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José D’Assunção Barros A Construção Social da Cor

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA COR


– Diferença Negra e Desigualdade Escrava
na formação histórica da sociedade brasileira –

1. Igualdade, Desigualdade e Diferença:


três conceitos em interação

Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se


tornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há
certas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar
a mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade,
Desigualdade e Diferença são destas noções complexas que
interagem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidade
de discutir em um ensaio anterior* a idéia fundamental de que a
confusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, e
vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior ou
menor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá este
ensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual ao
desenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e da
Diferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – será
oportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes .
Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer
uma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças”
e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e
Americano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário e
Camponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”.
Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x
‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências1, ou das
modalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um
*
O ensaio em questão foi publicado no número 175 da revista portuguesa Análise
Social (BARROS, 2005: 345-366) e em versão ampliada em outra obra do autor, com
o título Desigualdade e Diferença (BARROS, 2007). Uma comunicação sobre o
tema foi proferida no XII Encontro Regional de História da ANPUH, em 14.08.2006.
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Estaremos aqui muito longe das teorias essencialistas. Por ‘essências’ estaremos
entendendo modalidades de ser construídas e em construção, como logo ficará claro.
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determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamente As contradições, este é o núcleo da questão, são sempre
ao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” são circunstanciais, enquanto os contrários necessariamente se opõem ao
diferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em alguns casos nível das modalidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradas
extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – se no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um
pensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser determinado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que os
“meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamos pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos
utilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontrar que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam
uma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”. (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma
No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distinção
“ser americano”, enfim, não são realidades ou pólos que se opõem, entre ‘contrários’ e ‘contradições’ traz importantes implicações, e disto
mas sim diferenças que se confrontam, cada uma conservando seu dependerá toda a argumentação que desenvolveremos neste ensaio.
próprio espaço de delimitação com referência a uma certa unidade A implicação mais importante da radical circunstancialidade
geopolítica, a uma determinada identidade histórico-cultural, a uma das desigualdades, por contraste em relação ao que ocorre com as
cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a um certo local de diferenças que se afirmam como modalidades de ser, refere-se à alta
nascimento ou relações de filiação. reversibilidade que afeta ou pode afetar estas desigualdades.
Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemos Para melhor entendermos isto, será preciso considerar antes
opor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”, de mais nada que as diferenças são inerentes ao mundo humano –
“Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e para não falar do mundo natural. De modo geral, a ocorrência de
“Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste diferenças de toda a ordem não pode ser evitada através da ação
entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um humana. Vale ainda dizer que a ocorrência de Diferenças no mundo
aspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente da social está atrelada à própria diversidade inerente ao conjunto dos
oposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade e seres humanos, seja no que se refere a características pessoais (sexo,
Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem etnia, idade) seja no que se refere a questões externas (pertencimento
das ‘contradições’. Não se considera um homem pobre ou rico, e por nascimento a esta ou àquela localidade, adesão a certa religião,
tampouco muito instruído ou pouco instruído, senão por comparação ou então a cidadania vinculada a este ou àquele país, por exemplo).
com um outro homem. E entre o homem mais instruído e o menos O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrência de
instruído, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for diferenças reflete-se no fato de que são bem raros os projetos políti-
hipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus (e não cos que se proponham a lutar para eliminar certos tipos de diferenças
degraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homem como as sexuais, etárias ou profissionais (não estamos falando ainda
mais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado, da possibilidade de eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais,
e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora. etárias ou profissionais, o que seria uma questão de outra ordem).
Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitos Com relação às diferenças étnicas, existem no limite os projetos de
relacionados às desigualdades: são aspectos circunstanciais e extermínio, que seguem no entanto sendo excepcionais. Neste extremo
contraditórios, mutuamente reversíveis, somente compreensíveis do pode-se exemplificar com o projeto de eugenia proposto por dirigentes
ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforçaremos esta idéia, do Nazismo alemão, que preconizava abolir diferenças seja através
presidem em todos os casos possíveis a relações contraditórias, e não do extermínio (de judeus, negros, ciganos, eslavos) ou mesmo através
a meras oposições por contrariedade. de experiências genéticas para atingir o tipo “ariano puro”, além de
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programas de esterilização de indivíduos com características não se pode estabelecer uma hierarquia social de qualquer tipo – portanto,
desejáveis. No Brasil da primeira metade do século XX, ideais os três âmbitos que regem o mundo da desigualdade humana – são a
eugênicos chegaram a encontrar abrigo no discurso médico através da Riqueza, o Poder e o Prestígio (pode-se discutir, ainda, a Cultura, no
liderança de Renato Kehl (1923). De todo o modo, a despeito das sentido institucionalizado). Mas o que é falar hoje de Riqueza? É por
distopias e projetos de extermínio gerados por pesadelos totalitários, certo falar também de Propriedade. Estas noções estão entrelaçadas
pode-se prever que sempre existirão homens e mulheres, diversas na modernidade capitalista: a Riqueza encobre a Propriedade, abran-
variações étnicas ou identitárias, indivíduos de variadas faixas etárias, gendo-a, mesmo que não se reduzindo a ela. Vale dizer, se toda a
bem como profissões as mais diversas. Mas pode-se sonhar que um Riqueza, no mundo moderno, não se expressa necessariamente sob a
dia estas diferenças serão tratadas socialmente com menos desigual- forma de Propriedade ... não há como negar, por outro lado, que a
dade. Por isto, as lutas sociais não se orientam em geral para eliminar Propriedade é na atualidade uma das formas mais poderosas de ex-
as diferenças, mas sim para abolir ou minimizar as desigualdades. pressão da Riqueza (dito de outra forma, a Riqueza compra a Propri-
Enquanto pensar Diferenças significa se render à própria edade; é a forma de acesso, por excelência, à Propriedade).
diversidade humana, já abordar a questão da Desigualdade implica Nem sempre foi assim. Na Antigüidade Helênica, por exemplo,
em considerar a multiplicidade de espaços em que esta pode ser Riqueza e Propriedade eram noções perfeitamente desentrelaçadas.
avaliada. Avalia-se a Desigualdade no âmbito de determinados Portanto, os critérios para a avaliação da Desigualdade deveriam con-
critérios ou de certos espaços de critérios: rendas, riquezas, liberdades, siderar cada uma destas noções em separado (como espaços diferentes
acesso a serviços ou a bens primários, capacidades. Indagar sobre a que integrariam a Desigualdade no sentido complexo). Na Grécia
Desigualdade significa sempre recolocar uma nova pergunta: Antiga, a Propriedade significava que o indivíduo possuía concreta-
Desigualdade de quê? Em relação a quê? Conforme foi ressaltado, a mente um lugar no mundo (na polis), e que portanto pertencia ao
Desigualdade é sempre circunstancial, seja porque esta estará mundo político com os conseqüentes direitos à Cidadania2 . Por isto,
necessariamente localizada social e historicamente dentro de um a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substi-
processo, seja porque estará obrigatoriamente situada dentro de um tuía esta propriedade que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe con-
determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará feria obviamente um acesso ao mundo político.
(um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assim Percebe-se aqui que o Poder entrelaçava-se então com a
dizer). Falar sobre Desigualdade implica em nos colocarmos em um Propriedade, e ambos situavam-se em um espaço de conexões em
ponto de vista, em um certo patamar ou espaço de reflexão separado da Riqueza. Além de Poder, Propriedade e Riqueza, havia um
(econômico, político, jurídico, social, e assim por diante). Mais ainda, quarto critério gerador de espaços de desigualdade, que era o da
implica em arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou menos Liberdade. No mundo da Escravidão Antiga, como no mundo da
claros dentro de cada espaço potencial de reflexão. Escravidão Moderna (o Brasil ou a América Colonial, por exemplo), a
Deve-se acrescentar, também, que qualquer noção de Liberdade ou a Escravidão seriam noções óbvias para serem consideradas
Desigualdade não pode ser senão circunstancial em parte porque estão em uma avaliação mais sistemática da desigualdade humana.
