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ATTAC, 16 Janeiro 2010

Colóquio: Há mais vida para além do PIB

PIB, como todos devem saber, é o produto interno bruto. Para o comum dos mortais que não fazem
contas macro económicas, trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de emprego (PIB
em alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa). Para o governo, é a diferença entre ganhar uma
eleição e perdê-la. Para os jornalistas, é uma óptima oportunidade para darem a impressão de
entenderem do que se trata. Para os que se preocupam com a destruição do meio
ambiente, é uma causa de desespero. Para o economista que assina o presente artigo, é uma
oportunidade para desancar o que é uma contabilidade clamorosamente deformada.
(Ladislau Dowbor – Estamos fazendo a conta errada)

1. Felicito a ATTAC por ter tomado esta iniciativa de procurar


abrir um debate público, no nosso País, sobre uma temática
que tem um largo alcance sócio-político, como procurarei
ilustrar na minha intervenção. De facto, há questões que,
embora tendo grande relevância, parece passarem
despercebidas aos líderes políticos e aos que criam opinião
pública, mais interessados nos desafios do curto prazo do que
em perspectivar e medir um desenvolvimento sustentável. E,
porque assim sucede, é particularmente meritório o papel das
organizações da sociedade civil em chamar a atenção para
estas temáticas.
2. Desenvolverei esta reflexão em 3 tópicos:
Uma crítica interna ao conceito do PIB e indicadores
derivados.
O conceito de desenvolvimento humano em questão.
Algumas pistas para a construção de novos indicadores.

3. A crítica interna ao conceito do PIB e indicadores dele


derivados
Não é recente o debate académico acerca do PIB como
conceito de avaliação do desenvolvimento. Lembro-me que,
em 1970, quando iniciei actividades docentes no ISEG com
uma nova Cadeira designada por Planeamento Social,
comecei o programa pelo conceito de desenvolvimento e
crítica aos indicadores correntes que pretendem medi-lo,
baseada em literatura de meados dos anos 60. Por volta de
71-72, a OCDE promoveu um projecto comum entre os países
membros com vista à definição do que foi designado por
sistema integrado de indicadores sociais e coube-me
coordenar esse projecto em representação do INE. Também,
no âmbito da CEE, na década de oitenta, sucederam-se os
grupos de peritos com a tarefa de definir indicadores de

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desenvolvimento humano, pois já então era consensual o
entendimento de que o PIB como indicador do crescimento
económico não satisfazia e muito menos cumpria o objectivo
de avaliar o nível de desenvolvimento. Por outro lado, e como
é sabido, tem havido a nível do PNUD, desde 1990, um
esforço apreciável para enriquecer o sistema de informação
mundial sobre o nível de desenvolvimento com base no
conceito de desenvolvimento humano (posteriormente
alargado à noção de sustentabilidade) e a elaboração de
indicadores correspondentes que compreendem dimensões
básicas da qualidade de vida humana: a esperança de vida, a
saúde, a educação, a liberdade e participação cívica, etc.
Está, pois, generalizada, entre académicos e técnicos das
organizações internacionais, a ideia de que, como diz Ladislau
Dowbor “estamos fazendo a conta errada” quando tomamos o
PIB como indicador de desenvolvimento ou mesmo como
medida do mero crescimento económico.
As críticas ao PIB têm múltiplos fundamentos, que passo a
enumerar sucintamente:
Não existe qualquer evidência empírica de que ao
crescimento do produto interno de um País ou Região
corresponda maior bem-estar colectivo e qualidade de
vida das respectivas populações, nem melhor
salvaguarda da sustentabilidade social e ambiental, nem
qualidade do desenvolvimento humano, finalidades
estas que deveriam ser o verdadeiro objecto da medida
do desempenho de qualquer economia.
No cálculo do PIB, só são contabilizadas as transacções
mercantis, o que implica, desde logo, que se trata de um
indicador altamente influenciado pela organização da
sociedade e pelo peso relativo que nela ocupam o
sector mercantil e o sector sem fim lucrativo. É a velha
anedota de que quando o viúvo casa com a cozinheira
(a quem deixa, por isso, de pagar ordenado) está a
diminuir o produto interno bruto. Ou, mais amplamente,
quando certas actividades de educação, de saúde ou de
prestação de cuidados são assumidas pelas famílias ou
pelas instituições de solidariedade social e o
voluntariado, por conseguinte com menores custos do
que se fossem comercializadas, é, caeteris paribus,
menor o PIB.
O PIB é, por outro lado, um indicador cego quanto à
origem do valor acrescentado, adicionando,

