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Lisboa, 1999
Há uns tempos, numa altura em que me preparava para lançar nas bocas do mundo a história
da sua vida, uma espécie de autobriografia recolhida pela minha pena com alguns acrescentos
literários, o Damião das Bróteas, já muito velho e alquebrado, com uma surdez galopante a
acrescer-lhe à cegueira de nascença, ou de feitio, apontou-me dois fardos de papel amarelecido,
atados com cordeis, e deu-mos, para que velasse por eles.
Era apenas uma pequena porção do vasto espólio de memórias com que fora mobilando
a sua casa, atadas em resmas e fardos, e serviam para tudo, como cadeiras, enxergas, muitas
vezes para atear as achas no fogão. O resto não sei a quem deu, talvez ao títere Perdigão, seu
dilecto amigo.
A minha parte constava duma grande colecção de sarrabais, alguns entremezes,
panfletos sortidos, tudo impresso em oitavo e encadernado em peças de um prego ou dois, ou em
fólio avulso de vários padrões. E ainda um cento de manuscritos breves, a maior parte epístolas,
duas ou três de amor.
Deduzi que o gesto do Damião significava um pedido. Para que reorganizasse, para os
vindouros, a sua memória dispersa pelos caminhos. Se pudesse folhear este livrito, o Damião
alegaria que não importunasse os vindouros com a memória de um pobre cego que os enfadaria.
Se assim for, prego-lhe uma partida.
De acordo com o tempo e os recursos, cada vez mais minguados, presentearei então o
leitor com a edição desta papelada, começando já com o vaticínio para o ano de 1992,
acompanhado dos seus anexos, na ordem por que sairam cozidos no respectivo prego. Espero do
leitor, para não me obrigar a gastar mais uma folha, que custa caro, que se concentre
previamente durante meia hora, para poder imaginar o contexto a que terá que se reportar,
para abarcar todo o alcance do olhar cego e imóvel do Damião sobre a loucura domundo.
Este papel foi escrito, já em cima da hora, como era hábito do Damião, durante o
Outono e Natal de 1991, enquanto cozia, nas dornas, o vinho novo que despejámos durante o
ano que então entrou. A única coisa a que o leitor, se for astuto, não terá acesso será a esse
intransmissível deleite.
A não ser que me procure e encontre, o que lhe vai custar. Então, enquanto
tagarelarmos, talvez ainda abra uma das garrafas que surripiei e andam na minha trouxa a
acrescentar espírito e paladar.
Elmano.
PROGNÓSTICO PROSOPOÉTICO,
Fabulógico, Jocosério e Metafórico
e Lunário
Para o Ano de 1992,
terceiro depois do bissexto,
calculado ao meridiano
de Greenwich,
que é o mesmo de Lisboa.
Prólogo ao LEITOR,
e serve de advertência aos doudos e mais estropiados, que abandonaram e vão abandonando as
portas das Igrejas e os túneis do metropolitano, patrocinados e aliciados pelas sobras e
abastanças do estado social, de que os cegos, que consultaram a assembleia dos planetas, não
lhes auguram nem vaticinam uma folga prolongada.
Tarde de canícula, com as pedras a torrar e estalar pelos caminhos e o vento a varrer
as poeiras, não é própria ao chilrear dos passarinhos, mesmo quando a tarde vai em adianto e
as sombras amenas se fazem aos beirais.
Desprovido então do bálsamo da vista, ainda me privava a natureza das sinfonias
canoras. Ali fiquei encostado a uma esquina, lá vai uma, lá vão duas, rabecadas e dixotes, de vez
em quando caía um tostão no chapéu.
A cidade deserta, só os cegos povoavam já as esquinas; os doudos nas escolas apendiam
seus ofícios e o resto dos estropiados afogueados nos seus projectos, todos contentes e alegres,
participativos, que os alfarromeos ainda hão-de calhar a toda a gente.
Um menear inconfundível de ancas rotundas, sensível nas batidas ritmadas dos saltos
altos no pavimento vitrificado da praça, sobre a esquerda, sobre a direita, sobre a esquerda, o
pisar firme e sólido mas estudado, mesmo a pedir o piropo.