sempre sujeitos a um incessante devir histórico os próprios critérios Hoje a Liberdade de todos os indivíduos, como valor ideal e no
diante dos quais a Desigualdade poderia ser pressentida ou avaliada. sentido lato, é fundo comum para qualquer sociedade moderna que
As noções que afetam o mundo das hierarquias sociais e políticas se declare democrática. Deixa, portanto, de ser um critério a partir
transfiguram-se, entrelaçam-se e desentrelaçam-se de acordo com do qual se possa pensar a desigualdade (mas é claro que podemos
os processos históricos e sociais.Um exemplo será particularmente
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elucidativo. Nos tempos modernos, os três grandes âmbitos em que ARENDT, 1989: 71.
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pensar na ‘liberdade de expressão’ ou na ‘liberdade de ir e vir’, conforme A metáfora das cores pode ajudar a compreender o universo
veremos depois). Por outro lado, não é preciso pontuar a Propriedade social. Uma etnia pode marcar suas diferenças (físicas ou culturais)
como critério hierárquico (como faziam os antigos gregos) já que na em relação a uma outra, mas ao mesmo tempo ocorre que uma
modernidade capitalista a Riqueza abrange a Propriedade. Este determinada sociedade pode produzir igualdade ou desigualdade
contraste entre o mundo antigo e o mundo moderno será suficiente, conforme se atribua a cada uma destas etnias maior ou menor espaço
por ora, para registrar a circunstancialidade dos próprios critérios a social ou político. As colisões também podem ocorrer aqui: é possível
partir dos quais se pode pensar a questão da desigualdade social. tratar um determinado grupo social com igualdade política, mas
De resto, o que obriga a falar em circunstâncias para as questões ocorrendo por outro lado uma nítida desigualdade econômica. De
relacionadas à Desigualdade é o fato de que qualquer desigualdade todo modo, é preciso ainda acrescentar que no mundo humano o objeto
que esteja sendo imposta a um grupo ou a um indivíduo está sujeita que reflete a diferença ou a desigualdade não é simplesmente como
ela mesma à já mencionada circunstancialidade histórica, sendo em uma cor na paleta de um artista, mas sim um ser pensante, capaz de
primeira ou última instância reversível. O grupo humano que está refletir sobre a diferença que o caracteriza ou sobre a desigualdade
privado de determinados direitos pode reverter a sua situação através que o atinge. Esse aspecto é fundamental porque torna as Diferenças
da ação social – sua e de outros. Pelo menos em tese, não existem e Desigualdades no mundo humano muito mais complexas, já que
desigualdades imobilizadas no mundo social. Enquanto isto, no mundo sujeitas a auto-referências: as diferenças podem ser afirmadas ou
das diferenças teríamos situações mais francamente estáveis, ou rejeitadas (como traços de identidade individual ou coletiva), e as
mesmo, em alguns casos, parâmetros praticamente permanentes. desigualdades podem ser contestadas ou sofridas passivamente.
