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Alguns conceitos são bem trabalhados pelo Juiz aqui em questão, que por
razões óbvias não mencionaremos o nome: LIBERDADE RELIGIOSA E
JUSTIÇA, diga-se mais, o valor vida e o valor liberdade.
Vejamos:
O texto aqui em questão trata do requerimento de autorização
judicial para transfusão de sangue em JF, um paciente idoso de mais de 80
anos, acometido de insuficiência renal, hemorragia digestiva e portador de
doença arterial coronariana grave, além de doença pulmonar obstrutiva
crônica e outras complicações.
Passo a decidir.
1
A questão pode parecer de solução fácil através de simples
ponderação entre o valor vida e o valor liberdade. Não obstante, o tema é
tortuoso e está longe de ser resolvido sem maior reflexão jurídica,
filosófica e religiosa.
DO PANORAMA NORMATIVO
2
TJRJ - DES. CARLOS EDUARDO PASSOS -
Julgamento: 05/10/2004 - DECIMA OITAVA CAMARA
CIVEL AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA
ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão
de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta
sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque
não foi a agravante, senão seus familiares, que
manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos
responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir
terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não
realização. Recurso desprovido. 2004.002.13229 -
AGRAVO DE INSTRUMENTO - 1ª Ementa
No agravo de instrumento acima ficou consignado o voto vencido
que em síntese afirmou:
3
estando em alta hospitalar. AGRAVO N°
1.0701.07.191519-6/001 TJMG
Conclui-se assim que há profunda divergência jurisprudencial sobre
o tema.
ASPECTOS FATICOS
Isto porque, como bem destacou o Min. Carlos Ayres Britto em voto
sobre as pesquisas com células tronco (ADI 3510) o Direito protege por
modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano.
Por tal razão temos o Estatuto do Idoso e o ECA.
Com efeito, tenho pra mim que em se tratando de uma criança, suas
liberdades são mais limitadas, sua autonomia é sub-rogável, mas, plena é a
tutela de sua vida. Por outro lado, em se cuidando de um adulto ou um
idoso, embora conservem a tutela da vida, possuem maior grau de
liberdade, autonomia e disposição sobre seu próprio corpo, como a
possibilidade de ingerir bebidas alcoólicas, freqüentar lugares, posar nu,
participar de espetáculos eróticos, ter plena atividade sexual, etc.
4
Desta forma, entendo que o direito de liberdade e autonomia em
relação ao idoso tem maior robustez, notadamente quando exerce sua
vontade com lucidez.
HERMENEUTICA CONSTITUCIONAL
1
KELSEN, Hans. O que é justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25.
5
a questão do mérito, outras os direitos humanos fundamentais, ou ainda o
contrato social, sem olvidar das que apelam para os padrões de utilidade
social 2. Este conflito atinge não só a sociedade, mas também os indivíduos
per se, que são levados através da educação a adotarem um modo coerente
de pensar e julgar, com uma ótica construída a partir de uma fusão de
fragmentos sociais e culturais legados de diferentes tradições que deram
origem a nossa cultura (puritana, católica, judaica, etc.), bem como de
diferentes estágios e aspectos do desenvolvimento da modernidade
(iluminismo francês, Iluminismo escocês, liberalismo econômico do século
XIX, liberalismo político do século XX, etc.) 3.
2
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.
3
MACINTYRE, Justiça...op. cit., p. 12.
4
PLATÃO, A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996
5
Upiano, Digesto, I, 1.10
6
KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 18.
7
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 70-76.
6
Ademais, existe certo consenso filosófico de que a justiça se define por
igualdade e liberdade 8.
8
TOBEÑAS. Jose Castan. La Idea de Justicia. Madrid, Reus, 1968, p. 19 -24.
9
FISS, Owen. The forms of justice. Harvard Law Review, Cambridge, Harvard University Press, v. 93, p.
04.
10
No Brasil temos a lição de: MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT,
2006, p. 105.
7
adjudication 11 é o processo social pelo qual os juízes dão significado aos
valores públicos. Assim, a função do juiz é conferir significado concreto e
aplicação aos valores constitucionais 12.
11
A expressão adjudication, que em português seria adjudicação - mais ligada ao domínio do direito
privado - designadamente à posse e propriedade, deve ser aqui entendida na acepção inglesa como
atividade realizada pelo Judiciário na solução de conflito, ou seja, jurisdição.
12
FISS, Owen. Um Novo Processo Civil. Estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e
sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p 25-26 e p. 36.
13
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Trad. Marijane Lisboa. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 57.
14
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
8
Na perspectiva do paciente, a vida não se encerra com a morte, muito
ao contrário, esta seria apenas o início da vida no paraíso. Esta é sua
concepção constitucionalmente validada à luz de seu direito à liberdade de
culto. Obrigar o tratamento em tal caso, contra sua expressa manifestação
de vontade livre e consciente, seria condená-lo a uma sobrevida que além
de não saudável, seria sem esperança na sua vida espiritual no paraíso.
O muito que o paciente viveu até agora (mais de 80 anos) não é nada
perto do que ele acredita ser a vida eterna no paraíso. Menos ainda é o que
lhe resta a viver caso o procedimento médico fosse bem sucedido, seja em
relação ao que já viveu, seja em relação ao que pensa existir no paraíso.
Não obstante, esta pequena fração de vida que se quer garantir será
imensa e imensurável no que tange ao seu sofrimento, não por suas lesões
físicas, mas pela agressão à sua liberdade espiritual que advirá da perda
do paraíso, da perda da purificação que pensa ter mantido ao longo dos
anos de vida.
9
Na doutrina portuguesa 15 temos que a perda da vida eterna é a perda
da vida, ou melhor, a perda da vida eterna causa uma pressão
psicologicamente maior do que a provocada por um perigo para o corpo
ou a vida terrena.
15
DIAS, Augusto Silva. A Relevância Jurídico-Penal das Decisões de Consciência. Coimbra: Almedina,
p. 153.
16
NETO, Luísa. O direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo (A relevância da vontade na
configuração do seu regime). Coimbra Editora. 2004, p. 870-885.
10
amadurecimento, mormente quando enquadrado nos estudos da biopolítica,
como bem o fazem Michel Foucalt em sua obra O Nascimento da
Biopolítica e Giorge Agamben em seu Homo Sacer. A Constituição deixa
claro o poder que o Estado tem sobre a liberdade, mas não sobre o corpo.
DA RESPONSABILIDADE DO MÉDICO
11
Rio de Janeiro, xx de xxxx de xxxx,
Juiz de Direito.
É bom refletir sobre o assunto e pensar que ainda existe gente séria,
capaz e competente para tratar do assunto com a seriedade e com a
relevância que o mesmo merece.
12