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Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

Centro de Educação e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Educação

Criatividade e ensino:
uma abordagem histórico-cultural

Marcos Freisleben Zorzal

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação, do Centro
de Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Carlos, como requisito
para a obtenção do título de mestre em
Educação.
Área: Fundamentos da Educação.
Orientação: Profª Drª Itacy Salgado
Basso.
São Carlos, 16 de Dezembro de 1999.

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Resumo

Este trabalho surgiu da constatação, durante a realização de cursos sobre o


tema criatividade oferecidos a educadores, da existência mais ou menos comum de
determinadas representações, no ideário de alguns professores, sobre o que seja
criatividade, o que a caracteriza e a torna possível, entre os seres humanos. As
concepções manifestas geralmente se remetiam à criatividade enquanto uma faculdade
muito relativa, presente em alguns indivíduos em especial, detentores de características
e capacidades sui generis para a inventividade. Por outro lado, tais capacidades eram
atribuídas a determinações, associadas ou não, entre aspectos sócio-ambientais (história
de vida, fatores culturais, relacionais e do meio ambiente), aspectos hereditá rios (fatores
genéticos predisponentes) e mesmo supranaturais (manifestação de graça ou inspiração
divinas).
Considerando-se de forma mais detida tais manifestações, notamos ainda
que as mesmas em geral se baseavam em aspectos dos processos criativos como as
características do indivíduo que nos oferece um produto considerado criativo, as
características do produto oferecido ou, ainda, as condições que envolvem o processo de
criação, critérios estes que têm, por sua vez, orientado e caracterizado também os
principais estudos e conceitos existentes sobre este assunto. Entretanto, julgamos que
tanto as concepções em termos do senso comum como também as produções científicas
mais difundidas sobre o tema, na medida em que centram suas atenções sobre tais
caracteres historicamente circunscritos (produtor, produto ou processo de produção),
caracterizam-se enquanto essencialmente parciais em suas considerações, não logrando
contribuir para a efetiva elucidação da questão fundamental que se nos apresenta ao
investigar mos este tema, ou seja, o que é criatividade? Para respondermos a esta
pergunta apresenta-se como necessário que, além de nos debruçarmos sobre quem
produz, o que produz e como produz, nos lancemos também a inquirir “por que se
produz”, única questão, segundo nossas investigações, capaz de conduzir-nos a uma
compreensão historicamente concreta sobre o que seja, de fato, a criatividade para o
gênero humano.
O presente estudo não só buscou contribuir, sob a forma de uma releitura
teórico-científica acerca do tema, à elucidação desta questão, como também defrontou-se
com uma constatação fundamental: o processo de apropriação, pelas novas gerações, das
objetivações humanas (produções genéricas humanas) é imprescindível à atividade
transformadora humana que designamos por criatividade. Logo, torna-se necessário,
também, reconsiderarmos o papel crucial da educação sistematizada, enquanto
promovedora por excelência da socialização dos saberes humanos, para o
desenvolvimento individual e, por conseguinte, para o próprio processo de consolidação
do gênero humano, gênero que é, segundo nossas considerações, ontologicamente criativo,
fato este que supera toda e qualquer tentativa de analisar-se a criatividade a-
historicamente , restringindo-a a determinadas produções exclusivamente individuais,
consideradas tão -somente em termos particulares.

Sumário

Introdução........................................................................................................................ 1
Capítulo I: Senso comum, alienação e vida cotidiana......................................................12
1.Senso comum e apreensão prático-sensível da realidade ....................................................16
2. Consciência, trabalho e alienação....................................................................................22
3. Vida cotidiana ...............................................................................................................34
3.1. Vida cotidiana e gênero humano ..................................................................................34
3.2. Vida cotidiana e preconceitos ......................................................................................45
Capítulo II: Criatividade: aspectos conceituais...............................................................51
1. Conceitos e estudos tradicionais sobre criatividade ..........................................................51
2. Sobre a ontologia humano-genérica da atividade criativa ..................................................65
3. Processos de criação e desenvolvimento humano .............................................................69
Capítulo III: Criatividade e Ensino .................................................................................78
1. O papel do ensino formal no processo de apropriação de conhecimentos humano-
genéricos ..........................................................................................................................80
2. Pensamento cotidiano e não-cotidiano e a especificidade do ensino formal........................89
3. Indivíduos para-si ou cidadãos potencialmente transformadores de realidades e
contribuintes à consolidação do gênero humano ..................................................................95
4. Relações entre Ensino e Desenvolvimento: as contribuições de L. S. Vigotski e a
psicologia Histórico-Cultural.............................................................................................99
Considerações Finais .....................................................................................................120
Bibliografia....................................................................................................................128
“Todo inventor, por genial que seja, é sempre produto de sua época e de seu
ambiente. Sua obra criadora partirá dos níveis alcançados antes dele e se apoiará
nas possibilidades também existentes fora dele. Por isso, observamos uma estrita
seqüência no desenvolvimento histórico da ciência e da técnica. Nenhum
descobrimento ou invenção científica aparece antes que se criem as condições
materiais e psicológicas necessárias para seu surgimento. A obra criadora constitui
um processo histórico contínuo, em que cada nova forma se apóia nas precedentes.”

L. S. Vigotski, La imaginación y el arte en la infancia.


Introdução

Este estudo deriva de algumas indagações decorrentes de


atividades desenvolvidas em estágio curricular em psicologia da educação,
realizado no ano de 1994, durante minha formação pelo curso de Psicologia
da UNESP, Campus de Bauru.
No decorrer daquele ano participamos da realização de cursos
de atualização para professores e diretores da rede municipal e estadual de
ensino daquela cidade. Dentre os temas então abordados, o intitulado
“Criatividade Humana” apresentou-se como particularmente interessante
às nossas atividades de formação. Implementados junto a um total de
sessenta e seis professores (à época, pertencentes ao antigo primeiro grau),
ao final dos trabalhos chamaram nossa atenção algumas características
comuns às manifestações de parte dos mesmos, relacionadas a dificuldades
para a conceituação do que fosse criatividade.
Uma característica comum à maioria das tentativas de
conceituação da faculdade criativa foi a de se considerar a criatividade a
partir de como o processo de criação se apresenta, imediatamente, à nossa
percepção (segundo as circunstâncias de produção, as características do
produto ou as características do indivíduo produtor). Exemplos destas
respostas foram frases como “...criatividade é quando vem a inspiração e a
pessoa cria, faz uma arte, uma pintura, uma poesia...” (com ênfase nas
condições da produção), ou “...quando fazemos um desenho, representamos
algo, estamos fazendo uso da criatividade”, “...se temos uma necessidade que
faz surgir algo que ainda não existe, isso é criatividade” ou “...se uma coisa é
diferente de tudo o que já existe, aí existe criatividade” (com ênfase nas
características do produto); “...criativa é aquela pessoa que é mais sensível e
deixa fluir alguma coisa nova” (ênfase nas características do sujeito).

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De modo complementar, quando requisitados a explicar o que
fosse a criatividade e sua natureza (suas origens, o que a determina ou a
torna possível), parte considerável dos professores se lançava a explicações
baseadas em conceitos em geral ambientalistas (como resultado de
interações e estimulações advindas do meio, a exemplo das condições sócio-
econômicas, relacionais e culturais presentes ao desenvolvimento de cada
indivíduo), inatistas (criatividade relacionada a características genéticas)
ou, ainda, metafísicos (tomando-a como dom, dádiva ou graça supranatural).
Manifestações de mesma natureza puderam ser notadas, ainda,
em oito contatos que mantivemos com professores de uma escola estadual da
cidade de São Carlos, realizadas no decorrer deste trabalho, com o propósito
de levantarmos suas representações a respeito do tema. Ademais, embora a
maioria das opiniões admitisse um certo potencial criativo dado a todos os
seres humanos, as pessoas realmente criativas seriam indivíduos melhor
dotados de capacidades determinadas por relações cumulativas ou
exclusivas entre aspectos ambientais e inatos (sem menção a determinações
supranaturais). Enfim, as definições de criatividade estiveram sempre
relacionadas ao oferecimento de produtos inovadores ou originais, em geral
atribuídos a indivíduos que se destacam dos demais ou são, simplesmente,
considerados pouco comuns.
Partindo da premissa de ser a faculdade criativa uma
característica inerente e ineliminável ao gênero humano, compreendemos
por criatividade a capacidade humana para, a partir do confronto e
conjugação de conhecimentos adquiridos, elaborar e reelaborar sua própria
realidade (objetiva e subjetiva, inextricavelmente). Esta concepção de
criatividade deriva, portanto, da concepção de trabalho humano que
preconiza o mesmo enquanto atividade transformadora vital humana, e o
quê fundamenta toda a história do próprio desenvolvimento humano.
Em sendo a criatividade, portanto, uma faculdade
ontologicamente inerente ao gênero humano e, como veremos, fundamental
ao seu constante processo de consolidação, devemos supor que tal atributo

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encontre-se de fato presente em todos os indivíduos do gênero, conquanto
apresente-se sob formas diversas.
Essa mesma premissa é, entretanto, contrariada na medida em
que desconheçamos ou desconsideramos a amplitude do caráter criativo que
fundamenta e caracteriza a atividade propriamente humana, sobretudo
devido a juízos de valor quanto às características dos produtos que nos são
oferecidos pelos indivíduos humanos em geral. Deste modo, a natureza
eminentemente criativa do gênero humano é subitamente confrontada ou
suprimida pelo valor socialmente atribuído, contextualmente, a criações
particularizadas, específicas. Seria a criatividade dada somente a alguns
indivíduos determinados, independentemente de quais sejam estas
determinações — se biológicas e hereditárias, se social ou ambientalmente
adquiridas, ou ainda por determinações sobrenaturais? Seria um Mozart,
um Picasso ou um Eintein, enquanto exemplos sui generis do potencial
humano para criar, também protótipos do que seja a atividade criativa?
A própria contradição, manifestamente presente às falas dos
professores, entre um dado potencial humano para a criatividade, e uma
certa condição restritiva para sua manifestação concreta entre os indivíduos,
remeteu-nos a considerações sobre como a questão da criatividade vem
sendo tratada, tanto em termos do senso comum como em termos dos
principais estudos e conceitos existentes. Entendemos que este tratamento
tem como principal característica a parcialidade, que se traduz em uma
compreensão da atividade criativa baseada eminentemente em seus
elementos empíricos e fenomênicos. Esta parcialidade, embora não negue a
criatividade enquanto potencialidade, tende a restringir a amplitude da
capacidade criativa a produções determinadas e, logo, a indivíduos
particulares, supostamente também determinados. Entretanto, como
sustentamos, essa compreensão restritiva do potencial criativo a que o senso
comum e, como veremos, também os estudos mais célebres sobre o assunto,
mantêm-se vinculados, não corresponde ao amplo significado e concretas
implicações do potencial humano para criar, faculdade essa que, segundo

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entendemos, transcende muitíssimo os estreitos limites do âmbito de
individualidades particularizadas, assim como de produções consideradas,
contextualmente, sui generis.
Por conseguinte, as considerações manifestas pelos
participantes conduziram-nos, também, a questionar a procedência de se
buscar conceituar a criatividade humana a partir, em geral, dos elementos
imediatamente presentes ao fenômeno criativo, ou seja, tomando-se por
referência as características do indivíduo que cria (quem nos oferece algo
considerado criativo), os processos envolvidos no ato criativo (como um
indivíduo chega a oferecer determinadas produções consideradas criativas)
ou, ainda, as características do produto oferecido. Cremos, enfim, que as
próprias concepções de criatividade mais difundidas e em geral aceitas, são
histórico-culturalmente determinadas. Logo, são antes de mais nada o fruto
de crenças, valores e interesses contextualmente definidos e, por este motivo
não definitivos e portanto, passíveis de serem historicamente
reconsiderados. Mas não nos empenhamos em uma tal tarefa por mero
capricho ou proselitismo. Trata-se de, em meio às opiniões existentes,
julgarmos imperativo manifestarmos também a nossa, no propósito maior de
nos atermos à realidade cientificamente concreta dos fenômenos humanos
que nos lançamos a investigar. Neste processo, deparâmo-nos, pois, com
questões graves sobre como compreendemos e conceituamos determinados
processos. É suficiente que os processos criativos sejam investigados tão-
somente a partir de seu valor utilidade em determinado contexto de
produção? Consideramos que os aspectos funcionais e os produtos
relacionados ao fenômeno criativo, per se, não possibilitam uma adequada
apreensão, em toda a sua extensão e implicações possíveis, do que venha a
ser a criatividade humana. No entanto, tais elementos (componentes, mas
transitórios e parciais) têm subsidiado, sob a forma de ultrageneralizações, a
compreensão da faculdade criativa como um todo, tanto em termos leigos
como também conceituais.
Partindo, pois, da premissa que apresentamos, parece-nos

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fundamental que além de quem produz, como produz e o quê produz, nos
lancemos também à questão preliminar e necessária “o que é criatividade” e,
por conseguinte, por que a criatividade se tornou um atributo tão próprio ao
gênero humano e quais as reais implicações deste fato para o mesmo. Isto
equivale, portanto, a que levantamos a questão “por que se produz?”.
Por fim, ao nos pautarmos em uma compreensão apenas
fenomênica e particularizada da atividade criativa, tendemos a
preconceituá-la como também dada de modo particular a determinados
indivíduos em detrimento de outros, por sua vez considerados menos
criativos, ou mesmo, não-criativos.
Consideramos aqui que os conceitos e representações que
possuímos acerca da realidade orientam nossas percepções e ações
concretas, e, se assim é, devemos também supor que uma compreensão
parcial ou mesmo equivocada acerca de determinado fenômeno possa
também implicar em conseqüências por vezes indesejáveis ao mundo
humano e natural do qual fazemos parte. Ainda que em meio a uma enorme
diversidade de individualidades e condições de manifestação, parece-nos
consensual pretendermos que a igualdade de condições, direitos e deveres
tornem-se premissas básicas a um mundo mais justo e digno aos integrantes
do gênero humano (o que a humanidade tem, historicamente, aspirado para
si através das prerrogativas democráticas, por exemplo).
Mas estaríamos nós pretendendo suprimir, através de preceitos
idealistas, diferenças concretamente existentes entre indivíduos
historicamente singulares? Absolutamente, não. Partimos do pressuposto de
que, por ser a singularidade humana inalienável, esta inalienabilidade deva
sobrepujar quaisquer discriminações pretensamente justificáveis a partir da
própria realidade das diferenças individuais. Portanto, se por um lado
indivíduos particulares fazem uso singular de suas faculdades criativas, por
outro a criatividade é ontologicamente inerente a todos os indivíduos do
gênero humano, independentemente de suas singularidades. Do mesmo
modo, defendemos que o que seja historicamente contextual, e, portanto,

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parcial, não seja suficiente para determinar uma concepção mais ampla e
genérica da própria atividade criativa. Devemos, sim, buscar fundamentar
tal conceito na historicidade mais ampla e multideterminada que,
concretamente, fundamenta todos as processos e conhecimentos humanos.
O problema a ser aqui confrontado está diretamente
relacionado, portanto, a uma compreensão ainda restritiva da condição
ontologicamente criativa do gênero humano, o quê, a nosso ver, se apresenta
como uma questão de especial importância e interesse para nossas
comunidades e, sobremaneira, ao meio educacional. Isto porque uma tal
compreensão poderá implicar em discriminações infundadas em sala-de-
aula, bem como em toda a vida cotidiana de indivíduos que, esperamos,
compreendam que a existência da diferença não justifica a crença numa
suposta não-criatividade ou inferioridade naturalmente dada a indivíduos
ou grupos de indivíduos. A diversidade, ao contrário do que ocorre aos outros
animais, faz parte da riqueza de possibilidades que caracteriza,
diferentemente, o próprio gênero humano.
Ora, em se tratando do ensino formal e seus constituintes
diretos (educadores e alunos) esta preocupação é ainda mais relevante por
tratar-se do lugar onde, por excelência, as novas gerações são conduzidas a
se apropriarem dos principais conhecimentos legados por toda a
humanidade para sua própria sobrevivência, seja pela manutenção, seja
pela superação do que esta humanidade tenha logrado alcançar no decorrer
de toda a sua história. Estes conhecimentos serão tão determinantes para o
desenvolvimento dos indivíduos envolvidos quanto o serão os aspectos
comunicacionais e afetivos do processo. Em sendo o professor o principal
mediador deste processo, torna-se imprescindível que este saiba ao máximo
sobre as possíveis implicações de suas crenças e atitudes em sala-de-aula
sobre o desenvolvimento saudável 1 de seus alunos. Em outros termos, sobre

1 Embora não seja nosso propósito discutir as particularidades psicopedagógicas do


processo educativo, entendemos por saudável toda relação que tenha em vista a formação
de seres humanos íntegros, crítico-reflexivos, responsáveis, éticos, participativos e
potencialmente exploradores de novas possibilidades para si e suas comunidades.

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a imprescindibilidade de que venha a estabelecer uma relação crítico-
reflexiva não só com os conteúdos que ministra, mas com os próprios
princípios que norteiam sua ação. Este requisito é ainda mais justificável se
considerarmos, por fim, que os saberes com os quais o professor lida são,
essencialmente, científicos (historicamente sistematizados). Portanto,
embora esses saberes devam ter em conta a realidade cotidiana dos
indivíduos envolvidos no processo de aprendizagem, não podem ser
orientados pelo pensamento não sistematizado que ostensivamente flui da
imediaticidade sensível da mesma realidade cotidiana.
Se à primeira vista possa nos parecer, portanto, pouco
relevante que um tal tema deva fazer parte dos domínios epistemológicos de
educadores — sobretudo quando os saberes que em geral se espera que os
professores dominem, limitem-se tão-somente ao âmbito dos conteúdos de
suas disciplinas — convém, para os nossos propósitos, não nos contentar
com uma compreensão também imediata e superficial sobre qual seja o
âmbito real das competências destes educadores (ou seja, o papel do
professor em relação ao papel do ensino). Por um lado porque, como
procuramos demonstrar, a atividade criativa humana embasa e permeia o
próprio sentido da apropriação de conhecimentos pelos indivíduos humanos,
visando-se elaborá-los e reelaborá-los cotidianamente, conforme as
necessidades e exigências de nossas sociedades e da natureza
essencialmente especulativa e transformadora do gênero humano, aqui
defendida. Por outro porque, ao tomar parte da viabilização de
conhecimentos historicamente produzidos e sistematizados, os educadores
concorrem, concretamente, para que outros seres humanos sejam inseridos
na própria genericidade humana, apropriando-se de tais conhecimentos e
participando, através de suas contribuições singulares, da superação das
dificuldades e necessidades existentes, que desafiam incessantemente o
processo de consolidação do gênero humano, que deverá visar, antes de tudo,
a integridade e desenvolvimento saudável de todo ser humano.

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Entretanto, como percebemos, o vínculo existente entre
criatividade, ensino e consolidação do gênero humano não é imediatamente
perceptível. Assim, torna-se comum que o tema criatividade humana suscite
interesses em geral relacionados a busca de estratégias para a ampliação do
chamado potencial criativo, sem que se considere, de modo adequado, o que
a criatividade represente, de fato, em termos do desenvolvimento humano
particular e genérico. Isto é ilustrado pela observação de que, embora a
maioria dos professores participantes das atividades citadas manifestasse
haver procurado os cursos motivada por uma temática que julgava, ainda
que intuitivamente, de grande importância para o processo educativo, esta
busca baseou-se, acima de tudo, numa relação pragmática para com os
elementos constitutivos da criatividade, em si considerados: ou seja, além da
atração por um tema intrigante e ainda obscuro, os professores foram
motivados, sobretudo, pela busca por técnicas que tornassem mais atrativas
e eficientes suas aulas e permitissem alcançar um melhor nível de
aproveitamento por parte de seus alunos.
Evidentemente, não há, a princípio, nenhuma objeção quanto a
objetivos como estes, que em si mesmos guardam importâncias. A questão é
de outra natureza e diz respeito aos preceitos que orientam o lidar com um
atributo que não pode ser reduzido simplesmente a um determinado
quantum de potencial criativo, ou que se restrinja ao que possa ser
estimulado ou ampliado mediante certas estratégias. O risco de um tal
pensamento está na crença que o orienta, de que a criatividade seja algo que
possa ser abstraído do indivíduo humano, podendo ou não vir a se
manifestar. A esta concepção objetamos que o gênero humano é, por
definição, criativo. Ou seja, só há uma natureza que chamamos humana
porque essa natureza é, em essência, criativa.
A constatação, portanto, da parcialidade histórica com que o
tema vem sendo tradicionalmente tratado pelas principais áreas de estudos
e entendido em termos do senso comum, e as possíveis conseqüências desta
visão parcial e imediata sobre o processo educativo, moveu-nos a tecer

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considerações mais profundas, a partir de elementos da psicologia do
desenvolvimento, da filosofia e da sociologia, sobre a pertinência do domínio
epistemológico, por parte de educadores, sobre o tema criatividade humana,
no âmbito do ensino formal. Este estudo tem, portanto, por objetivo, propor
uma leitura que contribua para a superação de compreensões parcializadas
acerca da faculdade criativa humana, dirigida sobretudo àqueles envolvidos
com o ensino formal. Partindo da premissa de ser a atividade criativa
ontologicamente inerente ao gênero humano, pretendemos demonstrar sua
inextricabilidade do próprio processo de desenvolvimento humano e, por
conseqüência, também do ensino, principal meio de apropriação dos
conhecimentos socialmente produzidos e sistematizados. Imbricados, estes
elementos apresentam-se, como veremos, enquanto essenciais ao processo de
consolidação do próprio gênero humano — essencialmente explorador de
novas possibilidades e potencialmente transformador de realidades.
Mediante tal objetivo, estruturamos esse trabalho em alguns
tópicos imprescindíveis aos nossos propósitos. No capítulo I, em que
tratamos do Senso comum, alienação e vida cotidiana, tecemos
considerações sobre a apreensão prático-sensível da realidade pela
consciência humana, principal fundamento e característica do pensamento
comum. Dito de outro modo, se dadas compreensões acerca da criatividade
fazem-se presentes ao ideário de alguns educadores, convém que procuremos
desvendar como nós, enquanto seres humanos, nos relacionamos com a
realidade que nos cerca, dela formando idéias e representações. Enfim, como
se dá nossa apreensão da realidade e quais suas principais características?
Quais as relações deste processo com a formação de nossas representações
sobre os fenômenos que nos envolvem? O que entender por senso comum?
Quais suas relações com o fenômeno humano da alienação? Pretendemos,
neste tópico, caracterizar o âmbito dos saberes imediatos e espontâneos
humanos (dimensão da vida cotidiana), para já anunciarmos o âmbito dos
saberes mediatos que lhe é complementar (dimensão da vida não-cotidiana).
Nos remetemos, ainda, à relação possível entre o pensamento comum,

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caracteristicamente presente à esfera da vida cotidiana, e os preconceitos,
aqui compreendidos enquanto juízos ultrageneralizados que não encontram
necessária fundamentação na realidade concreta, e que julgamos necessário
confrontar mediante a possibilidade de que esta categoria do pensamento
humano subsidie crenças infundadas, sobretudo no meio escolar.
No capítulo II, Aspectos conceituais da criatividade humana,
abordamos os principais conceitos e estudos tradicionais existentes sobre
criatividade. Como a criatividade tem sido compreendida e estudada ao
longo da história? Quais concepções de homem e de mundo orientam tais
compreensões e estudos? Sustentamos que, se por um lado estes estudos e
conceitos tornaram infundadas muitas das crenças equivocadas existentes
sobre criatividade, por outro, devido ao fato de pautarem-se numa
compreensão essencialmente a-histórica das atividades e atributos do
gênero e dos indivíduos humanos, estes estudos vêm contribuindo também
para que a criatividade seja tratada e compreendida em função tão-somente
das características particulares de indivíduos determinados. Em outros
termos, embora estes estudos representem a superação de inúmeros
aspectos presentes ao senso comum, mantêm-se eles próprios cristalizados
em considerações também parciais sobre o fenômeno criativo, sobretudo por
tratarem do tema e suas manifestações tendo por principal objetivo a
identificação de indivíduos denominados “criativos”, além das características
e condições das produções entendidas e difundidas como criativas. Estes
estudos, eminentemente pragmáticos, têm contribuído, ao nosso ver, para
uma compreensão também parcial dos processos criativos e, por decorrência,
mistificada acerca do tema. Neste capítulo anunciamos, por fim, nossa
concepção de humanidade enquanto gênero que se produz, se reproduz e se
supera historicamente através da transformação objetiva de sua realidade.
Expomos, aqui, de modo mais detido, os pressupostos que julgamos
necessários a uma compreensão que designamos ontológica sobre a
criatividade humana. Tratamos da questão da atividade transformadora
enquanto fundamento do trabalho e, por decorrência, do processo de

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objetivação e apropriação para a conformação de um gênero único à
natureza planetária, capaz de projetar e modificar realidades.
No capítulo III, Criatividade e ensino, tratamos da relação
intrínseca existente entre o atributo da criatividade, os processos criativos e
os processos de produção e apropriação de conhecimentos historicamente
sistematizados. Abordamos como a socialização de saberes, sobretudo pelo
ensino formal, e a formação de cidadãos potencialmente transformadores de
realidades e contribuintes à consolidação do gênero humano, estão
relacionados. Por outro lado, abordamos também as relações existentes
entre o âmbito dos conhecimentos cotidianos, caracteristicamente
espontâneos e irrefletidos, e o âmbito dos conhecimentos não-cotidianos, que
conformam os saberes historicamente sistematizados pelo gênero humano.
Destas considerações procuraremos traçar o papel do ensino formal
necessário às crescentes demandas de cidadanização e transformações pelas
quais reclamam nossas sociedades. Encerramos o capítulo com algumas
elucidações, proporcionadas pela escola histórico-cultural, que teve em L. S.
Vigotski seu principal expoente, acerca do papel fundamental do ensino
sistematizado sobre o próprio desenvolvimento humano.
Por fim, em nossas Considerações Finais retomamos o ponto de
partida de todo o nosso raciocínio, e estabelecemos o contraponto dialético
relacionado à transcendência da compreensão parcializada do tema que
procuramos confrontar e, dentro de certos limites, superar em nossas
reflexões. Além disso, dedicamo-nos à tomada de algumas questões finais,
que pelos limites deste trabalho não puderam ser adequadamente tratadas,
mas sobre as quais lançamos breves considerações, sobretudo devido às suas
relevâncias para o tema em questão e seus estudos futuros.

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Capítulo I
Senso comum, alienação e vida cotidiana

Como dissemos, entendemos que a faculdade criativa tem sido


considerada, amiúde, tão-somente a partir de seus constituintes imediatos.
Estes constituintes imediatos referem-se, sobretudo, ao indivíduo produtor,
às condições de produção e ao produto oferecido, elementos estes que
estiveram bastante presentes às manifestações dos professores com os quais
mantivemos contatos até presentemente.
Assim, quando estes professores foram requisitados a explicar o
que fosse a criatividade e sua natureza (suas origens, o que a determina ou a
torna possível ao ser humano), a maioria tendia a basear suas respostas em
conceitos em geral ambientalistas (como resultado de interações e
estimulações advindas do meio, a exemplo das condições sócio-econômicas,
relacionais e culturais presentes ao desenvolvimento dos indivíduos),
inatistas (criatividade relacionada a transmissões hereditárias), ou, ainda,
metafísicos (tomando-a como dom, dádiva ou graça supranatural).
Além disso, embora a maioria dos conceitos e definições
emitidos admitissem o potencial criativo como presente a todos os seres
humanos, o fenômeno considerado realmente criativo, seu processo e
resultados, eram, em geral, atribuídos a indivíduos atipicamente
determinados por relações cumulativas ou excludentes entre os aspectos
inatos, ambientais ou supranaturais mencionados, o que, a nosso ver,
corresponde a compreensões ainda parciais sobre a faculdade criativa,
requerendo, portanto, considerações mais profundas.
Convém atentarmos, inicialmente, para o fato de que conceitos
ou representações parcializadoras ou dualistas com as quais nos deparamos
são mais comuns do que se possa supor. Mencionamos, nesse sentido, as
observações de ALENCAR a este respeito:

Observa-se, porém, através de uma análise do que as pessoas entendem


por criatividade, que predominam várias idéias preconcebidas a seu

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respeito, sobre as características do indivíduo altamente criativo e sobre
a forma como surge o produto criativo. Uma dessas idéias preconcebidas
é a crença de que a criatividade é um dom divino, que favorece apenas a
um grupo seleto de sujeitos, nada se podendo fazer no sentido de
incrementá-lo no indivíduo.2

ALENCAR enumera ainda uma série de outras idéias


consideradas “preconcebidas” acerca do tema, como a concepção de que a
criatividade seja “uma questão de tudo ou nada”, sendo a pessoa em geral
vista ou como criativa ou como não criativa, além de considerações que
aliam as produções da criatividade com lampejos de inspiração, que
ocorreria em determinados indivíduos sem uma razão explicável, como a
“um toque de mágica”. Por outro lado, seria também comum a idéia de que a
criatividade dependeria apenas de fatores intrapessoais, subestimando-se a
contribuição da sociedade como um todo para o processo criativo. 3
Além disso, as idéias mais comuns acerca do atributo da
criatividade destoam da maioria dos conhecimentos já disponíveis sobre o
assunto. Conforme salienta a autora, contribuições de inúmeras pesquisas
realizadas nas últimas décadas concorreram para que muitas destas crenças
não encontrassem respaldo científico:

Assim, a idéia de que o produto criativo seria fruto de um lampejo de


inspiração apenas, que ocorreria em determinados indivíduos
considerados privilegiados do ponto de vista intelectual, dotados de um
poder especial ou de um dom que o indivíduo traria desde o nascimento,
deu lugar à idéia de que todo ser humano apresentaria um certo grau de
habilidades criativas e que estas habilidades poderiam ser
desenvolvidas e aprimoradas através da prática e do treino. Para tal,
seriam necessárias tanto condições ambientais favoráveis, como o
domínio de técnicas adequadas.4

2 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas,
1986, p. 12.
3 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade, op. cit. p. 12.
4 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade, op. cit. p.13.

