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LITERATURA DE CORDEL.

A MORTE DE PATATIVA DO ASSARÉ

***

Patativa do Assaré

"Setembro passou/Outubro e novembro/Já estamos em


dezembro/Meu Deus, que é de nós?", perguntava o poeta popular.

São versos de A triste partida , toada pungente cuja gravação


deixou o grande Luiz Gonzaga mais famoso do que já era. Seu
autor, Antônio Gonçalves da Silva, conhecido e amado em todo
o sertão do Cariri como Patativa do Assaré.

Patativa bateu asas, que nem a Asa branca, o Sabiá e a Zabelê, e


ganhou as alturas.

Deve estar animando forró de pé-de-serra no céu, com Zé


Dantas, Humberto Teixeira, Gonzagão, Jackson do Pandeiro e
João do Vale.

Viveu 93 anos, forte feito a Acauã, bonito que nem o Assum


Preto,

falante que só Zé Pretinho e cantante que nem Cego Aderaldo.

Era do cordel e do repente; com ele morre boa fatia da cultura


nordestina (tá com o senhor agora, seu Ariano Suassuna).

Estudo? "Quem sabe que nada sabe é quem possui mais


estudo/Eu amo a Deus

e ao mundo, me iludo e me desiludo/Pra não haver contratempo,


vamos dar tempo ao tempo/Que o tempo resolve tudo".

Freqüentou a escola durante seis meses e aprendeu tudo o que


precisava. O que não precisava, também.

Vendeu uma cabra por 16 mil réis e comprou uma viola. Foi ser
cantador e

um dia cantou assim:

"Para ser poeta no sertão/Nem tem que ser professor/Basta ver


no mês de maio/Um poema em cada galho/Um verso em cada
flor". Está dito.

Luis Pimentel, jornalista e escritor Extraído do jornal O Dia,


Terça, 16 de julho de 2002 ***
O POLIGLOTA

***

O Poliglota

É verdade matemática

Que ninguém podi negá

Que essa história de gramática

Só serve pra atrapaiá

Inda vem língua estrangera

Ajudá a compricá

Meió nóis cabá cum isso

Pra todos podê falá

Na Ingraterra ouví dizê

Que um pé de sapato é xu

Desde logo já se vê

Dois pé de sapato é xuxu

Xuxu pra nois é legume

É verdade e não boato

O ingrês que lá se arrume

Mas nóis num come sapato

Ná Itália ouví dizê

Eu não sei por que razão


Que manteiga lá é burro

Lá se passa burro no pão

Desse jeito pra mim chega

Sarve o povo do sertão

Onde manteiga é manteiga

Nóis num come burro não

Na Argentina aprendi

Que lá saco é paletó

Lá se o gringo toma chuva

Tem que pô o saco no só

E se acaso o dito encóie

A muié diz o pió:

Teu saco é muito pequeno

Vê se arranja um saco maió

Na América corpo é bódi

Veja que bódi vai dá

Conhecí uma americana

Doida pro bódi entregá

Fiquei meio atrapaiado

E disse pra me escapá

'ia moça eu não sou cabra

Chega seu bódi pra lá


No Chile cueca é dança

Pra se dançá e bailá

Lá se dança e baila cueca

Até a noite acabá

Mas se um dia um chileno

Vié pro Basil dançá

Tente mostrá a cueca

Pra vê onde vai pará

Uma gravata esquisita

Um certo francês me deu

Perguntei onde se bota

Acho que num entendeu

Me danei com a resposta

Isso é coisa que eu não faço

Seu francês mal educado

Mete a gravata no seu... *** ***


A Chegada de Lampião no Inferno.

