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SOPRO Desterro, abril de 2010

Intervenção de Giorgio Agamben no segundo, e penúltimo, ato do seminá-


rio “nômade” Metropoli/Moltitudine, realizado em 11 de novembro de 2006,
na IUAV, em Veneza, com o tema “Novos conflitos sociais na metrópole”.
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Publicação quinzenal da editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org

Verbete
Metropolis
Giorgio Agamben
Muitos anos atrás, eu discutia com Guy Debord ques- esse significado do termo permaneceu corrente até
tões que a mim pareciam ser de filosofia política, até nossos dias para exprimir a relação entre o território
que em certo ponto Guy me interrompe e diz: ‘Olhe, da pátria metropolitana e as colônias. A primeira ob-
eu não sou um filósofo, sou um estrategista’. Esta fra- servação instrutiva, que me sugere essa etimologia, é
se me chocou porque eu o considerava um filósofo, que o termo metrópole implica e traz consigo a idéia
assim como considerava a mim mesmo um filósofo, de um deslocamento, de uma forte heterogeneidade
e não um estrategista. Mas creio que aquilo que Guy espacial e política, como a que define a relação entre
queria dizer é que todo pensamento, por mais puro, cidade – ou o estado – e as colônias. E a partir disso
por mais geral e por mais abstrato que seja, é sempre me vêm algumas dúvidas sobre a idéia corrente da
marcado por assinaturas históricas, temporais e, por- metrópole como um tecido urbano, contínuo e relati-
tanto, sempre preso, de alguma maneira, a uma es- vamente homogêneo. Uma primeira consideração é
tratégia e a uma urgência. Fiz esta introdução porque que a isonomia (que define, por exemplo, a polis gre-
as minhas considerações serão necessariamente ge- ga como modelo de uma cidade política) é excluída
rais e não entrarão no tema específico dos conflitos. no caso da relação metrópole/colônia e que, portanto,
No entanto, espero que estas considerações gerais o termo metrópole transferido para desenhar um te-
carreguem de algum modo uma assinatura de uma cido urbano carrega consigo essa heterogeneidade
estratégia. fundamental. Assim, proponho-me a reservar o termo
Gostaria de iniciar a partir de algumas considera- metrópole a algo substancialmente outro em relação
ções banais sobre a etimologia da palavra metrópole. à cidade, à concepção tradicional da polis, isto é, de
Como vocês sabem o termo metrópole significa em algo política e espacialmente isonômico. Sugiro reser-
grego “Cidade Mãe”, e se refere à relação entre a ci- var esse nome, metrópole, ao novo tecido urbano que
dade e as colônias. Os cidadãos de uma polis que se funda paralelamente aos processos de transforma-
partiam para fundar uma colônia eram chamados por ção que Michel Foucault definiu como passagem do
um curioso termo: en apoikia, distantes de casa e da poder territorial, do ancien régime, da antiga sobera-
cidade - esta que em face da colônia assumia agora nia, ao biopoder moderno, que é, na sua essência,
o caráter de Cidade Mãe, Metrópole. Como sabem, segundo Foucault, governamental.