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indiferentemente, o produto da produção e venda de
armas ou da produção leite, o produto de actividades
lícitas ou ilícitas. Tem sido lembrado por alguns autores
que o PIB da Galiza cresceu no ano em que foi
necessário despender verbas vultuosas na limpeza do
mar depois da ocorrência do desastre ecológico
provocado por um petroleiro.
O PIB enferma ainda de uma outra ambiguidade básica,
pois contabiliza, positivamente, os resultados de
actividades extractivas de recursos não renováveis,
situação que, em rigor, constitui destruição de capital
(extracção de petróleo ou o corte de árvores) e não
aumento de riqueza.
Quando se pretende tomar o PIB como indicador
sintético do desenvolvimento, acresce, às limitações
atrás referidas, o facto de que tal indicador nada nos diz
(ou, inclusive, emite uma mensagem errada, como
sucede com os custos das medidas para atenuar os
efeitos da poluição, que fazem aumentar o PIB), acerca
da qualidade do desenvolvimento e da repartição dos
custos e dos benefícios por toda a sociedade. Não falta
evidência empírica para demonstrar que não existe uma
relação directa entre crescimento económico e
repartição mais equitativa do rendimento ou redução da
pobreza. Pelo contrário, uma elevada taxa de
crescimento do PIB pode ser conseguida à custa do
agravamento da pobreza ou da acentuação das
desigualdades.
Em síntese: por todas estas razões, há que afirmar com
clareza, que o PIB não serve como indicador do
desempenho económico e do nível de desenvolvimento
alcançado.

4. O conceito de desenvolvimento em causa e a necessidade de


novos indicadores de desempenho da economia

O debate em torno da bondade do PIB como medida de


desempenho económico conduz necessariamente à crítica do
próprio conceito de desenvolvimento e coloca a questão mais
abrangente de saber qual é a finalidade da economia. Ou seja
há que questionar o objecto que queremos ou precisamos
medir para poder apreciar o desempenho económico?

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Celso Furtado, na esteira de outros economistas de renome,
como Dudley Seers, Richard Joly, Celso Furtado, etc., chama
a atenção para uma indispensável deslocação da ciência
económica dos meios para os fins: “Impõe-se formular a
política do desenvolvimento com base numa explicitação dos
fins substantivos que almejamos alcançar, e não com base na
lógica dos meios, imposta pelo processo da acumulação
comandado pelas empresas transnacionais.” (Celso Furtado)
Comentando esta afirmação, Ladislau Dowbor afirma: “Em
termos metodológicos este ponto é central. Ultimamente
temos olhado para a economia apenas do ponto de vista do
ritmo de crescimento, esquecendo-nos de pensar o que está
crescendo e para quem.
Crescer não é um fim em si mesmo, pode mesmo ser
degenerescência quando se trata de organismos vivos, por
isso há que questionar o debate político centrado no
crescimento do PIB e deslocá-lo para a avaliação dos
resultados alcançados em relação às verdadeiras finalidades
da economia.
O conceito de desenvolvimento não é unívoco e merece, por
isso, um amplo debate público e um consenso político.
Que desenvolvimento desejamos:
- O das grandes construções e arranha-céus urbanos que
concentram em poucas cidades a maior parte da população
ou uma urbanização disseminada pelo território, com redes de
comunicação e descentralização de meios de forma a
proporcionar fixação e emprego local na produção de bens e
serviços com utilidade para as populações abrangidas?
- A expansão das actividades de natureza especulativa
orientadas para padrões de elevado consumo, excluentes no
acesso a esses bens de boa parte da população ou prioridade
das actividades orientadas para a satisfação das
necessidades básicas de todos?
- Elevadas produtividades conseguidas à custa da redução do
emprego (com despedimentos forçados, inclusive) e aumento
da intensidade de esforço (em duração do tempo de trabalho,
horários irregulares e imprevisíveis) ou um trabalho melhor
repartido e possibilitando maior conciliação com a vida
pessoal, familiar e cívica?
- Um crescimento económico conseguido com deterioração do
meio ambiente e destruição de recursos naturais não
renováveis ou um desenvolvimento baseado na valorização

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desses recursos, incluindo neles o conhecimento e a
qualificação dos recursos humanos?
- Um crescimento que potencie a concentração da riqueza nas
mãos de um pequeno grupo e amplie a desigualdade ou um
desenvolvimento que promova a erradicação da pobreza, a
correcção das desigualdades e a coesão social?
- Um crescimento comandado pelas ETN e a lógica do
investimento externo ou um desenvolvimento protagonizado
por empresas com responsabilidade social assumida e
comprometidas com a adopção de modelos de gestão social?