*** A Chegada de Lampião no Inferno Um cabra de Lampião, Por


nome Pilão-Deitado, Que morreu numa trincheira Um certo tempo
passado, Agora pelo sertão Anda correndo visão, Fazendo mal
assombrado. E foi quem trouxe a notícia Que viu Lampião chegar.
O Inferno, nesse dia, Faltou pouco pra virar - Incendiou-se o
mercado, Morreu tanto cão queimado, Que faz pena até contar!
Morreu a mãe de Canguinha, O pai de Forrobodó, Cem netos de
Parafuso, Um cão chamado Cotó. Escapuliu Boca-Insossa E uma
moleca moça Quase queimava o totó. Morreram cem negros velhos
Que não trabalhavam mais, Um cão chamado Traz-Cá, Vira-Volta e
Capataz, Tromba-Suja e Bigodeira, Um cão chamado Goteira,
Cunhado de Satanás. Vtmos tratar na chegada, Quando Lampião
bateu. Um moleque ainda moço No portão apareceu: - Quem é
você, cavalheiro? - Moleque, sou cangaceiro! Lampião lhe
respondeu. - Moleque, não! Sou vigia! E não sou seu parceiro - E
você aqui não entra, Sem dizer quem é primeiro! - Moleque, abra o
portão! Saiba que sou Lampião, Assombro do mundo inteiro! Então,
esse tal vigia, Que trabalha no portão, , Dá pisa que voa cinza, Não
procura distinção! O negro escreveu não leu, A macaíba comeu - Ali
não se usa perdão! O vigia disse assim: - Fique fora, que eu entro.
Vou conversar com o chefe, No gabinete do centro - Por certo ele
não lhe quer, Mas, conforme o que disser, Eu levo o senhor pra
dentro. Lampião disse: - Vá logo, Quem conversa perde hora - Vá
depressa e volte logo, Eu quero pouca demora! Se não me derem o
ingresso, Eu viro tudo às avesso, Toco fogo e vou embora! O vigia
foi e disse A Satanás, no salão: - Saiba Vossa Senhoria Que aí
chegou Lampião, Dizendo que quer entrar - E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso, ou não. - Não senhor! Satanás disse. Vá dizer
que vá embora! Só me chega gente ruim, Eu ando muito caipora -
Eu já estou com vontade De botar nlais da metade Dos que tenho
aqui pôr fora! Lampião é um bandido, Ladrão da honestidade: Só
vem desmoralizar nossa propriedade - í eu não vou procurar Sarna
para me coçar, Sem haver necessidade! Disse. o vigia: - Patrão, A
coisa vai se arruinar! Eu sei que ele se dana, quando não puder
entrar! Satanás disse: - Isso é nada! Convida aí a negrada E leve os
que precisar! Leve cem dílzias de negros, Elmre homem e mulher;
Vai na loja de ferragem, Tire as armas que quiser. É bom avisar
também Pra vir os negros que tem, Mais compadre Lucifer! E
reuniu-se a negrada: Primeiro chegou Fuchico, Com um bacamarte
velho, Gritando por Cão-de-Bico Que trouxesse o pau da prensa E
fosse chamar Tangença, Em casa de Maçarico. E depois chegou
Cambota, Endireitando o boné, Formigueira e Trupezupé, E o
Crioulo-Queté. Chegou Bagé e Pecaia, Rabisca e Cordão-de-Saia, E