- Lindas pernas.
- Ah sim? E vossemecê que é cego, como é que sabe?
- Ora, pelos passos. Divinal!
- Pois pelos passos não imagine vossemecê as pernas. Veja só que sapatos!
O coque foi certeirinho ao coruto, levando à frente a ponta afiada do salto alto.
- Vejam lá só. Bater num cego!
- Num cego linguarudo, não é?
- Só lhe disse, menina, que tinha umas lindas pernas. Lá isso são; se fossem minhas, não
estava para aqui, na força da canícula, à espera de um tostão para levar um coque.
- E o que quer dizer com isso? Ordinário.
Sai outro coque
- Piedade!
- Se queres piedade, tem tino. És doudo, ou quê?
- Abrenúncio! Sou cego, não vê?
Chega a polícia.
- Está tudo preso!
- Eu também? Sou cego.
- E o que se passa aqui?
- Só lhe atirei com um piropo.
- Como?
- Que lindas pernas!
- Lá isso são...
- Veja lá. Não queira vossemecê levar também um coque no chapéu...
- Está tudo preso.
Na esquadra um cabo quase mumificado lavra o auto. Que rico par de olhos, para ver
tão pouca coisa.
- De que te provês?
- De umas rabecadas, umas folhas de rezas, algumas informações à polícia, daquelas
que ouço por aí. Não passo panfletos, nem encomendas.
- Fazes prognósticos?
- Às vezes, coisa pouca. Só para amigos.
- Ficas preso.
Ali fiquei, no meio de percevejos. Acompanhava o chefe ao futebol, preenchia-lhe os
boletins do totobola, comprava-lhe a lotaria.
Um dia perguntei:
- Chefe, porque é que aqui prendem os cegos?
- Porque há poucos.
- E os doudos? E os manetas? E os pernetas?
- Já não há. Cala-te, que tens serviço.
Vejam só. Era o que me faltava.
E que serviço! Enfiaram comigo na ramona, a sirene de goela escancarada, até parecia
que me iam despejar na morgue. À minha frente, para amenizar a paisagem, assentaram a
varina da praça, toda dengosa, com a perna direita a balançar sobre a esquerda e o sapato
quase descalçado a balançar na ponta do pé. Para não suscitar a suspeita, ia mirando pelo
espelho retrovisor.
- Bonito serviço, que arranjastes.
- É, sim Senhora. E que lindas...
O sapato escorregou um pouco mais do pé.
Chegámos a uma mansão bem ataviada, afogueada de cavalheiros com um aspecto
muito executivo, que se movimentavam um tanto à toa, parecendo não querer dar o ar de
desocupados ou de néscios. Arrebataram logo a cachopa e espetaram comigo numa sala bem
atapetada, fresquinha, onde um homem alto e magro, bem encamisado, com uma voz seca,
quase como um chicote, e a retórica entediante e repetitiva fingiu que me não viu.
- Senhor Barca, cá tem o cego. - disse um dos rapazolas.
Que raio de nome, pensei eu.
- Queres laranja, ou queres cereja? - perguntou-me o Barca, estendendo-me uma cesta
de porcelana cheia de fruta. Havia dez laranjas e pelo meio uma mão cheia de cerejas.
- Se vossemecê não se importa, tiro laranja.
- Tira as que quiseres, rapaz.
- Se me dá licença, tiro umas quantas para desempastelar o paladar.
Tirei sete.
- Não queres tirar mais uma? Vê lá rapaz, que é de graça.
Comecei a sentir que estava com boa gente.
- Muito obrigado a Vossa Senhoria, mas assim basta.
O Barca começou a esfregar as mãos, o rosto a afoguear como se soprassem vida num
cadáver.
- Sete! Rapazes, venham ver. Sete! Vezes dez, setenta! Está no papo!
Entraram todos de roldão, os mais altos à frente e os mais baixos a esfuracarem no
fundo da bicha.
- Eu também quero! Eu também quero!