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Deste modo, condições como a preparação do indivíduo, sua
disciplina, dedicação, esforço consciente, trabalho prolongado e
conhecimento amplo de uma área do saber, passaram a ser considerados
pré-requisitos para a produção criativa, contrariamente à noção comum e
corrente de sua “inexplicável gratuidade”.
Não nos deteremos, aqui, nos aspectos que tomamos como
questionáveis às considerações desta e de outros autores sobre o assunto. A
isto reservamos espaço próprio no capítulo seguinte. Importa-nos, sim,
corroborar o fato que constamos em nossos contatos com professores, ou seja,
a presença relativamente comum de idéias ou representações que
consideramos parciais ou mesmo infundadas sobre o tema.
Antes de mais nada, percebemos que uma característica muito
presente a tais considerações ou representações refere-se a uma apreensão
imediata do fenômeno criativo, por sua vez intimamente relacionada a uma
apreensão prático-sensível da própria realidade. Já manifestamos
considerarmos insuficiente supor que a faculdade criativa possa ser
adequadamente compreendida tão-somente a partir de seus elementos
imediatamente observáveis. Isto porque se por um lado estes constituintes
nos permitem caracterizar ou descrever o fenômeno, não nos parecem
suficientes para explicar a faculdade enquanto tal ou, em outros termos,
compreender a natureza essencial da faculdade criativa. Assim é que, ao nos
depararmos com a questão “o que é criatividade”, resta-nos, caso nos
detenhamos em seus aspectos imediatamente constitutivos, recorrer a
abstrações para explicar-lhe tal natureza — o que resulta na busca por
explicações que têm, por característica principal, a unilateralidade baseada
em preceitos inatistas, ambientalistas ou mesmo metafísicos — o que, por
sua vez, concorre para crenças como a de que sua manifestação seja dada
com maior ou menor exclusividade a determinados indivíduos, inatamente
mais aptos, ambientalmente determinados ou divinamente agraciados. A
apreensão dessa natureza concreta, que segundo nossos pressupostos,
remonta a toda a história do desenvolvimento humano, implica numa

14
compreensão diversa acerca da faculdade criativa, quanto a todas as suas
propriedades e implicações possíveis. Implica, sobretudo, em que
transcendamos os aspectos apenas fenomênicos que já mencionamos.
É com o propósito de ultrapassarmos os limites do que temos
chamado de uma apreensão imediata e parcial da faculdade criativa, que
iniciamos nossas considerações a partir das próprias características do que
denominados uma leitura eminentemente prático-sensível acerca da
realidade e o senso comum que com base nela geralmente se conforma.
Julgamos que uma reflexão detida sobre a forma como nos relacionamos com
a realidade (a começar por suas manifestações mais imediatas) seja,
portanto, o primeiro passo na direção do que propomos, neste trabalho,
enquanto uma releitura das compreensões mais comuns acerca do tema. É
sobretudo com este objetivo que apresentamos o primeiro tópico deste
capítulo.
Entretanto, enquanto ser que se relaciona ativamente com os
aspectos imediatos e mediatos da realidade, mas sem necessariamente
apreender o núcleo essencial dessa realidade, pode o homem manter-se
indefinidamente, e sob graus variados, à margem da mesma, pois que dela
não se vê enquanto sujeito ativo. Isto significa, enfim, não se perceber
enquanto agente construtor da própria realidade, à ela submetendo-se
enquanto naturalmente dada. A este fenômeno estritamente humano,
chamamos alienação e a ela dedicamos o tópico seguinte. Por ser a
alienação, entretanto, fenômeno humano estreitamente vinculado à relação
que o homem mantém com a realidade — relação baseada na ação do
homem sobre os elementos naturais e humanos que o cercam —, deparâmo-
nos, aqui, com a necessidade de compreendermos de forma adequada a
atividade humana por excelência, a que chamamos trabalho. Isto porque,
como veremos, a própria gênese da consciência humana (logo, o que sustém
uma relação reflexiva com a realidade), assenta-se na atividade do trabalho.
Por fim, o terceiro tópico deste capítulo trata de uma outra
questão, não menos fundamental a todo o nosso raciocínio, referente à

15
compreensão da estrutura da vida cotidiana proposta por Agnes Heller.
Juntamente com os aspectos já citados, julgamos que este tema e suas
categorias nos proporcionem elementos importantes para analisarmos com a
devida profundidade as dimensões cotidianas e não-cotidianas do
pensamento humano que, complementarmente, conformam a própria
relação ativa do homem com suas objetivações (suas produções). Com base
em tais postulados, pretendemos explicitar as principais características que
envolvem as relações existentes entre o âmbito eminentemente
ultrageneralizador e pragmático da cotidianidade, e o âmbito das atividades
e conhecimentos refletidos e sistematizados de forma não-cotidiana. Faces
de uma mesma moeda, ou seja, a própria vida humana como um todo, essas
categorias, conjugadas às anteriores, constituem um quadro conceitual
muito elucidador e crítico do lugar e papel do homem frente aos produtos de
sua ação e, por conseguinte, de seu próprio processo de humanização ou,
como também nos referimos, processo de genericização. Portanto, remetêmo-
nos também a uma certa concepção de gênero humano, a qual
necessariamente abordamos no texto em questão.
Por fim, não poderíamos deixar de nos remeter aos riscos
indesejáveis a que o espontaneísmo e as ultrageneralizações do pensamento
cotidiano ostensivamente concorrem ou mesmo conduzem. Por este motivo,
reservamos o último item do terceiro tópico, sobre esta sociologia do
cotidiano, para algumas considerações sobre a forma de representações mais
comuns e importantes produzidas e veiculadas no âmbito da cotidianidade,
comumente designadas como preconceitos, cujas possíveis conseqüências
negativas, certamente, pretendemos salientar e confrontar no presente
trabalho.

1. Senso comum e apreensão prático-sensível da realidade

Como percebemos, há discrepâncias entre o que estudos


sistematizados sugerem como característico aos processos criativos e
determinadas crenças difundidas em termos do senso comum sobre o tema.

16
Sendo assim, enquanto dimensão primária da assimilação e difusão de
conhecimentos acerca da realidade, o senso comum e a apreensão prático-
sensível do mundo fenomênico que lhe é característica, apresentam-se como
de especial importância para nossas considerações.
Neste estudo, nosso conceito de senso comum coincide com o
manifestado por GRAMSCI, que em suas “Notas críticas sobre uma tentativa
de ‘Ensaio Popular’ de Sociologia”, reporta-se ao mesmo como...

...a “filosofia dos não filósofos ”, isto é, a concepção do mundo absorvida


acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos quais se
desenvolve a individualidade moral do homem médio. O senso comum
não é uma concepção única, idêntica no tempo e no espaço: é o “folclore ”
da filosofia e, como folclore, apresenta-se em inumeráveis formas; seu
traço fundamental e mais característico é o de ser uma concepção
(inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incoerente,
inconseqüente, adequada à posição social e cultural das multidões, das
quais ele é a filosofia.5

Entendemos que esta compreensão do senso comum —


enquanto condição cognitiva em que predominam “os elementos ‘realistas’,
materialistas, isto é, o produto imediato da sensação bruta”6 (itálicos nossos)
—, converge com o sentido que aqui empregamos para o mesmo. No mais,
concordamos também com GRAMSCI acerca de suas demais considerações
críticas sobre como o “senso comum” figura em outras concepções filosóficas,
ou seja, ou como base direta (subsídio) de determinadas filosofias, ou como
motivo de críticas por parte de outras. GRAMSCI não adota, ao que nos
parece, uma posição unilateral a respeito, considerando que, em ambos os
casos “o resultado foi a superação de um determinado senso comum pela
criação de um outro, mais adequado à concepção do mundo do grupo
dirigente”7 e, logo, que o elabora.
Por outro lado, não considera o senso comum como sinônimo de

5 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. 10. ed., Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 143.
6 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, op. cit., p. 144.

17
falso conhecimento. E esclarece:

Nossas afirmações anteriores não significam a inexistência de verdades


no senso comum. Significam que o senso comum é um conceito equívoco,
contraditório, multiforme, e que referir-se ao senso comum como prova
de verdade é um contra-senso. É possível dizer com exatidão que uma
verdade determinada tornou-se de senso comum, visando a indicar que
se difundiu além do círculo dos grupos intelectuais, mas, neste caso,
nada mais se faz do que uma constatação de caráter histórico e uma
afirmação de racionalidade histórica; neste sentido, no caso em que seja
empregado com sobriedade, o argumento tem o seu valor, precisamente
porque o senso comum é grosseiramente misoneísta e conservador, e
conseguir inserir nele uma nova verdade é prova de que tal verdade tem
uma grande força de expansividade e de evidência.8

Por fim, GRAMSCI encerra suas considerações passando a


referir-se à posição de Marx sobre assunto, que ao invés de discutir a
validade do conteúdo das crenças do senso comum, remeteu-se, antes, à
solidez formal do mesmo. Neste sentido, GRAMSCI, parece convergir com a
“afirmação implícita” de Marx sobre a “necessidade de novas crenças
populares, isto é, de um novo senso comum e, portanto, de uma nova cultura
e de uma nova filosofia, que se radiquem na consciência popular com a
mesma solidez e imperatividade das crenças tradicionais”.9
Quer nos parecer, portanto, que GRAMSCI não tome o senso
comum como condição ou âmbito dos conhecimentos humanos passível de
ser erradicado, com o que concordamos. Ele representa, antes de mais nada,
o âmbito dos conhecimentos humanos que instrumentaliza a própria vida
cotidiana, e que tem, por característica geral, uma apreensão imediata e
parcial dos fenômenos naturais e humanos, não refletindo, necessariamente,
a essência concreta da realidade a que corresponde.
KOSIK, cujas reflexões constantes em sua Dialética do
Concreto, contribuem, ao nosso ver, sobremaneira para uma mais profunda

7 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, op. cit., p. 145.


8 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, op. cit., p. 147.

18
abordagem do assunto, abre seu livro anunciando que:

A dialética trata da “coisa em si”10. Mas a “coisa em si” não se manifesta


imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário
fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo o
pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa,
com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de
conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas
qualidades da praxis humana.11

Segundo KOSIK, o homem não age, diante da realidade, como


um sujeito necessariamente cognoscente, isto é, uma mente pensante que
examina a realidade especulativamente, ou, por outros termos, de modo
reflexivo, crítico ou intencional. A atitude primária ou imediata do homem
em face da realidade, nos diz ele, é a de um ser que age “objetiva e
praticamente” ao lidar com a natureza e com os outros homens, “com vista à
consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado
conjunto de relações sociais.” 12
Para KOSIK, portanto, a realidade apresenta-se, para o
homem..

...como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível,


sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.
No trato prático-utilitário com as coisas — em que a realidade se revela
como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para
satisfazer a estas — o indivíduo “em situação ” cria suas próprias
representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de
noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.13 (itálicos

9 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, op. cit., p. 148.


10 Lembramos ao leitor que para Kosik a expressão “coisa em si” possui sentido
originalmente diverso do que empregamos neste trabalho. Enquanto para aquele autor a
expressão é empregada como sinônimo de essência ou condição concreta do fenômeno
considerado, para nós as expressões “em si ” ou “em -si”, correspondem à apreensão imediata
de um fenômeno (sua aparência), o que não corresponde, portanto, necessariamente à sua
condição real.
11 KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, 2. ed. (6ª reimpressão), Trad.: Célia Neves e
Alderico Toríbio, São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 13.
12 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 13.
13 KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 13.

19
nossos)

Contudo, assevera o filósofo, “‘a existência real’ e as formas


fenomênicas da realidade — que se reproduzem imediatamente na mente
daqueles que realizam uma determinada praxis histórica, como conjunto de
representações ou categorias do ‘pensamento comum’ (...) (itálicos nossos) —
são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do
fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno
essencial e o seu conceito correspondente”. 14
Por esse motivo, a praxis-utilitária imediata e o senso comum a
que corresponde, possibilitam ao homem orientar-se no mundo, familiarizar-
se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam, a este mesmo homem,
compreender a essência ou a concreticidade das coisas e da realidade com as
quais lida cotidianamente. Para KOSIK, este caráter da relação cotidiana e
espontânea entre homens e fenômenos, a atmosfera comum da vida
humana, sua regularidade, imediatismo e evidência, assumem, para os
indivíduos, “um aspecto independente e natural”, constituindo, por fim, o
que denominou “mundo da pseudoconcreticidade”.
O mundo da pseudoconcreticidade tem, como característica
própria, o duplo sentido, em que simultaneamente o fenômeno indica e
oculta a essência da realidade a que corresponde. E assim é pelo fato de a
essência manifestar-se de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos
ângulos e aspectos, no fenômeno. Isso não quer dizer que o mundo
fenomênico, entretanto, constitua algo “independente e absoluto”, da mesma
forma que a essência não constitui, também ela, uma realidade pertencente
a uma ordem diversa da do fenômeno: o problema diz respeito, antes, a como
nós, enquanto sujeitos, apreendemos as manifestações da realidade, ou seja,
geralmente de modo parcial. Captar o fenômeno de determinada coisa
significa, para KOSIK, indagar e descrever como a coisa em si se manifesta

14 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 13.

20
em tal fenômeno; e, logo, compreender o fenômeno é atingir a essência. 15
Quando falamos em pseudoconcreticidade, devemos ter em
conta que, nela, o aspecto fenomênico é tomado enquanto a própria essência,
desaparecendo, portanto, a diferença existente entre esta e o fenômeno.
Atingir o conceito da coisa implica em compreender a coisa e esta
compreensão significa, por sua vez, conhecer-lhe a estrutura, o que só se
torna possível pela decomposição da mesma. A constatação de que a essência
não se manifesta diretamente e que o fundamento oculto das coisas deve ser
descoberto remete-nos, por fim, à atividade e objetivos que são peculiares à
ciência e à filosofia. Cumpre, fundamentalmente à filosofia, segundo KOSIK,
o papel histórico de descoberta da estrutura da coisa e a coisa em si.
No que se refere à contribuição específica de uma concepção
dialética para a compreensão da realidade concreta, para KOSIK, “conceito”
e “abstração” têm o significado de “método que decompõe o todo para poder
reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa e, portanto, compreender a
coisa.” 16 O papel da dialética é, portanto, o de um pensamento crítico que se
propõe a compreender a “coisa em si”, questionando-se sistematicamente
sobre como é possível chegar à compreensão da realidade. Essa compreensão
não tem, contudo, um caráter contemplativo, implicando, antes, numa
posição de método revolucionário de transformação da realidade, pois que,
“para que o mundo possa ser explicado ‘criticamente’,” nos diz KOSIK,
“cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da ‘praxis’
revolucionária.” 17 Em suas palavras...

...a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na


medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em
que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a
realidade natural e a realidade humano -social está em que o homem
pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo
revolucionário a realidade humano -social porque ele próprio é o

15 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., 15-16.


16 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 19.
17 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 22.

21
produtor desta última realidade.18

O mundo real, em outros termos, embora oculto pela


pseudoconcreticidade, é o mundo da praxis humana. Compreender a
realidade é compreender a realidade humano-social como “unidade de
produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura”. O mundo da
realidade não é “uma variante secularizada do paraíso”, mas sim, “um
processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria
verdade, operam a própria humanização do homem.” 19 E conclui, KOSIK:

Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da


pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o
descobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e
acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A
pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos
do homem e a redução do homem ao nível da praxis utilitária.20

Estas reflexões nos remetem, portanto, às relações que o


homem mantém com suas próprias objetivações ou, em outros termos, com
os resultados das atividades humano-sociais pelas quais transforma a
realidade. O nível de consciência que o homem logre alcançar sobre a relação
existente entre sua praxis e o mundo que se lhe apresenta, pode significar
para o mesmo tanto o desvelamento do núcleo essencial da realidade quanto
a subsunção de si próprio à pseudoconcreticidade. O fenômeno da alienação,
ou o fato de o homem não se ver presente nos resultados de sua atividade
objetivadora, de sua praxis, surge-nos como conceito estreitamente
vinculado à relação existente entre senso comum e pseudoconcreticidade, tal
qual expostos. É deste fenômeno não menos humano, a alienação, que
passamos a nos ocupar agora.

18 KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 22-23.

19 Cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 23.


20 KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, op. cit., p. 24.

22
2. Consciência, trabalho e alienação

Como vimos, a relação entre o homem e a realidade objetiva


que se lhe apresenta à consciência, não implica, necessariamente, uma
relação crítico-reflexiva deste para com os fenômenos que o envolvem. Este
fato é de particular interesse no que diz respeito à relação do homem para
com a esfera de suas objetivações genéricas (esfera dos produtos
historicamente elaborados pela humanidade). Ora, por mais estranho que
pareça, tem sido regra, sobretudo no interior das relações de produção
capitalistas (as mais recentes e avançadas da história da humanidade), que
o homem não se reconheça presente em suas próprias produções.
Parece-nos fundamental, para que nos façamos entender sobre
o que designamos aqui por alienação, uma incursão pelas propriedades e
características dos processos psicológicos presentes à relação do homem com
a própria realidade. Faz-se necessário que exploremos, portanto, os
processos envolvidos na constituição da própria consciência humana.
Segundo LEONTIEV, “reflexo consciente” é o reflexo da
realidade concreta destacada das relações existentes entre esta e o sujeito,
ou seja, “um reflexo que distingue as propriedades objetivas e estáveis da
realidade”. 21 Em outras palavras, isso quer dizer que a imagem da realidade
não se confunde, na consciência, com a experiência vivida pelo sujeito. Ao
distinguir a realidade objetiva de seu reflexo, tornou-se possível, à
consciência humana, distinguir, também, o mundo das impressões interiores
e, por decorrência, observar a si mesma.
Mas como o reflexo consciente tornou-se possível? LEONTIEV
remonta à própria história do desenvolvimento dos hominídeos para
encontrar as condições que possibilitaram seu aparecimento, admoestando
que, ao referir-se à história de seu desenvolvimento, não a toma numa
perspectiva naturalista, e sim, numa concepção sócio-histórica

21Cf. LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. Tradução: Manuel Dias


Duarte. Lisboa: Livros Horizonte, 1978, p. 69.

23
(necessariamente social, materialista, historicista e dialética). Portanto,
longe de ser um joguete de forças da natureza (ambiental-adaptativas,
genéticas etc.), o homem é simultaneamente resultante e agente de suas
relações ativas com a natureza e consigo próprio.
Os estudos antropomórficos sócio-historicistas indicam com
segurança uma estreita relação entre o processo de hominização — aqui
entendido como conjunto de condições antropomórficas da espécie que
possibilitaram o estabelecimento do gênero humano —, do qual decorre a
consciência reflexiva, e o advento do trabalho. MARX referiu-se do seguinte
modo a esta condição antropomórfica:

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião


ou por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar
dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este
que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios
de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida
material.22

O trabalho é, por conseguinte, um conceito fundamental para a


compreensão da própria gênese da consciência humana. Baseando-nos uma
vez mais em MARX, vejamos esta sua caracterização do trabalho:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza,


um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e
controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a
matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as
forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas,
cabeça e mãos, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma
útil para sua vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a
Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo,
sua própria natureza.23

Ao referir-se ao fato de o homem pôr em movimento as forças

22MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). Tradução: José
Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 7a Ed., S. Paulo: Hucitec, 1989, p. 27.

24
naturais de sua corporalidade e que, por meio deste movimento, ao modificar
a “Natureza”, o homem modifica também a sua própria “natureza” (a si
mesmo), MARX nos chama a atenção para a relação dialética havida entre a
atividade humana de transformação da natureza e seus resultados sobre o
próprio processo de hominização.
Naturalmente, haveremos de considerar que, ao nos referirmos
ao processo de trabalho e ao homem, referimo-nos, necessariamente, ao
caráter ineliminavelmente social desta relação. Ou seja, o trabalho só é
possível devido à condição humano-social que o engendra. Nas palavras de
LEONTIEV,

...o trabalho se efetua em condições de atividade comum coletiva, de


modo que o homem, no seio deste processo, não entra apenas numa
relação determinada com a natureza, mas com outros homens, membros
de uma dada sociedade. É apenas por intermédio desta relação a outros
homens que o homem se encontra em relação com a natureza.24

Outra condição própria do processo de trabalho é o uso de


instrumentos. Embora certos animais apresentem determinadas formas de
atividade supostamente instrumental, o uso de “instrumentos” pelos
mesmos é muito diferente, qualitativamente, do uso de instrumentos
realizado pelo homem. O objeto da atividade animal confunde-se sempre
com o seu motivo biológico (a satisfação de uma necessidade), ou seja, estes
dois elementos coincidem sempre. Este é o primeiro motivo pelo qual
animais não se utilizam de objetos sob a forma de instrumentos, como ocorre
aos homens. Para os homens, a realização de uma atividade não coincide,
necessariamente, com a satisfação imediata da necessidade que a ela
corresponde. Atividade e motivo encontram-se espaço-temporalmente
separados e são mediadas por “ações” (processos em que o objeto e o motivo
não coincidem)25. Assim, uma atividade como a caça (um processo global)

23 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Trad.: Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. 3a Ed., S. Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 142.
24 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 74.
25 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 76.

25
pode envolver ações que a complexificam e até contrariam, imediatamente, a
sua finalidade última (a satisfação da fome). É o caso, por exemplo, do
batedor primitivo da atividade de caça que, surpreendentemente, espanta a
caça ao invés de, a exemplo de outros animais, lançar-se sobre a mesma.
Verifica-se que a ação em questão só se torna possível diante de um processo
coletivo, que envolve a presença de associações entre ações e a divisão da
atividade com a conservação do significado global da atividade em questão.
O “religamento” do resultado da ação de espantar a caça ao seu fim
(alimentar-se) é sua relação com a ação dos demais membros do grupo de
caçadores. Isto nos permite concluir, uma vez mais, que o que se interpõe
entre a ação e o objeto, para um determinado indivíduo, é, nada mais, nada
menos, que a consciência quanto à ação de outros homens na mesma
atividade. Isso confere à ligação entre motivo e objeto da ação humana um
caráter objetivamente social.26
Podemos retomar agora a questão do uso de instrumentos de
uma outra forma. Como dissemos, todo trabalho é mediado. “O meio de
trabalho” nos diz MARX, “é uma coisa ou um complexo de coisas que o
trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve
como condutor de sua atividade sobre esse objeto.”27 O instrumento
caracteriza e realiza, necessariamente, ações de trabalho. A fabricação e o
uso de instrumentos só é possível, portanto, na medida em que há
consciência quanto ao fim da ação do trabalho. Desta forma, o uso acessório
de determinados objetos em certas atividades animais nada têm de
instrumental, uma vez que esses objetos não incorporam, em si, a
operacionalização de atividades voltadas a um fim. Segundo LEONTIEV,

O “instrumento” dos animais realiza igualmente uma certa operação,


mas esta última não se fixa para ele. Logo que o pau desempenhou a
sua função nas mão do macaco, ele torna-se para o animal um objeto
qualquer, sem interesse. Não se tornou suporte permanente da operação

26 Cf. LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 76-78


27 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política, op. cit., p. 143.

26
considerada. Razão porque os animais não fabricam instrumentos e não
os conservam. O instrumento do homem, em contrapartida, é fabricado e
é procurado, é conservado pelo homem e ele próprio conserva o meio de
ação que realiza.28

Dispor de um instrumento, portanto, não significa apenas


possuí-lo, mas dominar o meio de ação de que ele é o objeto material de
realização. Desta forma, um machado não se resume a um objeto de corte
com determinada forma, constituído de madeira e aço. Ele reflete, antes, as
propriedades do próprio material (objeto) que partirá (seu fim).29
O instrumento, encerra em si propriedades oriundas de uma
prática social, de “experiência social de trabalho”. Assim, toda e qualquer
operação de trabalho mediada por instrumentos, extrapola os limites da
experiência dos indivíduos que a realizam (embora sejam indivíduos,
efetivamente, que a realizem; contudo, indivíduos sociais). O uso de
instrumentos é, necessariamente, uma aquisição, por tais indivíduos, da
experiência prática social. 30
É desta forma que o conhecimento humano, inicialmente por
meio da atividade instrumental do trabalho, transforma-se em pensamento,
definido por LEONTIEV como “o processo de reflexo consciente da realidade,
nas suas propriedades, ligações e relações objetivas, incluindo mesmo os
objetos inacessíveis à percepção sensível imediata.” 31
A imagem consciente que se projeta no pensamento, a
representação, o conceito, possuem uma imagem sensível. Mas o reflexo
consciente não se limita ao sentimento sensível que se tem do objeto. Ele
também envolve uma significação objetiva e estável, sob o significado de
“alimento”, “instrumento”, “árvore” etc.
Desta maneira, e diferentemente do que ocorre com o reflexo
psíquico dos animais, deve haver uma forma particular de reflexo consciente

28 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 82.


29 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 82-83.
30 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 83.
31 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 84.

27
da realidade, no homem. Esta forma é a linguagem. Linguagem que,
segundo Marx, é a “consciência prática” dos homens. Razão por que, como
salienta LEONTIEV, a consciência é inseparável da linguagem. Como a
consciência humana, a linguagem só aparece no processo de trabalho e ao
mesmo tempo em que ele. Ela, como a palavra, surge da necessidade de os
homens comunicarem algo uns aos outros.32
Assim, os movimentos do trabalho tiveram uma dupla função:
uma, imediatamente produtiva, e outra, comunicativa. Posteriormente essas
funções se separaram e a função comunicativa transforma-se em gesto. O
gesto nada mais é que um movimento, uma ação separada de seu resultado.
Os gestos, acompanhados de sonoridade, transformam-se em linguagem
sonora e, por fim, em palavras. Uma vez que a palavra signifique, no
processo de trabalho, um dado objeto, esta distingue-o e generaliza-o para a
consciência individual, ou seja, representa na consciência individual algo
que é, objetivamente, uma generalização social.
Como vimos, o animal mantém uma relação prática com a
realidade objetiva. A principal característica da atividade animal é, pois, o
vínculo direto entre sua ação e a necessidade que a move e, portanto, a
coincidência entre o objeto e o motivo de sua atividade. Esta relação direta e
limitadora não se aplica, entretanto, ao homem. As atividades humanas são
tão motivadas por necessidades quanto as dos demais animais. Entretanto,
a divisão de tais atividades em ações é a primeira grande conseqüência (ao
mesmo tempo em que consolidação) da condição de não-coincidência que se
opera no psiquismo humano entre sujeito e objeto, em que o homem passa a
refletir sobre a realidade objetiva enquanto algo distinto de si mesmo. Há,
por decorrência, uma nova possibilidade de não-coincidência, ou seja, entre o
objetivo da ação do homem e o motivo que o conduz à mesma. Aliás, a
decomposição da atividade em ações pressupõe que os sujeito possa refletir
conscientemente sobre a relação existente entre o motivo da ação objetiva
que realiza, e a ligação desta com o fim da atividade global em que a ação se

32 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 85-86

28
insere. É, pois condição sine qua non para a divisão de uma atividade em
etapas, a possibilidade de projeção, no devir, dos resultados possíveis de
uma ação.
Evidentemente, esta não-coincidência se traduz, a princípio, em
ganhos para o ser social do homem, que logra, agora, através de etapas
definidas, tornar exeqüíveis atividades que antes lhe seriam impossíveis.
Basta que citemos a descoberta da produção do fogo, que só pôde ser obtido
artificialmente caso o sujeito que o objetivou dominasse as etapas básicas
necessárias à sua obtenção (como, por exemplo, apanhar gravetos, produzir
faíscas através do atrito entre pedras sobre os mesmos, alimentar a chama
com mais combustível etc.). Isto aumenta e complexifica, como observamos,
incalculavelmente o poder de ação transformadora dos homens. Em última
análise, isto representa um aumento das condições de humanização da
espécie, traduzidas sob a forma de conquistas de garantias de sobrevivência,
ampliação de conhecimentos, maior aproveitamento da natureza,
desenvolvimento e aprimoramento de inúmeras outras capacidades
humanas etc.
A teleologia que distingue a atividade dos homens da dos
demais animais é, pois, necessariamente, a ação transformadora consciente
da instrumentalidade de outras ações e suas conseqüências possíveis, seja
no âmbito de um mesmo indivíduo e os recursos socialmente elaborados dos
quais se apropriou, seja na conjugação à ação de outros indivíduos, dentro de
uma atividade dotada de significado social. A relação que é imediata entre
atividade e motivo nos animais é, no caso do homem, mediada pelo caráter
instrumentalizado de sua relação consciente com os objetos de sua realidade,
sejam eles mãos, coisas, outros homens, outras ações, outros conhecimentos
etc. Poderíamos, por fim, dizer que as ações, enquanto etapas de uma
atividade, são mediadoras da relação consciente entre homens e a satisfação
de suas necessidades, entre o objeto de suas ações e o motivo que a elas
conduz.
Como vemos, o caso do batedor de caça primitivo, que tem como

29
objetivo de sua ação imediata espantar um animal, tem consciência do fim
de sua ação, que se reflete traduzida na relação objetiva desta para com a
ação dos demais caçadores sob a forma de uma significação. LEONTIEV
assim se remete a este conceito:

A significação é a generalização da realidade que é cristalizada e fixada


num vetor sensível, ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma
ideal, espiritual da cristalização da experiência e da prática sociais da
humanidade. A sua esfera das representações de uma sociedade, a sua
ciência, a sua língua existem enquanto sistemas de significações
correspondentes. A significação pertence, portanto, antes de mais, ao
mundo dos fenômenos objetivamente históricos. (...) A significação é (...)
a forma sob a qual um homem assimila a experiência humana
generalizada e refletida.” 33

A significação é o reflexo da realidade independentemente das


relações individuais particulares do homem para com ela. “O homem”, nos
diz LEONTIEV, “encontra um sistema de significações pronto, elaborado
historicamente, e apropria-se dele tal como se apropria de um instrumento,
esse precursor material da significação.”34 O fato principal na relação entre
indivíduos e as significações, segundo LEONTIEV, é que os indivíduos
venham a se apropriar ou não das mesmas, em que grau o fazem e o que
estas se tornam para estes. Isto dependerá do sentido subjetivo, pessoal que
estas significações tenham para tais indivíduos. Por esta razão, uma
significação poderá ter diversos sentidos para vários indivíduos.
Na aurora do desenvolvimento humano, nos diz LEONTIEV, a
esfera das significações coexistia com a esfera dos sentidos biológicos
instintivos. Nesta etapa primitiva do desenvolvimento humano, a
consciência encontra-se limitada e este estágio é, caracteristicamente,
animalizado, não havendo, portanto, uma consciência da relação entre
indivíduos e coletividade. Trata-se de uma “simples consciência gregária”,

33 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 94.


34 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 96.