foram chamar Banzé. Veio uma diaba moça, Com a calçola de meia.
Puxou a vara da cerca, Dízendo: - A coísa está feía - Hoje o negócio
se dana! E grítou: - Eta, baiana! Agora o tipo vadeia! E saiu a tropa
armada Em direção do terreiro, Com faca, pistola e facão,
Clavinote, granadeiro. Uma negra também vinha Com a trempe da
cozinha E o pau de bater tempero. Quando Lampião deu fé Da tropa
negra encostada, Disse: - Só na Abissínía! Oh, tropa preta danada!
O chefe do batalhão Gritou, de armas na mão: - Toca-lhe fogo,
negrada! Nessa voz, ouviu-se os tiros, Que só pipoca no caco.
Lampião pulava tanto, Que parecia um macaco! Tinha um negro
nesse meio Que, durante o tiroteio, Brigou tomando tabaco.
Acabou-se o tiroteio Por falta de munição, Mas o cacete batia,
Negro enrolava no chão. Pau e pedra que achavam, Era o que as
mãos pegavam, Sacudiam em Lampião. - Chega atrás um
armamento! Assim grítava o vigia. Traz a pá de mexer doce! Lasca
os ganchos de caria! faz um bilro de macau! Corre, vai buscar um
pau, Na cerca da padaria! Lucifer com Satanás Vieram olhar, do
terraço, Todos contra Lampião, De cacete, faca e braço. O
comandante, no grito, Dizia: - Briga bonito, Negrada! Chega-lhe o
aço! Lampião pôde apanhar Uma caveira de boi. Sacudiu na testa
dum, Ele só fez dizer: - Oi! Ainda correu dez braças E caiu,
segurando as calças - Mas eu não sei por que foi! Estava travada a
luta, Mais de uma hora fazia. A poeira cobria tudo, Negro embolava
e gemia, Porém Lampião ferido Ainda não tinha sido, Devido à
grande energia. Lampião pegou um seixo E rebolou-o num cão, Mas
o que arrebentou? A vidraça do oitão - Saiu um fogo azulado,
Incendiou o mercado E o armazém de algodão. Satanás, com esse
incêndio, Tocou no búzio, chamando. Correram todos os negros
Que se achavam brigando. Lampião pegou a olhar - Não vendo com
quem brigar, Também foi se retirando. Houve grande prejuízo No
inferno, nesse dia: Queimou-se todo o dinheiro Que Satanás
possuía, Queimou-se o livro de pontos, Perdeu-se vinte mil contos,
Somente em mercadoria. Reclamava Lucifer: - Horror maior não
precisa! Os anos ruins de safra, Agora mais esta pisa - Se não
houver bom inverno, Tão cedo aqui, no inferno, Ninguém compra
uma camisa! Leitores, vou terminar, Tratando de Lampião, Muito
embora que não possa Vos dar a explicação - No inferno não ficou,
No céu também não chegou: Por certo está no sertão! Quem duvidar
desta história, Pensar que não foi assim, Quiser zombar do meu
sério, Não acreditando em mim - Vaí comprar papel moderno,
Escreva para o Inferno, Mande saber de Caim! (Transcrito de A
chegada de Lampião no inferno) MANOEL CAMILO DOS
SANTOS (Guarabira, PB, 1905 - Campina Grande, PB, 1987) ***
O CEGO ADERALDO.