Sopro 26 abr/2010
Isso significa que para entender o que é uma me- curiosa zona na qual não é possível decidir o que é o esquema de vigilância, controle, individualização relação entre os homens e os dispositivos. Não há
trópole é necessário compreender o processo que privado e o que é público. e articulação do poder disciplinar. Trata-se agora de dispositivo sem processo de subjetivação e para que
progressivamente levou o poder a assumir a forma de Michel Foucault tentou definir algumas caracte- individualizar, subjetivar e corrigir o leproso tratando- se possa falar de um dispositivo deve haver um pro-
um governo dos homens e das coisas, ou, se vocês rísticas essenciais desse novo espaço urbano liga- o como um pestilento. Desse modo cria-se um duplo cesso de subjetivação. Naturalmente sujeito tem dois
preferirem, de uma economia. A palavra economia do à governabilidade. Segundo Foucault, há aqui a esquema: de um lado a simples divisão binária, como significados: de uma parte, é o que leva um indiví-
não significa nada mais que governo, o que claramen- convergência de dois paradigmas que até então per- por exemplo, doente/sadio, louco/não-louco, normal/ duo a ligar-se e a assumir uma individualidade, uma
te se mostra no século XVIII: o governo dos homens maneciam distintos: a lepra e a peste. O paradigma anormal e, de outro lado, ao contrário, toda a compli- singularidade; mas significa também, de outra parte,
e das coisas. A cidade do sistema feudal do ancien da lepra é, claro, a exclusão, e tratava-se de “colocar cada série de repartições diferenciais de dispositivos sujeitamento a um poder externo. Não há processo
régime, que estava sempre em situação de exceção fora”, de excluir da cidade os leprosos. É o modelo e de tecnologias que subjetivam, individualizam e de subjetivação que não tenha estes dois aspectos
em relação aos grandes poderes territoriais, era o de uma cidade pura, que mantém fora de si os estra- controlam os sujeitos. Esse é um primeiro esquema (de um lado, assunção de uma individualidade e de
modelo da cidade franca, relativamente autônoma nhos; e também o modelo do que Foucault chama de que poderia ser útil para a definição geral e sumária uma subjetividade, de outro, sujeitamento a um poder
dos poderes de governo das grandes entidades ter- grand enfermement, isto é, o “grande fechamento”, do espaço metropolitano hoje. E isso me parece que externo). A consciência dessa relação é exatamente o
ritoriais. Por outro lado, diria então que a metrópole é o “grande aprisionamento”; portanto, fechar e excluir. também explica estas coisas muito interessantes so- que freqüentemente falta. Aos movimentos falta jus-
o dispositivo, ou o conjunto de dispositivos, que toma Tal é o modelo da lepra. Foucault sugere que o mode- bre as quais falavam agora [os outros participantes do tamente essa consciência de que toda assunção de
o lugar da cidade quando o poder assume a forma de lo da peste é completamente diverso e dá lugar a um seminário] – a impossibilidade de definir univocamen- uma identidade também é sempre um sujeitamento.
um governo dos homens e das coisas. paradigma totalmente diferente. Quando a epidemia te os confins, os muros, a espacialização, justamente Naturalmente talvez também seja algo complicado
Não podemos adentrar na complexidade da trans- se instaura na cidade é evidente que não é possível porque estes são o resultado da ação de um duplo o fato de que os dispositivos modernos não implicam
formação do poder em governo. Como é óbvio, go- “colocar fora” os pestilentos. Tratar-se-á, ao contrário, paradigma: não mais simples divisão binária, mas apenas uma criação de uma subjetividade, mas tam-
verno não significa simplesmente domínio e violência, de criar pela primeira vez um modelo de vigilância, projeção de uma complexa série de procedimentos e bém freqüentemente, e na mesma medida, processos
mas sim uma configuração muito mais complexa do controle e articulação do espaço urbano, o qual é de tecnologias individualizantes e articuladoras sobre de dessubjetivação. Toda subjetivação é também
poder que pretende passar através da própria nature- dividido em setores e, no interior destes, cada rua essa divisão. hoje uma dessubjetivação. Talvez isso sempre tenha
za dos governados e que, portanto, implica a liberda- é tornada autônoma e colocada sob a vigilância de Lembro dos fatos de Gênova em 2001, os quais sido assim e em todo dispositivo desde sempre have-
