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Mestrado em Teoria da Literatura Seminário de 09/01/2004

Marivalda Gonçalves

Lírica de João Mínimo


Almeida Garrett

O conceito de literatura emerge no final do séc. XVIII por um conjunto de


modificações sociais e históricas. A poética clássica na 2ª metade do séc. XVIII
entra em colapso. Tratava-se de poéticas essencialistas, normativas que postulavam um
conjunto de regras à priori, universalistas. Na 2ª metade do séc. XVIII esse carácter
universal é posto em causa. Surgem novos públicos e o modelo confinado a uma elite
social começa a ser questionado. Surge então um conjunto de reflexões, sobretudo de
filósofos sobre o fenómeno literário que é questionado a partir do exterior, ou seja,
a maior parte dos textos teóricos reflexivos, são teorizações feitas por filósofos
(excepto Schiller).

Se os modelos de pensamento subjacentes à visão Iluminista da vida humana se fundavam


na ideia de universalidade, de racionalidade, tendo-se a crença optimista na
possibilidade de melhorar a vida do ser humano, a partir do momento em que a razão,
ou melhor, o seu teor universal é questionado, surgem cosmovisões que vão entrar em
choque com a anterior, postulando uma visão baseada na sensibilidade e individualismo
em que o homem se define pela sua capacidade afectiva.

As poéticas clássicas entram em ruptura e surgem poéticas literárias que entram em


contestação com esta. Emerge o conceito de literatura (mais alargado que o conceito
de poesia clássica), vai recolher aquele e alargá-lo (inclui poesia em prosa), sendo
que este alargamento terá como consequência o surgimento de um conjunto de práticas
discursivas, estratégias de legitimação, visto que cada autor tem que dizer o que é
literatura para si próprio, isto é, cada autor vê-se obrigado a legitimar a sua
produção, daí o surgimento dos paratextos (cartas, prefácios, postfácios, etc.)

O romantismo inglês é o mais produtivo do ponto de vista de teorização feita a partir


do seu interior, o poeta auto-crítico. A prática literária é entendida como sinónimo
de criação, cria um outro mundo. Estamos no domínio das poéticas expressivas que
estabelecem uma ruptura com as poéticas representativas (miméticas).

Surge o problema do “eu” literário, questiona-se o estatuto do literário e assistimos


a um certo elitismo do próprio poeta. O romantismo “negro” revela-nos um “eu”
cindido, em crise que rejeita o mundo do classicismo com uma forte consciência do
lado dramático da existência e vive a experiência da fragmentação. Assume o literário
como ficção, a prática literária é, assumidamente a questionação, a criação do mundo.
Assiste-se à rejeição da teoria dos géneros, ou melhor, rejeita-se a ideia de que o
género é uma entidade fixa e imutável, mas uma entidade histórica, mutável. Rejeita a
separação rígida dos géneros, abandono dos códigos retórico-poéticos que eram usados
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até aí. Está presente a consciência do literário como produção. A grande finalidade
da poesia é ser ela mesma, como dirá Schiller, é produzir um efeito estético. Ganha
especial relevo a ideia da impessoalidade: porque a poesia é transcendental, a arte é
sentida como o último reduto do ser humano.

A modernidade implica sempre uma visão crítica, a consciência da crise que é tomada
como um valor, bem como o questionamento da identidade, o papel do “eu” e uma
determinada consciência da linguagem. A linguagem poética é assumida como diferente,
recusa a dicção clássica e procura aproximar-se da linguagem de comunicação.

Começa-se a explorar o inconsciente, o interesse pelo lado não racional: o sonho, o


inconsciente, o exacerbar de uma atitude neurótica que se traduz pela expressão “le
mal du siécle”. Tal não significa que o poeta romântico se considere doente, este
percebe a dualidade da dimensão humana e exalta a sua diferença. Implica uma inversão
dos valores, a consolidação e aplicação de pontos de ruptura, o assumir abertamente
da prática poética como expressão da mente humana com uma dimensão altamente
criativa.

A imaginação será o grande motor de toda a prática literária, o poeta é essa mente
activa e criativa que configura uma realidade que não é independente dessa mesma
mente, por isso mesmo assume que a prática literária é ficção, artifício assumido
mas, precisamente porque é artifício, construção, ela tem necessariamente uma
dimensão cognitiva. Toda a prática literária é auto-consciente. O poeta é um génio,
não aquele que tem talento.

Nas teorias expressivas grande parte dos ensaios reflectem sobre a relação da obra
com o poeta. Para Wordsworth, a poesia traduz o extravasar espontâneo de sentimentos
intensos, o crítico terá de ser capaz de avaliar sobre o valor expressivo e a forma
empregue para verbalizar essa dimensão afectiva e expressiva. O crítico sente-se como
aquela instância que se põe entre o autor e o comum leitor.