Assim, na oposição biológica entre homem e mulher tem-se uma Com vistas a explorarmos mais profundamente as implicações
realidade contundente, ainda que esta possa se mostrar mais complexa do fato de que a relação Igualdade x Desigualdade é da ordem das
através da ocorrência de outros diferenciais sexuais que não poderão contradições, utilizaremos como exemplo significativo a oposição
ser discutidos nos limites deste ensaio. Da mesma forma, os seres entre Pobreza e Riqueza. “Ser pobre” ou “ser rico” – desigualdades
humanos mostram-se todos sujeitos a atravessarem diferentes faixas relacionadas ao plano econômico – são polarizações que trazem
etárias sem reversibilidade possível, e não há como lutar contra isto, algumas implicações imediatas. Para começar, rigorosamente falando
mesmo que seja possível minimizar ou adiar os graduais efeitos da ninguém “é pobre” ou “é rico”; na verdade, o que seria mais adequado
passagem do tempo sobre o corpo humano individual. dizer é alguém “está pobre” ou “está rico”, pois a riqueza ou a pobreza
Enfim, para resumir esta primeira aproximação, pode-se são circunstâncias reversíveis, como já foi dito anteriormente. Além
dizer que em geral a Diferença se coloca no âmbito do “Ser”, disso, “ser pobre” ou “ser rico” implica em uma relatividade. “É-se
enquanto a Desigualdade pertence ao mundo do “Estar” ou das pobre” em relação a certo patamar de comparação: um indivíduo
Circunstâncias. Vermelho é diferente do Azul, mas um pintor pode pode ser mais pobre em relação a outro indivíduo, e ao mesmo tempo
dispensar um tratamento desigual ao uso destas duas cores em uma mais rico em relação a um terceiro (contrariamente ao que ocorre
pintura, conforme enfatize mais uma ou outra. Para este exemplo, mais habitualmente no plano das diferenças, já que um indivíduo não
acabamos de falar em Desigualdade relativamente a um espaço de pode ser mais brasileiro do que outro, mais cristão, ou mais mulher).
critérios específico, que é o da utilização quantitativa de cores De resto, entre a “riqueza absoluta” e a “pobreza absoluta” – se
diferentes pelo artista. Mas poderíamos falar de uma desigualdade quisermos postular hipoteticamente estas posições extremas relativas
entre duas cores no que se refere ao espaço simbólico que o artista à desigualdade econômica – poderemos encontrar inúmeras nuances.
atribuiu-lhe em uma determinada obra (mesmo que a cor valorizada Assim, se não há nuances intermediárias possíveis entre o brasileiro e
não seja aquela que é mais utilizada conforme o critério quantitativo). o americano, entre o russo e o chinês, ou entre o mexicano e o indiano
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– todos diferenças referentes ao campo das nacionalidades – já entre da Etiópia pré-histórica – ou seja, existe apenas uma única “raça
o miserável e o milionário, marcadores tipicamente relacionados à humana”3 . Mas o que mais particularmente interessa para a nossa
desigualdade econômica, encontraremos todas as nuances possíveis. presente discussão é que existem inúmeras e indefinidas tonalidades
Construiremos em seguida um esquema visual, de modo a de pele (e não três ou quatro), e que estas se somam a inúmeros tipos
melhor explicitar a distinção entre as desigualdades e diferenças. Trata- de cabelo e constituições labiais, a diversificados padrões cranianos
se de um quadrado semiótico no qual a noção de “Igualdade” e tendências de estrutura óssea, e a tantas e tantas outras distinções
relaciona-se horizontalmente com a “Diferença” (em uma coordenada biológicas que a bem da verdade não nos permitiriam falar em absoluto
dos contrários que se refere ao plano das essências), ao mesmo tempo em um tipo unificado de Negro ou de Branco.
em que se relaciona diagonalmente com a “Desigualdade” (em um Assim mesmo, quando é construída culturalmente uma
eixo das contradições que se refere ao plano das circunstâncias). A dicotomia entre negros e brancos, são de imediato constituídas duas
indicação de bilateralidade no eixo contraditório da relação entre essências, sem mediações. Se quisermos interpor um tipo
Igualdade e Desigualdade (uma linha com duas setas) indica, como intermediário – o pardo ou mulato – ele será uma nova essência (na
já foi dito, que esses pólos são auto-reversíveis, e também que é verdade uma essência tão “construída” como a dos negros ou brancos,
possível um deslocamento em uma e outra direções ao longo do eixo se assim pudermos nos expressar). Mas essas essências serão sempre
da desigualdade. Já para a coordenada de contrariedade relacionada ambíguas, e contra esta realidade empírica terão de se defrontar os
com os pólos Igualdade e Diferença não há de modo geral sistemas de classificação que tentarem estabelecer uma tipologia
reversibilidade possível. Trocando em miúdos, as Desigualdades são fundada predominantemente na cor da pele4 .