de destes. É um poder que não é transcendente, mas um intendente; ninguém pode sair de casa e, mesmo me pareciam experiências para tratar o centro históri- riam estes dois aspectos. Pensem na confissão, que
imanente e, por isso, no fundo, seu caráter essencial assim, todos os dias os habitantes de cada casa são co de uma cidade velha (que ainda conservava a sua formou a subjetividade ocidental (o grande instituto
é sempre de ser, nas suas manifestações mais espe- controlados: quantos são, se ainda estão lá, quem estrutura arquitetônica antiga) e ver se nesse centro da confissão dos pecados ou da confissão judiciária,
cíficas, efeito colateral, algo que recai num particular morreu e quem não etc. Em suma, um quadrillage poderiam ser repentinamente criados muros, portões que ainda vivenciamos hoje): implicava sempre, jun-
a partir de uma economia geral. Quando os estrate- do território urbano vigiado pelos intendentes, médi- etc, que não tinham apenas a finalidade de excluir e tamente com a criação de um novo sujeito, a negação
gistas norte-americanos falam de collateral damages, cos e soldados. Enquanto o leproso era tomado por separar, mas articular espaços diversos, de individua- de um sujeito. Na figura do confesso e do arrependido
efeitos colaterais, de seus bombardeios, como, por uma prática de rejeição e exclusão, o pestilento é lizar espaços e sujeitos. é claríssima a idéia de que a assunção de uma nova
exemplo, aqueles das cidades iraquianas, devem ser enclausurado, vigiado, controlado e assistido através A análise, da qual Foucault deu apenas alguns subjetividade se dá juntamente com um ato de des-
compreendidos literalmente: o governo tem sempre de uma complexa rede de dispositivos que dividem e acenos, naturalmente é sumária e poderia ser ulte- subjetivação.
esse esquema de uma economia geral com efeitos individualizam e que, desse modo, articulam também riormente desenvolvida e aprofundada. Eu agora, ao Hoje os dispositivos são sempre mais dessub-
colaterais sobre as particularidades, sobre os sujeitos. a eficácia do controle do poder. contrário, gostaria de terminar e me concentrar sobre jetivantes, portanto é sempre mais difícil analisar e
Voltemos agora à metrópole. A minha idéia é que Isso significa que, enquanto a lepra é o paradigma um outro ponto. Disse que a cidade é um dispositivo, individualizar os processos de subjetivação que se
aqui não se está diante de um processo de cresci- de uma sociedade de exclusão, que pretende manter- ou um grupo de dispositivos. A teoria a que lhes reme- criam. No entanto, a metrópole pode ser vista como
mento e desenvolvimento da antiga cidade, mas da se pura, a peste é o paradigma do que Foucault cha- ti anteriormente era a idéia, muito sumária, segundo um imenso lugar onde está acontecendo um grande
instauração de um novo paradigma, cujo caráter deve ma de técnicas disciplinares, a formação das tecnolo- a qual se pode dividir a realidade em, de uma parte, processo de criação de subjetividade, do qual creio
ser analisado. Certamente um dos seus traços evi- gias que levarão à passagem de uma sociedade do os homens (os viventes, os seres humanos) e, de que não sabemos o bastante. Quando digo que preci-
dentes é que há uma passagem do modelo da polis ancien régime a uma sociedade disciplinar. Segundo outra, os dispositivos nos quais os viventes são con- samos tentar conhecer esses processos de subjetiva-
fundada sobre um centro, no qual há um espaço Foucault, o interesante é que o espaço político da tinuamente capturados e presos. No entanto, como ção, não me refiro apenas a análises, ainda que muito
público, uma ágora, a uma nova espacialização me- modernidade, a partir do século XVIII até hoje, é re- terceiro, o ponto fundamental para definir o que é um importantes, sobre a natureza sociológica, econômica
tropolitana na qual certamente está ocorrendo um sultado da fusão desses dois paradigmas. Isto é, em dispositivo, creio que também segundo Foucault, são e social desses processos, mas me refiro, por assim
processo de “des-politização”, cujo resultado é uma certo ponto o poder começa a tratar o leproso como os processos de subjetivação que resultam do corpo- dizer, a um nível quase ontológico, no qual se coloca
um pestilento, e vice-versa. Começa-se a projetar so- a-corpo dos indivíduos e dos dispositivos. Chamarei,

2 bre o esquema de exclusão e de separação da lepra portanto, sujeito o que resulta do corpo-a-corpo, da
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em questão “spinosianamente” a capacidade de agir apenas assumir esta impropriedade com um próprio.