- Calma que chega para todos. - disse o Barca e começou a entregar, por ordem de
chegada, uns envelopes surpresa a toda a gente. Para mim não sobrou; aliás já ninguém se
lembrava que eu estava ali. Tirei umas cerejas à sucapa e esgueirei-me.
- O cego?! O cego?! Apanhem-me o cego! Já agora que diga um número para o
totoloto.
Agarraram-me pelas golas do casaco, ainda me trocaram a camisa, acabada de lavar na
prisão, por outra mais surrada, deram-me uns coques só para aguçar o apetite e enfiaram
comigo de novo na ramona; aonde a cachopa, menos composta e mais chegada aos meus
terrenos, choramingava:
- Ainda por cima me deram uns coques!
- Que lindas pernas. - disse eu, aproveitando a folga.
Quando nos entregaram na prisão, mandaram:
- Expatriem-nos.
- Expatriá-los? Por quê? Para aonde?
- Não queremos cá gente dessa. Para Espanha... sei lá?
No outro dia de manhã, acordaram-nos cedo e levaram-nos ao chefe. Tinha acabado de
se levantar, com os olhos colados pela ramela e fazia a barba; um pateta alegre segurava-lhe na
bacia e no espelho.
- Já leram os jornais? Trazem uma sondagem. E uma amnistia. Estão livres.
- Livres? Mas eu sou cego, não posso ler os jornais.
- Sumam-se! Mas vão para Espanha... vão para Espanha. Ou para o diabo que vos
carregue! Estão expatriados!
Atiraram comnosco para a rua, começava a chover, vida de cego... e de... Ela
adivinhou-me o pensamento e abaixou-se para tirar o sapato. Passámos por um perneta e fez-
nos uma figa.
- Que lindas pernas. - disse ela para para tirar vingança, dele e dos outros.
Coque atrás de coque, dixote atrás de dixote, um assobio e lá vinha polícia. Vida de
cego, de perneta e de... Caíu-me a muleta no cabelo revolto e de seguida um sapato e um cacete.
Lá começava a história.
- Nem podemos parar para verter águas... caramba! Dizia a moça quase a
desfalecer, dando sinais de poder claudicar de repente.
- Não! Só paramos quando tiver debaixo da muleta terra de Castela. Fomos exilados,
não quero ter mais a ver com essa gente; tudo por causa da esperteza saloia do lunetas.
Respondeu solícito o perneta, que surpreendia com a diligência no calcorrear dos
montes e vales. Comandava a caminhada com determinação.
- Onde é que perdeste a perna, ó atleta?
Perguntei para desanuviar a tensão e um contencioso corrosivo, mas discreto, que se
insinuava entre ele e a rapariga.
- Foi negligência.
- De algum médico... com vocação para alveitar... ou para presidir ao projecto vida...
- Não, foi minha.
- Como?
- Não estudava. Depois tive um projecto, com financiamento a fundo perdido. Em maré
de percas, perdi o fundo, mais umas casitas e terras que me deixaram os velhos. Perdi a mulher,
que lhe subiu tanto dinheiro à cabeça e meteu-se em aventuras com um safado arquitecto. Não
tinha remédio senão perder uma perna, uma vista, uma mão, ou os três como essa lambisgoia. O
sujeito que me ensinou isto ia chegando a comissário... lá para Genebra.
Mas diz lá, meu cego de almanaque, onde arranjaste tu as lunetas.
Como não aprecio disputas e sou avesso a dizer mal, só por dizer, respondi para
dissuadir:
- Não queria ver.
Quando demos conta, tínhamos entrado por Castela adentro como por terra de mouros.
Admirámo-nos de que os odores fossem os mesmos, a alho, a cebola e a vinho carrascão mal
traçado, os burros continuassem a zurrar malancolicamente abandonados no meio de um
batatal, de um vinhedo ou de uma horta, as noras a gemer sob a força de um bruto qualquer;
mas nas esquinas também já não havia ninguém a pedir nem lamuriar.
- Às tantas, a Europa é toda assim; quero dizer, a CEE, até à cortina de ferro.
Exclamou timidamente, mas com ar judicioso a varina, que descalçara os sapatos e
arregaçara a saia para se desenvencilhar.