O romantismo português é um romantismo tardio, às vezes epidérmico, o que não


acontece em Garrett. A sua obra irá corporizar grande parte dos princípios
enunciados, o que nos permite ver em Garrett um exímio representante do que é o
literário, entendido como uma prática ficcional. Este revela ter consciência do hiato
entre a linguagem e o mundo, tem presente a ideia da arte como uma construção, que é
também uma ficção. Por outro lado, tem também a noção de literatura como entidade
social, com um público determinado.

“A Lírica de João Mínimo” corresponde a um dos seus primeiros textos e o último que
publica. Garrett distancia-se destes poemas, mas vai publicá-los através do recurso à
construção ficcional da biografia de João Mínimo. No prefácio assume uma instância
editorial (releva da sua consciência do dimensão institucional do literário),

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propondo-se divulgar um poeta desconhecido para o público e, supostamente para ele
próprio, através de uma ficção que se mascara de texto crítico, um paratexto.

Trata-se de um prefácio autorial negativo, ficcional, onde um determinado sujeito de


enunciação que não assina (Garrett) supostamente também poeta, aparece como o
legatário de um espólio, faz uma selecção de textos (revelando uma consciência nítida
do que é um livro, as exigências de um público) e posteriormente, vai publicar
segundo o desejo de João Mínimo. É um prefácio longo que pretende caricaturar uma
prática literária vigente na época marcada por uma atitude academista e de pertença a
uma escola, um texto com um forte pendor irónico onde se recria o ambiente, as
querelas literárias da época, bem como uma prática e ambiente literário dado em
termos de exterioridade.
Em termos da escrita há a adopção de um estilo que entra em sintonia com essa imagem
exterior dos poetas existentes no nosso país, ou seja, corporiza os vários tipos de
poesia que depois vão ser teorizados (criticados).

Uma viagem vai-se desencadear a pretexto da ida a um outeiro. Os outeiros constituíam


um tipo de exibições poéticas em contexto social para se mostrar cultura, algo que
releva da dimensão mundana e institucional da poesia, os “poetas” travavam duelos
poéticos em frente das damas como forma de granjear prestígio social que corresponde
a uma visão degradada de poesia. É pela presença da ideia de viagem que nos permite
ver este texto como um dos hipotextos autoriais das “viagens” que prenuncia já as
“Viagens na Minha Terra”.

Como referimos, o fio condutor será a convivência com um determinado tipo de poesia
da qual o sujeito poético se afasta, mostrando-nos um outro que é o verdadeiro poeta,
João Mínimo, uma figuração do poeta cuja vivência se pauta pela dimensão interior:
“à noite é que eu vivo”. Temos uma visão proto-romântica do que é o poeta, que se
contrapõe à imagem do poeta que vive para o exterior, para o social e que constitui o
alvo da crítica. Revelando uma enorme lucidez relativamente à sua prática do
literário, João Mínimo assume abertamente que escolhe o modelo segundo o tema, uma
postura que o próprio Garrett vai adoptar e que decorre da sua recusa do academismo,
das escolas e da procura de um modelo de referência externa.

Temos a viagem, a descrição dos incidentes da viagem, episódios anedóticos, descreve


as peripécias da viagem, e o próprio destino. De forma sub-reptícia, é descrito de
forma caricatural, mostra que esta prática literária é um mero exercício de retórica.
Está presente a crítica social, ao governo, às instituições, que vai aparecer nas
viagens e o encontro com alguém que está isolado, alma gémea (encontro de um narrador
com outro narrador que lhe conta a história). O relato da identidade de João Mínimo é
cheio de evasivas, há uma ocultação da identidade social e o assumir de uma outra
pela negação da mundanidade. No final do prefácio surge o tal “legado”: a arca, tal
como acontecerá nas “Viagens na Minha Terra”.

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Em suma, assistimos à invenção de um autor, ou melhor, de uma personalidade
literária. Há um processo de ficcionalização para o autor se confrontar com ele
mesmo, estratégia que Garrett usa para justificar a publicação dos poemas de
juventude. Podemos afirmar que em Garrett não está presente a ideia de historicidade,
ou seja, quando este escreve em 1825, a sua concepção literária já não se revia na
prática literária de João Mínimo, como tal usa um enquadramento lógico, uma
justificação para publicar os poemas posteriormente, temos uma invenção de um autor
com um conjunto de marcas que dão um cunho proto-romântico a João Mínimo.

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