30
nos diz.35
A principal característica da consciência humana primitiva era
a de que o sentido dos fenômenos reais coincidiam totalmente com as
significações elaboradas socialmente e fixadas na linguagem. Nas palavras
de LEONTIEV,

A propriedade coletiva colocava os homens em relações idênticas em


relação aos meios e frutos da produção, sendo estes últimos, portanto,
refletidos de maneira idêntica na consciência individual e na consciência
coletiva. O produto do trabalho coletivo tinha o sentido comum de
“bem”, por exemplo um sentido social objetivo na vida da comunidade e
um sentido subjetivo para cada um dos seus membros. Por este fato, as
significações lingüísticas elaboradas socialmente que cristalizavam o
sentido social objetivo dos fenômenos podia igualmente constituir a
forma imediata da consciência individual destes mesmos fenômenos.36

Devido a tais características, LEONTIEV denomina essa


estrutura da consciência de “formação primitiva integrada”. Com o advento
da divisão social do trabalho e das relações calcadas na propriedade privada,
esta estrutura primitiva cedeu lugar a uma de nova ordem, caracterizada
por uma “desintegração” entre sentidos e significados.
Uma vez que o conteúdo objetivo da atividade não concorde
mais com o seu conteúdo subjetivo (sua importância para o próprio homem),
deparâmo-nos com o fenômeno da alienação, a discordância entre o
resultado objetivo de uma atividade e seu motivo. Retomando uma vez mais
o exemplo da ação do batedor primitivo numa atividade de caça, vimos que a
atividade era subjetivamente motivada pela parte da presa que lhe caberia
no final do processo coletivo. Já na produção capitalista, embora o
trabalhador, agora assalariado, tenha por motivação a satisfação de suas
necessidades, o produto objetivo da atividade que realiza (tecer, por
exemplo) não coincide com o que o motiva (necessidade de alimentar-se). A
sua atividade de trabalho transforma-se em algo distinto do que realmente

35 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 102.

31
é. Seu sentido, para o operário, não coincide com sua significação objetiva.
Evidentemente, o trabalhador nas condições da sociedade
capitalista conhece o significado social da atividade de tecer, por exemplo.
Entretanto, a tecelagem não tem para ele o sentido subjetivo de tecelagem.
Nas palavras de LEONTIEV,

A tecelagem tem, portanto, para o operário, a significação objetiva de


tecelagem, a fiação a de fiação. Todavia, não é por aí que se caracteriza
a sua consciência, mas pela relação que existe entre estas significações e
o sentido pessoal que têm para ele as suas ações de trabalho. Sabemos
que o sentido depende do motivo. Por conseqüência, o sentido da
tecelagem ou da fiação para o operário é determinado por aquilo que o
incita a tecer ou a fiar. Mas são tais as suas condições de existência que
ele não fia ou não tece para corresponder às necessidades da sociedade
em fio ou em tecido, mas unicamente pelo salário; é o salário que confere
ao fio e ao tecido o seu sentido para o operário que os produziu.37

O mesmo ocorre com o sentido da atividade para o capitalista,


que agora, residindo no lucro que dela tira, transforma-se em algo também
estranho às propriedades do fruto da produção e sua significação objetiva. O
sentido do trabalho, tanto para o proprietário capitalista quanto para o
trabalhador assalariado é reificado (coisificado) pelo dinheiro.
O trabalho alienado passa a ter um duplo caráter: um negativo,
já que o trabalhador passa a viver em função de um trabalho cujo sentido
subjetivo não coincide com o significado objetivo, social da atividade. E um
positivo, já que, enquanto meio de atividade, o trabalho constitui a riqueza
real do aspecto técnico da vida do trabalhador (conhecimentos, hábitos, em
“saber-fazer” etc.). 38
Nas condições históricas de dominação, as significações
dominantes são as representações, as idéias que traduzem a ideologia
dominante. O sentido real das relações predominantes não é imediatamente

36 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 114.


37 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 123.
38 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 125-126.

32
“consciente”. Para se tornar consciente, deve entrar para a consciência nas
significações, elaboradas socialmente, que refletem a natureza real destas
relações. 39
A consciência é condição para a consecução e consolidação da
própria vida humana. Portanto, somente com a “reintegração” da
consciência humana o homem se deparará com o desenvolvimento livre e
completo de sua humanização. Contudo, esta “reintegração” não equivale a
um retorno à coincidência entre sentidos pessoais e sistema de significações
sociais. O que se presume como necessário é o deslocamento do processo de
conscientização para esferas mais variadas e profundas, de que o homem
deve tomar consciência para si, para tornar a se ver presente nelas. 40
O raciocínio até aqui apresentado é de fundamental
importância para que apreendamos a magnitude dos processos e
conseqüências envolvidos nas relações que o homem estabeleceu, desde suas
origens primitivas, com a realidade natural e social da qual historicamente
toma parte. Entendemos que o processo de apreensão da relação real entre
sentidos e significados implica, antes de tudo, num constante processo de
desvelamento da realidade tal e qual se apresenta imediatamente à
consciência. Este processo só se mostra possível se o homem, munido de
determinado método de leitura dos fenômenos que o envolve, apropriar-se,
ostensiva e conscientemente, dos conhecimentos socialmente elaborados e de
suas relações e implicações sobre seu ser e seu lugar no gênero ao qual
pertence.
Entrementes, devemos considerar, ainda, que ao nos referirmos
a um tal processo de desvelamento, não queremos dizer com isso que há
duas realidades essencialmente distintas e excludentes, uma capciosamente
ocultando outra. Não se trata disso mas sim de uma realidade total, única,
captada, amiúde, de modo parcial em seus aspectos mais imediatos, por
diversas características próprias à consciência humana devidas às múltiplas

39 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 133.


40 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 139.

33
determinações que a engendraram historicamente, como acabamos de ver. E
o fenômeno não implica em uma apreensão verossímil da essência própria
da realidade a que corresponde. Contudo, ao nos referirmos à captação da
essência da realidade, não podemos supor, com isso, a “execração” da vida
em seus aspectos imediatos, mecânicos, habituais e mesmo consensuais.
Deles depende a própria consecução da vida, com todas as suas relações e
implicações possíveis e necessárias. Deles, em suma, depende a realização, a
possibilidade da própria vida cotidiana.
Por decorrência, é deste conceito e desta condição da existência
humana que devemos nos ocupar agora. Isto porque não nos importa apenas
captar a existência de níveis de apreensão da realidade, mas como esses
níveis (não apenas dois, mas diversos) relacionam-se entre si como condições
de produção de uma mesma realidade (realidade humana).

3. Vida cotidiana

3.1. Vida cotidiana e gênero humano

A relação prático-sensível com a realidade, caracterizada pela


apreensão de seus aspectos imediatamente perceptíveis, não se traduz,
reiteramos, em algo necessariamente negativo. A complexidade da realidade
que nos envolve exige respostas de todos os gêneros e em todos os graus, com
a rapidez e eficiência que nos for possível. Ao nos referirmos à realidade e
toda a sua complexidade, nada mais fazemos que nos referir à própria vida,
em todos os seus aspectos. A consecução da vida é, por essa razão, não
menos complexa e ostensiva. A ostensividade com que lidamos
necessariamente com a realidade, em todas as suas exigências e implicações,
remete-nos, pois, às condições cotidianas de realização da própria vida, suas
atividades, seus hábitos e seus conhecimentos próprios. Assim, ao
analisarmos quando e em quê medida a apreensão da realidade em seus
aspectos apenas fenomênicos, imediatos, implica em comprometimentos às

34
realizações humanas e, por conseguinte, ao próprio processo de humanização
do gênero humano, devemos nos deter no conceito aqui adotado de vida
cotidiana, suas características e suas conseqüências.
Contudo, para que apreendamos ao máximo o significado
concreto da vida cotidiana, tanto quanto o significado de sua dimensão
complementar — a vida não cotidiana — necessário se faz que explicitemos,
ainda que introdutoriamente, o que entendemos por gênero humano.
Como sabemos, a principal característica do desenvolvimento
filogênico diz respeito ao fato de que as propriedades de uma espécie são
transmitidas, hereditariamente, de uma geração à outra, sendo
reproduzidas nos e pelos organismos que a compõem. Em termos dos
organismos que dela fazem parte, suas características serão, pois,
determinadas pelo estágio de evolução atingido pela espécie e as
transformações que nela se expressam dependem de igual modo das
transformações que eventualmente tais organismos sofram durante sua
ontogênese (processo de desenvolvimento do organismo particular da
espécie). Dizemos transformações que tais organismos sofram porque essas
mudanças encontram-se intimamente ligadas às interações de cada
organismo com seu meio. Em outras palavras, os organismos vivos mantêm-
se submetidos a todas as conseqüências de seus contatos com a natureza e
demais organismos sobre sua biologia.
Destarte todas as complexidades e multiplicidade de
determinações que envolvem o processo de desenvolvimento das espécies
(filogênese) e de seus organismos individuais (ontogênese), cabe-nos ter em
mente, aqui, que toda relação entre espécie e evolução é, antes de mais
nada, uma relação marcadamente natural e espontânea. Assim, o conjunto
de todos os recursos e adversidades do hábitat, a adaptabilidade e a
interação social entre organismos, certamente concorrerão para a
caracterização morfofisiológica que configura cada espécie.
Naturalmente, tais princípios se aplicam também à espécie
homem. Entretanto, não são apenas os princípios em questão que regem o

35
desenvolvimento humano. Diferentemente das demais espécies, o homem
desenvolveu atributos que permitiram que passasse a interferir em seu
próprio processo evolutivo. E, como vimos, a principal condição para tal foi o
desenvolvimento da consciência, ou seja, o poder de refletir abstratamente
sobre si e a realidade objetiva com a qual se relaciona. A consciência e seus
recursos instrumentais, patentemente o pensamento e a linguagem, passam
a mediar, portanto, a relação ativa entre o homem, seus pares e a natureza.
Por outro lado, se considerarmos que a própria consciência só
pode mediar as relações entre sujeito e objeto por que há uma relação ativa
daquele para este último — referimo-nos às atividades intencionais de
satisfação de necessidades que incidem em relações com o mundo objetal —
concluiremos que a consciência coincide inteiramente com a própria
atividade vital. Logo, dela se origina e a ela subsidia, de modo intrínseco.
Esta atividade vital é o que chamamos trabalho e sua principal
característica, contrariamente à atividade dos demais animais, é a de ser
uma atividade produtiva. 41
Vemos assim que, de forma inseparável, essas novas condições
de relacionar-se com a realidade, nela interferir e dela obter uma enorme
gama de resultados, imprime em tais produções propriedades
especificamente humanas ou seja, o caráter histórico-cultural humano se
objetiva em seus produtos. Estas propriedades, experiências, processos,
implicam necessariamente em informações. As objetivações humanas
encerram, portanto, propriedades resultantes de todo o processo de
experiências histórico-culturais da humanidade, cristalizadas sob a forma de
conhecimentos.
Entretanto, para que as próprias objetivações se tornem
possíveis — e este é o aspecto essencial de nosso raciocínio — devemos
considerar que seus significados, resultado de milhares de anos de
experiências as mais variadas, sejam apropriados (assimilados,
incorporados) por cada indivíduo particular de cada nova geração. É,

36
portanto, em se apropriando das objetivações histórico-culturais humanas
que cada indivíduo da espécie humana se insere no gênero humano,
tornando-se, também ele, capaz de realizar objetivações humanas.
Como percebemos, a relação entre ambos os processos é
indissociável e fundamenta o advento de uma condição que supera o simples
desenvolvimento filogenético da espécie homem. Em outras palavras, o
processo de objetivação-apropriação inaugura e fundamenta o
desenvolvimento do que aqui entendemos por gênero humano. Isto tem, por
conseqüência, o fato de a humanidade não se encontrar submetida tão-
somente a determinações biológicas, mas, e acima disso, histórico-culturais.
O gênero humano corresponde, portanto, a todas as produções e
conseqüências das ações sócio-históricas humanas sobre a natureza e o
próprio homem, que permitiram e permitem que este minimize cada vez
mais sua submissão às determinações biológicas e naturais, criando para si
condições exclusivamente humanas de existência. O fato de a humanidade
reproduzir-se, enquanto gênero, pelo processo de apropriação de suas
objetivações, permite-nos afirmar que, diferentemente do que ocorre no
âmbito puramente animal, o homem não nasce humano, mas sim, torna-se
humano na medida em que apropria-se dos legados de seu gênero. Do
mesmo modo, inserir-se na genericidade humana equivale a libertar-se do
jugo da natureza e, logo, o processo de genericização humano é um processo,
antes de mais nada, libertário.
Porém, devemos considerar com a devida atenção esta
afirmação, já que, como vimos, o processo de humanização tem se
apresentado como essencialmente contraditório com sua finalidade
libertária, sobretudo no interior das relações de produção das sociedades
modernas. Ou seja, enquanto a humanidade conquista para si condições sem
precedentes em sua história para libertar-se das adversidades naturais (com
avanços tecnológicos vertiginosos), mais e mais homens vêm-se colocados à
margem de seus benefícios e, portanto, à margem do próprio processo de

41 Cf. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. op. cit., p. 165.

37
humanização. Como já abordamos, a maioria dos homens vêm-se cada vez
mais alienados das conquistas que a humanidade logra para si.
Isto dito, podemos agora nos lançar à nossa questão inicial, ou
seja, a consecução da própria genericidade humana através da vida
cotidiana. Pautâmo-nos, aqui, nos postulados de HELLER, que se refere à
vida cotidiana do seguinte modo:

A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma


exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e
físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-
genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E,
ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial ” que seja,
que viva tão -somente na cotidianidade, embora essa o absorva
preponderantemente.42

A vida cotidiana é o lugar humano em que nascem e se


desenvolvem todos os homens. O processo de amadurecimento de cada
homem particular equivale ao seu processo de aquisição de habilidades e
conhecimentos imprescindíveis para a própria vida em sociedade. Por ela e
nela os homens encontram as possibilidades de realização da vida do próprio
gênero.
Uma primeira característica substancial da vida cotidiana é,
portanto, a heterogeneidade. Trata-se dos vários conteúdos e significados
possíveis que engendram todas as suas atividades (envolvendo desde a
organização do trabalho e da vida privada até os lazeres, o descanso, o
intercâmbio etc.). Complementarmente, o significado e conteúdo da vida
cotidiana não são somente heterogêneos, mas também hierárquicos. Trata-
se das atividades em função das quais se organiza toda a vida cotidiana,
segundo a importância que historicamente se lhes atribui (o papel do
trabalho, do intercâmbio social, das artes e do lazer nos diversos contextos
históricos da humanidade).

42 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Trad.: Carlos N. Coutinho e Leandro Konder.


4a Ed., S. Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 17.

38
Pela evidente amplitude de todos os conteúdos, significados e
atividades que da vida cotidiana, não há para os homens “tempo” ou
“possibilidade” de absorverem inteiramente, em todos os seus aspectos, os
elementos que constitutivos da cotidianidade. 43 Por isso mesmo a principal
característica do pensamento cotidiano é a espontaneidade — embora nem
toda atividade cotidiana o seja em mesmo grau. Entretanto, o caráter
tendencialmente espontâneo torna-se necessário, ou, do contrário, não
haveria como atender-se às exigências das atividades cotidianas e tornar-se-
iam impossíveis a produção e a reprodução da vida das sociedades humanas.
De fato, não há como, na vida cotidiana, calcular com segurança científica as
diversas conseqüências possíveis de uma ação. Por esta razão o homem age
de forma probabilística, o que por sua vez evidencia o caráter
eminentemente econômico da vida cotidiana.
O pensamento cotidiano orienta-se sobretudo para a realização
das atividades cotidianas, havendo, desta forma, uma unidade imediata
entre pensamento e ação. Entretanto, isto não implica em que as idéias
pertinentes à cotidianidade elevem-se ao plano da teoria, nem tão-pouco
caracterizem-se enquanto praxis. Para HELLER, praxis é atividade
humano-genérica consciente. 44
A unidade imediata entre pensamento e ação implica, por outro
lado, na tendência de não diferenciação entre “correto” e “verdadeiro”, que
tendem a identificar-se espontaneamente. Portanto, as atitudes da vida
cotidiana são essencialmente pragmáticas, sendo que a identificação
espontânea entre “correto” e “verdadeiro” não implica em maiores problemas
para a vida cotidiana — se e na medida em que nela não devemos ter em
mente atitudes necessariamente “científicas”.
Por conseguinte, e porque o homem não pode discriminar todos
os elementos e condições que o envolvem, a fé e a confiança apresentam-se
com maior intensidade no pensamento cotidiano. A fé e a confiança têm em

43 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 17.


44 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 32.

39
comum o fato de prescindirem de verificabilidade, distinguindo-se, por outro
lado, na relação existente entre o sujeito e o objeto de sua crença. Assim, a
confiança traz consigo a possibilidade de fundamentações empíricos, sendo
portanto o afeto de um indivíduo que se identifica inteiramente com o que
motiva sua crença. A fé, embora compartilhe da mesma função que a
confiança, presume uma relação dogmatizada entre sujeito e objeto de sua
crença. A fé é um afeto do indivíduo particular. De uma forma ou de outra,
ambos os “afetos” permitem que os homens transitem em meio a uma
infinidade de situações e condições prescindindo de um suposto domínio
pleno da realidade concreta que os envolve. HELLER assim se refere e
exemplifica tais questões:

Na cotidianidade, o conhecimento se limita ao aspecto relativo da


atividade, e, por isso, o “espaço ” da confiança e da fé é inteiramente
diverso. Ao astrônomo, não basta ter fé em que a Terra gira em redor do
sol; mas, na vida cotidiana, essa fé é plenamente suficiente. Não basta
ao médico acreditar na ação terapêutica de um remédio, mas essa fé é
suficiente para o enfermo (e precisamente na base de uma simples fé
posta no médico ou na medicina, com maior ou menor fundamento
empírico).45

Assim, salienta HELLER, quando um médico age com base na


confiança, está atuando com base na própria cotidianidade. Por outro lado,
quando determinado indivíduo dá início a reflexões sobre uma sua
superstição, confrontando-a com a realidade e concluindo pela sua falsidade,
neste instante deparâmo-nos com o fato de este indivíduo haver elevado-se
do âmbito próprio do pensamento cotidiano (ainda que apenas nesse
momento).
Portanto, fé e confiança encontram-se intimamente
relacionadas ao próprio caráter pragmático do pensamento cotidiano,
sempre permeado por certa dose de fé ou confiança no imponderado.
Outra característica do pensamento cotidiano é a

45 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 31-32.

40
ultrageneralização. Tratam-se de juízos provisórios que, segundo HELLER,
a prática confirma ou, pelo menos, não refuta, de modo que, a exemplo do
que ocorre com a fé e a confiança, possamos, baseando-nos neles, atuar e nos
orientar na cotidianidade. Assim, a ultrageneralização permite-nos, também
a seu turno, a formulação de juízos menos precisos mas suficientes para
possibilitar nossa própria ação. Entretanto, enfatiza, a autora,

...quando já não se trata da orientação na vida cotidiana e sim de nossa


inteira individualidade, de nossa integridade moral e de seu
desenvolvimento superior, caso em que só podemos operar com juízos
provisórios pondo em risco essa integridade, então deveremos ter a
capacidade de abandoná-los ou modificá-los. Isso poderá ser feito
quando o juízo se apoiar na confiança, mas não quando se basear na fé.
Os juízos provisórios que se enraízam na particularidade e, por
conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou preconceitos.46

Recorremos ainda a diversas outras características da vida


cotidiana, dentre as quais podemos destacar a analogia, que permite
comparações com experiências acumuladas, os precedentes, que permite
basearmo-nos em exemplos de situações idênticas vividas em outros
momentos ou por outras pessoas, a imitação, que implica na assimilação do
costumeiro e, por fim, a entonação, que envolve as características próprias
da singularidade de cada sujeito, em dado meio e em relação aos demais.
Portanto, como salienta HELLER, não há vida cotidiana sem
espontaneidade, pragmatismo, economicismo, analogia, precedentes, juízos
provisórios, ultrageneralizações, mimese e entonação. Contudo, essas formas
necessárias da estrutura e do pensamento da vida cotidiana não podem
cristalizar-se, pois desta forma deixariam de prestar-se à mobilidade dos
homens na consecução da vida cotidiana, prestando-se, então, à sua
alienação. Em sendo a alienação um alheamento impeditivo em face a algo,
neste caso em particular teríamos, por decorrência, a alienação das

46 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 34-35.

41
possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade.47 Em
outras palavras, as mesmas condições que nos permitem a mobilidade e a
realização da vida cotidiana (elementar e imprescindível à realização e
desenvolvimento do próprio gênero), podem prestar-se ao imobilismo e à
estagnação da genericidade. Nas palavras de HELLER,

A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se


presta à alienação. Por causa da coexistência “muda”, em-si, de
particularidade e genericidade, a atividade cotidiana pode ser atividade
humano-genérica não consciente, embora suas motivações sejam, como
normalmente ocorre, efêmeras e particulares. Na cotidianidade, parece
“natural ” a desagregação, a separação de ser e essência. Na coexistência
e sucessão heterogêneas das atividades cotidianas, não há por que
revelar -se nenhuma individualidade unitária; o homem devorado por e
em seus “papéis” pode orientar-se na cotidianidade através do simples
cumprimento adequado desses “papéis”. A assimilação espontânea das
normas consuetudinárias dominantes pode converter-se por si mesma
em conformismo, na medida em que aquele que as assimila é um
indivíduo sem “núcleo ”; e a particularidade que aspira a uma “vida boa”
sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua fé.48

Deparâmo-nos aqui com um ponto nodal de nosso raciocínio.


Trata-se da confluência entre os diversos aspectos que perpassam e
conformam o senso comum em sua forma eminentemente parcial e
cristalizadora. E estas últimas considerações de HELLER parecem-nos de
grande relevância para a compreensão tanto da função consecutória do
pensamento comum para a vida cotidiana (base da realização do gênero
humano) como de sua possibilidade de refletir juízos provisórios
cristalizados ou absolutizados, que se transformam em pré-juízos ou
preconceitos e que, por fim, figuram enquanto empecilhos às próprias
realizações humano-genéricas. Em outros termos, o pensamento comum
cristalizado pode apresentar-se enquanto elemento alienador das
possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade.

47 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 37.

42
Contudo, como enfatiza HELLER, embora a estrutura da vida
cotidiana apresente-se como “terreno propício à alienação”, esta não é, de
nenhum modo, necessariamente alienada.49 Permito-me lançar mão uma vez
mais das próprias considerações apresentadas pela autora:

Sublinhemos, mais uma vez, que as formas de pensamento e


comportamento produzidos nessa estrutura podem perfeitamente deixar
ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de
explicitação, permitindo-lhe — enquanto unidade consciente do
humano-genérico e do individual-particular — uma condensação
“prismática”, por assim dizer, da experiência da cotidianidade, de tal
modo que essa possa manifestar-se como essência unitária das formas
heterogêneas de atividade próprias da cotidianidade e nelas objetivar-
se.50

Assim, ser e essência não se apresentam separados e as formas


de atividade da cotidianidade não aparecem como alienadas —
considerando-se a devida proporção em que isso é possível de acordo com os
indivíduos de uma dada época e segundo o máximo desenvolvimento da
individualidade (logo, do seu desenvolvimento humano-genérico). E enfatiza
HELLER: “quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica
de uma sociedade dada, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria
alienação para as demais esferas”.51
Se considerarmos o fenômeno da alienação a ruptura e
afastamento entre a produção humano-genérica e a participação consciente
do indivíduo em tal produção, devemos considerar que uma tal ruptura não
se deu da mesma forma e em mesmo grau em todas as épocas da
humanidade. Mas, nesse sentido, o desenvolvimento capitalista acentuou de
modo extremo as contradições no interior do processo de humanização, cada
vez mais à mercê da alienação. Uma das principais conseqüências de um tal
movimento, admoesta HELLER, é o fato de a estrutura cotidiana alienada

48 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 37-38.


49 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 38.
50 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 38.

43
haver se expandido e passado a penetrar esferas onde não só não se
apresenta como necessária, mas também como empecilho de realização. Nas
palavras de HELLER:

Não se trata de afirmar que as categorias da cotidianidade sejam


alheias às esferas não-cotidianas. Basta aludir à função desempenhada
pelos precedentes na atividade política, pela analogia na comparação
científica e artística, pela mimese ou pela entonação na arte. Mas essa
limitada comunidade ou universalidade de categorias jamais significou
uma identidade estrutural com, ou uma assimilação pelas, formas de
atividade e conteúdos da cotidianidade. Em troca, a ciência moderna, ao
colocar-se sobre fundamentos pragmáticos, “absorve”, assimila a
estrutura cotidiana; e , quando a arte moderna decide escolher como
temas as efêmeras motivações e resolve fazer abstração da essência da
vida humana, da constante oscilação e da interação entre a
cotidianidade e a não-cotidianidade , a cotidianidade absorve inclusive a
arte. A aludida estrutura, que na cotidianidade não aparece como um
fenômeno de alienação, é necessariamente manifestação de alienação na
arte, na ciência, nas decisões morais e na política. E é evidente, com
efeito, que a estrutura cotidiana só começa a expandir-se “para cima ”
quando ela própria já é alienada.52 (itálicos nossos).

O aporte de elementos da cotidianidade alienada às esferas da


não-cotidianidade (e a possível submissão desta última àquela) é um
fenômeno dos mais importantes para as ciências ocupadas com as questões
humanas. No que se refere à filosofia da educação, já DUARTE chama-nos a
atenção para o acesso e determinações das esferas dos conhecimentos
cotidianos sobre as esferas dos conhecimentos e atividades não-cotidianas do
ensino formal. 53 Este assunto será oportunamente retomado no capítulo III,
Criatividade e Ensino.
Convém, finalmente, que tornemos a enfatizar não ser a vida

51 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 38.


52 HELLER, Agnes - O cotidiano e a história, op. cit., p. 39.
53 Cf. DUARTE, Newton - Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski.

Campinas, Autores Associados, 1996. (Col. Polêmicas do Nosso Tempo, v. 55).

44
cotidiana necessariamente alienada. Isto significa dizer que é a partir dela
que o humano-genérico é engendrado. Mas como e com que intensidade o
processo de humanização se dê dependerá de como os homens lancem mão
dos próprios conhecimentos genéricos de que já dispõem —
fundamentalmente, os conhecimentos historicamente sistematizados e que
concebemos como científicos e filosóficos. Ao homem é sempre possível,
ainda que diante das restrições da alienação, superar o “abismo” que esta
impõe entre este e o significado humano e humanizador de suas
objetivações.
Evidentemente, a superação necessária da hierarquia
espontânea da vida cotidiana não implica numa suposta abolição dessa
hierarquia. Trata-se, antes, do estabelecimento de uma relação não mais
espontânea com a cotidianidade e sim, consciente do indivíduo com essa
esfera das realizações humanas, o que implica numa necessária
aproximação deste indivíduo com a humano-genericidade. Conforme
salienta HELLER, trata-se pois de um processo de condução consciente da
vida pelo próprio indivíduo.

3.2 Vida cotidiana e preconceitos

Se nos referimos até aqui aos principais processos, mecanismos


e instâncias que permeiam as relações entre homens e a realidade, convém
que nossas reflexões se situem de modo mais detido sobre as conseqüências
em geral indesejáveis a que compreensões espontâneas e imediatas sobre os
fenômenos que nos envolvem, podem conduzir (e, geralmente, conduzem). E
esta conseqüência é, sem dúvida, o preconceito.
Embora o raciocínio elaborado por Heller certamente nos
conduza à constatação de sua ocorrência, convém que nos refiramos de modo
mais detido sobre sua gênese enquanto expressão típica da cotidianidade.
Vimos, pelos postulados de Agnes Heller, que a vida cotidiana
tem, por principais características, o caráter momentâneo de seus efeitos, a

45
natureza efêmera de suas motivações, além da fixação repetitiva do ritmo54 —
uma certa rigidez do modo de vida. De modo semelhante, o pensamento
cotidiano (que também é comportamento) também tem, por característico, a
fixação na experiência, sendo portanto essencialmente empírico e
ultrageneralizador.
A ultrageneralização do pensamento e comportamento
cotidianos é atingida na medida em que assumimos estereótipos, analogias e
esquemas já elaborados socialmente ou quando estas formas de pensamento
nos são simplesmente impingidas pelo meio social que nos envolve e no qual
nos movemos.
Por outro lado, a ultrageneralização é inevitável na vida
cotidiana, dado que cada uma de nossas atitudes, como vimos, fundamenta-
se numa avaliação apenas probabilística de cada evento. Em breves lapsos
de tempo nos vemos obrigados a realizar inúmeras atividades que, dada a
sua heterogeneidade, não poderíamos efetuar, sobre as mesmas, avaliações
baseadas na cientificidade.
Toda ultrageneralização é, também, um juízo provisório (por
provisório devemos entender que tais juízos em geral antecipam-se às
atividades, não encontrando, entretanto, verificabilidade no próprio processo
prático posterior).
A vida cotidiana caracteriza-se, como sabemos, pela unidade
imediata entre pensamento e ação (com a ressalva de não ser o pensamento
cotidiano teoria, nem tampouco a atividade cotidiana praxis). Esta unidade
imediata entre pensamento e ação conduz ao fato de que o verdadeiro e o
correto se identificam. Como nos diz HELLER, “o que revela ser correto, útil,
o que oferece ao homem uma base de orientação e de ação no mundo, o que
conduz ao êxito, é também ‘verdadeiro’”.55
Ora, uma ultrageneralização pode ser correta ou falsa. Será
correta quando corresponder ao objetivo cuja realização deve promover e

54 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 43.


55 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 45.