- Isso já não existe, ó labrega. Agora é tudo igual, até à muralha da China. Só que estes
sujeitos ganham três vezes o que ganha um comissário da polícia na espelunca que deixámos
para trás. Vais aprender o que é ganhar dinheiro...
Dizia o perneta imitando o tom professoral do Barca, mirando-a com ar glutão e
avaliando-lhe os atributos, como quem faz um vaticínio.
- Vê lá. não te saiam as contas furadas, minha cegonha expatriada.
A canela saíu direita à muleta e ele caíu, rasteirado e desamparado, de traseiro no
lajeado da calçada.
- Era preciso isso? Só estava a fazer chalaça. Gemeu o coxo, esbugalhado e
surpreendido com a temeridade da mulher, a refazer-se do susto e ponderar a desvantagem.
Ajudei-o a erguer-se, mas repeliu-me rebuçado e sacudiu-se com desempeno.
- Lá porque fui expatriada com um cego e com um coxo, não penses que preciso da
ronda para me guardar os costados.
Começava a ficar desolado. A coisa ia de má catadura e de feição que voltarímos a ser
presos e talvez até expatriados. No ano segundo da era da paz, todos os sujeitos e nações a
fazerem acordos e pactos, os genros com as sogras, os americanos com os russos, as
multinacionais com os mercieiros e taverneiros, os bancos com os agiotas e penhoristas, os
cristãos com os mouros e todos com os judeus; só os estropiados continuavam à paulada, a
fazerem figas, partidas e injúrias uns aos outros. Estávamos definitivamente fora de contexto; e
era preciso empreender o que quer que fosse para inovar o sistema e o modo de vida desta gente
ao desvario.
A conjuntura até andava própria ao sucesso; era urgente aproveitar a onda. Foi então
que apareceu mesmo junto ao nosso bando, sentado num marco quilométrico a assobiar, com o
cabelo muito bem cortado e a barba bem feita, botinha texana de ponta afiada e protectores e
um fular de seda estampada a esconder os piolhos do pescoço, um jovem descontraído que
mascava pastilha elástica e meneava a cabeça como se trauteasse uma cantiga.
- Estava à vossa espera. A praça de touros é ali, os Pink vão ser o máximo, logo à noite,
acolá. Hamburgueres ali à direita; barbeiro, casino...
Ia apontando no horizonte longínquo e deserto, como se fizesse a topografia de uma
grande metrópole, que ninguém mais enxergava. Falava de modo afectado, com um sotaque
afrancesado.
- Ouve lá, ó papalvo, e quem és tu?
Atirou-lhe logo a cachopa.
- Ora, sou doudo. Operador turístico e da bolsa, de seguros, promotor de concertos;
faço projectos para investimentos em programas culturais e desportivos e de ocupação dos
tempos livres das viúvas.
- Ah! Exclamou ela de olhos abertos e espantadiços.
Tem um ar conciliador, manias bastante sociáveis e tiques que não hão-de incomodar
muito, pensei eu. Bem vindo...
O perneta é que arranjou logo desaguisado:
- E estavas à nossa espera, porquê? Entre tolos e aleijados já somos três, não vês?
- Olha... querem lá ver? Que mosca lhe mordeu? Eu só queria ir atrás. E ninguém me
dissuade.
Fez um ar amuado mas determinado e virou-lhe as costas. A rapariga tomou-o pelo
braço e declarou como quem não admite réplicas:
- Vamos pelos touros.
- Já tenho bilhetes; três. O coxo entra de muleta, com a capa do cego.
E a muleta despediu-lhe uma paulada a varar as pernas pelos tornozelos, que havia de
deitar abaixo mesmo um boi. Afinal éramos sete estropiados, disse para mim, um cego, um
perneta, uma cachopa perdida e quatro doudos. Fiz uma arenga, moralista, a apelar à
concórdia e ao bom trato, cantei uma lenga-lenga qualquer e disse uma adivinha; o doudo foi o
que mais ovacionou.
- Estão a precisar de um espírito positivo.
