Marivalda Gonçalves
A modernidade implica sempre uma visão crítica, a consciência da crise que é tomada
como um valor, bem como o questionamento da identidade, o papel do “eu” e uma
determinada consciência da linguagem. A linguagem poética é assumida como diferente,
recusa a dicção clássica e procura aproximar-se da linguagem de comunicação.
A imaginação será o grande motor de toda a prática literária, o poeta é essa mente
activa e criativa que configura uma realidade que não é independente dessa mesma
mente, por isso mesmo assume que a prática literária é ficção, artifício assumido
mas, precisamente porque é artifício, construção, ela tem necessariamente uma
dimensão cognitiva. Toda a prática literária é auto-consciente. O poeta é um génio,
não aquele que tem talento.
Nas teorias expressivas grande parte dos ensaios reflectem sobre a relação da obra
com o poeta. Para Wordsworth, a poesia traduz o extravasar espontâneo de sentimentos
intensos, o crítico terá de ser capaz de avaliar sobre o valor expressivo e a forma
empregue para verbalizar essa dimensão afectiva e expressiva. O crítico sente-se como
aquela instância que se põe entre o autor e o comum leitor.
“A Lírica de João Mínimo” corresponde a um dos seus primeiros textos e o último que
publica. Garrett distancia-se destes poemas, mas vai publicá-los através do recurso à
construção ficcional da biografia de João Mínimo. No prefácio assume uma instância
editorial (releva da sua consciência do dimensão institucional do literário),
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propondo-se divulgar um poeta desconhecido para o público e, supostamente para ele
próprio, através de uma ficção que se mascara de texto crítico, um paratexto.
Como referimos, o fio condutor será a convivência com um determinado tipo de poesia
da qual o sujeito poético se afasta, mostrando-nos um outro que é o verdadeiro poeta,
João Mínimo, uma figuração do poeta cuja vivência se pauta pela dimensão interior:
“à noite é que eu vivo”. Temos uma visão proto-romântica do que é o poeta, que se
contrapõe à imagem do poeta que vive para o exterior, para o social e que constitui o
alvo da crítica. Revelando uma enorme lucidez relativamente à sua prática do
literário, João Mínimo assume abertamente que escolhe o modelo segundo o tema, uma
postura que o próprio Garrett vai adoptar e que decorre da sua recusa do academismo,
das escolas e da procura de um modelo de referência externa.
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Em suma, assistimos à invenção de um autor, ou melhor, de uma personalidade
literária. Há um processo de ficcionalização para o autor se confrontar com ele
mesmo, estratégia que Garrett usa para justificar a publicação dos poemas de
juventude. Podemos afirmar que em Garrett não está presente a ideia de historicidade,
ou seja, quando este escreve em 1825, a sua concepção literária já não se revia na
prática literária de João Mínimo, como tal usa um enquadramento lógico, uma
justificação para publicar os poemas posteriormente, temos uma invenção de um autor
com um conjunto de marcas que dão um cunho proto-romântico a João Mínimo.