46
falsa quando por ela não pudermos nos orientar ou, em outros termos,
quando sua orientação conduz ao erro ou fracasso.
Quando estivermos diante da relação entre homem e natureza
(objetivações, atividades que envolvem produção e consumo), a coincidência
entre verdadeiro e correto não pode implicar em problemas. Isto porque,
mesmo que generalizemos incorretamente, a própria atividade haverá de
nos corrigir praticamente, pois um produto de má qualidade não
corresponderá a seus objetivos, experimentaremos prejuízos se consumirmos
algo inadequado etc. Contudo, as generalizações da estrutura pragmática da
vida cotidiana poderão implicar em conseqüências problemáticas, embora
menos evidentes, quando o que se põe em questão são as relações sociais,
muito mais complexas e de implicações as mais variadas. Eis aqui um sério
motivo para que consideremos com a devida cautela a transposição de
procedimentos de análise pertinentes à referida relação entre homem-
natureza (relação essencialmente pragmática) para o âmbito das relações
homem-genericidade (essencialmente mediatas e multi-determinadas).
Os juízos provisórios refutados pela ciência e por uma
experiência cuidadosamente analisada (e que se revelam falsos, portanto),
mas que se conservem inabalados diante deste fato e de todos os argumentos
da razão, são preconceitos. Portanto, nos diz HELLER, podemos concluir
pelo fato de que os preconceitos são, antes de mais nada, produtos da vida e
do pensamento cotidianos.56 O preconceito figura, deste modo, como a
principal categoria do próprio pensamento e comportamento cotidianos e,
muito embora os preconceitos desempenhem importantes funções em esferas
que se encontram acima da cotidianidade, não só não procedem
essencialmente das mesmas como, pelo contrário, também obstaculizam as
possibilidades humano-realizadoras destas.
Procedendo a uma rigorosa análise antropomórfica dos
preconceitos, HELLER conclui, inicialmente, haver uma fixação afetiva do
sujeito para com o preconceito. Seria por esta razão que a presumida

47
subversão iluminista dos preconceitos pelo uso da razão, haveria se
apresentado sempre como pouco exeqüível. É preciso que se considere, neste
sentido, que o principal afeto dos preconceitos é a fé.
Em termos antropológicos, para HELLER a fé nasce da
particularidade individual, servindo à satisfação de suas necessidades. A fé
carrega consigo a propriedade, como vimos, de resistir inabalavelmente ao
pensamento e à experiência concreta, ou, em outros termos, ao saber
científico. Estabelecer uma relação baseada na fé com preconceitos é cômodo
porque isso nos protege de conflitos, confirmando nossas ações. Dito de outro
modo, na medida em que não logramos realizar a vida em seus objetivos
através de sua verdadeira atividade humano-genérica, temos sempre a
possibilidade de estabelecer-lhe um sentido através de preconceitos.
Tomando como exemplo o preconceito de grupo, o homem
predisposto ao preconceito rotula o que tem diante de si e o enquadra numa
estereotipia de grupo. Desse modo, passa por cima até mesmo das
propriedades do indivíduo que não coincidam com as do grupo. E, mesmo
percebendo-as, registra-as como exceções à regra que acredita fundamentar
a idéia preconcebida sobre o grupo. Assim, as propriedades individuais
divergentes do estereótipo estabelecido são apreendidas pela idéia
preconcebida como se dando apesar da integração do indivíduo em questão a
seu grupo (e contrariamente a essa integração).
A questão de se saber qual grupo produz preconceitos, por quê e
como, é sem dúvida uma questão histórica, e como tal, só encontra
possibilidades se ser respondida por uma análise histórica. Mas o que
realmente deve nos interessar, assevera HELLER, não é a historicidade da
produção dos preconceitos (que está fora de dúvida), mas sim, se a
existência dos preconceitos é, enquanto tal, necessária, ou um fenômeno
histórico relativo. Por decorrência, a questão que se nos apresenta é: podem
os preconceitos desaparecerem? Segundo HELLER,

56 Cf. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 47.

48
...a possibilidade antropológica permanente do preconceito está
constituída pela estrutura da vida cotidiana, pelo “movimento do
individual -particular nessa cotidianidade e pelo seu pragmatismo diante
das relações sociais. (...) os grupos que se sentem ameaçados em sua
coesão produzem constantemente preconceitos sociais, satisfazem as
“demandas” do particular -individual e lhe emprestam conteúdo.
Portanto, os preconceitos poderiam deixar de existir se desaparecessem
a particularidade , que funciona com inteira independência do humano-
genérico, o afeto da fé, que satisfaz essa particularidade, e , por outro
lado, toda integração social, todo grupo e toda comunidade que se
sintam ameaçados em sua coesão.57 (itálicos nossos)

Por conseguinte, a possibilidade de seu desaparecimento


encontra-se diretamente relacionada à possibilidade de uma sociedade na
qual os homens superem a mera condição particular-individual, tonando-se
indivíduos humano-genéricos para-si, assumindo por si mesmos a condução
consciente de suas vidas. Naturalmente, esta sociedade presume que a
particularidade deixe de funcionar “independentemente” da humano-
genericidade. Segundo HELLER, numa tal sociedade não desapareceriam os
falsos juízos provisórios (frutos de generalizações necessárias à consecução
da própria vida humana), mas sim, a adesão a estes ditada pela fé. Em
outras palavras, desapareceria a cristalização de juízos provisórios sob a
forma de preconceitos. Mas, assevera HELLER,

...como numa sociedade dinâmica e mutável (como é o caso de toda


sociedade construída sobre a base de um indefinido progresso da
produção) sempre existem forças conservadoras e forças dinâmicas, e
como a possibilidade de elevar-se à condição de indivíduo real é dada
tão-somente a cada ente singular (o que de nenhum modo significa que
todo ente singular chegue a ser indivíduo [humano-genérico consciente –
n. de M.Z.]), torna-se então evidente que os preconceitos não podem ser
totalmente eliminados do desenvolvimento social. Mas é possível, em
troca, eliminar a organização dos preconceitos em sistema, sua rigidez e
— o que é mais essencial — a discriminação efetivada pelos

57 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 58.

49
preconceitos.58 (itálicos nossos)

Compartilhamos plenamente tais postulados. Nosso propósito


com as considerações até aqui apresentadas pretendem, acima de tudo, e a
partir de uma problemática focada no tema criatividade humana, chamar a
atenção de educadores (particularmente dos professores do ensino
fundamental) para o risco da cristalização de juízos que amiúde não
encontram respaldo efetivo quando analisados mais profundamente.
Não postulamos, aqui, uma pretensa relação asséptica e
cientificista, por parte de educadores, para com a realidade imediatamente
apreensível que nos envolve. Não presumimos o abandono de condições
consuetudinárias necessárias à consecução da própria vida social. O que
procuramos é chamar a atenção, nesse primeiro momento de nosso
raciocínio, para o fato de, ao nos sujeitarmos aos preconceitos, incorrermos
em equívocos que sujeitam a graves conseqüências o processo de
desenvolvimento (e, logo, de humanização) dos indivíduos que nos são
confiados no processo educativo. Já anunciamos, portanto, que nosso
propósito primeiro é o de contribuir para a desmistificação de juízos sobre
criatividade que, por razões e conhecimentos que consideramos
cientificamente procedentes, consideramos falsos, bem como passíveis de
serem superados.

58 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, op. cit., p. 58-59.

50
Capítulo II
Criatividade: aspectos conceituais

1. Conceitos e estudos tradicionais sobre criatividade

Sem dúvida, uma das questões que mais receberam atenção


junto ao meio científico, sobretudo a partir do primeiro quarto do século, é a
que diz respeito ao potencial humano para a criatividade. Este fato
encontrou grande sustentação e estímulo principalmente nos últimos
grandes feitos humanos, direta ou indiretamente ligados ao seu
desenvolvimento técnico-científico e sócio-cultural, advindos sobretudo do
pós I Grande Guerra.
Embora menções ao potencial criativo sejam encontradas em
épocas diversas da história, é sobretudo no século XX que encontraremos as
primeiras tentativas de sistematização de conceitos e estudos a seu respeito.
Segundo MIEL, o termo criativo alcançou uso mais freqüente
em fins da década de 1920 e princípios da década de 1930. O termo teria
sido, então, inicialmente adotado como sinônimo de ensino melhorado (o que
presumia o emprego de didáticas inovadoras) por parte de inúmeros
educadores. 1 Daí por diante, o termo passou a adjetivar tudo o que se
afastasse da tradição, fosse na escrita, nas artes plásticas, na arte
dramática, na dança, na música etc., quando tais formas de expressão
fossem consideradas únicas e originais.
A partir de então, o termo encontraria continuidade de emprego
também junto ao senso comum, que embora assimilado como sinônimo de
produção original, singular, passou a apresentar tendências cristalizadoras
quanto ao seu significado, principalmente ao incorporar, ao conceito, que
tais produções singulares só pudessem ser produzidas por indivíduos pouco

1 MIEL, Alice et. alii, Criatividade no Ensino, São Paulo, IBRASA, 1972, p. 11.

51
comuns e, portanto, atípicos.
Num sistema social impulsionado pela satisfação de questões
relacionadas às suas necessidades, necessidades estas que se reproduzem e
se complexificam a cada dia, tornou-se evidente que os indivíduos que
melhor contribuíssem para a resolução de “problemas” relacionados às
mesmas adquirissem importância distinta. Daí o interesse crescente
depositado, principalmente neste século, de ampliação vertiginosa de
necessidades, sobre as características do que fosse o homem criador,
inventivo, e o que explica o interesse explosivo de muitos setores da
comunidade científica sobre o assunto.
Assim, a autora em questão acrescenta:

Criatividade, como conceito separ ado de um contexto determinado,


começou a atrair a atenção geral e um cuidadoso exame na década de
1950. Em uma coleção de resumos de literatura selecionada em
psicologia e psiquiatria, referente à criatividade, quase metade dos
trabalhos escolhidos data de 1950 a 1959, embora seja abrangido um
período de quase cem anos. Dos doze simpósios e estudos da literatura
sobre criatividade relacionados na coleção, oito foram publicados na
década de 1950.2 (itálicos nossos)

TAYLOR, uma outra autoridade sobre o assunto nos anos 60,


por sua vez assinala que, embora a criatividade haja sido tópico de interesse
em toda a história da humanidade, somente raros artigos de pesquisa sobre
o assunto surgiram na literatura científica até o princípios do século. E
acrescenta que, a partir de 1955 esse quadro modificou-se de modo radical.
Basta, para assimilar-lhe a extensão, observar, como ele próprio assinala, a
extensa lista de obras em que se pauta para a realização deste seu trabalho3
— 750 edições, aproximadamente, de autores diversos, cuja bibliografia
ocupa as 37 páginas finais das 281 constantes neste seu livro, produzidas

2 STEIN, C.M.I. & HEINZE, S.J., Criativity and the Individual. Glencoe, Illinois : The
Free Press, 1960. (apud MIEL, Alice, op. cit., idem, ibidem).
3 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, São Paulo : IBRASA, 1976, p.
22.

52
sobretudo a partir dos anos 50.
Para MIEL e seus colaboradores do Teachers College,
Universidade de Columbia, EUA, a criatividade teria sido principalmente
descrita, até então, como o “processo de relacionar coisas não relacionadas”
(citando P. Smith, 1959, p.18) ou da constituição de “deliberado processo de
fazer uma nova combinação ou disposição de materiais, movimentos,
mundos, símbolos ou idéias e de alguma forma colocar o produto à
disposição de outras pessoas, visivelmente ou por outros meios” (citando D.
Schary, na 15ª Conferência Anual sobre Educação Superior de Chicago,
1960). Entretanto, assinala que para alguns autores, só haveria
“criatividade”, se o produto resultante fosse reconhecido como excepcional,
segundo a avaliação de indivíduos competentes. Estes avaliadores
“competentes” seriam, sobretudo, pesquisadores do comportamento humano.
De modo geral, segundo MIEL, aceita-se que esteja
demonstrada a qualidade de criatividade se o indivíduo faz algo novo para
si, que seja satisfatório e que, nesse sentido, seja útil para ele; se relaciona
coisas que antes não estavam relacionadas em sua experiência e se o
produto é surpreendente, isto é, novo para ele e demais pessoas. 4
Por fim, assume o conceito de que a criatividade deve ser o
resultado de um processo deliberado, surgido a partir de um ato
intuitivamente frutífero, cujo produto seja, finalmente, considerado como
verdadeiro — isto é, na acepção da autora, precisa ser construtivo, levando
na direção de crescimento e vida, em oposição a destrutivo, com
características de dano e morte. Julga que, ao invés de rotular-se um
determinado processo como “criativo” ou “não-criativo”, dever-se-ia
estabelecer uma certa escala que variasse entre um tanto criativo e um
altamente criativo, conforme o grau de utilidade do produto. 5 Este conceito
de criatividade, por conseguinte, está intimamente relacionado ao juízo de
que, a princípio, a criatividade deva ser avaliada em função da utilidade de

4 MIEL, Alice et. alii. Criatividade no Ensino, op. cit., p. 24.


5 MIEL, Alice et. alii. Criatividade no ensino, p. 25.

53
que se reveste seu produto.
O indivíduo considerado criativo viu-se, por conseguinte, de
todos os modos investigado e avaliado. Inúmeras hipóteses surgiram a seu
respeito, de sua produção à sua possível reprodução. Superdotado, especial,
excepcional, são apenas algumas das denominações que viria a receber.
Para MITJÁNS, a conferência intitulada Creativity, proferida
em 1950 por P. Guilford, então presidente da American Psychological
Association, traduziu-se num dos principais impulsos para a deflagração de
inúmeras pesquisas sobre o assunto, principalmente nos EUA 6, e,
concordante com este fato, SISTO acrescenta a importância dos trabalhos
desenvolvidos por J. P. Torrance (anos 60), para o surgimento dos principais
instrumentos de avaliação de potenciais criativos. Dentre estes, merece
especial destaque o Test of creative thinking, de Torrance, que viria a se
tornar referência para todos os demais, pautando-se principalmente em
critérios como a fluência e originalidade dos processos e produções criativos
(fatores estes avaliados em termos estatísticos), e flexibilidade e
originalidade de elaboração (fatores submetidos a critérios denominados
qualitativos/quantitativos). 7 Entretanto, contrariamente à posição de
Guilford, Torrance não vincula seus trabalhos a considerações teórico-
conceituais sobre o assunto, e sim, a tentativas experimentais de
diagnósticos e prognósticos acerca da manifestação dos potenciais criativos
entre os indivíduos. Segundo SISTO,

A ruptura com a busca de uma teoria psicológica que englobe a


criatividade, a partir dos trabalhos de Torrance, deu ênfase aos
resultados e não às causas ou mecanismos que a tornam possível,
deixando os estudos sobre a criatividade sem inserção em um sistema
teórico mais amplo, que lhe dê sustentação e explicação no contexto do
comportamento humano. Transladou-se, dessa forma, o eixo da
discussão do plano teórico para o plano pragmático, no qual se destaca o

6 MITJÁNS MARTINEZ, A. – Criatividade, personalidade e educação. Campinas,


Papirus, 1997.
7 SISTO, F. F. – Criatividade e pensamento operatório: validade de constructo. Psico-USF,
Bragança Paulista : v.3, n.1, p. 31-49, jan./jun., 1998.

54
produto encontrado.8

Por decorrência, enfatiza o autor, o problema da validação do


constructo se converteu em uma das maiores dificuldades relacionadas ao
assunto, já que os pesquisadores passaram a dispor de instrumentos
psicométricos, sem contudo saberem ao certo o que mediam.
De fato, embora TORRANCE defina o pensamento criativo
como “o processo de perceber lacunas ou elementos faltantes perturbadores;
formar idéias ou hipóteses a respeito deles; testar essas hipóteses; e
comunicar os resultados, possivelmente modificando e retestando as
hipóteses”, salientando ainda a necessidade de se “compreender a natureza
do processo criativo” 9, este autor em momento algum discute, com maior
profundidade, o que entende pela “natureza do processo criativo” a que se
refere, restringindo-se, tão-somente, a aspectos estritamente descritivos dos
processos de criação e seus resultados.
Por sua vez, TAYLOR, que no trabalho aqui citado, se
propunha a resumir o conhecimento sobre criatividade do período e indicar
“algumas das mais promissoras pistas e das mais urgentes necessidades de
pesquisa” de sua época 10, justifica assim seu objeto de interesse:

Existe atualmente competição em torno das próprias mentes humanas.


Entre os fatores que decidirão o resultado dessa competição, a
criatividade é um dos mais importantes. Terão sentido tanto a
quantidade quanto a profundidade da criatividade nos vários campos do
conhecimento e em diferentes nações. Como os atos criativos afetam
profundamente não só o progresso científico mas a sociedade em geral,
poderão encontrar-se em posições muito vantajosas os países que melhor
aprenderem a identificar, desenvolver e estimular o potencial criador de
seu povo. Uns três ou quatro espíritos criadores, apenas, podem fazer
diferença crucial, e muitos de nossos modernos meios de transporte,

8 SISTO, F. F. – Criatividade e pensamento operatório: validade de constructo. Psico-USF,


Bragança Paulista : v.3, n.1, p. 31-49, jan./jun., 1998.

9 TORRANCE, E. P., Criatividade: medidas, testes e avaliações. S. Paulo, Ibrasa, 1976, p.


34.
10 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, p. 15.

55
comunicação e produção podem ser atribuídos ao pensamento criador de
um número relativamente pequeno de pessoas.11

Notamos, aqui, a tendência, por parte destes estudos, a


considerações cada vez mais particularizadas sobre o assunto, que redunda
em centrar a atenção nas expressões particulares da atividade criativa
individual. Esta tendência, muito significativa neste período da história da
ciência, marcará sensivelmente o caráter das pesquisas e conceituações
posteriores.
Para estes representantes de dado pensamento científico, o
potencial humano para a criatividade existe generalizadamente. Contudo,
dadas as variabilidades de suas condições, expressas a partir de sua
freqüência, tipo e nível, os indivíduos podem ser mais ou menos criativos e
suas produções mais ou menos úteis, sendo que os processos de criação não
devem ser confundidos com os resultados das mesmas.
Mas de que ponto de vista sustentam estes autores e seus
colaboradores as determinações do pensamento criativo e sua variabilidade,
segundo os indivíduos? É TAYLOR quem nos fornece algumas elementos
para o esclarecimento de tal questão:

Admitem os autores que a criatividade emerge no nível adulto como


complexo resultado de muitos fatores ligados à hereditariedade e à
história da própria vida de cada um. As muitas variáveis relevantes
dentro dessas duas categorias extremamente amplas também podem
interagir. Os esforços atuais poderiam caracterizar-se, em parte, como
tentativas para reconhecer e medir as principais variáveis internas e
externas que levam ao desempenho criativo, ou o afastam.12

Desta forma, os pesquisadores citados apresentam-se como


importantes referenciais de uma dada época e, tanto quanto, de uma
determinada forma de conceber-se o ser humano e seus atributos. Esta
concepção de ser humano nos sugere a presença de preceitos pragmáticos,

11 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, p. 22.


12 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, p. 28.

56
fundamentados sobretudo em pressupostos naturalistas do desenvolvimento
humano.
TAYLOR, ainda ocupado com o papel da criatividade nos rumos
da corrida internacional pela hegemonia técnico-científica e econômica do
globo, e imbuído do mais típico espírito competitivo de sua época, chega a
tecer considerações como as que seguem:

Se queremos sobreviver na competição internacional, a mais promissora


solução para esse vital problema de mão-de-obra consiste em a nação
estimular e apoiar a identificação e o desenvolvimento de vários tipos de
pessoal importante. Um desses tipos é a pessoa altamente criativa, pois
até mesmo umas poucas dessas pessoas na ciência podem impulsionar
vigorosamente nosso movimento científico — lembremo -nos da corrida,
durante a Segunda Grande Guerra, pelo desenvolvimento da bomba
atômica. (sic!) O cientista criador também pode melhorar amplamente o
pensamento, as práticas e os materiais, em geral.13

Um problema substancial em tais considerações, ao nosso ver,


assenta-se no fato de serem desenvolvidas a partir de uma abordagem
eminentemente não-historicizadora do desenvolvimento humano, muito
embora haja, em certos momentos, a eventual alusão a uma certa história,
conquanto concebida de forma distinta da que aqui adotamos. Isto se torna
particularmente evidente em falas como a que se segue:

O grau de esclarecimento do homem atual, particularmente em certos


campos, assim como sua vasta produção de bens materiais, pode em
grande parte ser atribuída ao desempenho criativo de indivíduos no
decurso da História...”, entendido este desempenho como “...a luta do
homem para melhorar seu conhecimento, conquistar o desconhecido e
criar novas idéias e coisas novas e mais úteis.14

Mesmo suscitando certa historicidade nas produções humanas


e devendo-as, sobretudo, ao caráter criativo de tais produções, a história é

13 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, p. 23.


14 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, p. 22-23.

57
concebida, antes de tudo, como o resultado de um aprimoramento filogênico
e de interações sócio-ambientais da humanidade. A história, aqui,
corresponde às sucessivas “lutas” da humanidade com seu meio natural e,
tanto quanto, ao desenrolar dos eventos, conhecimentos e produtos mais
significativos, que se registraram e acumularam espaço-temporalmente
durante o processo de aprimoramento evolutivo da humanidade.
Outros autores, como KNELLER, um representante transitório
entre o pragmatismo até aqui suscitado e uma posição que lança mão de
elementos da psicologia humanista sobre o tema, afirma que:

...o pensamento criador é inovador, exploratório, aventureiro. É


impaciente diante do que é convencional e atraído pelo desconhecido e
indeterminado. O risco e a incerteza o estimulam constantemente. O
pensamento “não-criador”, por sua vez, é cauteloso, metódico,
conservador. Absorve o novo no já conhecido e prefere dilatar as
categorias existentes a inventar novas. (...) O pensamento 'não-criador'
seria aquele que, em grande parte, vem sendo medido por testes de
inteligência. Estes, em geral, exigem respostas únicas e corretas a
problemas bem definidos. A pessoa submetida deve recordar, reconhecer
e resolver a partir do que já conhece, mas não inventar ou explorar a
partir do desconhecido. Tais testes não nos convidam a especular ou
contribuir com idéias originais. 15

KNELLER difere suas considerações das apresentadas pelos


demais autores, já que refere-se à criatividade a partir de um princípio
valorativo agora vinculado à importância de sua expressão para o
desenvolvimento pessoal dos indivíduos, remetendo-se ao processo criativo
como caracteristicamente transformador. Há, aqui, uma noção ampliada do
que seja potencial criativo, suas possibilidades e fins, que não tão-somente
fundada no valor utilidade determinado por interesses meramente
contextuais. Assim é que, pautado em autores como C. Rogers, KNELLER
toma o potencial criador enquanto via legítima de uma auto-realização do

15 KNELLER, G. F. Arte e Ciência da Criatividade. São Paulo : IBRASA, 1973. p. 78.

58
indivíduo ou, nos termos de Rogers, um meio vital para sua auto-
atualização.
É oportuno mencionar que, para ROGERS, a tendência do
homem para auto-realizar-se é “a tendência para se realizar a si próprio,
para se tornar no que em si é potencial”.16 Esta tendência encontrar-se-ia
presente em todos os indivíduos, aguardando, de modo latente, as condições
que lhe serão propícias para libertar-se e manifestar-se. Por conseguinte, a
criatividade seria, para ROGERS, “a tendência para exprimir e ativar todas
as capacidades do organismo, na medida em que essa ativação reforça o
organismo ou o eu”.17
Por esta perspectiva, o processo criativo consta como a
emergência de um novo produto relacional, que surge da singularidade do
indivíduo e dos objetos, acontecimentos ou circunstâncias de sua vida. Kubie
e Maslow aditam que a criatividade teria suas raízes no não-racional, sendo
necessário, para sua emergência, chegar até suas fontes não-conscientes,
fazendo uso dos processos primários e aceitando os próprios impulsos, de
forma espontânea. 18
É de se ressaltar, portanto, que ainda aqui os aspectos
possivelmente históricos do desenvolvimento de tal potencial apresentam-se
estanques. Ou seja, KNELLER e ROGERS, assim como outros pensadores
humanistas, situam suas considerações sobre o potencial criativo tão-
somente no nível de indivíduos que, de modo particularizado, deparam-se
com o desafio constante de desenvolver seus potenciais em um contexto
fenomenológico imediato, pessoal e abstraído dos elementos que concreta e
historicamente multideterminam os processos criativos e seus propósitos.
Contudo, se às abordagens tradicionais acerca da criatividade
ainda não foi possível compreender e conceber com segurança o que seja seu

16 Cf. ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. Lisboa, Moraes Editores, 1970, p. 302.
17 ROGERS, Carl. Toward a theory of creativity, p. 72. (apud ASSUMPÇÃO, J. A. M. –
Criatividade e orientação educacional. São Paulo, Autores Associados, 1981, p. 19).
18 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. de, Psicologia da Criatividade, p. 34.

59
objeto de estudos, por outro lado elas próprias deparam-se com indícios do
que provavelmente não venha a ser. Isto ocorre particularmente quanto aos
aspectos e questões relacionadas à inteligência.
Neste sentido, autores como KNELLER nos assinalam que a
inteligência não implica em criatividade, sendo que o inverso também não se
apresenta como necessariamente verdadeiro.19
Já na década de quarenta, pesquisas como as de WITTY,
demonstravam que o mau rendimento de alguns estudantes de “elevado QI”
(quociente inteligente) e o bom rendimento de outros, de “baixo QI”,
bastavam para apontar que a inteligência raramente explica o rendimento
escolar e o desempenho acadêmico.20
A mesma posição já era defendida também por TORRANCE, ao
sustentar que ao se lançar um segundo olhar sobre os testes de inteligência,
muitas deficiências acabaram por se evidenciar. Uma das principais estaria
relacionada à sua ênfase em elementos do pensamento convergente (também
denominado conformista) estritamente ligados somente aos processos
“inteligentes”, desconsiderando-se, por outro lado, os aspectos relacionados
ao pensamento divergente (principal característica dos processos criativos).21
E, justamente pelo pensamento criativo ser essencialmente especulador e
inovador, torna-se absolutamente questionável o uso de instrumentos
baseados em condutas e valores esperados (se é que tais critérios possam
validar os não menos controvertidos testes de QI, cuja validade estes autores
defendem no que se refere a avaliações de inteligência).
Contudo, considerações ligadas a um suposto padrão de
inteligência em geral exercem ainda uma mística atração e influência, até
nossos dias, sobre a concepção e conduta pedagógica de inúmeros educadores
ligados tanto à teoria quanto à prática educativa, parâmetros estes ainda
presentes a muitas conclusões acerca do sucesso ou fracasso escolares.

19 KNELLER, G. F., Arte e Ciência da Criatividade, op. cit., p. 20.


20 WITTY, P. A., (apud G.F. Kneller, Arte e Ciência da Criatividade, op. cit., p. 21).
21 Cf. TORRANCE, E. P., Criatividade: medidas, testes e avaliações, p. 36-37.

60
Pelos aspectos e considerações levantados, procuramos
caracterizar, ainda que de modo breve, a forma pela qual a questão da
criatividade humana veio sendo abordada, pelas duas principais
perspectivas que têm, historicamente, se apropriado do assunto, ainda que
tais abordagens possam ser consideradas essencialmente distintas, como a
pragmática e a fenomenológica-humanista. Independentemente dos aspectos
epistemológicos a que uma tal discussão nos remeteria, e as considerações
dos inúmeros outros estudiosos e pensadores que de alguma forma se
manifestaram a este respeito, tomamos, como constatação inicial de nosso
raciocínio, as seguintes observações:
• A abordagem pragmática visa a criatividade humana em
termos da utilidade de suas produções para o indivíduo e para sua
sociedade; a criatividade é uma potencialidade generalizada humana mas,
como há extensa variabilidade nos caracteres individuais, sua ocorrência e
nível de produção são funções da relação havida entre heranças genéticas e
repertórios comportamentais adquiridos por seus indivíduos,
particularizadamente. A abordagem pragmática visa ainda desenvolver
métodos experimentais para a aferição, prognosticação (predictors) e
categorização da criatividade humana e, por fim, pretende que tais métodos
visem o próprio processo de “aprendizagem”, de modo a proporcionar
métodos e técnicas que atinjam o propósito maior de identificação de
indivíduos criativamente superiores e sua adequada estimulação para
atividades e produções interessantes e úteis para si próprios e seu meio
social.
• A abordagem pautada em preceitos da psicologia humanista
visa a criatividade enquanto via de auto-realização pessoal; a criatividade é
também uma atribuição inerente a todo ser humano, e por ela o ser humano
especula, explora e transforma sua realidade, conquanto, a princípio, de
modo também particularizado. Há diferenças individuais quanto ao
potencial criativo, em função da liberação ou repressão do poder criativo de
cada indivíduo.

61
Em síntese, há em tais pressupostos a ausência de uma análise
mais ampla do fenômeno da criatividade humana, uma vez que a ação
criativa é tomada enquanto coisa per se, seja de modo natural e
individualizado, ou mesmo primitivista e subjetivado.
Uma das principais limitações apresentadas por tais concepções
do fenômeno criativo, ao nosso ver, refere-se ao fato de permitir que a
criatividade possa ser tomada enquanto algo per se, ou seja, de modo parcial,
abstraído do caráter histórico-social (genérico) da humanidade, aspecto este
que consideramos essencial a uma compreensão real, concreta, da atividade
criativa para a humanidade, e cuja historicidade, como já anunciamos, não
coincide, em nossa concepção, ao aprimoramento filogenético da espécie.
Por fim, conforme nossas investigações 22 e concordante com o
que salienta ALENCAR, quanto ao status atual do assunto, embora não haja
consenso, em termos teórico-científicos, quanto ao significado exato do que
deva designar o termo “criatividade” (principalmente pela multiplicidade de
definições existentes), podemos notar aspectos gerais muito próximos quanto
às definições existentes sobre esta faculdade, ainda que por pressupostos
diversos. Estes aspectos comuns referem-se à caracterização geral e comum
da criatividade como “a emergência de um produto novo, seja uma idéia ou
invenção original, seja a reelaboração e aperfeiçoamento de produtos ou
idéias já existentes”23.
Considerações muito semelhantes nos propõe MITJÁNS, ao
afirmar que:

No caso da Psicologia, existem incontáveis definições acerca do que se


entender por Criatividade, que são como gotas de água que caem em um
oceano onde desaparecem, já que o próprio desenvolvimento alcançado
por nossa ciência não nos tem permitido encontrar uma definição que
supere todas as ambigüidades semânticas e conceituais existentes até

22 Referimo-nos aos estudos e/ou considerações de WOLFLE (1971), MIEL (1972),


KNELLER (1973), BEAUDOT (1975), TORRANCE (1976), TAYLOR (1976), GUILFORD
(1977), NOVAES (1977), ALENCAR (1986), OSTRÖWER (1987), VIGOTSKY (1987),
MARTINEZ et alii (1995).
23 Cf. ALENCAR, E.M.L.S. - Psicologia da Criatividade, p. 11-12.

62
agora para caracterizá-la. Na etapa atual de nossa disciplina, seria mais
válido falar de uma caracterização da criatividade que de uma definição
da mesma.24 (itálicos nossos).

E, prosseguindo, salienta que poderíamos caracterizar a


criatividade como “um processo de descobrimento ou produção de algo novo,
valioso, original e adequado, que cumpra com as exigências de determinada
situação social, na qual se expressa o vínculo dos aspectos cogniscitivos e
afetivos da personalidade”. 25 Com efeito, estas parecem ser as
caracterizações acerca da criatividade mais comuns aos estudos e
abordagens existentes sobre o tema, até presentemente.
Independente das possíveis definições (ou indefinições)
existentes sobre o assunto, segundo MITJÁNS haveria atualmente,
sobretudo em Psicologia (a principal área de conhecimento a lançar-se sobre
o tema), cinco enfoques globais fundamentais sobre o estudo da criatividade:

1. O que dá ênfase ao processo. Inclui os trabalhos que visam descrever e


explicar como transcorre o processo criativo e o que nele intervém.