Disse ele, com o mesmo ar estulto com que dissera que nos esperava. Passou a
expressar-se em mímica, com gestos automatizados mas muito expressivos e a organizar o sarau
taurino. Que via-se logo que haveria de ser metafórico, com figuras e cenas muito difíceis de
decifrar, mas muito ordenado.
Continua.
CARTILHA MATERNAL,
Instrução Breve e Obrigatória,
método seguro para os doudos apenderem a ler e a escrever.
Dedicada ao Professor Doutor M. F. P.
SENHOR PROFESSOR,
apresento pois a Vossa Senhoria, para que pondere e julgue, este Método Seguro Para Ensinar
Os Doudos A Lerem E A Escreverem. Não quero com ele suprir as faltas daqueles que manda
ensinar na magistral instituição a cujos desígnios preside; nem substituir o ilustre magistério de
Vossa Senhoria.
Mas se a Vossa Senhoria foi dada a subtil astúcia de saber dar a cada um a sabedoria
que lhe convém, eu acho que foi mais habilitado para ensinar os meninos, que têm o ouvido
mais maleável para a música e o corpo mais viçoso para a ginástica. E como os doudos chegam
aos bancos da escola em idade mais madura, necessário é provê-los de um método mais eficaz,
para reger os tis, os travessões, os circunflexos e os hífenes. Sem perderem muito tempo com as
metáforas e outros ramalhetes da retórica. Porque é de uma espécie de antropofagodoudagogia
que se trata.
E porque para ensinar um perneta a correr é preciso primeiro, pelo menos, provê-lo de
uma prótese; no mínimo de uma muleta.
Hoje, como sempre, a Vossa Senhoria dedicado,
DAMIÃO.
Capítulo primeiro; sobre a origem da língua, das palavras e das letras e algumas considerações
sobre a doudice; a didáctica aplicada às letras e aos doudos.
A primeira coisa que se deve saber, para se poder escrever e ler como convém, é de
onde vêm as letras, as palavras e a língua. E é coisa muito árdua.
Pensar-se-ia então que aos doudos se deve dispensar de exrcício tão violento, como é o
de saber se tal vocábulo, tal signo, tal inflexão ou mesmo uma linguagem inteira vem do Latim
ou do Grego, do Semítico ou do Camítico, do Rúnico, do Sínico, Nipónico, Índico, ou do Ibérico;
ou se é Arábigo.
Mas devo advertir que a doudice é a habilitação conveniente à decifração destes
mistérios das ciências filológicas, pois a própria origem da doudice é obscura e penumbrenta; e
todo o doudo conhece, da sua paciência clínica, ciências muito afins, como a decifração dos
sonhos, a criptografologia e outras artes de descodificação das charadas.
Todo o doudo deve saber então que a língua portuguesa é uma mistura do latim com o
grego, o semítico numa proporção discreta de bíblico e de rabínico e o arábigo em partes iguais
e equidistantes; que posteriormente ainda se enriqueceu com algumas entoações bantus e
interjeições bosquímanes, da Indonésia e da Melanésia.
Mas porque nem todos aceitam esta simetria, é que há tantas variedades no falar;
porque uns estão mais afeiçoados ao latim, outros ao semítico, outros ao sortilégio gutural e
monossílabo do bosquímane e outros ainda ao tom de rabulice do arábigo. Um puxa para o
grego, outro para o cananeu, congresso traz congresso e a língua portuguesa parece uma
doudice, sem rei nem roque.
Por isso o que é conveniente, porque reduz o problema, é convir em que todas as
línguas derivam do cananeu bíblico, tal qual o falava Moisés, que descende em linha directa do
Babilónico antes da diferenciação dos falares.
E há quem diga que a doudice foi criada então, porque houve alguns em quem a fala
não se diferenciou e ficaram a falar todas as línguas ao mesmo tempo, uma sílaba em latim e
outra em fenício, uma consoante arábiga e uma vogal helénica. E há investigações recentes que
comprovam, sem refutação, que existem algumas moedas hispano-romano-púnico-cananeias
que denunciam estas astúcias. Um doudo é um monumento filológico.
