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Sobre Mestres e Autoridade

Deus não precisa de nossa adoração, nós, sim.

Henry Bayman

O sufismo em sua essência , se opõe ao autoritarismo. A maioria dos sufis não


reconhece formalmente graus de crescimento espiritual com atribuições de títulos, status
ou postos de relativa responsabilidade ou privilégio; eles não reconhecem nenhuma
autoridade espiritual absoluta em forma humana nem dão a qualquer pessoa o poder de
juiz absoluto de questões espirituais em assuntos humanos. Ao mesmo tempo que
afirma que a inspiração divina que guiou a vida dos profetas de todas as grande
religiões, o sufismo também afirma que toda e qualquer ser humano pode ser
divinamente inspirado. Esse nivelamento faz da irmandade igualitária – a verdadeira
fonte da vida espiritual, segundo o sufismo – o princípio básico da verdadeira
comunidade sufi e da expressão social.
Ao estudar o sufismo como um caminho não-autoritário, não se pode deixar de notar
uma aparente contradição: a exigência de que o iniciado sufi se entregue inteiramente às
instruções de um professor ou mestre. Como vimos , o iniciado sufi precisa de surpresa
constante para permanecer desperto. Um programa preestabelecido de meditações,
procedimentos e/ou exercícios não é suficiente. Ainda mais do que a iluminação zen ou
taoísta, a iluminação sufi depende de um relacionamento com um mestre vivo. ( Como
em quase tudo neste livro, há exceções à regra. Em Sacred Drift, Wilson analisa um
caminho sufi que não tem gurus.) É talvez, uma charada peculiar para uma religião não-
doutrinária. Mas , então, é precisamente a ausência de doutrina e de rituais repetitivos
que não deixa outro caminho para a esperança sufi. O verdadeiro mestre sufi trabalha
intuitivamente com cada iniciado, provocando sua psique para tira-la da modorra –
estimulando-o por intermédio de praticas e processos estabelecidos especificamente
para descondicionar aquele indivíduo.
Shah escreveu: “As pessoas (...) tentam se envolver em misticismo de acordo com
seus próprios termos (...) o discípulo [sufi] (...) não pode estabelecer condições (...) No
desenvolvimento da mente humana há uma constante mudança e um limite para a
eficácia de qualquer técnica especifica. Essa característica da pratica sufi é ignorada em
um sistema repetitivo. “ Shah continua , citando um iniciado sufi que parece ter sido
descondicionado com sucesso : “ Meu professor me libertou do cativeiro em que ( ...) eu
pensava que estava livre , quando , de fato, eu na verdade estava andando em círculos
segundo um padrão”.
Ocidentais que conheceram várias gerações de escrotos espirituais e psicológicos –
gurus e pessoas do tipo Werner Erhard , que na verdade estavam nisso por dinheiro e
poder – são compreensivelmente cautelosos no que diz respeito a se entregarem a um
“mestre”. De fato , dadas as tendências humanas , é preciso admitir que ao longo da
história até hoje , alguns artistas medíocres se fizeram passar por mestres sufis ( e
alguns grandes mestres sufis com tendências vigaristas se fizeram passar por artistas
medíocres). O iniciado precisa confiar em sua própria inteligência e intuição na escolha
de um professor ou não se envolver com o processo sufi. E, diferentemente do
fundamentalismo islâmico, ninguém que conhecemos tentou forçar as pessoas a
praticarem o sufismo ( isso não iria funcionar) ou mataram “infiéis” por não
participarem dele.
Historicamente , os sufis insistiram que alguns indivíduos iluminados podem
interpretar o Alcorão, enquanto fundamentalistas insistiram em sua visão “abalizada”
não era de modo algum uma interpretação, mas a “própria essência do livro”. Contudo ,
a interpretação autoritária da religião muçulmana pode não estar baseada de modo
algum no Alcorão. Segundo Ernst “ o termo árabe islã [significando rendição] (...) era
de (...) menor importância nas teologias clássica baseadas no Alcorão; e denota as
mínimas forma s externas de submissão a deveres religiosos (...) O termo fundamental
da identidade religiosa não é islã, mas imã, ou fé (...) A fé é (...) mencionada centenas
de vezes [ no Alcorão] . Islã é mencionada apenas oito vezes.”
De fato Ernst asseverava que a ênfase no islã foi um presente de orientalistas europeus
e foi utilizada para definir a cultura muçulmana como atrasada em comparação ao
Ocidente pós-Iluminismo. Ernst acrescenta que , à luz dos horrores de sua atual forma
dominante, muitos do que hoje (serenamente) abraçam o sufismo no mundo islâmico se
recusam a acreditar que sua amorosa prática poética tenha qualquer coisa a ver com
religião muçulmana.
O status sagrado atribuído à vontade individual no sufismo também se reflete na
prática da medicina sufi. Nesse caso, o pedido de cura, bem como o diagnostico e o
tratamento , precisa se originar do paciente, deixando ao médico o papel de conselheiro
e facilitador.
Apesar de suas diferenças óbias , os sufis e os muçulmanos conservadores viveram em
relativa tolerância mutua ao longo da maior parte da história da religião. Surgiram
problemas sérios na pessoa de um estudioso muçulmano conservador chamado
Muhammad ibn Abd al-Wahhab, no final do século XVII, início do século XVIII. O
wahhabismo é o cerne dos mais virulentos e autoritários movimentos fundamentalistas
islâmicos de hoje. A eliminação do sufismo pelo islamismo chegou ao ápice durante o
governo do aiatolá Khomeini no Irã, após a revolução de 1978.
O conflito continua hoje. Em uma conferencia sobre extremismo islâmico no
departamento de Estado dos Estados Unidos em 1999 , Shaykh Muhammed Hisham
Kabbani destacou que os wahhabistas são “inteiramente contra o sufismo porque
pensam que podem ir diretamente a Deus sem a intercessão de qualquer santo”.

Ken Goffman e Dan Joy; Contracultua Através do Tempos. Ediouro. 2007


Cap. 6, págs 136 a 138

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