2. O que dá ênfase ao produto. Inclui os trabalhos que abordam a


criatividade a partir de precisar as características do produto “criativo ”.

3. O que dá ênfase às condições. Inclui os trabalhos dirigidos a explorar


as situações ou condições que possibilitam ou não a atividade criadora.
Entre estes estudos, se destacam os que têm por objeto a análise dos
vínculos e grupalidade (sic), e suas influências na atividade criadora.

4. O que dá ênfase na personalidade . Inclui os trabalhos dirigidos a


revelar as qualidades, características, elementos ou processos
psicológicos subjacentes que possibilitam a criatividade.

5. O que dá ênfase na integração. Inclui os trabalhos que não enfatizam


um ou outro elemento, mas que intentam explicar a criatividade em
função da integração ou conjunção de mais de um dos aspectos citados

24 Cf. MITJÁNS MARTINEZ, A. et alii, Pensar y Crear: estratégias, métodos y programas.


La Habana, Ed. Academia, 1995, p. 3-4.
25 Cf. MITJÁNS MARTINEZ, A. et alii, Pensar y Crear: estratégias, métodos y programas,

p.4.

63
(geralmente, o sujeito e as condições).26 (itálicos nossos).

Analisando os enfoques mencionados e considerando-se suas


principais ênfases — quais sejam, sobre os processos, sobre os produtos,
sobre as condições de produção ou sobre as características da personalidade
criativa —, é possível constatar que as mesmas referem-se, como dissemos,
tão-somente aos aspectos imediatamente perceptíveis, pertinentes ao
fenômeno criativo. Nesse sentido, todos os principais estudos e enfoques
existentes visam uma relação eminentemente positiva com os elementos
próprios à criatividade.
Entretanto, e embora, como ressaltamos, tais estudos e
proposições hajam contribuído, em grande medida, para inúmeros debates e
avanços com relação ao tema em questão, consideramos tais aspectos como
pertencentes a leituras ainda parciais da natureza concreta da criatividade
humana e, principalmente, passível de dicotomizações entre homem criador
e não criador, o que sem dúvida repercutiu e repercute, lato sensu, nas
considerações cotidianas acerca do “indivíduo criativo”. Necessário se faz,
portanto, que investiguemos qual seja a natureza concreta da criatividade à
qual nos referimos. Esta natureza não pode ser devidamente apreendida ao
se considerar apenas as características da atividade criativa de
determinados indivíduos, como também não por se analisar as
características do produto oferecido, ou, ainda, as condições que envolvem a
produção dita criativa.
Uma tal tarefa implica, necessariamente, que inicialmente
reconsideremos, em termos heurísticos, as questões que tradicionalmente
têm sido formuladas em tais estudos. Assim, defendemos que as questões
“quem produz”, “o que produz” e “como produz” sirvam tão-somente à
caracterização positiva dos elementos que envolvem os processos de criação,
mas não se prestam à elucidação da real natureza genética da atividade

26 Cf. MITJÁNS, A. - Creatividad, Personalidade y Educación, Introdução, p. VIII.

64
criativa humana. Ora, isto nada mais representa que nos perguntarmos,
antes de mais nada, o que é criatividade? Para que esta questão possa ser
adequadamente investigada e compreendida, por deconrrência, necessário se
faz que uma questão precedente às demais seja realizada: por que, afinal, é
possível ao homem produzir? E no que implica uma tal questão, senão que
nos remete à elucidação do que seja o próprio ser humano, uma vez que a
atividade transformadora produtiva somente ao homem seja possível?
Eis que nos deparamos, aqui, com o caráter defendido como
ontologicamente criativo do próprio gênero humano. E, como procuramos
demonstrar no capítulo precedente, esta “natureza genérica” é necessária e
ineliminavelmente histórico-cultural. Logo, sob nossa perspectiva, tornam-
se não só incompletas (parciais) as considerações tradicionalmente
existentes sobre a criatividade, como passíveis de grandes equívocos ao
pautarem as suas avaliações e conceituações tão-somente sobre
individualidades e suas características particulares. É esta parcialidade
teórico-conceitual, fundamentalmente a-histórica, que concorre para a
corroboração de interpretações e conclusões obtusas, inverossímeis e
motivadoras em potencial de discriminações infundadas sobre a
singularidade das expressões criativas humanas. E é sobre esta ontologia
da atividade criativa que nos debruçamos agora.

2. Sobre a ontologia humano-genérica da atividade criativa

Como vimos, o ser humano constituiu-se enquanto tal a partir


do desenvolvimento de condições de intervenção sobre a natureza e si
mesmo que o diferiu radicalmente das demais espécies. Isto foi possibilitado
pelo desenvolvimento da consciência, que veio possibilitar a
intencionalidade de suas ações. Agir intencionalmente significa projetar,
com antecedência, o resultado de uma ação no devir e, assim agindo, o
homem foi capaz de desenvolver inúmeras formas de satisfazer suas
necessidades, a começar por modificar a própria natureza para tais fins. A

65
este processo de transformação da natureza, segundo fins determinados,
chamamos trabalho.
MARX teria sintetizado de modo muito adequado tal
característica intencional da atividade humana, valendo-se da seguinte
elucidativa observação:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha


envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos
de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de
construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e,
portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da
forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural,
seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de
sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.27

Se observarmos que os principais conceitos acerca da


criatividade presumem o estabelecimento de correlações entre elementos
diversos com o fim de atender de modo singular uma necessidade ou
propósito determinado, haveremos de considerar que toda e qualquer
atividade transformadora humana encerra, necessariamente, o caráter de
criatividade. Presumimos, portanto, que toda e qualquer atividade humana
(baseada em conhecimentos diversos e projetada no devir), é, necessária e
essencialmente, criativa.
Esta concepção da atividade criativa encontra eco em algumas
raras propostas de estudo, particularmente advindas de educadores como
CARMONA, que nos diz:

Na análise do processo de desenvolvimento da criatividade mediante o


trabalho manual, temos partido da concepção filosófica que concebe o
progresso da humanidade vinculado à criação como resultado histórico
do desenvolvimento da sociedade, ou seja, que a criatividade constitui
uma qualidade essencial do homem, desenvolvida em seu devenir

27 MARX, K. O Capital: crítica da economia política. op. cit., p.142-143.

66
histórico dado o caráter ativo de seu psiquismo.28

Ainda que os objetivos do referido autor não se diferenciam,


fundamentalmente, dos pertinentes às demais abordagens, pois que buscam,
ainda assim, conhecimentos e estratégias que visam o desenvolvimento do
potencial criativo per se, existe aqui uma diferença essencial, em termos
epistemológicos, entre seus pressupostos e os que fundamentam as demais
concepções sobre criatividade já mencionadas: aqui, o devir histórico surge-
nos enquanto principal pressuposto, e a criatividade funda-se por
conseguinte na própria ação transformadora que rege todo o
desenvolvimento e atividade humana, ou seja, o trabalho.
Mas ao nos referirmos ao trabalho enquanto a atividade
essencialmente humana, precisamos ainda esclarecer melhor o que
desejamos dizer com isso. E, recorrendo a VÁZQUEZ, compartilhamos com o
mesmo o fato de que:

A atividade propriamente humana só se verifica quando os atos


dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado
ideal, ou finalidade, e terminam com um resultado ou produto efetivo,
real. Nesse caso, os atos não só são determinados casualmente por um
estado anterior que se verificou efetivamente — determinação do
passado pelo presente ---, como também por algo que ainda não tem uma
existência efetiva e que, não obstante, determina e regula os diferentes
atos antes de culminar num resultado real; ou seja, a determinação não
vem do passado, mas sim do futuro.29

Esse caráter essencialmente teleológico, que caracteriza a


atividade da própria consciência (que, como sabemos, assenta-se no
distanciamento reflexivo entre sujeito e objeto e, por conseguinte, entre
finalidade e ação), representa a própria marca da genericidade humana,
qual seja, seu caráter intencionalmente transformador. Desta forma, como

28 CARMONA, G.B. Creatividad y trabajo manual. PSICO-USF, v. 2, n. 2., p. 31-38,


jul./dez., 1997, p. 35.

67
salienta VÁZQUEZ, “Se o homem aceitasse sempre o mundo como ele é, e se,
por outro lado, aceitasse sempre a si mesmo em seu estado atual, não sentiria
a necessidade de transformar o mundo nem de transformar-se.” 30 Assim fosse
e certamente estaria suprimido o próprio caráter ontologicamente
transformador, próprio ao gênero humano.
A atividade da consciência se nos apresenta, portanto, como
inseparável de toda atividade verdadeiramente humana. Quando a
atividade consciente, teleológica, torna-se passível de transformar a
realidade concretamente, isto é, objetivando sua finalidade, deparâmo-nos
com a condição efetivamente genérica de toda atividade humana, e esta
condição é o que chamamos praxis.
Entretanto, para VÁZQUEZ, a atividade da consciência per se
(ou seja, que se limita à esfera da idealização) em se tratando de uma
atividade eminentemente teórica (pois que não pode conduzir, por si só, a
transformações da realidade), não é, por esta razão, praxis. Da mesma
forma, o mesmo pode ser dito quando nos deparamos com a esfera
puramente prática da atividade humana. Prescindindo de uma relação
consciente para com o significado da atividade, também neste caso a praxis
humana perde seu caráter humano-genérico. Neste sentido, não mais
poderíamos falar em praxis, mas sim, em simples atividade prática.
Entendido, pois, o caráter humano-genérico da praxis, devemos
supor, por decorrência, que a atividade criativa a que nos referimos não se
confunde com a mera atividade prática, muito embora por ela se exprima. A
atividade humano-genérica a que chamamos praxis implica em relação
consciente do sujeito para com o objeto de sua ação e, por conseguinte, para
com a finalidade da mesma. É somente nesses termos que podemos supor a
atividade criativa como efetivamente transformadora de realidades, e não
apenas de matérias-primas inertes.

29 VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Praxis. Trad.: Luis Fernando Cardoso. 3. ed., Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 187.
30 VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da Praxis. op. cit., p. 187.

68
Vemos, deste modo, que a atividade criativa, tal qual a
concebemos, confunde-se, isto sim, com a própria praxis e, portanto, a ela
fundamenta e nela se funda.

69
3. Processos de criação e desenvolvimento humano

Concordamos com o pressuposto conceitual mais ou menos


comum já apresentado anteriormente, que sugere os processos criativos
como o oferecimento de novos elementos ou produções para a realidade, a
partir de reelaborações de materiais e conhecimentos já disponíveis,
considerando-se ainda que estas produções possam se apresentar sob formas
e graus diversos, de acordo com as características próprias do
desenvolvimento de cada individualidade producente (o que determinaria e
garantiria a singularidade de tais produções).
Entretanto, embora tratem-se de reelaborações sobre e para a
realidade (subjetiva e objetiva, inextricavelmente), devemos pôr em relevo
que o indivíduo que nos propõe algo de novo não o faz a partir de associações
mecânicas e espontâneas entre determinados elementos. Devemos ter em
mente que estas reelaborações se dão a partir de um processo
imponderavelmente complexo, que traz, em sua base, o processo de
apropriação de conhecimentos no decorrer da história de seu
desenvolvimento pessoal.31
Logo, e grosso modo, podemos considerar a existência de um
estreito vínculo entre a aquisição de elementos primários para tais
reelaborações sobre a realidade (conhecimentos humanos assimilados pelo
indivíduo particular) e as características das atividades e produtos que nos
são apresentados por tais indivíduos.
Para a compreensão científica dos processos criativos,
VIGOTSKI 32 sugere que tomemos inicialmente a existência de dois tipos
básicos de “impulsos” quanto à realização das atividades humanas. O

31 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, Colonia del Carmo, Mex.:
Hispánicas, 1987.
32 Nota: para evitarmos ambigüidades devidas às diversas grafias existentes sobre o
sobrenome do autor (p. ex., Vigotsky, Vygotski, Vygotsky, Vigotski, Vigotskii ou ainda
Vigoskii), optamos pela forma aportuguesada mais recente, difundida no Brasil, ou seja,
Vigotski. Contudo, as referências bibliográficas mantêm-se fiéis às grafias das respectivas
edições nacionais e estrangeiras.

70
primeiro é o que denominou reprodutor ou reprodutivo (estreitamente
vinculado aos processos mnemônicos) e que tem por principal característica
a reprodução, seja de informações, impressões ou normas de conduta já
criadas e elaboradas. Ao recordarmos a existência de fatos, objetos e
impressões de experiências do passado, ou quando nos lançamos a
representar fidedignamente a natureza, descrever dada situação ou
representar uma dada imagem, não fazemos mais que reproduzir o que foi
assimilado anteriormente. Esses casos, nos diz VIGOSTSKI, têm em comum
o fato de que a atividade em questão não cria algo de novo, limitando-se a
repetir, com certa margem maior ou menor de precisão, algo previamente
existente. 33
Além de permitir reconhecer fatos e coisas, a função
reprodutiva do cérebro é de fundamental importância para que os homens
logrem realizar diversas atividades e agir de forma eficiente diante das mais
diversas situações, segundo condutas e ações utilizadas em condições
semelhantes. Ora, este fato é imprescindível para a própria sobrevivência e
podemos perceber que o pensamento reprodutivo proposto por VIGOTSKI
apresenta-se como mais um elemento necessário à consecução da esfera da
vida cotidiana proposta por Heller (vide Capítulo I, Vida Cotidiana).
Todavia, se a atividade cerebral se limitasse à reprodução e
conservação de experiências, o homem não seria capaz de ajustar-se às
mudanças que forçosamente ocorrem em seu meio. Aqui deparâmo-nos com
a segunda espécie de atividade do cérebro humano, ou seja, a atividade
criadora ou combinadora. Por ela não nos limitamos a reproduzir fatos e
impressões vividas, mas criamos e reelaboramos imagens e ações para o
devir.
Portanto, além de ser capaz de conservar e reproduzir nossas
experiências, o cérebro é também um órgão combinador e criador, passível
de reelaborar, a partir dos elementos de nossas experiências, novas formas e
projeções. Fosse o contrário e o homem seria um ser condenado a repetir o

33 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 7-8.

71
passado e voltado exclusivamente para o agora. Portanto, segundo
VIGOTSKI, “É precisamente a atividade criadora do homem que faz dele um
ser projetado para o futuro, um ser que contribui criando e modificando seu
presente”. 34 Desta forma, podemos concluir, em primeiro lugar, que todo
processo ligado à atividade criadora tem, por base, a inadaptação, fonte
suprema de todas as necessidades humanas.
A atividade criadora estaria, ademais, na base de todos os
aspectos da vida cultural, possibilitando as manifestações artísticas,
científicas e técnicas. Desta forma, tudo o que nos rodeia e que haja sido
criado pelos homens (todo o mundo cultural, portanto) se diferencia do
mundo natural precisamente por ser produto da imaginação humana, ou,
por outros termos, algo como fantasia cristalizada.
Este raciocínio vem reforçar nossas afirmações sobre o caráter
ontologicamente criativo do gênero humano. Nas palavras de VIGOTSKI:

Disto se depreende facilmente que nossa habitual representação da


criação não se enquadra perfeitamente com o sentido científico da
palavra. Para o vulgo, a criação é privativa de uns tantos seres seletos,
gênios, talentos, autores de grandes obras de arte, de magnos
descobrimentos científicos ou de importantes aperfeiçoamentos
tecnológicos. Estamos de acordo em reconhecer, e reconhecemos com
facilidade a criação na obra de um Tolstói, de um Edison, de um Darwin,
mas nos inclinamos a admitir que essa criação não existe na vida do
homem do povo. (...) Mas, como já temos indicado, semelhante conceito é
totalmente injusto. Um grande sábio russo dizia que assim como a
eletricidade se manifesta e atua não só na magnificência da tempestade
e no chispar ofuscante do raio, senão também na lâmpada de uma
lanterna de mão; do mesmo modo não existe criação só ali na origem dos
conhecimentos históricos, senão também onde o ser humano imagina,
combina, modifica e cria algo de novo, por insignificante que esta
novidade pareça ao comparar -se com as realizações dos grandes
gênios.35

34 Cf. Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 9.


35 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 10-11.

72
Esta afirmação se torna ainda mais significativa se
considerarmos a agregação coletiva de inumeráveis contribuições dos mais
variados indivíduos “anônimos”, ainda que, isoladamente, estas
contribuições revelem-se pouco perceptíveis. Por conseguinte, isto nos
remete ao caráter necessariamente coletivo de toda e qualquer produção
criativa, já que dificilmente haveríamos como conceber um só ato
imaginativo que não envolva, de algum modo, elementos humano-genéricos
em sua conformação.
Assim, no que se refere ao caráter da criatividade que aqui se
nos revela, podemos concluir, com segurança, que a faculdade criativa é bem
mais uma regra necessária que uma exceção caprichosa entre os seres
humanos. Certamente, pondera VIGOTSKI, os exemplos mais elevados de
criação parecem ser mais acessíveis a determinados indivíduos, cujo número
parece ser restrito, que à maioria das pessoas, mas as premissas necessárias
para se criar encontram-se presentes em tudo o que nos rodeia e, “tudo o que
excede a marca da rotina, encerrando sequer uma mínima partícula de
novidade, tem sua origem no processo criador do ser humano”. 36
Por conseguinte, se desejarmos compreender adequadamente
estes pressupostos gerais da atividade criativa (em termos ontológicos,
portanto), devemos antes considerar que os processos criativos encontram-se
submetidos às múltiplas e complexas determinações que envolvem o
desenvolvimento humano (envolvendo aspectos afetivos, conjunturais, de
satisfação de necessidades, de disponibilidade de recursos para um
desenvolvimento saudável, de condições, enfim, de os indivíduos virem a ser
seres humanos plenos e íntegros). E, para tal compreensão, não podemos
deixar de considerar os processos criativos a partir da infância.
De fato, desde a mais tenra idade nos deparamos com a
presença dos processos criativos, a começar pelos jogos infantis. É fácil
verificar a presença ostensiva do uso da imaginação quando a criança,

36 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 11.

73
fazendo uso de um cabo de vassoura, imagina-se cavalgando um cavalo, a
menina que brinca com suas colegas imagina-se como mãe ou como uma
profissional qualquer, os meninos que brincam de polícia e ladrão etc. —
ainda que, conforme salienta VIGOTSKI, muitos destes jogos e seus
personagens baseiem-se, sobretudo, na imitação. Entretanto, as crianças
não se limitam à simples reprodução de elementos de suas experiências, mas
sim, realmente reelaboram e combinam, criativamente, tais elementos.
Como surge a atividade criadora e a que leis estaria submetida?
Para VIGOTSKI,

A análise psicológica desta atividade põe em relevo sua enorme


complexidade. Não aparece repentinamente, senão lenta e
gradualmente, ascendendo desde formas elementares e simples a outras
mais complicadas, adquirindo, em cada escalão de seu crescimento, sua
própria expressão, a cada período infantil correspondendo sua própria
forma de criação. Mais adiante não se compartimentaliza na conduta do
homem, senão que se mantém em dependência imediata de outras
formas de nossa atividade e, especialmente, da experiência acumulada.37

Esta estreita vinculação com a realidade aponta-nos, por outro


lado, o equívoco do pensamento comum quanto a existência de uma suposta
fronteira entre fantasia e realidade. A imaginação criativa não encontra
suas matérias-primas senão na própria realidade de suas experiências. Por
conseguinte, o fantástico nada mais é que uma recombinação de elementos
da realidade e daqui se extrai, segundo VIGOTSKI, a principal lei a que se
subordina a “função imaginativa”, ou seja, que “a atividade criadora da
imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da
experiência acumulada pelo homem (...)”.38 Ou seja, como nos assinala
VIGOTSKI, quanto mais rica for a experiência humana, tanto maior será o
material de que dispõe a imaginação e, por conseguinte, mais amplas as
possibilidades de este vir a fazer uso de sua imaginação, de tecer
considerações sobre a realidade que o rodeia, especulando, reordenando e

37 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 15.

74
mesmo reelaborando os elementos desta realidade.
De forma semelhante, a presença dos conhecimentos que
possuímos refletem-se também em nossas construções não diretamente
vividas da realidade. Neste sentido, baseando-nos em estudos e relatos de
historiadores, podemos imaginar um quadro da Revolução Francesa ou
sobre o deserto do Saara, sem contudo havermos experienciado tais ocasião
ou lugares. Ora, nada mais faço que lançar mão de inúmeras informações
que, retiradas da realidade, combinam-se a ponto de tornar possível
imagens que vinculo ao fato histórico ou ao lugar geográfico. Isto é de vital
importância para o desenvolvimento humano, já que, segundo VIGOTSKI, a
imaginação converte-se em meio de ampliar a experiência do homem que, ao
ser capaz de imaginar o que não tem visto, ao poder concebê-lo baseando-se
em relatos e descrições alheias ao que não experimentou pessoal e
diretamente, não está encerrado no estreito círculo de suas próprias
experiências, podendo ultrapassar muito de seus limites, assimilando, com a
ajuda da imaginação, experiências históricas e sociais alheias. 39
É desta forma que a própria fantasia auxilia-nos como
mediadora da ampliação de nossas experiências sobre a realidade, sem que a
tenhamos vivenciado pessoalmente (podemos inferir, neste caso, a
relevância dos conhecimentos científicos em tal processo). Logo, devemos,
por fim, também considerar o papel da imaginação sobre nossas
interferências sobre a própria realidade. Ou seja, não podemos perder de
vista que mesmo as elucubrações mais fantásticas aspiram à realidade (a se
tornarem concretas). Um exemplo deste fato é a imagem que temos sobre
qualquer adiantamento tecnológico, máquina ou instrumento, que de algum
modo suscita-nos vir a ser objetivamente plasmado.
Todas estas funções, devidamente agregadas, ainda, aos
aspectos afetivos e emocionais que necessariamente subjazem as condutas
humanas, conformam um universo ilimitado de possibilidades de

38 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit., id. ibidem.


39 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 38.

75
combinação e reelaboração da realidade (ou, ao menos, limitado tão-somente
à riqueza dos elementos que conformam a própria realidade que logramos
assimilar).
Entretanto, embora a necessidade e o desejo impulsionem a
criação, estes elementos nada criam por si. É necessário, portanto, que
determinadas condições objetivas sejam dadas para atingirmos determinado
nível de criação. Nenhuma invenção científica ou criação artística torna-se
passível de aparecer antes que se criem as condições materiais e psicológicas
necessárias para seu surgimento. A obra criadora constitui, portanto, o
resultado de um processo histórico em que cada nova forma se apóia nas
precedentes. 40
Compreendidos todas estas características gerais da
imaginação criadora, podemos agora perceber que tão falsa quanto a suposta
separação entre imaginação e realidade é, pois, a crença comum em que as
crianças possuiriam maior riqueza imaginativa que os adultos, uma vez que,
supostamente, a infância corresponderia à época em que mais se
desenvolveria a fantasia e que, a partir daí e conforme cresce a criança,
decresceria sua capacidade imaginativa. Mas esta crença, nos diz
VIGOTSKI, não resiste ao exame científico, já que sabemos que a
experiência da criança é, de fato, muito mais pobre que a do adulto, tanto
quanto seus interesses são mais simples e elementares. Por esta razão,
podemos concluir que os ápices criativos encontram-se diretamente
relacionados ao processo de amadurecimento (histórico) de cada indivíduo.
Por estas razões tornam-se também evidentes os motivos pelos
quais as classes sociais mais privilegiadas têm sido pródigas no oferecimento
de um número desproporcional de inventores e inovadores. Isto se deve,
fundamentalmente, ao fato de estas terem, à sua disposição, muito mais
condições objetivas necessárias para se criar. 41

40 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 38.


41 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 38.

76
Por sua vez, os constructos imaginativos surgidos em resposta a
nossos anseios, tendem a encarnar-se na vida, ou seja, tendem a tornar-se
ativos, transformando aquilo em face do que tende sua atividade. Baseando-
se em Ribaud, VIGOTSKI compara a suposta “contemplação criadora” à
vontade impotente. Assim, a imaginação puramente intelectual
corresponderia à vontade que não se torna ação, na esfera do movimento:

Os homens sempre desejam alguma coisa, seja algo vultuoso ou


insignificante; os homens inventam sempre também para um fim
determinado, se trate de Napoleão planejando uma batalha ou de um
cozinheiro preparando um prato novo.

(...) A imaginação criadora, em toda a sua forma, trata exteriormente de


afiançar-se em atos que não existiam tão-somente para seu autor, mas
também para todos os demais. Pelo contrário, para todos os puramente
contemplativos, a imaginação permanece no interior de sua esfera em
estado de elaboração deficiente, sem materializar -se em obras artísticas
ou realizações práticas.42

Estas considerações de VIGOTSKI vêm ao encontro dos


postulados que apresentamos acerca do caráter essencialmente
transformador da atividade criativa, que a torna, como vimos, elemento
essencial da própria praxis humano-genérica. No mais, e contrariamente ao
que postula a psicologia tradicional, esse caráter transformador não traz, em
sua base, a necessidade de adaptação do homem ao seu meio, mas sim, uma
inadaptabilidade que lhe é ontologicamente inerente. Portanto, na base de
toda ação criadora está a inadaptação. O ser que se encontra adaptado ao
mundo que o rodeia, salienta VIGOTSKI, certamente não tem motivos para
desejar, para modificar seu meio e, enfim, criar. 43 Este é precisamente o caso
dos demais animais, pois não só limitam-se a adaptar-se como sobrevivem
na medida em que alcançam êxito em tal processo.
Embora não possamos negar a importância das etapas

42 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 38.


43 VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, op. cit. p. 35.

77
intelectuais para os processos de criação, devemos ter em conta que a
atividade criativa só possa ser concebida, enquanto tal, na medida em que se
objetive. Objetivando-se, o que era apenas concepção encarna-se na
realidade, nela interferindo e, possivelmente, ela transformando.
Se já se torna possível percebermos as reais dimensões e
implicações da atividade criativa para o processo histórico de consolidação
do gênero humano, ao considerarmos que o processo de apropriação, pelos
indivíduos humanos, de conhecimentos humano-genéricos, é a matéria-
prima da própria atividade criativa, evidencia-se, por sua vez, o
imprescindível papel das formas de transmissão de saberes genéricos entre
as gerações humanas. E, indubitavelmente, o lugar que se nos revela
possuidor dos principais atributos para uma tal tarefa, é o processo
educativo formal. Passemos, portanto, a considerá-lo a partir de agora,
segundo esta perspectiva.

78
Capítulo III
Criatividade e ensino

A partir das reflexões desenvolvidas sobre a criatividade e seu


papel no processo de desenvolvimento histórico-cultural da humanidade, nos
aproximamos agora do papel complementar fundamental da instrução
sistematizada para o processo de consolidação do gênero humano. Ora, como
haveremos de perceber, ambos os processos se imbricam. Pelo ensino os
indivíduos e coletividades humanas se apropriam dos legados
historicamente constituídos pelas gerações precedentes e contemporâneas, o
que torna possível que o homem tanto faça parte da realidade propriamente
humana como também sobre ela reflita, nela interfira e nela promova
mudanças.
Ao cumprir seu papel de mediador de apropriações humano-
genéricas, o ensino mune os indivíduos humanos de elementos fundamentais
à consolidação de sua natureza histórico-cultural, que é, como vimos,
essencialmente exploradora e reelaboradora da realidade natural e humana
que a envolve.
Mas não nos referimos, aqui, a qualquer forma de ensino e,
tanto quanto, a quaisquer apropriações. Conseqüentemente, necessário se
faz que explicitemos o que entendemos, inicialmente, por ensino formal, qual
sua função histórica e quais devam ser seus objetivos concretos diante da
realidade que se nos apresenta. Para isso devemos considerar também o
détour proposto por Kosik, e ao qual nos remetemos mais detidamente no
Capítulo I, com vistas a superar, agora, considerações “pseudoconcretas”
sobre a escola e seu papel histórico e social. Para este propósito, julgamos de
inestimável valor as reflexões e proposições derivadas do movimento
pedagógico que se denomina histórico-crítico, e é pelos elementos desta
proposta pedagógica que procuramos caracterizar, em “O papel do ensino
formal no processo de apropriação de conhecimentos humano-genéricos”, o
lugar e função históricos do processo educativo formal para a socialização de

79
conhecimentos que enquanto objetivações genéricas sistematizadas,
apresentam-se como essenciais ao próprio processo de consolidação do
gênero humano e da integração sócio-histórica dos indivíduos humanos ao
gênero.
No tópico 2, “Pensamento cotidiano e não cotidiano e a
especificidade do ensino formal” munimo-nos uma vez mais dos postulados
de HELLER para explicitarmos as relações existentes entre cotidiano e não-
cotidiano, entendendo que com esta última esfera deva se identificar todo e
qualquer trabalho educativo formal. Em outras palavras, trata-se de
demonstrar que a realidade humana é composta de duas esferas essenciais
que, por serem dialeticamente complementares, são pois marcadas por
antagonismos e conflitos. Longe de serem naturais, tais relações conflituosas
refletem a própria luta que o gênero humano realiza, cotidiana e
arduamente, para superar suas limitações próprias de seu espontaneísmo
natural. Ora, certamente que isto nos remete, uma vez mais, ao papel
histórico da educação enquanto lugar destinado a mediar a apropriação de
conhecimentos e técnicas elaboradas e acumuladas milenarmente pela
humanidade. Tais produções constituem o conteúdo e fundamentam, em
outras palavras, o âmbito não-cotidiano da educação formal.
No tópico seguinte, “Indivíduos para-si ou cidadãos potencialmente
transformadores de realidades e contribuintes à consolidação do gênero humano”,
procuramos esboçar, por fim, qual ser humano pretendemos atingir, afinal,
com todo o raciocínio do presente trabalho. A individualidade que
pretendemos é aquela que em linhas gerais, apreende, dentro de suas
possibilidades, o máximo de conhecimentos à respeito da humanidade, da
natureza e sobre si próprio, por meio de relações mantidas conscientemente
com sua genericidade. Trata-se, enfim, do homem que reflete livremente
sobre as relações imediatas e mediatas de sua realidade. Apropriando-se de
objetivações essenciais que a humanidade produziu no decorrer de sua
história, este homem se vê diante do desafio de questionar o mundo que o
rodeia e qual o seu papel diante do mesmo.