É por isto que a arte de saber ler e escrever se deve ensinar aos doudos servindo-nos de
dois métodos, convém saber: o primeiro é que aos doudos não se deve dizer que há só uma
maneira de escrever, mas que há muitas, tantas quantas as diversidades criativas das suas
astúcias filológicas. Por exemplo, a palavra portuguesa docência, vem de dois verbos latinos
docere e ducere e sei lá de quantos outros gregos e fenícios; por conseguinte pode escrever-se
ducência, docência e ainda, por equidade, doucência. Mas poder-se-ia dizer que vem, sem
atalhos, do léxico grego doxa, que quer dizer a opinião do vulgo, quase aquilo a que chamamos
hoje doudice. E então escrever-se-ia, com toda a legitimidade doxência. Ou estultícia.
E o segundo é que aos doudos não se deve sobrecarregar com muita gramática e o que
interessa é que saibam distinguir um sinal de trânsito, ou o emblema de um partido, de uma
metáfora do Vieira e do pé de um verso de um vilancete; uma lírica epístola amorosa, de uma
petição ou requerimento e todas estas de uma receita de cozinha ou rol de mercearia. Um
poema, do boletim de voto para as eleições autárquicas e a insígnia dos sociais democratas da
dos comunistas. Porque aí é que a porca torce o rabo.
E que saibam falar por sinais e ler no movimento dos lábios, para poderem coloquear
com os moucos, os gagos e os surdos.
E quanto à caligrafia, de que tratarei já no seguinte capítulo, tanto faz que escrevam da
esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo para
cima, conforme à natureza ou ao jeito de cada um; porque contrariar uma inclinação estética é
ainda pior do que emendar um feitio físico, um pé torto ou uma corcunda.
Continua no próximo número e segundo capítulo.
Capítulo segundo e trata do estilo no traçar das letras e algarismos, do tamanho das maiúsculas
e das minúsculas; e porque razão a este assunto se não deve chamar caligráfico.
Quase tudo o que dissemos no capítulo anterior com respeito à caligrafia, se deve
entender para a ortografia que é a escrita conforme às regras, acordos e tratados. E devem-se
entender três espécies de tratados, acordos ou pactos; uma é a dos tratados que os gramáticos,
mormente os morfologistas e fonologistas fazem entre si e são baseados em conhecimentos e
deduções rigorosas quanto à origem e desenvolvimento das palavras e ao seu encanto musical;
outra é a dos acordos entre nações ou estados, que deixam sempre abandonados e coléricos os
dialectos das minorias étnicas; outra a dos pactos entre os grupos e bandos com alguma unidade
social e linguística, corporações, irmandades, partidos e até sindicatos. São estes últimos
responsáveis pela maioria das gírias e guetos linguísticos, factores de decomposição e corrupção
das línguas e réus de quase todas as espécies de erros.
Acrescem ainda aqueles a que chamamos pactos silenciosos, tácitos e sem expressão
escrita, de natureza regional, de freguesia, de concelho, de região autónoma, mas muitas vezes
só de um bairro ou quarteirão.
E há ainda uma espécie de incidência do foro do subconsciente colectivo no erro,
ocorrências universais de árdua explicação sem recorrer a estudos profundos de
sociolinguística, resídios de predisposições tenazes que mergulham nas ténebras das
mentalidades colectivas, conjunturais ou de sistema. É o caso que, para exemplo, sem qualquer
acordo, tratado ou pacto prévio, todos os alunos e professores das nossas escolas nomeiam o que
dantes chamávamos, incorrectamente, frequências ou exames, textes. Ora texte é a palavra
francesa que significa texto em português e o que se pretende é dizer teste, do verbo testar que
significa avaliar ou verificar; mas o que é curioso e bizarro é que o que em português se diz
teste, escreve-se em francês da mesmíssima maneira, test, sem tirar nem pôr.