*** Cego Aderaldo - CANTORIAS (peleja com o índio Azuplim)


Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de Araújo) Relata o Cego
Aderaldo : " Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas
o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio
Azuplim. Nossa batida foi a que se segue..." Eu saí do Ceará Deixei
meu triste mocambo, Com medo do dezenove, Este pesadelo
bambo. Vinha o coronel Monturo Junto com doutor Molambo... A
dona fome na frente, Na cadeira do trapiche, Dizendo: No Ceará
Tudo é fofo e nada é fixe. Juro que aqui nesta terra Não vinga mais
nem maxixe... A dona Fome me olhou E disse a mim: - Eu pego! Eu
disse: - Não senhora! Eu sei por onde navego, Quem tem vista corre
logo, Quanto mais eu sendo cego... Segui para Fortaleza, Dei uma
viagem além. O barco era o “Maranhão”, E até corria bem, Com
três dias e três noites Chegando nós em Belém... Quando eu cheguei
em Belém, Me encostei naquele cais. - Aonde vai esta linha? Eu
perguntei a um rapaz Ele disse: - Nesta linha Passa um trem para
São Brás... Eu parti para São Bras, Para casa de Gaudêncio Que já
conhecia bem, Ele, Salina e Merêncio; Junto estes amigos Não pude
guardar silêncio... Fui para Madre de Deus, Terra de um povo fiel,
Ali ganhei qualquer cousa Tomei açaí com mel, De manhã peguei o
trem, Fui para Santa Isabel... Depois fui para Americana, Cantei lá
no Apéu, Do sitio de São Luís Eu fui pra Jambuaçu; Eu cantei no
Castanhal, E no Igarapeaçu... No primeiro Caripi Eu cantei, lá fui
feliz, No segundo Caripi Cantei tudo quanto quis, E ali tomei o
trem, Fui cantar em São Luís.... Ali chegou um convite, Eu para
Muricizeira, Depois, cantei no Burrinho Cantei no Açaí Teuã... Fui
cantar no Timboteuã... Segui para Capanema Com coragem e
esperança. Passei uns dois ou três dias E segui para Bragança,
Dizendo sempre comigo: - Quem espera em Deus não cansa...
Quando eu cheguei em Bragança, Não quis ir no Benjamim, Não
encontrando hospedagem, Me hospedei num botequim, Que era
coberto e cavaco E circulado a capim... O dono do botequim Veio a
mim e perguntou: - Cego de onde tu és? Me diga se é cantador. Me
diga se não tem medo De azuplim trovador... Me perguntei: - Não
senhor! Será algum rio-grandense Ou mesmo um paraibano, Ou um
cantador cearense? Ele disse: - Não senhor, É um cantor paraense...
Quando findei a palavra Vi o paraense chegar, Ele trazia consigo
Uma viola e um ganzá, E trazia um tamborim, Que é instrumento de
lá... Ele afinou a viola, Quando bateu no ganzá, Deu um tom no
tamborim Para o baião entoar, Eu tirei a rabequinha E fiz a prima
chorá... Cego - Eu lhe disse: - Oh! Paraense, És uma ninfa de fada,
Teu cântico me parece A deusa da madrugada. Eu lhe peço,
amicíssimo, Que cante a sua toada... Azuplim - Cego, minha toada
é, Um trabalhador garantido. Você pra cantar mais eu Precisa ser
aprendido, Queira Deus tu me acompanhe, ai ai! Pra cantar nesse
gemido... C - Meu amigo, o teu gemido, Tem destacado valor, Canta
bem perfeitamente, Já vi que é bom cantador, Mas amigo, esse
gemido, Me desculpe , que eu não dou... A - Se num dás um só
gemido Também não és cantador, Vá cobrar logo o dinheiro. Do
mestre que lhe ensinou, ai, ai! O cego já apanhou... C - Se gemer foi
cantoria, Você é bom cantador, Pois gemes perfeitamente, No
gemido tem valor, Mas geme com grande dor... A - Ou que gema ou
que não gema, A boa palavra encerra, Cego, cante aqui mais eu, Que
eu vim lhe fazer guerra, Quero que você me diga, ai, ai! A
linguagem da minha terra... C - A linguagem da tua terra, Não é
linguagem mesquinha, É toda no guarani Estudada, é bonitinha!
Para que não perguntaste A linguagem da terra minha?... A - Eu
quero é que diga da minha Por que muda de figura: Cego, diga para
mim O que nós chama mucura, Quero que você me diga, ai, ai! O
que é saracura... C - É verdade, essa linguagem Muda mesmo de
figura, O que nós chama casaco Vocês só chamam mucura E o que
nós chama sericóia Vocês chamam saracura... A - Cego, diga para
mim: O que é jamaru? Queira Deus você me diga O que é jacuraru,
O que é macuracar ai, ai! O que nós chama jambu... C - É o que nós
chama cabeça, Vocês chama jamaru, O que nós chama tejo, Vocês
chama jacuraru, Tipi é mucuracar, E agrião chamam jambu... A -
Cego, diga para mim O que nós chama jibóia, Quero que você me
diga O que é tiranabóia, Diga aí pra eu saber, ai, ai! O que é
“pegando a bóia”... C - No Piauí tem um besouro De nome
tiranabóia, Nossa cobra-de-veado Cresce aqui, chamam jibóia, Em
minha terra almoço e janto, ... tanto aqui só “pego a bóia”... A -
Cego, diga para mim O que é a sacupema, Veja se você me diz O
que é piracema, Diga aí rapidamente, ai, ai! O que nós chama
panema... C - O que nós chama raiz Vocês chama sacupema, O que
nós chama peixe muito Vocês chamam piracema; A um sujeito
preguiçoso Chega aqui chamam panema... A - Cego, diga para mim
A língua dos Tupinambá, A língua dos Aimoré, Ou dos índios Caetá,
Ou sobre os índios Tamoios Ou índios Tamaracá... C - Sobre as
gírias dos índios, Desde o Norte até o Sul, Pixueira é coisa fria, Um
beijo chama meiru, Tacioca é uma é uma casa, Morada de caititu...
A - Agora o cego Aderaldo Me respondeu muito bem, Vi que gírias
dos índios, Ele segue mais além, Pelo jeito que estou vendo Você é