80
Por fim, o último tópico que apresentamos, intitulado “Relações
entre Ensino e Desenvolvimento: as contribuições científicas de Liev
Semiónovitch Vigotski (1896-1934) e a psicologia histórico-cultural”, visa
finalizar nossa caminhada teórica e científica resgatando os aspectos
fundamentais das descobertas de Vigotski e seus colaboradores acerca da
efetiva relação existente entre desenvolvimento humano e ensino. Neste
sentido, este tópico visa apresentar elementos que corroboram de modo
decisivo o que postulamos em termos teóricos, além de também prestar-se a
uma digna e oportuna rememoração das inestimáveis contribuições de L. S.
Vigotski a uma psicologia e uma pedagogia verdadeiramente
revolucionárias.

1. O papel do ensino formal no processo de apropriação de


conhecimentos humano-genéricos

Como vimos, em seu processo milenar de desenvolvimento o


gênero humano passou a reproduzir, além de suas características naturais,
os incontáveis conhecimentos e produtos de suas atividades. Assim, o
homem diferenciou-se radicalmente das demais espécies na medida em que
não se limitou à reprodução tão-somente biológica de si mesmo, mas, e
também, dos conhecimentos adquiridos e acumulados sobre sua relação
ativa com a natureza e consigo mesmo. Em outras palavras, isto significou a
possibilidade de reprodução do próprio gênero humano, além da reprodução
apenas filogenética da espécie.
Surge daí a importância do processo de transmissão-
apropriação, para e pelas gerações humanas, através dos tempos, de
conhecimentos imprescindíveis ao seu laborioso processo de humanização,
individual e coletivo, inextricavelmente, e, tanto quanto, para reelaborações
sobre o próprio conjunto de conhecimentos já existentes, o que representa,
objetivamente, possibilidades de intervenção e transformação criadoras
constantes sobre a realidade. É por este processo de apropriação de

81
elementos da realidade imediata e mediata, de apropriação de objetivações
históricas humanas 1, que nosso “homem criador” encontra subsídios para
especular, recriar e potencialmente transformar a própria realidade que o
envolve, bem como as características de seu próprio gênero, das mais
variadas formas.
O ser humano é, portanto, um ente que, no decorrer de sua
história deve, necessariamente, apropriar-se das produções humano-
genéricas para inserir-se no gênero e, portanto, podemos dizer que não nasce
humano, mas sim, torna-se humano. Vejamos, o que nos diz LEONTIEV a
este respeito:

“A diferença entre o processo de adaptação, no sentido em que este


termo é empregado para os animais, e o processo de apropriação, é o
seguinte: a adaptação biológica é um processo de modificação das
faculdades e caracteres específicos do sujeito e do seu comportamento
inato, modificação provocada pelas exigências do meio. A apropriação é
um processo que tem por resultado a reprodução, pelo indivíduo, de
caracteres, faculdades e modos de comportamento humanos, formados
historicamente. Por outros termos, é o processo graças ao qual se
produz, na criança, o que, no animal, é devido à hereditariedade: a
transmissão ao indivíduo das aquisições do desenvolvimento da
espécie.” Portanto, como enfatiza por fim o autor, ... “A criança não se
adapta ao mundo dos objetos e fenômenos humanos que a rodeiam; fá-lo
seu, isto é, apropria-se dele.”2

Em nascendo, inicialmente, como seres pertencentes à espécie


humana, para nos inserirmos no gênero humano deveremos nos apropriar
das objetivações que lhe são caracteristicamente próprias e fundamentais.
Neste sentido, são exemplos básicos a linguagem falada e, por extensão, a
linguagem escrita, elementos estes primários e mediadores imprescindíveis
para inúmeras outras apropriações pelos indivíduos humanos. Presume-se,
neste sentido, os impedimentos e prejuízos a que estão submetidos os

1 Cf. LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. op. cit., p. 320-321.


2 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. op. cit., p. 320.

82
indivíduos que não se apropriam dos rudimentos da linguagem falada e,
ademais, dos da escrita. Estes indivíduos estarão muito sujeitos a
permanecerem à margem das condições e exigências contemporaneamente
elementares para a sua própria existência enquanto seres genéricos. À
margem, portanto, da condição básica de seres humanos.
No que respeita à educação, o pressuposto do processo de
apropriação nos sugere, portanto, o ensino formal como lugar fundamental
tanto a que elementos essenciais do conhecimento humano sejam
apropriados pelas novas gerações, como também lugar possível à promoção
de reelaborações sobre tais apropriações e objetivações a que correspondem.
A conjugação de ambos os aspectos funcionais do ensino resulta, por
conseguinte, na ampliação de possibilidades de transformações concretas e
satisfatórias sobre e para as diversas esferas da realidade humana.
Estas possibilidades de transformações, concretas e
satisfatórias, vêm corresponder, por sua vez, aos anseios de democratização
da própria sociedade majoritária, seja através de contribuições para o
enriquecimento cultural de sua época, seja pela produção de novos
conhecimentos imprescindíveis para a superação dos problemas que nela se
acumulam e se complexificam, com vistas à constante conquista de uma vida
em comunidade mais saudável, eqüitativa e humanamente realizadora para
seus membros.
Como percebemos, isto nos aponta, por conseguinte, uma
determinada concepção quanto à função própria do ensino formal. Sem
desconsiderarmos os inúmeros determinantes que conformam e interferem
no processo educativo humano, conquanto indivíduos e gerações possam
apropriar-se de inúmeras informações e conhecimentos em momentos,
lugares, formas e condições contextuais diversas, foi especialmente através
da educação formal que se tornou possível um mais amplo e rápido acesso a
conhecimentos essenciais à sobrevivência, reprodução e desenvolvimento
das comunidades humanas. Educação sistematizada que surge e se

83
consolida, bem claro, a partir da complexificação incessante das
necessidades, produções e formas de organização das sociedades humanas;
ou seja, a partir da necessidade de que conhecimentos historicamente
elaborados e acumulados sobre a própria humanidade e natureza que a
envolve, fossem transmitidos-assimilados pelos membros humanos para a
própria manutenção, reprodução e transformações histórico-culturais
características e necessárias ao gênero, em seu longo e constante processo de
humanização. Conhecimentos e produções, portanto, correspondentes a
contextos e organizações sociais determinados e, tanto quanto,
determinantes dos mesmos.
Segundo SAVIANI, a compreensão da natureza da educação
passa, necessariamente, pela compreensão desta natureza humana. Como
vimos, a atividade intencionalmente transformadora da natureza é o que
funda a diferença entre o homem e demais animais. Se o trabalho
fundamenta todo o mundo da cultura humana, tomar a atividade educativa
como um fenômeno humano implica em reconhecer que ela é tanto resultado
como exigência do processo de trabalho. Também ela é, enfim, um processo
de trabalho. 3
O processo de produção da existência humana refere-se, antes
de mais nada, à garantia de sua sobrevivência física, o que se dá através do
trabalho material, portanto. Todavia, para produzir “materialmente” é
necessário que o homem antecipe idealmente os fins de sua ação
(representação mental). Essa representação diz respeito a aspectos
relacionados desde às propriedades do mundo real (respeitantes ao âmbito
da ciência), passando por aspectos de valoração (respeitantes à ética) como
também aspectos simbólicos (respeitantes à arte). Estes aspectos engendram
uma categoria complementar de produção, que poderíamos denominar
“trabalho não-material”. 4 Enquadram-se aqui a produção das idéias em

3 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 3. ed., S.


Paulo: Cortez Editora & Autores Associados, 1992, p. 19.
4 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. p. 20.

84
geral, conceitos, valores, símbolos etc., que caracterizam, em outras
palavras, o próprio saber humano acerca da realidade.
A natureza do ensino diz respeito, sobretudo, ao trabalho não-
material, conquanto devamos ainda distingui-lo em duas formas principais,
ou seja, uma primeira, em que a produção e o consumo do produto
encontram-se separados (a produção e posterior leitura de um livro, por
exemplo) e outra em que ambos, produção e consumo, encontram-se
imbricados; este é o caso específico do ensino formal. Nele, ao mesmo tempo
o ato de ensinar implica necessariamente a existência concomitante do
aprendiz, que o consome. A natureza própria da educação corresponde,
portanto, a um processo de trabalho eminentemente intelectual, cuja
produção e consumo dão-se simultaneamente. Mas com que objetivo?
Se desejamos responder esta pergunta deveremos levar em
consideração, desta feita, a natureza propriamente humana.
Especificamente no caso humano, o que não é fornecido pela natureza bio-
física deve, necessariamente, ser produzido pelos próprios homens. Esta
produção é o que compreende todas as atividades e produtos histórico-
culturais humanos, e esta produção histórica e cultural fundamenta o que
aqui chamamos de natureza humana, ou seja, uma natureza genérica
constituída sobre a natureza bio-física, mas que a ela não se limita e que
com ela não mais se confunde espontaneamente, a exemplo do que ocorre às
demais espécies. Nas palavras de SAVIANI,

Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas
é por ele produzida sobre a base da natureza bio-física.
Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.5

Cabe à educação, por um lado, a identificação dos elementos


culturais a serem apropriados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humano-genéricos e, por outro, a descoberta das formas mais

85
adequadas para se atingir tal objetivo. Em outros termos, a escola é uma
instituição cujo papel consiste na socialização dos saberes historicamente
sistematizados. 6 “Sistematizados” porque não é sua função tratar de saberes
espontâneos, relacionados meramente à imediaticidade cotidiana e ao senso
comum que lhe é característico, mas sim aos conhecimentos metódica e
historicamente constituídos. Estes saberes são aqueles que compreendemos
como científicos.
Ora, os saberes científicos são aqueles que superam a mera
opinião ou a mera experiência. Se estes dois tipos de conhecimentos
encontram na espontaneidade cotidiana seu lugar e subsídios, o mesmo não
se dá com os saberes científicos, não apreensíveis espontaneamente e que,
portanto, justificam e suscitam um lugar e meios específicos para sua
difusão e apreensão. Eis, portanto, o papel fundamental cabível à instituição
escolar, historicamente compreendido.
O conhecimento historicamente elaborado e sistematizado
constitui, em nosso entendimento, o saber humano em seu mais alto e
significativo grau, pois é tal saber tanto o resultado de milenares lutas e
conquistas do homem, quanto condição para o constante processo de
manutenção e consolidação do gênero humano. Em outros termos, enquanto
condição de consolidação do processo de humanização da espécie e, logo, de
superação dos limites biofísicos (naturais) a que estão submetidos todos os
seres vivos.
Podemos, pois, vislumbrar, a partir do exposto, a
imprescindível importância de que estes saberes sejam, ao máximo,
socializados. Entretanto, não fazemos, aqui, uma apologia romântica do
papel da instituição escolar para o processo de humanização. Quando
propomos que o papel da instituição escolar é o de mediadora possível da
socialização de saberes sistematizados, não a admitimos, passivamente, tal e
qual comumente nos tem sido proposta e sistematicamente imposta. Não

5 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. p. 21.


6 Cf. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. p. 22-23.

86
será jamais suficiente que a instituição escolar apenas atenda às exigências
de difusão de saberes (o que sequer atende no Brasil), mas sim, que
contribua de modo efetivo para a superação do mero senso comum, o que
implica em que os indivíduos atinjam uma consciência filosófica acerca do
mundo natural e humano. Por consciência filosófica entendemos uma
apreensão e compreensão do mundo coerente conscientemente elaborada,
por oposição ao caráter eminentemente fragmentário, espontâneo e
incoerente do senso comum. Entretanto, segundo GRAMSCI,

No sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos —


isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente — sem a
consciência da nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela
representada e do fato de que ela está em contradição com outras
concepções ou com elementos de outras concepções.7

Este raciocínio é fundamental para que nos aprofundemos


ainda mais no papel e propósitos do ensino formal. O mundo real, concreto, é
um mundo de relações determinadas por interesses variados e conflitantes,
e aos quais encontra-se submetida a instituição escolar. Evidentemente, o
mundo capitalista que se nos apresenta é um mundo marcado pela
hegemonia de determinada concepção de homem e de mundo,
historicamente determinada, que se tornou dominante, e que excetua as
populações majoritárias do acesso aos saberes fundamentais a que nos
referimos. São estas populações majoritárias justamente as parcelas
responsáveis pela implementação de toda a atividade produtiva de todas as
sociedades historicamente constituídas, até nossos dias. Esta excetuação se
deve, fundamentalmente, ao lugar nas atividades produtivas reservado às
classes trabalhadoras e ao legado eminentemente alienado e alienador de
tais atividades em uma sociedade fundada na divisão de classes. Absorvida
essencialmente pela venda de sua força de trabalho para subsistir, essa
imensa maioria populacional vê-se excluída das possibilidades de aquisição
de saberes em igualdade de condições com as classes dirigentes,

87
submetendo-se aos interesses das classes dominantes através da assimilação
acrítica das concepções de homem e de mundo por elas difundidas,
concepções estas que, por esta razão, tornam-se hegemônicas, mas não
correspondem aos interesses das classes subalternas.
Como assinala SAVIANI,

Com efeito, a concepção de mundo hegemônica é exatamente aquela


que, mercê de sua expressão universalizada e seu alto grau de
elaboração, logrou obter o consenso das diferentes camadas que
integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso comum.
É nesta forma, isto é, de modo difuso, que a concepção dominante
(hegemônica) atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno
dos interesses populares, o que concorre para inviabilizar a organização
das camadas subalternas enquanto classe.8

Neste sentido, as relações existentes entre senso comum e


filosofia assumem o caráter de uma relação de luta hegemônica. Por “luta
hegemônica” entendemos um “processo de desarticulação-rearticulação”, isto
é, trata-se um processo que visa “desarticular dos interesses dominantes
aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não são
inerentes à ideologia dominante e rearticulá-los em torno dos interesses
populares, dando-lhes a consistência, a coesão e a coerência de uma
concepção de mundo elaborada, vale dizer, de uma filosofia”. 9
Ora, em se considerando estarmos diante de uma luta
hegemônica e que “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma
relação pedagógica”10, SAVIANI nos sugere que a educação deva ser
compreendida, sobretudo, como um instrumento de luta no estabelecimento
de uma nova relação hegemônica com vistas à constituição de um novo bloco
histórico, agora dirigido pela classe majoritária de nossas sociedades, a

7 GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história. (Nota II), op. cit., p. 13.
8 SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10a. ed. São
Paulo, Cortez & Autores Associados, 1991, p. 10.
9 Cf. SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica. op. cit., p.
10-11.
10 Cf. GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história. op. cit., p. 37.

88
saber, o proletariado. 11 Contudo, o proletariado não pode se elevar enquanto
força hegemônica sem a elevação de seu nível cultural. Eis aqui, portanto, a
importância capital da educação. Segundo SAVIANI,

A forma de inserção da educação na luta hegemônica configura dois


momentos simultâneos e organicamente articulados entre si: um
momento negativo que consiste na crítica da concepção dominante (a
ideologia burguesa); e um momento positivo que significa: trabalhar o
senso comum de modo a extrair o seu núcleo válido (o bom senso) e dar-
lhe expressão elaborada com vistas à formulação de uma concepção de
mundo adequada aos interesses populares.12

A passagem do senso comum a uma concepção de mundo


conscientemente elaborada passa, necessariamente, pelo questionamento do
que temos sido e no que temos acreditado no lugar e tempo históricos que
ocupamos em nossas sociedades. Nas palavras de GRAMSCI:

Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la


unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento
mundial mais desenvolvido. Significa, portanto, criticar, também, toda a
filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações
consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a
consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti
mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que
deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no
inventário. Deve -se fazer, inicialmente, este inventário.13

A educação é elemento fundamental nesse processo e possui,


como vimos, não só um papel funcional na socialização dos conhecimentos
humano-genéricos, mas, e sobretudo, político-revolucionário para o processo
de humanização de todos os indivíduos que fazem parte de nossas
sociedades contemporâneas, indiscriminadamente. Este processo é o

11 Cf. SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica. op. cit.,p.
11.
12 SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica, op. cit., p.11.
13 GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história, (Nota I), op. cit., p. 12.

89
processo que visa a realização e consolidação do próprio homem. E “que é o
homem?”, pergunta GRAMSCI — que “é a primeira e principal pergunta da
filosofia”, nos diz ele. O homem é um contínuo devir, conclui, e, portanto, a
questão a ser formulada deveria ser, segundo o pensador, “o que é que o
homem pode se tornar”, isto é, “se o homem pode controlar seu próprio
destino, se ele pode ‘se fazer’, se ele pode criar sua própria vida”.14 O homem,
em nosso entender, é criador e criatura de si mesmo, a humanizar
constantemente sua condição de homem tanto quanto mais livre for para
revolver e transformar realidades. Impedir a realização desta necessidade
ontológica é subverter a realização de sua própria natureza. É, em outras
palavras, desumanizá-lo.

2. Pensamento cotidiano e não cotidiano e a especificidade do ensino


formal.
Uma categoria fundamental ao presente estudo, como já
relevamos, assenta-se na questão das relações humanas em termos de suas
atividades, produções e concepções cotidianas e não-cotidianas, e sua
relação com o processo de transmissão-apropriação de conhecimentos para e
pelas novas gerações — ou, em outras palavras, com o papel do ensino em
nossas sociedades.
Quando nos referimos ao tema do cotidiano, deparâmo-nos,
comumente, com algumas confusões no que se refere à sua correlação com o
ensino, a começar pelas designações dos termos cotidiano e não-cotidiano
frente a atividade escolar. Assim, cotidiano tem sido difundido com o sentido
mais ou menos restrito de dia-a-dia, entendido este como a realização de
atividades diárias dos membros e instituições de uma sociedade. Por
decorrência, o termo tem sido ostensivamente associado à designação do
âmbito real da vida humana. Assim, tornou-se senso comum que, ao
referirmo-nos ao cotidiano, estaríamos nos remetendo à realidade concreta
da vida diária humana.

14 GRAMSCI, Antonio - Concepção dialética da história, op. cit., p. 38.

90
Não há objeções quanto ao fato de que o cotidiano diga respeito
ao conjunto de tarefas, ações, normas e hábitos necessários à realização da
vida diária em comunidade. Do mesmo modo, também a escola possui sua
cotidianidade, necessária a viabilizar seus objetivos. Entretanto, a
instituição escolar, como vimos, lida com conteúdos determinados por
objetivos que não se identificam, imediatamente, com os conteúdos e
objetivos da vida cotidiana de nossas sociedades.
Segundo as proposições de HELLER, “a vida cotidiana é o
conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens
particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da reprodução
social” 15, ou, pela qual, garantir-se-á a reprodução e manutenção do próprio
gênero humano (atividades que os indivíduos já incorporaram para sua
sobrevivência e que se tornaram parte imprescindível da consecução da vida
diária).
Já nos referimos, no tópico anterior, ao papel e propósitos que
são atribuíveis à instituição escolar, e que se distinguem substancialmente
dos conteúdos e propósitos das atividades ligadas ao dia-a-dia e ao senso
comum de nossas vidas. Ora, o papel da escola é, sobretudo, o de mediar a
socialização de saberes historicamente elaborados e sistematizados; estes
saberes e as atividades correspondentes à sua veiculação e aquisição
conformam uma esfera de exigências e atividades humanas distinta da que
denominamos cotidiana. A esfera não-cotidiana (conquanto indissociável da
esfera cotidiana), corresponde, pois, ao conjunto de atividades relacionadas à
reprodução das características próprias das sociedades humanas, em termos
sócio-históricos (atividades relacionadas ao que não é imediatamente
apreensível pela consciência, senão pela atividade reflexiva, metodicamente
orientada).
Assim, as produções, conhecimentos e hábitos já espontâneos e
necessários para as atividades de reprodução e manutenção humanas

15HELLER, Agnes - Sociologia de la vida cotidiana. Trad. J. F. Yvars e E. P. Nadal,


Barcelona: Península, 1994, p. 19.

91
(características da vida cotidiana), encontram seus exemplos mais comuns
em elementos como objetos, utensílios e/ou bens materiais, no uso da
linguagem e pelos costumes estabelecidos em nossas sociedades. Estas
atividades não implicam, portanto, em uma relação intencionalmente
consciente dos homens para com a natureza das mesmas, sobretudo para
com seus contextos de produção 16. Em outros termos, são assimiladas como
naturalmente dadas pelos indivíduos em geral.
Por sua vez, as produções e conhecimentos mediatizadores da
reprodução histórica da sociedade (conhecimentos e produções humano-
genéricos) e que portanto ultrapassam o âmbito da vida cotidiana,
espontânea e imediata, constituirão a esfera não-cotidiana das atividades
humanas, tendo por principais exemplos as produções relacionadas à
ciência, à arte, à filosofia, à moral, à ética e à política, dentre outras áreas do
conhecimento historicamente conquistadas pela humanidade, no decorrer de
seu desenvolvimento milenar.
Deste modo, diferentemente do que se dá com a esfera das
atividades cotidianas, caracteristicamente espontâneas e não
necessariamente refletidas, o mesmo não pode se dar com a esfera das
atividades não-cotidianas, já que aos homens torna-se necessário uma
relação reflexiva com a ciência, a arte, a filosofia, a moral, a ética ou política,
para que estas possam ser efetivamente compreendidas, reproduzidas e
reelaboradas no decorrer da história do gênero. 17
Por fim, ambas as dimensões influenciam-se mutuamente, o
que implica, portanto, que da esfera cotidiana das atividades humanas haja
surgido a esfera não-cotidiana das mesmas atividades e que, a seu turno, a
esfera não-cotidiana haja continuamente influenciado e transformado a
esfera das atividades, produções e conhecimentos cotidianos humanos. Esta
relação não se dá, entretanto, de modo espontâneo e natural, sendo histórica

16 Cf. DUARTE, Newton - Educação Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de Vigotski.


São Paulo: Autores Associados, 1993, p. 32-33.
17 Cf. N. Duarte, Educação Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de Vigotski, p. 33.

92
e contextualmente determinada por inúmeras variáveis sócio-culturais e
econômicas. É preciso, pois, enfatizar que a esfera não-cotidiana apresenta-
se, antes de tudo, como a própria superação, por incorporação, da esfera
cotidiana das atividades e conhecimentos humanos e, portanto, com ela não
mais coincide ou se identifica.
A esfera não-cotidiana dos conhecimentos e atividades
humanas corresponde, portanto, ao conjunto de saberes que dizem respeito à
natureza genérica da humanidade e, por conseguinte, fundamentam e
possibilitam o próprio pensamento elaborado acerca da realidade (não
espontâneo, metodicamente orientado).
Aqui uma primeira questão de grande importância em nossas
considerações, que a relação existente entre cotidiano e não-cotidiano
suscita: o que é realidade? Entrementes, se nos pautarmos nos postulados
apresentados por Kosik18 acerca da apreensão prático-sensível da realidade,
concordaremos quanto ao fato de que a essência da realidade não é,
necessariamente, tal e qual é apreendida imediatamente pelos nossos
sentidos. Dado o caráter pragmático de nossas atitudes cotidianas para que
seja possível a consecução da própria vida humana, e que desse modo não há
como apreendermos a essência mesma da realidade, senão pela análise e
pela reflexão, torna-se estranha a afirmação segundo a qual haveria
coincidência e identificação entre cotidiano e realidade. Entretanto,
observamos haver se tornado muito comum a opinião daí derivada, segundo
a qual a escola pouco ou nada teria a ver com a realidade concreta ao lidar
com saberes e realizar atividades diversas daquelas com as quais as pessoas
lidam no seu dia-a-dia. Esta opinião encontra, inclusive, eco na vida diária,
em ditos populares como “mais vale a prática que a gramática” ou “as
crianças aprendem apesar da escola”. 19
Uma vez tomada a cotidianidade como a própria realidade,

18 Vide Capítulo I, 1.1. “Senso comum e apreensão prático-sensível da realidade”, pág. 15-
20.
19 Cf. SAVIANI, Dermeval - Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, p. 23.

93
tornaram-se comuns as posturas teóricas e práticas que procuram
aproximar, ao máximo, as atividades e conteúdos escolares da cotidianidade
em geral, considerada parâmetro ideal para o trabalho educativo formal,
porque verdadeiramente corresponde à vida concreta dos alunos.
Não há nada, ao nosso ver, que seja passível de objeções quando
se trata de buscar aproximar a escola da vida concreta da coletividade de
indivíduos que esta tem por função formar enquanto cidadãos. De modo
algum supomos que à escola seja cabível um pretenso distanciamento
asséptico da vida cotidiana, fundamentado numa falsa neutralidade
institucional. É propósito da escola aqui defendida, como já dissemos,
justamente a interferência político-revolucionária na realidade que a
envolve.
A questão a ser elucidada, como torna-se presumível, diz
respeito ao equívoco de se tomar, em primeiro lugar, a realidade cotidiana
como a realidade. Longe disto, a esfera das atividades e saberes cotidianos
tem, por principal característica, a imediaticidade e a espontaneidade no
trato com os fenômenos da realidade. E os fenômenos são manifestações da
realidade mas, não necessariamente correspondem à sua essência.
Ora, se a vida cotidiana tem, como vimos, por principais
características, a ultrageneralização, o trato pragmático-utilitário com os
fenômenos humanos e naturais, a imediaticidade e a espontaneidade nas
relações com as manifestações da realidade, torna-se paradoxal que a escola
nela fundamente suas ações e conteúdos. Se o papel da escola diz respeito, a
priori, à socialização dos saberes histórica e metodicamente elaborados, seus
conteúdos e a forma como atingirá seus objetivos não podem basear-se em
elementos da cotidianidade. O cotidiano é expressão da realidade, mas não
é, de forma alguma, a realidade.
Por conseguinte, resta-nos resgatar o lugar da esfera não-
cotidiana em nossa reflexão. Eis que ela nos surge como o locus dos
conhecimentos e atividades que, historicamente elaborados, possibilitam, de
fato, que reflitamos coerentemente sobre a realidade, de modo a superarmos

94
sua manifestação aparente, nos aproximando, ao máximo, de sua essência. A
escola traz consigo, portanto, também a finalidade maior de contribuir para
a superação dos limites ostensivamente impostos pela própria cotidianidade.
Logo, a escola visa a não-cotidianidade num movimento de superação
dialética da vida cotidiana, ou seja, negando-a por incorporação.
Temos motivos para crer, entretanto, que tais questões têm
passado desapercebidas das reflexões da maioria de nossos educadores, a
ponto de a escola, suas atividades e conteúdos, verem-se constantemente
ameaçados por uma variada gama de proposições, que pouco ou nada têm a
ver com seus reais fundamentos e objetivos.20
Se entendido o pensamento cotidiano como essencialmente não-
refletido, espontâneo e imediato, e o âmbito da educação formal como
dimensão da organização social cujo papel deva ser regido pela
intencionalidade consciente diante do fato de lidar com conhecimentos
historicamente sistematizados, respeitantes, portanto, à esfera das
atividades e produções não-cotidianas, concluímos pela não pertinência de
que concepções pautadas em representações essencialmente cotidianas ou
mesmo fundadas no senso comum venham a influir e até mesmo conformar
o pensamento daqueles responsáveis pela ação pedagógica escolar, ou seja,
de nossos educadores.

Se a busca desta clareza se nos apresenta como imprescindível


à discriminação e valorização dos conhecimentos legitimamente pertinentes
ao papel do ensino, fundamental será que os educadores também busquem
superar concepções e representações que não correspondam ao papel
histórico do processo educativo formal. Em concordância com o que sugere
DUARTE, tomamos como base desta nossa observação o pressuposto de que
a esfera não-cotidiana da atividade escolar e do processo de ensino-
aprendizagem, estaria sofrendo interferências de representações elaboradas

20 Vide, a este propósito, as observações de SAVIANI, D. em “Sobre a natureza e


especificidade da educação”. In: Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, p. 19-
30.

95
no âmbito da esfera de concepções eminentemente cotidianas ou a esta
pertinentes enquanto “obviedades” (caracteristicamente de senso comum ou,
em outros termos, assimiladas acriticamente pela maioria dos educadores).
Nas palavras de DUARTE,

...questionamos a naturalidade com que o dia-a-dia escolar é


identificado com a esfera da vida cotidiana. Em outras palavras,
questionamos a aplicação à análise do dia-a-dia escolar das mesmas
categorias que são empregadas na análise da vida cotidiana e
questionamos a transferência para o âmbito do dia-a-dia escolar das
mesmas preocupações teóricas relativas ao cotidiano.21

Importa-nos ressaltar que estas observações visam contribuir,


de modo concreto, com reflexões acerca do que apresenta-se como
fundamental ao processo de formação de nossos educadores: ou seja, que
estes, enquanto principais mediadores do processo de acesso popular à
esfera das atividades e conhecimentos humanos não-cotidianos, mantenham
uma relação consciente para com a necessidade de domínio epistemológico
dos referenciais adotados para suas praxis pedagógicas, condição pela qual
esta esfera das atividades humanas necessariamente reclama.

3. Indivíduos para-si ou cidadãos potencialmente transformadores de realidades e


contribuintes à consolidação do gênero humano

O conjunto da história social humana, da história da atividade


objetivadora dos seres humanos e, portanto, de todas as suas produções,
caracteriza, como vimos até aqui, o gênero humano na acepção de alguns
continuadores do pensamento marxista. Por sua vez, cada indivíduo que
surge em meio a tal genericidade necessita apropriar-se do significado social
de tais objetivações para, a partir das mesmas, também objetivar-se
enquanto ser genérico. Ou seja, as objetivações genéricas são, em síntese, as

21 Cf. DUARTE, Newton - Educação Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de Vigotski, p.


36.