Estes são alguns exemplos do tipo de questões que, a meu


ver, mereceriam ser debatidas a propósito de um conceito de
desenvolvimento, de modo a que este venha a servir de base
à construção de novos indicadores de desempenho da
economia e das políticas públicas.
Trata-se de uma tarefa que constitui um primeiro passo para
relegar o PIB para as prateleiras da história.

5. Algumas pistas para a construção de novos indicadores

Não quero concluir esta intervenção sem uma referência,


necessariamente sumária, acerca dos esforços que vêm
sendo feitos no sentido de responder ao apelo “Há mais vida
além do PIB”.
Alguns alvitram que ao PIB deve suceder a FIB, felicidade
interna bruta. Existe pelo menos um país (o Botão) que
operacionalizou este conceito e o adopta oficialmente.
O PNUD construiu um indicador de desenvolvimento humano
que apresenta a vantagem de recorrer a dados disponíveis
nas estatísticas mundiais e por isso permite comparações
entre países. É manifestamente um avanço conceptual e
metodológico que deve ser acarinhado e seguido com
interesse.
Em outros casos, as atenções voltam-se para os indicadores
de desenvolvimento local, pois é, a este nível, que mais se faz
sentir a qualidade do desenvolvimento: vida mais longa e
saudável, educação, habitação e qualidade do ar, da água ou
do ambiente, segurança física, disponibilidade e acesso a
bens culturais, acessibilidade e qualidade dos transportes,
participação e cidadania. É também neste plano que maior
relevância tem o conhecimento do nível de atenção dedicada
aos grupos mais vulneráveis da população: as crianças; os

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idosos; os jovens; os mais carenciados. No fundo, o que se
procura indagar com os indicadores do desenvolvimento local
é se a população vive melhor, se tem acesso efectivo a bens
essenciais, se dispõe de mais tempo para lazer, valorização
pessoal, cuidado da família, se está menos sujeita ao stress e
à insegurança no emprego, se tem habitação de qualidade e
lhe é agradável viver no seu meio ambiente, se dispõe de
serviços eficientes e de qualidade para cuidar da saúde,
educar os filhos, acolher doentes e idosos com necessidade
de cuidados especiais, se as crianças encontram na
comunidade recursos de qualidade para se desenvolverem e
progredirem no conhecimento e qualificação que as prepare
para o futuro, se os idosos têm ao seu dispor recursos
adequados., etc.
Acresce que os indicadores de desenvolvimento local
permitem mais facilmente que as populações tomem
consciência da situação da respectiva comunidade e se
empenhem colectivamente em melhorá-la, acompanhando
mais directamente os resultados que vão sendo alcançados.
No plano macro económico, há igualmente que refazer os
conceitos e as medidas em uso nos sistemas estatísticos
nacionais e comunitários, por forma a que a conta do PIB não
seja tão errada como presentemente sucede. Importa também
dar maior atenção à medida do que verdadeiramente
interessa, nomeadamente no que respeita ao nível de
satisfação de necessidades básicas, ao emprego, ás
desigualdades na repartição do rendimento, à
sustentabilidade ambiental e à erradicação da pobreza.
Não tenho qualquer pretensão de trazer a este debate
receitas. Confesso que o desejo que me moveu a tomar parte
nesta iniciativa da ATTAC foi o de contribuir para agitar ideias
que possam concorrer para destronar o PIB como indicador
único do desempenho económico e pôr em evidência como é
ridículo o debate político que sempre se estabelece entre
governo e oposições, à direita ou à esquerda, acerca de umas
décimas para mais ou para menos, sempre que as fontes
estatísticas publicam novos dados.
Estou aqui porque concordo, inteiramente, com os promotores
desta iniciativa quando afirmam “Há mais vida além do PIB”.
De facto, é da qualidade da vida, a nossa e a dos nossos
concidadãos e concidadãs, a das gerações presentes e a das
vindouras que devemos ocupar-nos.
Manuela Silva

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