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POR DENTRO
As narrativas, sabemos, seja em forma de histórias inventadas ou de casos reais,
têm o poder de ordenar o caos primordial de emoções e sentimentos contraditórios
em que vivemos. Mais necessárias ainda são para as crianças, sobretudo aquelas
que, por sua natureza, diante da realidade mais mistérios e contradições detectam
e menos meios encontram para expressá-los.
É assim que cedo vemos Teresa incansável, sempre atrás de qualquer um mais
falante, pedindo histórias, outra história, mais uma...
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Já para brincar de convento, era necessário chamar Rodrigo, apenas um ano mais
velho, mas totalmente subjugado pela irmã. No “convento”, a madre superiora,
evidentemente, era Teresa.
Uma palavra:
“Eterno”... Essa era a palavra favorita de Teresa. “Para sempre, eterno” eram
palavras mágicas para ela, que ecoavam algum mistério de suas imagens
interiores.
Muitos anos mais tarde, María de San José, aquela companheira inseparável de
Teresa, descreveria os relatos que a amiga lhe fizera a respeito disso. Ela e seu
irmão Rodrigo se escondiam no eremitério e ali confabulavam. Longas conversas
sobre Deus, sobre a vida eterna, sobre os mártires ardiam nas tardes de Ávila. As
conversas os deixavam em tal estado de excitação que costumavam terminar
repetindo incansavelmente a expressão “para sempre!” Repetiam a idéia de
eternidade até a vertigem, como um mantra, como uma oração secreta...
Uma aventura:
Um dia, Teresa expôs claramente seu plano: “Rodrigo, vamos nos tornar mártires”.
Sofreriam. Teriam os olhos arrancados, os corpos retalhados a chicotadas, seriam
estripados, a pele carbonizada como um pergaminho negro! No entanto, suavizava
ela, seria por pouco tempo. Em breve estariam mortos e teriam a glória eterna!
Para sempre, Rodrigo, sempre!
Rodrigo relutava. Não gostava tanto assim do projeto... Teria saudades dos pais...
Mas Teresa tinha argumento para tudo. Dizia-lhe: “Rodrigo, não há aqui mesmo em
Ávila uma basílica dedicada aos três pequenos mártires de Ávila? E basílica! Não
uma igrejinha. E logo se punha a descrever como seria a basílica dos mártires
Teresa e Rodrigo!
Rodrigo contra-argumentava. Nem mesmo por uma catedral estava certo de querer
se meter em tal empreitada. Mas tanto Teresa argumentou que conseguiu
convencer o irmão. Iriam à ilha de Rhodes, recentemente conquistada pelos turcos.
Lá, confessariam a palavra de Cristo, seriam capturados, decapitados... e pronto,
teriam a vida eterna!
Muito simples: era só sair da Espanha, atravessar o sul da França, o norte da Itália,
a Eslovênia, a Croácia, a Bósnia, e a Albânia, para entrar na Grécia pelo norte,
cruzar o mar Egeu e o mar de Creta para chegar então a Rhodes... Rodrigo
perguntava: “Sem cavalos?”
“Iremos a pé”, dizia Teresa, “e seremos mendigos em nome de Deus. Não nos
negarão um pedaço de pão”. Rodrigo deu-se por vencido. Ao alvorecer, assim que
as portas de Ávila foram abertas, lá partiram os dois mártires rumo a Rhodes.
Bem, iniciaram a peregrinação pela rota de Salamanca – que fica, por acaso,
justamente na direção oposta à que deveriam tomar. Por ali, se um milagre
acontecesse, talvez chegassem à fronteira com Portugal, mas nem isso. Pouco
depois do início da peregrinação, foram surpreendidos pelo tio. Francisco Alvarez de
Cepeda ficou furioso, não quis saber de conversa, segurou a dupla pelo cangote e a
devolveu a casa entre impropérios.
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Para quem buscava a carreira do heroísmo, Rodrigo revelou-se um fracasso total,
negou sua participação e culpou a mulher: “Foi ela quem quis, papai! Foi Teresa!”
A Teresa coube encarar sozinha e com estoicismo o castigo: uma terrível
reprimenda temperada com uma memorável surra da mãe e do pai.
Maria de San José diz assim: "Era esta santa de estatura mediana, mais para alta
do que para baixa. Na mocidade, teve fama de ser muito formosa e até seu último
dia ainda era. Tinha um rosto nada comum, na verdade extraordinário, nem
redondo nem comprido; sua testa era grande e também muito formosa. As
sobrancelhas eram de cor loura escura, largas e algo arqueadas. Os olhos, vivos,
negros e redondos, não muito grandes, mas bem postos. O nariz era redondo e
subia reto até os canais lacrimais, diminuindo até se igualar com as sobrancelhas,
formando um conjunto muito agradável de se ver. Era mais cheia do que magra, e
em tudo bem proporcionada. Tinha mãos muito lindas, embora pequenas. No rosto,
do lado esquerdo, tinha três sinais. O maior abaixo da boca, outro em a boca e o
nariz e o último no nariz, mais para baixo que para cima. Em tudo era perfeita”.
E, ousado (para um padre da época), vai adiante: “Era uma dessas belezas
morenas sempre acompanhadas de majestade; majestade, porém, encoberta com
tanto encanto que era impossível vê-la sem sentir por ela uma atração irresistível”.
E Maria de San José completa: “Sua muito grande beleza e os cuidados que tomava
com sua pessoa, a graça delicada de sua conversa, a suavidade de seu
comportamento contribuíam para embelezá-la ainda mais, de tal modo que o
profano e o santo, o mundano e o asceta, dos mais velhos aos mais jovens, todos
se sentiam prisioneiros, cativados por ela. Criança ainda e logo mocinha, ela foi,
para todos os que dela se aproximaram, o que o ferro é para o imã”.
O LUGAR - ÁVILA
Mudar-se de Toledo para Ávila significava uma mudança radical. Toledo, enorme
para a época, com seus 90 mil habitantes, era um importante centro comercial e
cultural. Por sua geografia e pela dinâmica da sociedade local, a cidade estava
sempre em movimento. Junto com as mercadorias, por ali circulavam livros,
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representações teatrais, filósofos, músicos, doutores, místicos, astrônomos,
viajantes...
Nada podia ser mais diferente de Toledo que a isolada e pequena Ávila, cidade-
fortaleza que se ergue diante da serra de Guadarrama, no alto do planalto de
Castela. A 1.127 metros de altitude, construída no século IX em meio a paredões
de rochas escarpadas, a cidade mantinha seus três mil habitantes protegidos por
uma impressionante muralha de granito rosa, sobre a qual se assentavam 88 torres
e 2.500 ameias.