96
“portadoras” do gênero humano, segundo DUARTE.22
Entretanto, devemos ter em mente, aqui, que as objetivações
genéricas humanas não se limitam a um único caráter comum. Neste
sentido, devemos distinguir entre várias esferas de objetivação, que
correspondem desde as objetivações genéricas em-si, caracteristicamente
presentes à esfera das atividades e conhecimentos cotidianos, até as
objetivações genéricas para-si, termo pelo qual designamos as atividades e
conhecimentos não-cotidianos.
Os termos marxianos em-si e para-si, utilizados por HELLER
em suas análises categoriais sobre as objetivações genéricas, servem ao
propósito de caracterizarem: a) a relação entre homem-natureza, por um
lado, caso em que em-si designa o “ser-em-si” da natureza e para-si o “ser-
para-si” da sociedade, ou b) a relação possível entre o homem e a prática
social humana, podendo esta tender a ser em-si, quando a genericidade se
realiza sem que haja uma relação consciente dos homens para com a mesma,
ou para-si, quando verificamos uma relação consciente para com sua
produção. Por outro lado, HELLER acrescenta que estas categorias são não
só relativas, como nos casos citados, como também tendenciais, ou seja, não
se referem a estados puros. E, tomando como exemplo a distinção efetuada
por Marx entre classe em-si e classe para-si, nos esclarece a autora:

É em-si aquela classe que, com respeito a seu lugar na divisão social do
trabalho e a sua relação com os meios de produção, está simplesmente
presente, considerando que a ordem econômica e social determinada não
existiria nem poderia existir sem seu próprio ser-assim. Se converte em
classe para-si quando reconhece seu próprio ser-classe e seus
conseqüentes interesses, quando desenvolve uma consciência de classe
própria... Indubitavelmente, entre estes dois estados são possíveis
inumeráveis graus e nada estaria em condições de determinar um
ponto, um instante histórico nele em que tenha lugar o salto do em-si ao
para-si.23

22 Cf. DUARTE, Newton - A Individualidade Para-Si:..., p. 131.


23 HELLER, A. – Sociología de la vida cotidiana. 4.ed., Barcelona: Península, 1994, p. 227.

97
Estas tendências refletem, portanto, o nível de consciência das
quais se aproximam ou se afastam indivíduos e comunidades frente a
relação que mantêm com a genericidade. Este grau de consciência nas
relações existentes entre os seres humanos e as objetivações genéricas,

...apresenta variações qualitativas em decorrência do nível de cada


objetivação, de suas características específicas e do grau de alienação
das relações sociais no interior das quais se realiza a apropriação de tais
objetivações. O simples fato de que a maioria dos homens não possa se
apropriar de um determinado tipo de objetivação genérica já é, por si só,
indicador do grau de alienação e xistente nas relações sociais.24

Contudo, nenhuma sociedade humana, independente do seu


grau de alienação, prescinde da genericidade em-si, pois ela corresponde à
esfera de objetivações elementares à existência do gênero humano
(fundamentalmente, o mundo dos objetos, costumes e linguagens humanas).
A apropriação destas objetivações marca o início do processo de formação de
todo e qualquer ser humano e corresponde a um mínimo de apropriações
necessárias para que ingressemos no gênero humano. Em outros termos, as
objetivações genéricas em-si são a base da própria vida social humana e os
indivíduos humanos só poderão se objetivar enquanto tais na medida em
que se apropriarem destas objetivações.
Contudo, conquanto as objetivações genéricas em-si
representem o desenvolvimento genérico do homem, não implicam na
explicitação do grau de consciência que os homens mantenham em sua
relação com a genericidade.
O indivíduo genérico para-si corresponde, portanto, ao homem
que, em se apropriando particularmente das objetivações genéricas da
espécie humana, ultrapassa o âmbito do que seja genérico em-si
(cotidianamente assimilado e reproduzido de forma espontânea e alienada),
deixando de assumir enquanto seu objetivo vital, apenas a sobrevivência
particular. Trata-se do indivíduo para o qual, na acepção de HELLER, “a

98
própria vida converteu-se em objeto. E isso precisamente por tratar-se de um
ser capaz de assumir-se conscientemente enquanto um ser genérico”. 25
Em linhas gerais, o indivíduo para-si será, então, aquele que
apreende, dentro de suas possibilidades, o máximo de conhecimentos à
respeito da humanidade, da natureza que o rodeia e sobre si próprio diante
das relações que mantém com sua genericidade. Mais que isto, será o
homem que reflete livremente sobre as relações imediatas e mediatas
havidas entre estas instâncias de sua realidade. Neste sentido, e munido de
informações essenciais que a humanidade produziu no decorrer de sua
história, este homem se vê diante do desafio de questionar o mundo que o
rodeia e qual o seu papel diante do mesmo. Vê-se, enfim, diante da
possibilidade de, consciente e ativamente, correlacionar fatos e informações,
compará-los, confrontá-los e, portanto, explorar crítica e constantemente
novas possibilidades para sua realidade, contribuindo, possivelmente, para
sua transformação.
Este indivíduo para-si é o que poderíamos entender, por
conseguinte, como cidadão — um ser que se reaproxima e se apropria das
características que compõem as produções e conquistas do gênero ao qual
pertence, objetivamente refletido pela comunidade em que se encontra
inserido.
Certamente, o ser humano ao qual nos reportamos não se trata
de um ser amiúde existente. Tampouco, por outro lado, de um ser
meramente “ideal”, abstrato. Referimo-nos à sua natureza genérica, antes
de mais nada, que potencialmente tende a ser-para-si. Trata-se, portanto, de
um ser que se realiza moto continuum, a partir do já objetivado por seu
gênero até o presente e que se projeta no devir de seu processo particular de
apropriação.
Se já nos referimos, portanto, ao papel da escola enquanto
mediadora do processo de socialização dos saberes humano-genéricos, resta-

24 DUARTE, Newton - A Individualidade Para-Si:..., p. 132.


25 HELLER, Agnes, Revolución de la vida cotidiana. op. cit., 1994, p. 12.

99
nos complementar que seu objetivo principal é a formação de indivíduos
conscientes, críticos, responsáveis, sãos e, por conseguinte, potencialmente
contribuintes à transformação concreta de sua realidade.
Enquanto mediadores do processo de ensino formal junto às
novas gerações, os professores apresentam-se como os grandes depositários
da função de proporcionar oportunidades concretas para tais apreensões de
conhecimentos, suas elaborações e reelaborações, a partir da sala-de-aula,
com vistas à formação de cidadãos contribuintes ao processo de
desenvolvimento e democratização social por meio de interferências
construtivas sobre e para a realidade.

4. Relações entre Ensino e Desenvolvimento: as contribuições


científicas de Liev Semiónovitch Vigotski (1896-1934) e a psicologia
histórico-cultural.

Em seus estudos sobre o desenvolvimento dos conceitos


científicos na idade escolar, que vieram a público sobretudo na monumental
obra Pensamento e Linguagem26, cuja publicação russa data de 1934, L. S.
VIGOTSKI discorre, em seu sexto capítulo, “Estudo do desenvolvimento dos
conceitos científicos na idade infantil”, sobre uma série de novas proposições
acerca do processo de surgimento e estabelecimento dos conceitos entre as
crianças, enfocando, principalmente, o período de escolarização. Para tanto,
parte da comparação entre o surgimento e desenvolvimento dos conceitos
que denominou cotidianos e científicos durante esta fase. Por cotidianos
VIGOSTSKI entende os conceitos (generalizações ou significados atribuídos
a palavras) que se desenvolvem assistematicamente (de modo “espontâneo”)
no decorrer do desenvolvimento infantil. Por científicos Vigotski refere-se
aos conceitos que surgem e se desenvolvem em contextos sistematizados de

26Pautâmo-nos, aqui, na tradução que consideramos mais fidedigna desta obra, qual seja, a
da edição espanhola de “Pensamiento y Lenguaje” constante em Obras Escogidas II:
problemas de psicología general. Trad.: José Maria Bravo. Madrid: Visor Distribuciones,
1993. (Col. Aprendizaje, Vol. XCIV).

100
instrução, e que dizem respeito a um nível superior de generalizações.
Estes estudos e as proposições em questão são de incomparável
importância para que tenhamos parâmetros científicos para uma
compreensão mais profunda da real extensão do papel do ensino para o
desenvolvimento dos indivíduos humanos.
Em tais estudos, VIGOTSKI parte das seguintes premissas:
primeiro, que os conceitos (ou significados das palavras) se desenvolvem;
segundo, que os conceitos científicos também se desenvolvem e não são
assimilados, como era suposição geral à época, de “forma acabada”, pré-
definida ou imutável; terceiro, a generalização das conclusões obtidas no
estudo dos conceitos cotidianos ao campo dos conceitos científicos carecia de
legitimidade; quarto, o problema, em seu conjunto, deveria, por fim e
efetivamente, ser estudado experimentalmente.
As experiências conduzidas por VIGOSTSKI levaram a uma
série de constatações, que permitiram concluir que a acumulação de
conhecimentos conduz à elevação dos níveis dos tipos de pensamento
científico, o que reflete no desenvolvimento do pensamento espontâneo e
demonstra o papel determinante da instrução na evolução da criança em
idade escolar. Convém, portanto, para os nossos propósitos finais neste
trabalho, que os referidos estudos de VIGOTSKI e suas conclusões sejam
devidamente expostos.
Uma hipótese de VIGOTSKI em tais investigações fora a de que
o desenvolvimento dos conceitos científicos segue um caminho particular em
comparação com o desenvolvimento dos conceitos cotidianos, muito embora
isso não represente que entre ambos não haja relações. Os conceitos
cotidianos tendem, segundo o autor, à generalização, e se produzem fora de
um sistema determinado. De modo distinto, os conceitos científicos
remetem-se ao concreto, conquanto sob as condições de um sistema
organizado.27 Em outras palavras, uma das principais conclusões das

27 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, In: Obras Escogidas II: problemas de


psicología general, op. cit., p. 183.

101
investigações em questão foi a de que os conceitos científicos são produzidos
nas condições do processo de instrução, que constitui a forma mais singular
de cooperação entre adultos e crianças. Aliás, a cooperação é o principal
aspecto do processo de instrução, juntamente com os conhecimentos que são
transmitidos à criança, segundo um determinado sistema (o que conjuga
métodos, conteúdos e objetivos orientados a um fim).
VIGOTSKI levanta, fundamentalmente, a questão de se
existiriam relações entre “processo de ensino”, “assimilação de
conhecimentos” e o “processo de desenvolvimento interno do conceito
científico” (ou seja, na consciência). O processo de desenvolvimento
coincidiria com o processo de ensino ou não? Quais as implicações caso as
respostas fossem positivas ou negativas?
A chamada Psicologia Infantil teria então duas respostas para
tal questão: uma primeira, que afirmava que os conceitos científicos
careceriam de história própria (ou seja, não se submetem a qualquer
processo de desenvolvimento). São simplesmente assimilados pelas crianças,
que os “absorveriam” do mundo dos adultos. Entretanto, VIGOTSKI pôde
constatar que, na verdade, o conceito não é um simples conjunto de
associações assimiladas pela memória, mas sim o resultado de um complexo
conjunto de atos do pensamento. Este processo não seria dominado pela
simples aprendizagem, exigindo que a criança na verdade elevasse, antes, o
seu desenvolvimento interno a um grau mais alto de possibilidades de
conscientização. Aliás, a formação dos conceitos científicos dependia
diretamente do grau de voluntariedade atingido pela criança (não
implicando isso na simples premissa da maturação do organismo).
Estas constatações corroboraram as suspeitas de inúmeros
educadores de que o método do ensino direto e mecânico seria na verdade
infrutífero. E de fato, VIGOTSKI menciona que já Tolstói havia se
aproximado do fato essencial do insucesso de tal modelo, ao manifestar que
“quase sempre não é a palavra que é incompreensível, mas o aluno que não

102
dispõe do conceito a que se refere a palavra”. 28 Isto estaria correto; o erro do
pensamento de Tolstói, segundo VIGOTSKI, fora julgar que o processo de
desenvolvimento dos conceitos fosse, contudo, tão complexo e misterioso que
não haveria como nele interferir. Entretanto, enfatiza VIGOTSKI, é
plenamente possível ensinar intencionalmente ao aluno novos conceitos e
formas de uma palavra, o que pode resultar no desenvolvimento superior
dos próprios conceitos de que a criança já dispõe. Eis uma proposição
diversa, portanto, da apresentada pela primeira resposta conceitual.
A segunda resposta conceitual sobre uma possível relação
entre desenvolvimento e ensino é, para VIGOTSKI, a mais difundida de
todas e propõe que o desenvolvimento dos conceitos científicos na mente da
criança que recebe instrução não se diferencia, essencialmente, do
desenvolvimento dos conceitos que se desenvolvem na mente das crianças
não submetidas à instrução (ou que se formam durante a experiência
própria da criança), e que, portanto, não se torna procedente diferenciá-los.
VIGOTSKI objeta que, entretanto, um dos erros desta posição científica
seria o de tomar, como objeto para o estudo da formação dos conceitos, os
próprios conceitos cotidianos (espontâneos), o que conduz à sua conseqüente
indiferenciação dos conceitos científicos. Contudo, ambos os conceitos não
pertenciam ao mesmo gênero, guardando entre si muitas diferenças.
Para VIGOTSKI, Jean Piaget teria atentado tanto para a
existência de tais diferenças entre um e outro tipo de pensamento,
denominando uns de “conceitos espontâneos” e os demais de “conceitos não
espontâneos”, como para o caráter ativo, por parte da criança, na
assimilação dos conceitos não espontâneos. Entretanto, Piaget estabelece
que as idéias espontâneas são próprias do pensamento infantil, sendo as não
espontâneas próprias do pensamento adulto. Ao propor esta separação,
segundo VIGOTSKI,

...Piaget contradiz sua própria concepção correta de que a criança,

28 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 186.

103
quando assimila o conceito, o transforma, refletindo nele as
características próprias de seu próprio pensamento neste processo de
transformação. De fato, Piaget é partidário de atribuir esta situação
unicamente aos conceitos espontâneos e renuncia a considerar que isto é
aplicável igualmente aos conceitos não espontâneos. Esta dedução
totalmente infundada encerra o primeiro aspecto errôneo da teoria de
Piaget.29

Na opinião de VIGOTSKI, esta ênfase nas diferenças das


características entre ambas as formas de pensamento fazia com que Piaget
não percebesse que tais formas de pensamento são, na realidade,
mutuamente influenciáveis.
Um último equívoco, decorrente dos anteriores, seria que, para
Piaget, o desenvolvimento mental da criança se caracterizaria, na verdade,
por um paulatino desaparecimento das características particulares do
pensamento infantil, sendo este substituído, aos poucos, pelo pensamento de
caráter adulto, de nível superior. Piaget centra sua proposta na
compreensão de que ambos os pensamentos são, na verdade, mutuamente
excludentes, ou seja, os conceitos denominados espontâneos seriam aos
poucos substituídos pelos conceitos não espontâneos, adquiridos no decorrer
do processo de maturação das crianças.
Assim, o antagonismo seria a característica fundamental da
relação existente entre conceitos espontâneos e não espontâneos, de acordo
com a proposta de Piaget, no decorrer do desenvolvimento da criança.
Durante o processo de socialização da criança, o egocentrismo e o solipsismo
tipicamente infantis seriam constantemente confrontados, deslocados e
suprimidos, de modo que os conceitos não espontâneos suplantariam, aos
poucos, os espontâneos — processo esse que encontra no ensino, segundo
Piaget, seu principal promovedor. Seria nesse período que, segundo o
mesmo, o desenvolvimento mental da criança alcançaria seu ápice.
Para VIGOTSKI, a teoria de Piaget é das mais sérias e

29 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 190.

104
importantes então existentes, mas suas contradições tornavam necessárias
investigações que visassem a superação de seus equívocos. Para isso se
orientavam seus estudos e estes acabaram por confirmar suas principais
hipóteses, diversas das conclusões a que chegou Piaget. Uma delas, a de que
os conceitos científicos não são simplesmente assimilados nem apreendidos
pelas crianças, deslocando dessa forma os preexistentes conceitos
espontâneos, mas sim, se formam graças à atividade do próprio pensamento
da criança, que o tempo todo reflete a atividade com que concretamente
encontra-se envolvida.
Contrariamente à segunda proposição de Piaget, os dados das
investigações revelaram que os conceitos científicos das crianças, tanto
quanto os mais puros dos seus conceitos espontâneos, não manifestavam
apenas traços contrários, mas também traços comuns. VIGOTSKI pôde
concluir, neste caso, que antes de rígida, a fronteira entre ambos era, na
verdade, muito tênue, e mais interseccional que delimitadora. Na verdade,
os conceitos científicos só se tornavam possíveis na medida em que os
conceitos espontâneos alcançassem determinado nível, comumente próprio
da idade escolar. Segundo ele,

...quando falamos da evolução dos conceitos, espontâneos ou científicos,


nos referimos ao desenvolvimento de um processo único de formação de
conceitos, que se realiza sob diferentes circunstâncias internas e
externas, mas que é singular quanto à sua natureza, não resultante da
luta ou conflito entre duas formas de pensamento que se excluem desde
o início. A investigação experimental, se de novo não nos importa
antecipar seus resultados, também confirma plenamente esta hipótese.30

Finalmente, quanto ao terceiro equívoco de Piaget, VIGOTSKI


assevera que entre os processos de instrução e o desenvolvimento na
formação dos conceitos não deve existir antagonismo, mas sim, relações
muito mais complexas, e de caráter essencialmente positivo. E, segundo
indicavam suas investigações, o ensino deveria figurar como uma das

30 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 194.

105
principais fontes de desenvolvimento dos conceitos na idade infantil, tanto
quanto uma potente força organizadora deste processo. 31 Isto não quer
significar, vale lembrar, que os conceitos científicos surjam sem que as
formas mais elementares de generalização já existam.
Os resultados de suas pesquisas indicaram, ainda, o fato de que
a formação dos conceitos científicos, do mesmo modo que no caso dos
espontâneos, não “termina” no momento em que a criança assimila pela
primeira vez o novo significado, mas, pelo contrário, a partir daí se inicia.
Na verdade, segundo VIGOTSKI, são seus momentos iniciais que se
distinguem uns dos outros.
Para tornar isto mais compreensível, VIGOSTSKI lança mão da
analogia do aprendizado da língua materna e de uma língua estrangeira,
cujas formas, experiências e conteúdos, embora distintos, dizem respeito a
um mesmo processo: o desenvolvimento da linguagem.32 Assim, do mesmo
modo que o aprendizado de uma língua estrangeira se fundamenta no
conhecimento da língua materna, também o desenvolvimento dos conceitos
científicos se fundamenta nos conceitos espontâneos. Entretanto, note-se
bem, ambos os processos obedecem a diferentes condições e determinações
contextuais, instaurando-se em momentos diversos e sob determinadas
circunstâncias. Entretanto, tanto o aprendizado de uma língua estrangeira
como o desenvolvimento dos conceitos científicos encontram-se submetidos a
uma situação muito peculiar, qual seja, a de se constituírem como atividades
sistematizadas. Em outras palavras, é o contexto promovido pela instrução
que fundamenta a distinção entre o surgimento e desenvolvimento dos
conceitos cotidianos (espontâneos) do surgimento e desenvolvimento dos
conceitos científicos. O contexto instrucional é, pois, a “pedra de toque” entre
o desenvolvimento de ambos os tipos de conceitos.
Essa conclusão, entretanto, não se presta a uma relação
mecânica de aprendizagem, ou por uma simples transmissão sistemática de

31 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 195.


32 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”. op. cit., p. 197.

106
dados conceitos. Na verdade, salienta VIGOTSKI, entre o ensino e a
formação dos conceitos científicos existem relações mais complexas que
entre o ensino e a formação de hábitos33 (hábitos que, aliás, têm sustentado
algumas das principais concepções psicológicas da atualidade acerca da
aprendizagem, acrescentamos).
Além disso, VIGOTSKI chama a atenção para o fato de que,
para que os conceitos possam tornar-se científicos, a criança deve deles se
conscientizar. E como se leva a cabo, durante a idade escolar, a transição
dos conceitos não conscientes aos conscientes? — pergunta VIGOTSKI. E
mais uma vez este depara-se com o fato de que um conceito só atinge um
caráter voluntário e consciente dentro de um contexto necessariamente
intencional e sistematizado. Eis aqui, uma vez mais, o caráter fundamental
do processo de instrução. É ele o protótipo do contexto intencional e
sistematizado em questão.
Lançando mão da célebre frase de Marx, VIGOTSKI procura
assim resgatar o sentido mais profundo dos conceitos científicos: “Se a forma
de manifestação e a essência das coisas coincidissem, toda ciência seria
supérflua”. 34 De fato, conscientizâmo-nos do que antes permanecia
desapercebido, oculto, velado. Se à ciência cabe levar à consciência a
essência das coisas, os conceitos científicos surgem enquanto mediadores do
processo humano de conhecer e sistematizar seus conhecimentos acerca da
realidade concreta.
VIGOTSKI passa, então, à desmistificação de inúmeras
posições conceituais ao seu ver equivocadas acerca da questão da relação
entre instrução e desenvolvimento. A começar pelo fato de que ambas
vinham sendo tratadas como elementos independentes pela psicologia de seu
tempo. Por esta primeira concepção, haveriam questões devidas ao
desenvolvimento e outras, próprias do ensino. O resultado prático de uma

33Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 200.


34VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 216. (citando Karl Marx, em O
Capital – sem referências).

107
tal premissa é a crença em que o desenvolvimento pode seguir seu curso
normal e alcançar um nível superior independentemente da instrução, ou
que as crianças que não tenham recebido instrução desenvolvam formas
superiores de pensamento em mesmo grau que as que não vão à escola.35
Uma variação de um tal pensamento adota uma posição um
tanto distinta, propondo que, se por um lado o desenvolvimento cria as
possibilidades, por outro o ensino as realiza. Contudo, segundo VIGOTSKI,
essa posição não reconhece que o ensino possa, num tal processo, incidir
sobre o processo de desenvolvimento, influenciando-o. Trata-se, no final das
contas, do pressuposto de que toda instrução exige a existência de um certo
grau de maturação de determinadas funções psíquicas. Por conseguinte, a
própria análise do processo psíquico acerca da instrução se reduz a aclarar
que funções são necessárias ou qual deverá ser o grau de maturação para
que a instrução seja possível:

Se estas funções estiverem suficientemente desenvolvidas na criança, se


a memória houver alcançado um nível em que este possa recordar o
nome das letras do alfabeto, se sua atenção se desenvolveu o suficiente
para que seja capaz de concentrar-se durante um determinado período
de tempo em algo que não lhe ofereceria interesse, seu pensamento
haverá amadurecido para que compreenda a relação entre os sons e os
signos da escrita. Se estas funções hajam se desenvolvido o suficiente, se
pode começar a ensinar-lhe a escrever.36

Segundo VIGOTSKI, ainda que uma tal interpretação implique


no reconhecimento de uma interdependência da instrução em relação ao
desenvolvimento, esta dependência se revela unilateral e puramente
externa, negando quaisquer inter-relações ou mútua penetração entre
ambos os processos.
Para VIGOTSKI, uma tal teoria resolve a questão apenas em
parte, pois que é de fato inegável que o desenvolvimento obedece a
determinados estágios, sem os quais a instrução se torna impossível. A

35 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 218-219.

108
instrução depende diretamente de que certos ciclos do desenvolvimento
sejam superados. Contudo, essa dependência não é, segundo VIGOTSKI, tão
estreita, estando ela na verdade subordinada a uma relação de outro nível.
À instrução, por esse ponto de vista, parece apenas caber o “recolhimento”
dos frutos da maturação infantil, mas, per se, continua a não interferir sobre
o próprio desenvolvimento. Para VIGOTSKI, essa visão, que tendeu a
dominar toda a “velha psicologia pedagógica”, encontra seu ápice na teoria
de Piaget. Seu ponto de vista é o de que o pensamento da criança recorre
obrigatoriamente a determinados estágios, independentemente de que a
criança receba ou não instrução. 37 O papel da instrução será, portanto,
sempre externo, complementar e ocorrerá à retaguarda do processo de
desenvolvimento. Nas palavras de VIGOTSKI:

Aqui se contrapõem de forma profunda a instrução e o desenvolvimento,


o conhecimento e o pensamento. Partindo disso, Piaget propõe à criança
tais perguntas que esta com toda a segurança não pode ter o menor
conhecimento do objetivo acerca do qual se lhe pergunta. E se
perguntamos à criança sobre coisas das quais pode saber algo, não
obteremos os resultados do pensamento, senão os do conhecimento. Por
isso, os conceitos espontâneos que surgem durante o processo de
desenvolvimento da criança são considerados índices de seu
pensamento, e os conceitos científicos, resultantes da instrução, não
possuem esse caráter indicativo. Por isso mesmo, já que a instrução e o
desenvolvimento se contrapõem desse modo, chegamos
obrigatoriamente à tese principal de Piaget, segundo a qual os conceitos
científicos deslocam os espontâneos, passando então a ocupar o seu
lugar, em vez de sur gir dos mesmos, transformando-os.38

Uma segunda vertente é a que propõe, pelo contrário, uma


fusão entre instrução e desenvolvimento, havendo portanto uma total
identificação entre um e outro processo. VIGOTSKI atribui esta concepção
principalmente a ao psicólogo americano William James. Este estudioso

36 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 218-219.


37 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 220.
38 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 220-221.

109
haveria pretendido demonstrar que o processo de formação de associações e
os hábitos serviriam de base também à instrução e ao desenvolvimento
mental, sendo portanto a essência de ambos os processos idênticos. Mas,
objeta VIGOTSKI, se há de fato uma identificação total entre ambos, não
parece procedente continuar a considerá-los separadamente, diferenciando-
os. Na verdade, esta teoria fundamentar-se-ia na concepção central da
chamada psicologia tradicional, ou seja, o associacionismo, então
incorporado pela reflexologia de Thorndike. Segundo VIGOTSKI, diante da
questão sobre o que representa o processo de desenvolvimento do intelecto
da criança, esta teoria tem como resposta que o desenvolvimento é o
resultado conseqüente e paulatino da acumulação de reflexos condicionados,
servindo esta resposta rigorosamente para responder também em que
consiste a instrução.39 E acrescenta que, para tal concepção:

Desenvolvimento é instrução, instrução é desenvolvimento. Se na


primeira teoria o vínculo da pergunta sobre a relação entre a instrução e
o desenvolvimento não se desata, e sim se rompe, já que entre um e
outro processo não se reconhece relação alguma, na segunda teoria essa
vinculação é totalmente eliminado. Não se pode propor a pergunta sobre
as relações que existem entre a instrução e o desenvolvimento sendo que
um e o outro são o mesmo.40

Existe, por fim, um terceiro grupo teórico, cuja posição visa a


superação dos extremos dos dois pontos de vista anteriores. Mas, enfatiza
VIGOTSKI, esse ponto de vista não procura se situar acima dos anteriores, e
sim, entre eles. Enfim, superam uma teoria errônea cedendo parcialmente
ante a outra, caracterizando-se, fundamentalmente, pela duplicidade de sua
posição, pois que, ao adotar uma posição entre dois pontos de vista
contrapostos, acaba por unir ambas as perspectivas. 41 Esta seria a
perspectiva defendida por Koffka, que toma por princípio a necessidade de
se distinguir o desenvolvimento enquanto maturação e enquanto instrução.

39 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 221.


40 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 221.

110
Por um lado deve-se ter em conta que os processos de desenvolvimento e de
instrução são independentes um do outro, o que Koffka propõe ao afirmar
que o desenvolvimento é uma maturação, que em suas leis não depende da
instrução. Por outro, que toda instrução é desenvolvimento. E isto, para
VIGOTSKI, implica em reconhecer a essência dos dois pontos de vista
anteriores, unindo-os. Segundo VIGOTSKI,

...podemos dizer que, se a primeira teoria corta o nó e não o desata, a


segunda o elimina ou o evita, e a teoria de Koffka o aperta ainda mais.
De fato, a posição deste investigador com respeito às duas perspectivas
teóricas contrárias não só não resolve, como também emaranha ainda
mais a questão, já que converte em princípio o que constitui o erro
principal no próprio delineamento da mesma e que deu lugar aos dois
primeiros grupos de teorias. A teoria de Koffka parte de uma
interpretação basicamente dualista do próprio desenvolvimento. Este
não é um processo único, mas que existe enquanto maturação e
instrução.42

A conseqüência acertada e de grande valor do pensamento de


Koffka, nos diz VIGOTSKI, é a que se refere ao fato de a instrução poder
fazer o desenvolvimento avançar, provocando nele novas formações. E
lembra que já Herbart baseava sua doutrina da disciplina formal em um tal
postulado, ou seja, o de que determinadas disciplinas podiam promover
mudanças essenciais no desenvolvimento da criança, possibilidade contra a
qual manifestou-se de modo veemente Thorndike, posteriormente. Para
VIGOTSKI, entretanto, e mantidas as devidas cautelas para com toda a
teoria de Herbart, Thorndike teria visado e atingido apenas o que haveria de
exageros e deformações na proposta de Herbart. Generalizando os pontos
questionáveis de Herbart a toda a sua teoria, acaba por colocar à margem
também seus aspectos factíveis. Para Thorndike, toda educação não influi
em todo desenvolvimento; logo, “nada influi em nada”. 43

41 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 221.


42 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 222.
43 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 225.

111
Era importante apresentar, aqui, tais aspectos gerais do
contexto da chamada psicologia pedagógica de princípios do século para
compreendermos melhor o lugar próprio em que se instituiu a concepção
histórico-cultural, uma concepção singular em meio às já citadas. Neste
sentido, VIGOTSKI e sua equipe partiram da tese de que os processos
instrução e desenvolvimento não são independentes entre si, como também
não conformam um único e mesmo processo. O que se verificava eram
relações profundamente complexas entre os mesmos, mas que não tinham
sido adequadamente investigadas e compreendidas, até então. 44
Não cabe, aqui, que adentremos nas especificidades dos
experimentos então realizados, restringindo-nos, portanto, aos seus
principais achados e conclusões. O primeiro grupo de investigações, que se
referia à busca de esclarecimentos acerca das relações existente entre
maturidade e instrução, foi realizado a partir de estudos sobre como a
criança passa a se relacionar com as atividades das disciplinas essenciais do
começo de sua escolarização. A primeira conclusão, daí advinda, foi que,
contrariamente ao que se acreditava, as crianças que superam com êxito o
processo de instrução desse período não mostram o menor traço de
maturidade das premissas psicológicas que, segundo a primeira teoria,
deveriam preceder o começo da mesma. É o próprio processo de instrução e o
contato com novos elementos do conhecimento que, por suas exigências às
funções psicológicas da criança, as arrastam para outros níveis. E isto
tampouco quer representar que as novas exigências possam ser tomadas
enquanto necessidades. Basta tomar o exemplo da escrita para entender
isto: a linguagem escrita, contrariamente à aquisição da fala, não é uma
necessidade que possa ser interpretada como vital ao indivíduo. Pelo
contrário, ao princípio da aprendizagem da escrita a sua necessidade é
totalmente nula para a criança. É o contato com a linguagem escrita que
inaugura uma etapa de exigências ao processo de desenvolvimento da
criança, o mesmo se dando com as demais disciplinas a serem aprendidas.

44 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 227.