índio também... C - Meu amigo eu não sou índio, Nasci num pobre
lugar: Que é tão propenso a seca Que obriga agente emigra Sol
danado de Iracema, Terra de Zé de Alencar... A - Cego, deixa de
mentira, Tua terra não tem nome, Tua terra é uma miséria, É lugar
que não se come, De lá veio cinco mil, Tudo pra morrer de fome...
C - Dos cinco mil que vieram Algum era meu parente, Uma era tio,
outro primo, Conterrâneo e aderente, Mais esse povo só come
Massa de figo de gente... A - Saí daí, cego canalha, Com a sua
poesia, Nesta minha carretilha Você hoje se esbandalha, Teu cântico
tem grande falha, Quer cantar mais não convém... Você somente o
que tem É entrar no bacalhau; Apanhar de peia e pau Cearense aqui
não vai bem... C - De onde tu vens contrafeito, Cabeça de onça
mancho, Bote o matulão abaixo E conte a história direito, Me diga o
que aqui tem feito Por estes mundos além, Se você matou alguém
Ou então se fez barulho, Vai muito mau seu embrulho, Paraense
aqui não vai bem... A - Quando eu pego um cantador Dou três
tacada danada, Lhe deixo a cara inchada De relho e chiquerador, É o
café que lhe dou, É isto que lhe dou, E não diz nada a ninguém,
Apanha e fica calado, Triste e desmoralizado Cearense aqui não vai
bem... C - Disse uma velha na rua Que em outros tempos atrás Você
e um seu rapaz Lhe roubaram uma perua; Veja que moda esta sua
Roubando quem vai, quem vem, Como tu não tem ninguém Mais
ladrão do que você. Tome lá meu parecer: Paraense aqui não vai
bem... A - O cantador que eu pegar Pelo meio da travessa Nem
Padre lhe confessa Enquanto eu não lhe soltar, Dou-lhe arrocho de
lhe quebra, Osso e costela também, Quebro tudo que ele tem,
Deixo-lhe o corpo em bagaço, Tudo quanto eu digo eu faço,
Cearense aqui não vai bem... C - Até as moças donzelas Pediram
aos cabras da feira Para meter-lhe a madeira E arrebentar-lhe as
costelas. Você abra o olho com elas, Boa surra você tem, Boa surra
você tem, Neste dia também vem A velhinha da perua Quebrar-lhe a
cara na rua, Paraense aqui não vai bem... A - Também não quero
brigar, Não sou homem de intriga, Eu não nasci para briga E não
vivo de pelejar; Também não quero teimar Porque isso não convém,
Lhe venero e quero bem, Digo isso pode crer; Não quero lhe
aborrecer, Cearense aqui vai bem... C - Amigo, como mudou, Que
coisa misteriosa! Tens o perfume da rosa Que a pouco desabrochou.
Por isso tem o maior verdor Do que lá no bosque tem. O anjo lá de
Belém Ouviu nossa cantoria, Entrarmos em harmonia, Paraense
aqui vai bem... Havia quatro cervejas Que um coronel apostou
Dizendo que todas quatro Pertencem ao vendedor Nós dois
bebemos as cervejas Nem um nem outro apanhou... (Estado do Pará,
junho de 1919) Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo
nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato - CE. Logo
após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado.
Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não
conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho.
Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896),
quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de
Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos
olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho
em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e
improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde
começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia
estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a
andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o
Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi
aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho
(maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas,
com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para
Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu
conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio
Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum
tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu
pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um
gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão
apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital.
Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo
depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos. Que também deu
certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em
Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba,
No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o
comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um
prejuízo considerável. Desde 1945, então com 67 anos, Cego
Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o
sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar,
cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera
pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a
serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as
disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter
a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade,
mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24
meninos. Texto extraído do livro " Eu sou o Cego Aderaldo ",
prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora - São Paulo, 1994.
***
O CEGO ADERALDO.