O que quero concluir é que os erros continuam, na sua maior parte, a constituir normas
ou regras colectivas ou individuais impostas pela moda, pela ignorância, ou por reincidência e
pertinácia num espírito conservador ou, simplesmente, contraditório e quesilento. Ou por
dislexia, que não é sequer uma doudice ou feitio, nem mania, mas um defeito da vista que não
identifica os caracteres na sua forma, nem na sua ordem.
Já disse atrás que aos doudos se deve ensinar a escrever as palavras com incidência nos
critérios filológicos e etimológicos, que são os mais liberais e menos sujeitos a regras, normas e
imposições de significado e sentido. Porque a quantidade quase infindável de étimos de que um
vocábulo pode derivar ou descender, gera igual amplitude de explorações de sentidos explícitos,
implícitos e mesmo obscuros. É a razão porque actualmente abundam as concepções cabalísticas
da língua e subliminares de toda a comunicação, cujos padrões se aproximam satisfatoriamente
daquilo que, ainda há alguns anos, se designava como loucura.
Quase poderia dizer que é a conjuntura adequada aos doudos aprenderem a ler e a
escrever com sucesso, sendo os intérpetres mais habilitados para executarem por feitio, mania
ou outra disposição as reformas que os sábios propõem para as mentalidades estéticas,
científicas ou literárias.
O meu conceito de anarcografia serve também para substituir o de ortografia, como
referência a uma escrita gestual, neste caso para contemplar um gestualismo etimológico e
filológico, que defino como a habilitação para explorar o máximo sentido e significado de cada
palavra e grupo de letras em conjunção com uma conjuntura, ocorrência ou estado de espírito;
e decidir concomitantemente da forma como a representar em caracteres.
O que fiz até agora, foi apenas laborar na distinção entre erro e anarquia, definindo o
primeiro como uma forma errada de submissão a outras normas, regras ou condutas, no caso
ditadas pela moda, ignorância colectiva ou individual, alinhamento sociopolítico ou profissional,
cretinice reincidente, ou mesmo inveja ou espírito vingativo ainda que subconsciente. Ou por
enfermidade oftálmica.
E a segunda como o assumir radical da liberdade de expressão e na comunicação e da
não aceitação dos convénios que espartilham a língua e a escrita; nem das formas de distinção e
exclusão que o proselitismo social, religioso ou cultural quer fazer incidir sobre todos aqueles
que investem ou são obrigados a investir na originalidade e na individualidade; e que bloqueia
os potenciais da filologia e da etimologia, como factores de enriquecimento estrutural e contínuo
da expressividade das línguas, ou outras formas de comunicação.
O sistema que se usar então para os doudos aprenderem a escrever, seja o da anarquia
gráfica ou anarcografia, que tem significado idêntico a etimologia ou filologia sem limites nem
contenções de natureza disciplinar ou contratual. Seria o caso para falar de epietimologia.
Mas não se confira excessivo valor ao que já tratei; porque a escrita é apenas uma,
entre as múltiplas formas de comunicar e coloquiar. E hoje em dia tornaram-se muito mais
profícuas a linguagem verbal, visual e até por transmissão directa de pensamento, sem qualquer
medium ou suporte formal ou material. Portanto, no próximo capítulo e número, tratarei da
fonética e arte de ler e recitar, da mímica gestual e facial, da linguagem visual com introdução à
semântica dos ícones, das escritas hieroglíficas e pictográficas em geral, hipnotismo e
transmissão do pensamento, linguagem telefónica e comunicação telegráfica, sistemas lógicos e
analógicos, colóquio por satélite e intergalático. Do código de Morse, de bandeirinhas e de um
método seguro para aprender a ler nos movimentos dos lábios.
Nota: E não se acabou pelo mesmo motivo de que não se concluíu a História da Vida do Grão
Pescador.
JUÍZO
E PROGNÓSTICO
PARA O ANO DE 1992,
DA CRIAÇÃO DO MUNDO DE 5954.
E FOI TIRADO EM ASSEMBLEIA JUDICIÁRIA
de astrólogos, entre um cego, um doudo e um perneta,
que custaram a encontrar.
E presidiu o cego astrólogo DAMIÃO DAS BRÓTEAS,
promotor dela e o mais graduado nas mentiras.