112
Mais que isso, VIGOTSKI se depara com um dado que deve ser
tomado como fato central de todo processo de instrução, ou seja, que este
incide fundamentalmente sobre a tomada de consciência e a voluntariedade
da criança.45 Por ela, e sobretudo no caso da linguagem escrita, a criança
toma consciência de relações que envolvem o que até então só realizava
espontânea e inconscientemente, a começar pelos fundamentos e inter-
relações possíveis de sua própria língua. É deste modo que a criança
aprende, na escola, a tomar consciência do que faz e, portanto, a operar
voluntariamente seus próprios hábitos. Como nos diz VIGOTSKI, “seus
hábitos passam de inconscientes, do plano automático, ao plano voluntário,
intencional e consciente.” 46
Enfim, estas constatações tornam-se básicas à perspectiva
histórico-cultural, que toma como sua primeira premissa o fato de que “o
desenvolvimento do fundamento psicológico do ensino das principais
matérias não precede o começo da mesma, mas sim, tem lugar em uma
indissolúvel conexão interna com ela, no curso de seu avanço progressivo.” 47
Complementarmente, a segunda série de experimentos visou
esclarecer, de modo efetivo, a questão da correlação temporal dos processos
de instrução e desenvolvimento. Por tais estudos foi possível constatar,
desta feita, que os processos relacionados ao desenvolvimento nunca
coincidem com os relativos à instrução, sendo que o processo de instrução,
contudo, tende sempre a se antecipar ao desenvolvimento. Nas palavras do
próprio VIGOTSKI:

O resumo geral de nossa segunda série de investigações pode formular-


se assim: no momento de uma operação aritmética ou de um conceito
científico, o desenvolvimento dessa operação e desse conceito não
finaliza, mas sim, apenas se inicia. A curva do desenvolvimento não
coincide com a do curso do programa escolar. Nestas circunstâncias, a

45 Cf. VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 234-235.


46 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 234.
47 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 235.

113
instrução se adianta fundamentalmente ao desenvolvimento.48

A terceira série de investigações dedicou-se a esclarecer as


questões relativas à suposta relevância das disciplinas formais, idéia
defendida por Herbart e posteriormente combatida por Thorndike. Estas
investigações mostraram que disciplinas distintas atuam reciprocamente
durante o desenvolvimento, mas o desenvolvimento mental da criança não
se distribui nem se realiza de acordo com determinado sistema de matérias
escolares. Dito de outro modo, os fatos não sucedem de forma que
determinada disciplina desenvolva certas funções de maneira isolada e
independente de outras. Todas as diferentes matérias acabam por possuir
uma base psíquica comum. Nas palavras de VIGOTSKI,

O pensamento abstrato da criança se desenvolve em todas as


disciplinas, e seu desenvolvimento não se decompõe de modo algum em
disciplinas distintas, separadas de acordo com todas as matérias que
compõem a instrução escolar.49

Esta constatação desmistificou alguns aspectos concernentes


tanto às premissas de Herbart quanto às contrárias, de Thorndike. Por um
lado, reforçou uma vez mais o valor intrínseco dos conteúdos sistematizados
para o desenvolvimento, esclarecendo, entretanto, que isto não obedece a
uma ordem de importância determinada, como supunha Herbart. Por outro
lado, este fato deu sustentação à crítica de Thorndike aos exageros da
doutrina de Herbart, acerca da determinação total de determinadas
disciplinas para o desenvolvimento dos indivíduos, conquanto também
tornou infundada a sua crença em que a instrução formal pouco interferiria
no desenvolvimento.
Fica claro, desta forma, que o grande mérito de VIGOTSKI e da
perspectiva que inaugurou com seus colaboradores, no que concerne à
questão da relação entre ensino e desenvolvimento, foi o de demonstrar a

48 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 236-237.

49 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 237.

114
efetiva e, diríamos, decisiva influência do primeiro sobre o segundo processo.
Entretanto, resta-nos ainda nos reportarmos ao quarto e último
grupo de investigações sobre o assunto em questão. Esclarece-nos
VIGOTSKI que, até então, as investigações psicológicas sobre o problema do
ensino se limitavam a estabelecer o nível de desenvolvimento mental
atingido pela criança. Para tanto, recorria-se sempre às tarefas que a
criança conseguiria resolver por si mesma e, por conseguinte, se já se
encontraria madura para determinadas resoluções em cada suposta etapa
de seu desenvolvimento. Para VIGOTSKI, era evidente que com tal método
poder-se-ia estabelecer unicamente o que já havia madurado na criança, até
então. Mas, se seus achados estavam corretos, o desenvolvimento não se
limitaria exclusivamente à parte madura atual. E cita a seguinte metáfora:

Igual ao fruticultor, que desejando determinar o estado de seu pomar,


não terá razão se se limitar a avaliar as macieiras que já tenham
madurado e dado frutos, mas que deve ter em conta também as árvores
em maturação, o psicólogo, ao avaliar o estado de desenvolvimento, deve
obrigatoriamente ter em conta não somente as funções maduras, senão
também as que estão em transe de maturação.50

A determinação deste intervalo de possibilidades encontra-se


diretamente relacionada não simplesmente ao que a criança pode resolver
por si mesma, mas sim ao que resolve com o auxílio de adultos. A esta
diferença entre o que a criança pode fazer por conta própria e em
colaboração com adultos, VIGOTSKI denominou zona de desenvolvimento
próximo.
Traduzida para o processo de ensino, o mesmo se dá com o
papel da instrução, que favorece o desenvolvimento das funções que ainda
não amadureceram na criança:

Assim é que, quando dizemos que a instrução deve basear-se na zona de


desenvolvimento próximo, nas funções ainda imaturas, não estamos

50 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 238.

115
receitando nada de novo à escola, senão que nos livremos do velho
equívoco de que o desenvolvimento deve recorrer, obrigatoriamente, a
seus ciclos, preparando por completo os fundamentos sobre os quais a
instrução deve erigir-se. (...)

Antes se perguntava: a criança está madura para aprender a ler, para


aprender aritmética etc.? A questão relativa às funções maduras se
mantêm vigentes. Devemos sempre determinar o limite inferior da
instrução. Mas a coisa não acaba aí: devemos saber estabelecer também
o limite superior da instrução. Só dentro desses dois limites pode a
instrução resultar frutífera.”51

Portanto, ao invés de ir atrás do desenvolvimento da criança, a


instrução deve, antes, movê-lo, arrastá-lo. É deste modo que, já Montessori,
pedagoga italiana, demonstrou que os quatro ou cinco anos de idade
correspondem a prazos ótimos para o início do ensino da escrita.
A instrução, portanto, é a base do desenvolvimento dos
conceitos científicos. Por esse motivo, o problema da instrução e do
desenvolvimento é central à análise da origem e da formação dos conceitos
científicos.
Posteriormente, e após o devido aprofundamento em diversas
questões que o curto tempo de vida de VIGOTSKI não permitiu, algumas
outras conclusões complementares e de especial interesse para nosso
raciocínio foram proporcionadas por seus colaboradores. Destacamos aqui,
em especial, as contribuições de Alexis N. Leontiev (1903-1979),
particularmente as que se destacam no texto “Uma contribuição à teoria do
desenvolvimento da psique infantil” 52, que a nosso ver vêm fechar esse nosso
raciocínio.
Acreditamos que este texto de LEONTIEV auxilie-nos a melhor
compreender o papel fundamental da instrução para o processo de

51 VYGOTSKI, L. S. “Pensamiento y Lenguaje”, op. cit., p. 242.

116
desenvolvimento humano, na medida em que esclarece a caráter
determinante da atividade humana sobre suas diversas etapas de
desenvolvimento.
O primeiro aspecto a ser observado, nos diz ele, refere-se ao fato
de que, durante o desenvolvimento da criança, sob influências concretas
diversas, o lugar que objetivamente esta ocupa no seio das organizações e
relações humanas se altera.53 LEONTIEV procura demonstrar este fato
descrevendo os estágios reais do desenvolvimento de uma criança.
Partindo da condição de uma criança em idade pré-escolar,
LEONTIEV chama-nos a atenção não só para as características próprias do
estágio de amadurecimento em que se encontra a criança, mas
principalmente para as condições objetivas que envolvem e orientam suas
ações. É assim que este conjunto de condições e circunstâncias proporciona à
criança uma série de atividades fundamentalmente caracterizadas pela
imitação de um mundo adulto do qual depende inteiramente, e para o qual
ainda não desempenha papel ativo. Assim se remete LEONTIEV à esta
questão:

Em toda a sua atividade e, sobretudo, em seus jogos, que ultrapassaram


agora os estreitos limites da manipulação dos objetos que a cercam, a
criança penetra um mundo mais amplo, assimilando-o de forma eficaz.
Ela assimila o mundo objetivo como um mundo de objetos humanos,
reproduzindo ações humanas com eles. Ela guia um “carro”, aponta uma
“pistola”, embora seja realmente impossível andar em seu carro ou
atirar com sua arma. Mas neste ponto de seu desenvolvimento isto é
irrelevante para ela, porque suas necessidades vitais são satisfeitas
pelos adultos, independentemente da produtividade concreta de seus

52 LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil”,


In: VIGOTSKII, L. S., LURIA, A. R. & LEONTIEV, A. N. Linguagem, Desenvolvimento e
Aprendizagem. Trd.: Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone/Editora da Univ. de S.
Paulo, 1988. (Col. “Educação Crítica).
53 LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil”,

op. cit., p. 59.

117
atos.54

De fato, segundo LEONTIEV, o processo de transição deste


mundo estritamente infantil para o mundo mais amplo das relações sociais,
no qual o indivíduo passa perceber o lugar que nela ocupa e as novas
exigências que daí advêm, se dá efetivamente com o acesso da criança à
escola. Aqui todo o sistema de suas relações é reorganizado, sendo que, além
de meras obrigações e deveres para com os pais e educadores, a criança se
depara agora com exigências que dizem respeito à sua função, papel e
perspectivas de vida futura. LEONTIEV afirma que a criança já possuía
noções acerca destes fatos muito antes de entrar na escola. Todavia,
somente agora isso se consuma concretamente. 55 Em suas palavras,

Quando se senta para preparar suas lições, a criança sente-se, talvez


pela primeira vez, ocupada com um assunto muito importante. Em casa,
os irmãos menores são proibidos de incomodá-la, e mesmo os adultos, às
vezes, sacrificam suas próprias ocupações para dar -lhe a oportunidade
de trabalhar. Isto é muito diferente de seus jogos e ocupações anteriores.
O próprio lugar de sua atividade na vida adulta, na vida
“verdadeiramente real” que a cerca, torna-se diferente.56

Evidentemente, são inúmeros os novos fatores que passam a


figurar nessa etapa do desenvolvimento, de psico-afetivos a
morfofisiológicos. A criança adquire aos poucos novas feições físicas, cresce,
desenvolve habilidades, exprime opiniões, participa de novas atividades etc.
O próprio tratamento que o mundo até aqui lhe reservava se altera.
Eis porque, na opinião de LEONTIEV, é fundamental que no
estudo do desenvolvimento da psique infantil, devamos necessariamente
analisar o próprio desenvolvimento da atividade da criança, e isto significa
considerá-la em termos de como esta é constituída nas condições concretas

54 LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil”,


op. cit. p. 59.
55 Cf. LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique

infantil”, op. cit. p. 61.

118
da vida da criança. Somente desta forma poderemos compreender
adequadamente “o papel condutor da educação e da criação operando
precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e
determinando, portanto, sua psique e sua consciência”. 57
Entretanto, LEONTIEV distingue, em seus graus de
importância, as atividades que envolvem o desenvolvimento da criança. Em
outros termos, não se refere a toda e qualquer atividade, e esclarece-nos que:

...a vida, ou a atividade como um todo, não é construída mecanicamente


a partir de tipos separados de atividades. Alguns tipos de atividade são
os principais em um certo estágio, e são da maior importância para o
desenvolvimento subseqüente do indivíduo, e outros tipos são menos
importantes. Alguns representam o papel principal no desenvolvimento,
e outros, um papel subsidiário. Devemos, por isso, falar da dependência
do desenvolvimento psíquico em relação à atividade principal e não à
atividade em geral.58 (itálicos nossos).

Deste modo, cada estágio do desenvolvimento psíquico


caracteriza-se por uma relação muito própria e efetiva entre a criança e um
tipo “preciso e dominante de atividade”. 59 Isto é de fundamental importância
e implica em que a transição de um estágio de desenvolvimento a outro é
determinado efetivamente pela mudança da atividade principal na vida da
criança.
Em linhas gerais, LEONTIEV assim caracteriza a atividade
principal (permitimo-nos, aqui, a transcrição ipsis literis das atribuições
fornecidas pelo autor):

1. Ela é a atividade em cuja forma surgem outros tipos de atividade e


dentro da qual eles são diferenciados. Por exemplo, a instrução, no

56 LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil”,


op. cit. p. 61.
57 Cf. LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique

infantil”, op. cit. p. 63.


58 Cf. LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique

infantil”, op. cit. p. 63.


59 Cf. LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique

infantil”, op. cit. p. 64.

119
sentido mais estrito do termo, que se desenvolve em primeiro lugar já na
infância pré-escolar, surge inicialmente no brinquedo, isto é,
precisamente na atividade principal deste estágio do desenvolvimento.
A criança começa a aprender de brincadeira.

2. A atividade principal é aquela na qual processos psíquicos


particulares tomam forma ou são reorganizados. Os processos infantis
da imaginação ativa, por exemplo, são inicialmente moldados no
brinquedo e os processos de pensamento abstrato, nos estudos. Daí não
se segue , porém, que a modelagem ou a reestruturação de todos os
processos psíquicos só ocorra durante a atividade principal. Certos
processos psíquicos não são diretamente modelados e reorganizados
durante a própria atividade principal, mas em outras formas de
atividade geneticamente ligadas a ela. Os processos de observação e
generalização das cores, por exemplo, não são moldados, durante a
infância pré-escolar, no próprio brinquedo, mas no desenho, nos
trabalhos de aplicação de cores etc.; isto é, em formas de atividades que
só estão relacionadas à atividade lúdica em suas origens.

3. A atividade principal é a atividade da qual dependem, de forma


íntima, as principais mudanças psicológicas na personalidade infantil,
observadas em um certo período de desenvolvimento. É precisamente no
brinquedo que a criança, no período pré-escolar, por exemplo, assimila
as funções sociais das pessoas e os padrões apropriados de
comportamento (“O que é um soldado do Exército Vermelho?”, “O que
fazem em uma fábrica o diretor, o enge nheiro e o operário?”), e este é um
momento muito importante de modelagem de sua personalidade.60

Deste modo, a atividade principal deve ser compreendida como


a atividade “cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes
nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da
criança, em um certo estágio de seu desenvolvimento.” 61
Evidentemente, devemos também levar em conta os aspectos

60 LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil”,


op. cit. p. 64-65.
61 Cf. LEONTIEV, A. N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique

infantil”, op. cit. p. 65.

120
decisivamente determinantes das condições concretas nas quais se dá o
processo de desenvolvimento. Dessas condições dependerão os próprios
conteúdos dos estágios de desenvolvimento (cada indivíduo pertence a uma
dada geração, em dadas condições de vida, que determinam os conteúdos de
suas atividades etc.).
Portanto, se por um lado VIGOTSKI lançou uma perspectiva
totalmente inovadora para a compreensão do papel real do processo de
instrução sobre o desenvolvimento de suas potencialidades cognoscitivas,
LEONTIEV, por sua vez, procura demonstrar que, efetivamente, a atividade
principal do ensino encontra-se inserida em um contexto sócio-histórico
concreto, que incita o indivíduo a transformar em ação o que agora já lhe é
possível. LEONTIEV, em outras palavras, mostra o caráter determinante da
atividade principal sobre a própria personalidade em desenvolvimento,
enquanto individualidade que vislumbra uma série de novas possibilidades
para tomar parte e interferir objetivamente no mundo que o envolve. A
atividade principal, enfim, tanto define o, quanto é delineada pelo, ser em
desenvolvimento; ela é, em última instância, mediadora entre o ser
particular e o mundo das objetivações sociais humanas.

121
Considerações Finais

Iniciamos estas nossas considerações finais propondo-nos uma


última questão, que em essência nada mais tem a ver que com a retomada,
agora, do status do conceito de criatividade suscitado inicialmente por este
trabalho: poderíamos, após toda a caminhada que realizamos, ainda
conceber a criatividade humana como algo essencialmente misterioso, dado a
alguns indivíduos em especial ou como algo extrínseco à natureza genérica
humana? Ora, embora nosso ímpeto em responder negativamente, parece-
nos que a resposta possa variar conforme o que de fato entendamos por
natureza humana. Se considerada de forma estática espaço-temporalmente,
parece-nos inevitável que esta seja concebida tão-somente segundo o caráter
pragmático-utilitário de nossos sentidos. Isto porque, por esse método, não
teremos à nossa disposição mais que o quê fazem determinados indivíduos,
segundo determinados contextos e condições de ação no mundo que
imediatamente o cerca.
Mas eis que, ao recusarmos que nossa concepção de ser humano
e de indivíduo limite-se ao que se nos apresenta imediatamente aos
sentidos, e veremos descortinar-se à nossa frente um quadro muito diverso
de fatos e possibilidades. O primeiro desses fatos é o de ser o ser humano um
gênero ineliminavelmente histórico — destarte as ostensivas tentativas de
desconsiderá-lo. A história existe porque existe um gênero humano, que a
ela produz e nela se reproduz. Em sendo histórico, o homem não poderá
entender-se a partir tão-somente de sua imediaticidade, já que esta
imediaticidade não representa e não comporta toda a história multiforme e
multideterminada de sua existência. Pelo contrário, é antes ela determinada
pela história milenar de toda a humanidade. Isto, como dizíamos, encerra
também um quadro muitíssimo amplo de possibilidades. Estas
possibilidades nos indicam, com segurança, que como agente de sua história,
o homem seja também o determinante ativo de si próprio, pois não falamos
aqui de uma história natural, à qual, pretendem alguns, esteja submetida a

122
humanidade; afinal, como vimos, a gênese e a essência da própria história é
a subordinação da natureza a propósitos humanos. Segue daí a insuficiência
de condições, a quem quer que se baseie exclusivamente em elementos
parciais e a-históricos (imediatos e estanques) para conceituar, com estatuto
de “científicas”, suas considerações sobre os fenômenos humanos.
Por conseguinte, se ao considerar-se a atividade criativa, o
investigador limita-se a inquirir ou investigar o indivíduo que produz algo
considerado criativo, quais as características do que foi produzido, ou, por
fim, em que condições e circunstâncias se deu tal produção, tais perguntas
serão muito oportunas, caso nos ocupemos ou nos contentemos,
pragmaticamente, com a busca de como determinados resultados, ditos
criativos, são ou possam ser atingidos. Entretanto, para quem já percebeu
que nenhum fenômeno humano é fortuito, a pergunta deverá ser formulada
de outro modo: por que produzimos? Por que, diferentemente dos outros
animais, transformamos intencionalmente as coisas? Por que, enfim,
recriamos a natureza à nossa volta e a nós mesmos, em um tal movimento?
Como foi nossa intenção evidenciar, indo às raízes históricas
desta questão deparâmo-nos com respostas e possibilidades não só
relevantes do ponto-de-vista científico, mas vitais, no que diz respeito à
compreensão da própria existência humana. No que se refere aos propósitos
deste trabalho, a principal dessas respostas é a de que a humanidade é,
enquanto gênero, ontologicamente criativa. Mas isto nos remete a uma outra
questão: se o ser do homem é ontologicamente criativo, todos os indivíduos
humanos deverão ser, a priori, criativos em mesmo grau? A resposta, a
princípio, poderia ser positiva. Contudo, há a objeção possível de que o ser do
homem, entretanto, não é naturalmente dado, formando-se, pelo contrário,
histórica e socialmente. Logo, a criatividade, a partir deste raciocínio, tanto
quanto o processo de humanização, não estaria garantida a todos os seres
humanos. Afinal, as pessoas teriam que aprender a ser criativas, fazendo
uso de suas faculdades humanas e se apropriando ao máximo dos legados do
seu gênero.

123
De fato, este raciocínio parece pôr em xeque aquele postulado,
pois, de fato, se levarmos em consideração as inúmeras formas e graus de
manifestação e desenvolvimento do potencial criativo, haveríamos de
concluir que a criatividade não esteja presente a toda e qualquer atividade
humana, podendo então existir em grau muito pequeno ou, até mesmo,
tornar-se inexistente. Entretanto, é fundamental examinarmos esta questão
por outra forma.
Quando nos referimos à criatividade como ontologicamente
inerente ao gênero humano, devemos, antes de mais nada, nos perguntar o
que de fato caracteriza um ser humano. Em outros termos, o que torna o
Homo também sapiens? Já sabemos que é a consciência reflexiva, que em
última análise implica na possibilidade de tornar a ação humana projetada
no devir. Ora, não vem ao caso, aqui, se um indivíduo humano faz tal ou
qual uso de suas faculdades humanas, e logo, de sua criatividade. Em outros
termos, é absurdo dizer-se que um homem, em sendo humano, possa não
fazer uso de sua faculdade criativa. Todo homem é criativo porque é
humano, assim como é humano porque é criativo. Esta “tautologia” é
necessária porque estamos diante de uma condição sine qua non, e não há
concessões possíveis no que se refere a este postulado. Portanto, ao
concebermos a possibilidade de um ente humano não ser criativo, estaremos
negando a essência mesma do que o torna homem ou o insere no gênero
humano. Evidentemente, esta condição humana é também historicamente
mediada, em se considerando que não há como concebermos que uma
individualidade humana, por mais tenra que seja, não esteja embebida de
elementos humanos assim que posta no universo no seu universo genérico.
Enfim, esta condição em nada se identifica, advertimos, com pressupostos de
caráter inatista, que aqui, pelo contrário, procuramos confrontar.
Mas se não há concessões quanto às determinações e
características humano-genéricas básicas do que devemos entender por ser
humano (que compõem o que Heller designa por genericidade em-si), há
concessões e variações muito amplas no que se refere aos diversos graus em

124
que um homem pode fazer uso de seus atributos humanos ou, no nosso caso,
de sua criatividade. Estas possibilidades, sócio-historicamente
determinadas, remetem-nos, uma vez mais, ao papel fundamental do
fenômeno da alienação em nossas vidas. É sem dúvida, portanto, que ao nos
remetermos aos diversos graus em que possamos fazer uso de nossa
criatividade, deveremos ter em conta o que concorre para um uso mais
amplo da criatividade ou, pelo contrário (e como tem sido regra geral em
nossas sociedades até presentemente), para o seu comprometimento,
supressão e desuso. Isto pode se dar por inúmeras vias, sendo que não
podemos deixar de levar em consideração as próprias possibilidades que o
gênero tem logrado alcançar, ou não. A questão é de enorme complexidade,
mas, certamente, podemos ao menos apontar com segurança ser o processo
de alienação o maior antagonista à exploração plena de tais possibilidades
humanas, às mais das vezes relacionadas ao estabelecimento de padrões
determinados de comportamento, atividades e valores socialmente
inculcados e irrefletidamente aceitos.
A questão da alienação e sua contrariedade ao processo de
humanização (processo cujas possibilidades tanto procuramos ressaltar
neste trabalho) certamente nos faz retomar as questões iniciais que
orientaram toda a nossa caminhada, acrescentando-lhes, finalmente, uma
outra. Se, para elucidarmos os fundamentos históricos da atividade criativa
tivemos que nos remeter — mais que a quem produz, como produz e o quê
produz —, à questão fundamental “por que se produz”, não podemos perder
de vista que para compreendermos como os processos criativos e seus
produtos têm sido compreendidos e valorados, deveremos considerar
profundamente uma questão crucial: para quem, afinal, se produz? É por
ela, sem dúvida, que nos depararemos com a necessidade de desvelarmos,
ainda, os inúmeros fatores, produtivos e ideológicos, que têm determinado,
histórica e contextualmente, concepções e atribuições à atividade criativa
humana.
Entretanto, apesar da crucial importância dos fenômenos da

125
alienação e da ideologia dominante, não contamos com o oportuno espaço
para nos remetermos, neste trabalho, aos diversos aspectos que os envolvem
e inúmeras conseqüências que deles advêm, limitando-nos a demonstrar
apenas os mecanismos que, em termos psicológicos e da atividade geral
humana, os engendram. Acreditamos que os demais aspectos (contextuais,
econômicos e políticos) encontram o devido lugar e atenção em outros
estudos, especificamente dedicados aos mesmos. O que procuramos, como já
dissemos, foi contribuir, em primeiro lugar, para o desvelamento da
natureza concreta da atividade criativa entre os seres humanos. Se
houvermos podido contribuir efetivamente para com este propósito e o
debate necessário que o assunto suscita, já nos daremos por satisfeitos.
Por outro lado, este trabalho encontra-se completamente
subordinado às questões do processo de ensino formal. Foi lidando com elas
e com os profissionais da educação, que nos deparamos, no decorrer deste
estudo, com a pertinência e verdadeiro significado deste tema para a
compreensão do devido lugar da educação formal no processo de
desenvolvimento de individualidades e sociedades. Hoje, notaríamos que a
busca intuitiva dos professores por informações sobre o tema criatividade,
guarda relações mais efetivas e importantes com a realidade das
necessidades humanas do que nós poderíamos supor, quando da realização
dos cursos a eles destinados no ano de 1994. E isto de certo nos remete a
uma outra questão, complementar às anteriores e pertinente às experiências
citadas: de que modo pode o ensino contribuir, efetivamente, para o
desenvolvimento do que chamamos potencial criativo das novas gerações ou
indivíduos a ele submetidos?
Entretanto, do mesmo modo que, heuristicamente, o estudo da
criatividade humana tem sido orientado por questões ainda muito parciais,
devemos também reformular a presente questão com relação ao ensino, nos
seguintes moldes: qual o papel do ensino no processo de desenvolvimento dos
indivíduos humanos e, por decorrência, do gênero humano? Ora, como
vimos, este gênero é ontologicamente criativo e, segundo nossos estudos,

126
tanto mais uso de sua criatividade o indivíduo fará quanto mais e melhor
apropriar-se dos legados de seu gênero. Isto quer significar que, quanto mais
o indivíduo torne seus os elementos que mediam sua compreensão e
integração com o mundo humano e natural (linguagem, signos diversos,
utensílios, criações artísticas, literárias, filosóficas e científicas), maiores e
melhores serão as suas possibilidades de interferir consciente e
concretamente no processo de desenvolvimento de si próprio e do mundo à
sua volta. Em outros termos, maiores e melhores serão as possibilidades de
agir efetivamente enquanto um ser que é, ontologicamente, criativo. Isto é
não só inferido teoricamente por Vigotski nos trabalhos aqui mencionados,
como também cientificamente constatado pelas importantes investigações
que presidiu, e que fundamentaram o surgimento da própria escola
histórico-cultural russa.
Subsidiados por tais estudos, podemos dizer que o ensino não
tem uma relação apenas desejável, do ponto-de-vista pragmático, com a
obtenção de bons e melhores resultados pelo uso acessório de determinadas
técnicas ou estratégias pedagógicas — muito embora nada tenhamos contra
que este se torne melhor e mais eficiente. O problema está em uma
mistificação dos meios aos tentar-se atingir determinados fins, o que pode
concorrer (e via de regra concorre) para que o próprio processo de ensino
possa ser considerado extrínseco e também acessório ao próprio
desenvolvimento humano. Vigotski e seus colaboradores provaram o
contrário.
Do mesmo modo, nosso estudo presume a devida distinção
também entre métodos e técnicas criativas acessórias e um ensino
fundamentado no princípio de que é parte crucial do desenvolvimento de um
gênero essencialmente criativo. Esta última noção deveria, portanto,
preceder toda e qualquer ação pedagógica e o papel acessório que atribuímos
à primeira concepção de criatividade encontra-se presente à maioria dos
trabalhos que visam o desenvolvimento de potenciais criativos.
Esta questão certamente nos remete ainda a uma outra, final

127
aos presentes questionamentos: qual o critério que deverá orientar a escolha
do que seja, de fato, criativamente relevante? Eis uma questão que
certamente merecerá a devida atenção por parte dos trabalhos que
continuem a debruçar-se sobre este tema, sobretudo em seus aspectos éticos.
Evidentemente, todo e qualquer produto humano encontra-se submetido a
certa atribuição de valor e, como podemos notar, a criatividade suscita, como
poucas questões humanas, juízos de valor os mais variados. Não pudemos
entrar devidamente nos méritos de tal questão neste trabalho, mas não nos
limitaremos tão-somente a apontá-la como uma nossa lacuna. Assim, se bem
entendidos nossos propósitos e os elementos dos quais lançamos mão em
nossa caminhada, é certo que o primeiro aspecto que nos saltará aos olhos é
a concepção distinta que adotamos para nossas considerações. Esta
concepção, de per se, implica em uma posição frente aos fenômenos humanos
necessariamente histórica e dialética. Quer isto dizer que o critério de valor
que adota é, presumivelmente, sócio-histórico e, logo, identifica-se,
aprioristicamente, com o que seja social e historicamente relevante. Se o que
é relevante é o que visa a concretude (essência) das objetivações e questões
humanas que daí advêm, deveremos também presumir que qualquer
estabelecimento de critérios de valor quanto ao que seja concretamente
relevante social e historicamente, deve abster-se de qualquer tendência
meramente pragmático-utilitária, princípio básico, como vimos, de toda
leitura que se atém aos aspectos mais imediatos dos fenômenos humanos. O
pragmatismo, ainda que socialmente necessário à consecução de aspectos
básicos da própria vida, não pode reger indistintamente todas as questões
humanas, sobretudo, em nosso entendimento, as que envolvam juízos de
valor. Daqui derivam concepções por vezes infundadas e que conduziram
sociedades inteiras à impingir sentenças impiedosas a diversos indivíduos e
grupos, justamente porque não fossem ao encontro do que,
pragmaticamente, fora estabelecido enquanto verdadeiro e útil, através de
determinados critérios. Portanto, se não nos julgamos em posição e lugar
adequados para nos aprofundar nesta questão, gostaríamos, ao menos, de

128
chamar a atenção para sua importância. Convém que, modestamente
assinalemos, de nossa parte, acreditarmos que o primeiro passo na direção
de uma resolução para tal questão é demonstrar (senão, denunciar), por
todos os meios, o que concretamente determina a compreensão
caracteristicamente parcial que temos tido das questões humanas, com
vistas a, como sugere Marx e, posteriormente, reitera Gramsci, fazermos
germinar um novo senso comum, substancialmente crítico-reflexivo e
revolucionário. O ensino se nos apresenta, acreditamos, como a principal via
para que atinjamos esse novo e transformador senso comum. Em outras
palavras, esse senso comum nada mais representa que o estabelecimento de
uma relação que vise, conscientemente, a consolidação da condição
ontológica que fundamentou todo o processo de humanização até
presentemente, ainda que deste fator a imensa maioria da humanidade
ainda não se tenha dado conta, a saber, o de ser a humanidade um gênero
essencialmente criativo, ou seja, especulador de novas e melhores
possibilidades e, portanto, potencialmente transformador de realidades.

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