dos sujeitos. Isto é, o que nos processos em que o Inessencialidade que não perde seu “não-caráter” de
sujeito se liga a uma identidade subjetiva leva a uma vagueza: expõe-se como mero estilo, manerie. Como
modificação, a um aumento ou a uma diminuição da dirá um sábio numa tonalidade quase zen “não um ser
sua capacidade de agir. Parece-me que essa consci- que é deste modo ou de outro, mas um ser que é o
ência está hoje muito carente e que talvez seja isso seu modo de ser”.
que torne os conflitos metropolitanos aos quais assis-
timos hoje tão opacos. ***
Parece-me que um verdadeiro confronto com os
dispositivos metropolitanos será possível somente Mas, mesmo sendo a intrusão uma tentativa tosca de
quando penetrarmos nos processos de subjetivação, sutura do caos primordial e louco do mundo extenso
que naqueles estão implicados, de um modo mais irremediável, delimitação sedentária de tocas obscu-
articulado e mais profundo. Isso, porque creio que o ras para o abrigar-se da covardia, anomalia frente ao
êxito dos conflitos dependerá exatamente disso: da devir ininterrupto e renovador do ser, ela, no parque
capacidade de intervir e agir sobre os processos de temático da administração total forjada como forma
subjetivação, justamente para atingir o ponto que eu de vida única no presente, tornou-se a regra suprema,
chamaria de “ingovernabilidade”. O ingovernável so- o dever inabalável: Seja! Faça! Torne-se! Construí-
bre o qual pode fracassar o poder na sua figura de mos aquários nos longínquos do oceano. Tornamo-
governo; e este ingovernável é também para mim o nos presas fáceis, dóceis, domesticadas, dos poderes
início e o ponto de fuga de toda política. que, até isso!, já interiorizamos e corporificamos. Tal
configuração (a despeito da abissal contingência que
Tradução livre, a partir de uma gravação nos lançou até aqui) faz com que seja cada vez mais
de áudio, de Vinícius Honesko arriscada a opção do nomadismo. Amiúde o viajan-
te correrá riscos efetivos (e não metafóricos) de ver
a provisória tenda destruída e sua vida exterminada
pelo mais banal dos indivíduos em qualquer esquina.
Os dispositivos de controle prescindem hoje de apa-
ratos solenes, institucionalizados. Qualquer cretino

Verbete
INTRUSOS (II)
fará o trabalho sujo. Não precisará ser persuadido
nem mesmo receber recompensas para isto.
Bastaria uma pequena olhadela pelo satélite: o
terreno do mundo, no sentido literal do termo, está
Talvez aquilo que comumente chamamos de “pró- sitiado. Em seu lugar: terrenos domésticos e sedenta-
prio”, “individual”, não seja nada mais que a cega rização. Espera-se a morte na plácida calma do mini-
obstinação do intruso. Obstinação no estabelecimen- fúndio. Porém, há os deslocados, os sedentários sem
to de um poder de ser, de propriedade: uma prótese casa, os Ulisses na busca por suas Ítacas. Os nôma-
de essência. Porém, este frágil e mitômano intruso, des, por seu turno, repudiam casas e Ítacas por che-
aquilo que os psicanalistas captarão como o ego, é gar. Querem é andar por entre os lotes e escombros,
um Prometeu desde sempre fadado ao insucesso. arrebentar e pular cercas, embaralhar demarcações,
Se há uma propriedade do ser, uma “singularidade”, dormir a céu aberto. Nem senhores, nem exilados
esta só se manifesta em um “substrato” de improprie- Ulisses. São os raros.
dade, de alheamento, dispersão, de extravio. “Ser” é
Jonnefer Barbosa

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