No Deserto do Maranhão e numa tempestuosa noite de Novembro, fustigada pelo vento
e pela chuva que mal nos enxergávamos, mas bem aviados de chouriços, pão e vinho, reunimos
em assembleia, para decidir e vaticinar do ano que entra, o Cego Astrólogo Damião das
Bróteas, mais um doudo e um perneta cujos nomes ficarão reservadamente secretos, que chega
um para levar pauladas no caso de o juízo não agradar, que se contentar aos gregos, desfeitiará
aos troianos.
E presidiu-lhe o Cego Astrólogo, promotor dela e o mais graduado nas mentiras, dono
da casa e já com a pior das famas. Porque em noite tão infortunada se não enxergavam as
estrelas nem os planetas, se decidiu fazer o prognóstico e juízo por cálculo mental e matemático,
segundo o método secreto de que usou Gil Eanes na noite maldita em que dobrou o Cabo das
Tormentas, para saber se iria à frente, ou não; Fernando Pessoa para adivinhar se os alemães
ganhavam a guerra e o Barca se vencia os romanos na Lusitânia.
É costume disputarem os astrólogos sobre o dia em que entra o ano, porque da entrada
decorre o planeta que lhe preside e o senhoreia. Dizem os judeus que entra em Setembro,
princípio do equinócio estival e os mouros em Março que abre o invernal; e muitos matemáticos
cristãos em vinte e dois de Dezembro, na entrada do solestício. Porém o Sábio Rei Dom Afonso
o décimo, muito afeiçoado às memórias dos romanos e das suas artes e ciências, concordou com
Ovídio e fê-lo entrar em Janeiro como relata Arias Montano. E na Hispânia sempre se seguiu
este sistema, atestado em astrólogos tão prudentes como Christobal de Canete, Affonso
Castanho, Francisco de Guzmán, Martinz da Veiga, o grande Manuel Gomes Galhano de
Lourosa, António Pequeno, Cosme Francês e Diego Torres de Villarroel. E ainda o ilustre
Vieira, D. João de Castro e o Eduardo Lourenço, o Nuno Rogeiro, o António Mega Ferreira e o
Franco Nogueira.
E fica como sugestão, para a respectiva e autorizada comissão parlamentar, que o
calendário astrológico da CEE siga este padrão, que é o mais europeu pois nos veio com os
romanos.
E disputámos a seguir sobre quem abriria o juízo e porque o ano fosse de Mercúrio, o
corredor, ficou encarregue o perneta e assente que seria prosopoético e cantado, para ficar
melhor no ouvido dos tolos.
Cantou assim:
- Tem este ano triste fado e por senhor um criado, que é Mercúrio o corredor a todos
bajulador. Àquele que o domar, ele terá por seu senhor e passa a vida na rua, vai pró Sol e vem
prá Lua, a fazer o seu recado, sempre muito bem mandado. Triste sina, a sina sua e triste ano
vai entrar com tal criado, senhor.
É um grande alcoviteiro, na rabulice matreiro e no amor um traidor; faz e desfaz o
noivado, nisto anda o ano inteiro e quando já está entalado, a noiva dá de presente ao que for o
seu senhor. Triste ano vem por fado, se não houver quem se assente no trono deste criado.
Antes fora eu, perneta, o presidente do ano; adivinha lá agora, se ficou em verso ou
prosa. O doudo que faça a glosa e o cego toque a corneta e baixe o pano; Eu, vou-me embora.
Este fizemos por graça, que sou cego e chocarreiro e o doudo só faz chalaça; o perneta
que é matreiro é que sabe que convém, ao avisado e prudente, mas alheio ao ministério, saber o
que é fumaça e o que há de ter por sério.
Da couve, do nabo e grelo e todas as mais novidades, da chuva da neve e gelo, da Lua e
suas vaidades, das marés que há de haver e especiais conjunções, parece que não dizemos. Mas
tudo poderás ler se estudares as lições da cartilha que escrevemos; com boa filologia e lendo
tudo às avessas, a criptografologia dar-te-á com que conheças tudo aquilo que prevemos.