*** -- Peleja do Cego Aderaldo com Ze Pretinho dos Tucuns --


Cego Aderaldo, alias, Firmino Teixeira do Amaral Apreciem, meus
leitores, Uma forte discussao, Que tive com Ze Pretinho, Um
cantador do sertao, O qual, no tanger do verso, Vencia qualquer
questao. Um dia, determinei A sair do Quixada Uma das belas
cidades Do estado do Ceara. i Ver os cantores de la. Me hospedei na
Pimenteira Depois em Alagoinha; Cantei no Campo Maior, No
Angico e na Baixinha. De la eu tive um convite Para cantar na
Varzinha. Quando cheguei na Varzinha, Foi de manha, bem cedinho;
Entao, o dono da casa Me perguntou sem carinho: Cego, voce nao
tem medo Da fama do Ze Pretinho? Eu lhe disse: Nao, senhor, Mas
da verdade eu nao zombo! Mande chamar esse preto, Que eu quero
dar-lhe um tombo Ele chegando, um de nos Hoje ha de arder o
lombo! O dono da casa disse: Ze Preto, pelo comum, Da em dez ou
vinte cegos Quanto mais sendo so um! Mando ja ao Tucumanzeiro
Chamar o Ze do Tucum. Chamando um dos filhos, disse Meu filho,
voce va ja Dizer ao Jose Pretinho Que desculpe eu nao ir la E que
ele, como sem falta, Hoje a noite venha ca. Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador E dizendo: La em casa, tem um cego
cantador E meu pai mandou dizer-lhe Que va tirar-lhe o calor! Ze
Pretinho respondeu: Bom amigo e quem avisa! Menino, dizei ao
cego Que va tirando a camisa, Mande benzer logo o lombo, Porque
vou dar-lhe uma pisa! Tudo zombava de mim E eu ainda nao sabia
Se o tal do Ze Pretinho Vinha para a cantoria. As cinco horas da
tarde, Chegou a cavalaria. O preto vinha na frente, Todo vestido de
branco, Seu cavalo encapotado, Com o passo muito franco.
Riscaram duma so vez, Todos no primeiro arranco. Saudaram o
dono da casa Todos com muita alegria, E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria. Vou dar o nome do povo Que veio pra
cantoria: Vieram o capitao Duda Tonheiro, Pedro Galvao, Augusto
Antonio Feitosa Francisco, Manoel Simao Senhor Jose Campineiro
Tadeu e Pedro Aragao. O Jose das Cabaceiras E o senhor Manoel
Casado, Chico Lopes, Pedro Rosa E o Manoel Bronzeado, Antonio
Lopes de Aquino E um tal de Pe-Furado. Amadeu, Fabio Fernandes,
Samuel e Jeremias, O senhor Manoel Tomas, Goncalo, Joao Ananias
E veio o vigario velho, Cura de Tres Freguesias. Foi dona
Merandolina, Do gremio das professoras, Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras Essas duas eram da igreja i Foi tambem
Pedro Martins, Alfredo e Jose Segundo, Senhor Francisco Palmeira,
Joao Sampaio e Facundo E um grupo de rapazes Do batalhao
vagabundo. Levaram o negro pra sala E depois para a cozinha; Lhe
ofereceram um jantar De doce, queijo e galinha Para mim, veio um
cafe E uma magra bolachinha. Depois, trouxeram o negro,
Colocaram no salao, Assentado num sofa, Com a viola na mao,
Junto duma escarradeira, Para nao cuspir no chao. Ele tirou a viola
De um saco novo de chita, E cuja viola estava Toda enfeitada de
fita. Ouvi as mocas dizendo: Oh, que viola bonita! Entao, para eu
me sentar, Botaram um pobre caixao, Ja velho, desmantelado,
Desses que vem com sabao. Eu sentei-me, ele vergou E me deu um
beliscao. Eu tirei a rabequinha De um pobre saco de meia, Um
pouco desconfiado Por estar em terra alheia. i Meu Deus, que
rabeca feia! Uma disse a Ze Pretinho: A roupa do cego e suja!
