na dimensao intersubjectiva e interactiva da verdade. Boaventura de Sousa Santos (1995), Introdueao a wna Ciencia Pés-Moderna, 42 ed., Porto, Edic s Afrontamento, p. 109. 0 consensualismo nao nega a verdade em si, apenas afirma a extrema dificuldade de obtermos um conhecimento dela. Assim, os consensos seriam formas de nos aproximarmos da verdade em si e) Verdade como perspectiva Cada sujeito tem uma perspectiva, subjectiva, sobre o real. Portanto, a con- cepcao perspectivista de verdade admite a existéncia de miltiplas verdades. O conhecimento humano é perspectivado. Quer dizer: tudo o que conhecemos da realidade 6 sempre limitado a uma certa perspectiva, a um certo Angulo de visdo. (...) Esta limitagdo torna todos os conheci- mentos humanos relativos 4 perspectiva do sujeito que os tem, Implica assim a necessidade de, nao s6 conhecer sempre novas realidades, mas também de tentar sempre novas abordagens da mesma realidade, que sao novas aproximagées da sua verdade plena (...). A verdade no condicional significa af que, quando digo «isto é verdade», subentendo: «se por verdade posso tomar uma face ou perspectiva da mesma». Jorge Coutinho (2003), Filosofia do Conbecimento, Lisboa, Universidade Catdlica Edivora, pp. 98-99. Existem ainda muitas outras formas de entender a v plo, Hegel discorda da concepcao que entende a verda e imutavel. Ao contrdrio, na sua perspectiva, a verdade cesso continuo em que se vao manifestando os diferen tos da ver- dade [contraditérios entre si, mas reunidos numa sintese] — verdade como processo. Também Heidegger entende a verdade come cesvelamento do ser que acontece pela e na linguagem enquanto —verdade como desvelamento. de. Por exem- mo algo eterno de um pro- René Magritte, 0 Espetho Falso, 1928. 0 facto de existire questionar se a verdade existe ou se tudo se resume a perc A existéncia de tantas concepcées de realidade = d= verdade de que os conceitos tradicionais foram postos em ¢ Concepeées tradicionais Concepedes contemporaneas | realidade unidimensional; — realidade imutavel; —verdade univoca; —verdade em si: —absoluta e necessaria; —imutavel e transtemporal; | universal e transé al e social; — indivisivel (ou é, ou nao é) aproximacgao Jorge Coutinho (2003}, Filosofia do Conhecimento, Lisboa, Universidade Catélica (adaptado). ‘As concepcdes contemporaneas de realidade e de verdade conduzem ao reconhecimento dos diferentes saberes como narrativas, cada uma das quais apresentando niveis de realidade e de verdade diferentes. E assim que se tornam equivalentes [embora com a sua propria especificidade) saberes como a ciéncia, a filosofia, a arte, a religido, a poesia ea literatura. Esquema-sintese Concepedes tradicionais Concepedes contemporaneas | Ht | l y y realidade unidimensional realidade multidimensional _ | a ci filosofia ciéncia arte religiao y Y verdade absoluta verdades relativas significagdes / narrativas xz ~~ Dee Me a ontolégica lagica como utilidade | comoconsenso | como perspectiva Explicite a acepcao vulgar e a filoséfica do conceito de realidade. Sintetize as varias concepedes de verdade Relacione as diferentes concepgdes de verdade com os conceitos de realidade que hes estéo subjacentes. 1.2. Necessidade contemporanea de uma racionalidade pratica pluridisciplinar So grandes a riqueza e 2 diversidade da realidade e é bastante limitado © conhecimento que dela podemos retirar. Cada saber, ou cada configura~ cao do real, apreende apenas ume das suas miltiplas dimensdes, obtendo, portanto, uma visao parcelar da totalidade e globalidade. Assistimos, por um lado, a uma excessive especializacao das ciéncias e, por outro, a uma separacao dos saberes cientificos dos que 0 nao sao. A ciéncia classica construiu-se sobre (...) a ideia-chave da separabili- dade. Conhecer € separar. Em face de um problema complicado, dizia Descartes, é preciso separa-lo em pequenos fragmentos e tratar cada um. deles, um apés outro. As disciplinas cientificas desenvolveram-se, deste modo, com base na ideia da sua separacdo e com o aparecimento, no interior dessas grandes disciplinas como a Fisica, a Biologia, etc., de compartimentos sempre novos. Em tiltima anélise podemos dizer que a separacSo entre ciéncia