Botem tres guardas na porta, Para que ele nao fuja Cego feio, assim
de oculos, So parece uma coruja! E disse o capitao Duda, Como
homem muito sensato: Vamos fazer uma bolsa! Botem dinheiro no
prato Que e o mesmo que botar Manteiga em venta de gato! Disse
mais: Eu quero ver Pretinho espalhar os pes! E para os dois
contendores Tirei setenta mil reis, Mas vou completar oitenta Da
minha parte, dou dez! Me disse o capitao Duda: Cego voce nao
estranha! Este dinheiro do prato, Eu vou lhe dizer quem ganha: So
pertence ao vencedor Nada leva quem apanha! E nisto as mocas
disseram: Ja tem oitenta mil reis, Porque o bom capitao Duda, Da
Parte dele, deu dez... Se acostaram a Ze Pretinho, Botaram mais tres
aneis. Entao disse Ze Pretinho: De perder nao tenho medo! Esse
cego apanha logo Falo sem pedir segredo! Como tenho isto por
certo, Vou pondo os aneis no dedo... Afinemos o instrumento,
Entremos na discussao! O meu guia disse pra mim: O negro parece
o Cao! Tenha cuidado com ele, Quando entrarem na questao! Entao
eu disse: Seu Ze, Sei que o senhor tem ciencia Me parece que e
dotado Da Divina Providencia! Vamos saudar este povo, Com sua
justa excelencia! PRETINHO: i Cor de couro de toucinho! Um cego
da tua forma Chama-se abusa-vizinho Aonde eu botar os pes, Cego
nao bota o focinho! CEGO: Ja vi que seu Ze Pretinho E um homem
sem acao Como se maltrata o outro Sem haver alteracao?!... Eu
pensava que o senhor Tinha outra educacao! P.: Esse cego bruto,
hoje, Apanha, que fica roxo! Cara de pao de cruzado, Testa de
carneiro mocho Cego, tu es o bichinho, Que comendo vira o cocho!
C.: Seu Jose, o seu cantar Merece ricos fulgores; Merece ganhar na
sala Rosas e trovas de amores Mais tarde, as mocas lhe dao Bonitas
palmas de flores! P.: Cego, eu creio que tu es Da raca do sapo
sunga! Cego nao adora a Deus O deus do cego e calunga! Aonde os
homens conversam, O cego chega e resmunga! C.: Ze Preto, nao me
aborreco Com teu cantar tao ruim! Um homem que canta serio Nao
trabalha verso assim Tirando as faltas que tem, Botando em cima de
mim! P.: Cala-te, cego ruim! Cego aqui nao faz figura! Cego,
quando abre a boca, E uma mentira pura O cego, quanto mais
mente, Ainda mais sustenta e jura! C.: Esse negro foi escravo, Por
isso e tao positivo! Quer ser, na sala de branco, Exagerado e altivo
Negro da canela seca Todo ele foi cativo! P.: Eu te dou uma surra
De cipo de urtiga, Te furo a barriga, Mais tarde tu urra! Hoje, o cego
esturra, Pedindo socorro Sai dizendo: Eu morro! Meu Deus, que
fadiga! Por uma intriga, Eu de medo corro! C.: Se eu der um tapa
No negro de fama, Ele come lama, Dizendo que e papa! Eu rompo-
lhe o mapa, Lhe rompo de espora; O negro hoje chora, i i Com um
palmo de fora! P.: No sertao, peguei Cego malcriado Danei-lhe o
machado, Caiu, eu sangrei! O couro eu tirei Em regra de escala:
Espichei na sala, Puxei para um beco E, depois de seco, Fiz mais de
uma mala! C.: Negro, es monturo, Molambo rasgado, Cachimbo
apagado, Recanto de muro! Negro sem futuro, Perna de ticao, Boca
de porco, Beico de gamela, Venta de moela, Moleque ladrao! P.:
Vejo a coisa ruim O cego esta danado! Cante moderado, Que nao
quero assim! Olhe para mim, Que sou verdadeiro, Sou bom
companheiro Canto sem maldade E quero a metade, Cego, do