e filosofia e, de forma mais alargada, entre cién- cia e cultura humanista, seja a filosofia, a literatura, a poesia, etc., se instituiu progressivamente, no nosso século como uma necessidade legi- tima ( Edgar Morin (1998), “Complexidade e Liberdade”, in E. Morin c I. Prigogine, A Sociedade em Busca de Valores, Lisboa, Instituto Piaget, p. 240. Tal panorama conduziu a uma visao frag- mentada e retalhada da realidade. De facto, se as diversas disciplinas se encontram isoladas e fechadas nas suas fronteiras cada vez mais delimitadas, os conhecimentos adquiridos nao sao reunidos e integrados numa visao global que thes dé coeréncia. E por isso que, contem- poraneamente, se reconhece a emergéncia de uma racionalidade pluri e transdisciplinar. Paul Klee, Reminiscéncia de um Jardim, 1914. A mem6- ria que temos das pessoas, situagies ou lugares néo 6 tum retrato fiel dos mesmos, mas, muitas vezes, 6 um conjunto de fragmentos incoerentes, coloridos, de pequenas imagens dispersas,justapostas e retalhadas. Na época actual, © crescimento sem precedentes dos saberes torna legit ma a questo da adaptacdo das mentalidades a esses saberes (...). A harmo- hia entre mentalidades e saberes pressupde que tais saberes sejam inteligiveis, compreensiveis. Mas sera que essa compreensao pode ainda existir, na era do Big Bang disciplinar ¢ da extrema especializagdo? A imprescindivel necessi- dade de lacos entre as diferentes disciplinas traduziu-se na emergéncia — em meados do século XX ~ da pluridisciplinaridade da interdisciplinaridade. A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objecto de uma tinica e mesma disciplina efectuado por diversas disciplinas ao mesmo tem- po. Por exemplo, a filosofia marxista pode ser estudada sob a visdo cruza- da da filosofia ¢ da fisica, da economia, da psicandlise ou da literatura. O objecto sair assim enriquecido pelo cruzamento de varias disciplinas. O conhecimento do objecto da sua prépria disciplina é aprofundado median- te uma fecunda contribuicio pluridisciplinar, A pesquisa pluridisciplinar adiciona um algo mais 4 disciplina em questo (a filosofia, no exemplo citado) (...). A interdisciplinaridade tem uma ambicdo diferente daquela da pluri- disciplinaridade. Ela diz respeito @ transferéncia dos métodos de uma disciplina para outra (...). Ja a transdisciplinaridade, conforme indica prefixo “trans”, envolve aquilo que esté ao mesmo tempo entre as disci- plinas, através das diferentes disciplinas e além de toda e qualquer disci- plina. A sua finalidade é a compreensao do mundo actual, para a qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento. Existe alguma coisa entre e através das disciplinas e além de toda e qualquer disciplina? Do ponto de vista do pensamento classico nao existe nada, absolutamente nada. O espago em questo é vazio, comple- tamente vazio, como o vacuo da fisica classica. Diante de varios niveis de realidade, o espago entre as disciplinas e além das disciplinas esté cheio, como 0 vacuo quantico esta cheio de todas as potencialidades: da particula quantica as galaxias, do quark aos elementos pesados que condicionam o aparecimento da vida no Universo. A estrutura descontinua dos niveis de realidade determina a estrutura descontinua do espaco transdisciplinar, a qual, por sua vez, explica por- que a pesquisa transdisciplinar é radicalmente distinta da pesquisa disci- plinar, da qual é complementar. A pesquisa disciplinar envolve, no maxi- mo, um Gnico e mesmo nivel de realidade; na maioria dos casos, alids, ela no envolve senao fragmentos de um tinico e mesmo nivel de realidade. Em contrapartida, a transdisciplinaridade interessa-se pela dinamica decorrente da acc&o simultanea de diversos niveis de realidade (...). A visio transdisciplinar propée-nos a consideragao de uma realidade multidimensional, estruturada em mtiltiplos niveis, que substitui a reali- dade unidimensional, de um tinico nivel, do pensamento classico. Basarab Nicolescu, Réforme de Education et de la Pensée: Complexité et Transdisciplinarité, Actes du (Congrés Inter Latin pour la Pensée Complexe, Rio de Janeiro, Brasil, 8, 9, 10, ¢ 11 Septembre de 1998

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