dinheiro! C.: Nem que o negro seque A engolideira, Peca a noite
inteira Que eu nao lhe abeque Mas esse moleque Hoje da pinote!
Boca de bispote, Venta de boeiro, Tu queres dinheiro? Eu te dou
chicote! P.: Cante mais moderno, Perfeito e bonito, Como tenho
escrito Ca no meu caderno! Sou seu subalterno, Embora estranho
Creio que apanho E nao dou um caldo... Lhe peco, Aderaldo, Que
reparta o ganho! C.: Negro e raiz Que apodreceu, Casco de judeu!
Moleque infeliz, i Se nao eu te surro, Te dou ati de murro, Te tiro o
regalo Cara de cavalo, Cabeca de burro! P.: Fale de outro jeito, Com
melhor agrado Seja delicado, Cante mais perfeito! Olhe, eu nao
aceito Tanto desespero Cantemos maneiro, Com verso capaz
Facamos a paz E parto o dinheiro! C.: Negro careteiro, Eu te rasgo a
giba, Cara de guariba, Paje feiticeiro! Queres o dinheiro, Barriga de
angu, Barba de guandu, Camisa de saia, Te deixo na praia,
Escovando urubu! P.: Eu vou mudar de toada, Pra uma que mete
medo Nunca encontrei cantador Que desmanchasse este enredo: E
um dedo, e um dado, e um dia, E um dia, e um dado, e um dedo! C.:
Ze Preto, esse teu enredo Te serve de zombaria! Tu hoje cegas de
raiva E o Diabo sera teu guia E um dia, e um dedo, e um dado, E um
dado, e um dedo, e um dia! P.: Cego, respondeste bem, Como quem
fosse estudado! Eu tambem, da minha parte, Canto verso aprumado.
E um dado, e um dia, e um dedo, E um dedo, e um dia, e um dado!
C.: Vamos la, seu Ze Pretinho, Porque eu ja perdi o medo: Sou
bravo como um leao, Sou forte como um penedo. E um dedo, e um
dado, e um dia, E um dia, e um dado, e um dedo! P.: Cego, agora
puxa uma Das tuas belas toadas, Para ver se essas mocas Dao
algumas gargalhadas Quase todo o povo ri, So as mocas tao caladas!
C.: Amigo Jose Pretinho, Eu nem sei o que sera De voce depois da
luta. Voce vencido ja esta! Quem a paca cara compra Paca cara
pagara! P.: Cego, eu estou apertado, Que so um pinto no ovo! Estas
cantando aprumado E satisfazendo o povo Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo! C.: Disse uma vez, digo dez No cantar nao
tenho pompa! Presentemente, nao acho Quem o meu mapa me
rompa Paca cara pagara, Quem a paca cara compra! P.: Cego, teu
peito e de aco Foi bom ferreiro que fez Pensei que cego nao tinha
No verso tal rapidez! Cego, se nao e macada, Repete a paca outra
vez! C.: Arre! Que tanta pergunta Desse preto capivara! Nao ha
quem cuspa pra cima, Que nao lhe caia na cara Quem a paca cara
compra Pagara a paca cara! P.: Agora, cego, me ouca: Cantarei a
paca ja Tema assim e um borrego No bico de um carcara! Quem a
caca cara compra, Caca caca cacara! Houve um trovao de risadas,
Pelo verso do Pretinho. Capitao Duda lhe disse Arreda pra la,
negrinho! Vai descansar o juizo, Que o cego canta sozinho! Ficou
vaiado o pretinho E eu lhe disse: Me ouca, Jose: quem canta comigo
Pega devagar na louca! Agora, o amigo entregue O anel de cada
moca! Me desculpe, Ze Pretinho, Se nao cantei a teu gosto! Negro
nao tem pe, tem gancho; Tem cara, mas nao tem rosto Negro na sala
dos brancos So serve pra dar desgosto! Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha, Busquei o negro na sala, Mas ja estava na
cozinha De volta, queria entrar Na porta da camarinha! (fim) ***

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