reversíveis no sentido de que se referem a mudanças de estado; as
3
Diferenças, de um modo geral, não. OLSEN, 2001: 48; TEMPLETON, 1999. As evidências da origem única e africana
do homem moderno afirmaram-se nas últimas décadas. Desde os trabalhos pioneiros
Igualdade Diferença de pesquisadores da Universidade da Califórnia liderados por Allan Wilson (CANN,
1987), até os recentes resultados obtidos por uma confluência de pesquisadores
americanos e franceses coordenados por Jun Li, da Universidade Stanford (LI, 2008),
os meticulosos estudos baseados no DNA mitocondrial começaram a chegar a
Desigualdade árvores filogenéticas que mostram invariavelmente uma primeira bifurcação
separando as populações africanas das demais. Do mesmo modo, árvores construídas
(Triângulo Semiótico da Igualdade) a partir de conjuntos de marcadores localizados nos cromossomos sexuais X e Y
apresentam tipologias muito semelhantes. Tudo aponta para uma filiação africana
Uma questão bastante complexa, e que nos interessará mais de todos os grupos humanos conhecidos, e só vem a confirmar outra evidência que
especificamente neste ensaio, refere-se às chamadas “diferenças já aponta o continente africano como o provável berço da humanidade moderna: o
raciais”, ou melhor, às “diferenças de cor”. Quando se busca fato de que os maiores níveis de diversidade genética do planeta são precisamente
encontrados na África (quanto mais antiga uma população, mais tempo esta teve
estabelecer por exemplo uma dicotomia entre Brancos e Negros, é para o acúmulo de mutações em suas estruturas genéticas; deste modo, as populações
fixado imediatamente um contraste entre duas essências. Isto será com maior variabilidade devem ser as mais antigas, sendo este o caso da África).
sempre um problema, pois do ponto de vista científico as raças não 4
As inúmeras variações e oscilações nos sistemas classificadores de raças são
existem enquanto realidades biológicas bem definidas Por um lado a bastante eloqüentes. No Brasil, os censos de 1872 e 1890 propunham 4 divisões:
diversidade humana é tão múltipla e aberta a misturas e superposições os brancos, os negros, os caboclos (ameríndios puros e seus fenótipos), e por fim
os mulatos – categoria para a qual empurravam todos os que “pela pigmentação
que não sustenta a noção da existência de “raças”, e por outro lado as da pele, não podendo incorporar-se a nenhuma das raças originárias, formavam
pesquisas do Projeto Genoma já demonstraram que todos os homens um grupo à parte”. Para o Censo de 1872, ver Recenseamento da população do
modernos descendem de uma matriz comum oriunda de certa região Brazil a que se procedeu no dia 1° de agosto de 1872 (1873-1876).
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Para além da tipificação em Branco, Mulato ou Negro, poderemos


tentar desdobrar novas tentativas de classificações, e criar os conceitos
de Mulato Escuro e Mulato Claro. Mas em todos estes casos estaremos
apenas criando novas categorias essenciais5 . No plano essencial das
Diferenças não existem gradações (ou estados), mas sim categorias
diferenciadas umas das outras. E aqui temos uma das já mencionadas
distinções básicas entre as Diferenças e as Desigualdades. Enquanto
o homem mais rico é o outro pólo do mais miserável, ou o homem
plenamente livre é o outro pólo do escravo mais privado de liberdades
– sempre considerando o espectro de gradações que existe nestes
dois casos – o Negro não é o outro pólo do Branco, nem o Inglês é o
outro pólo do Indiano, e nem sequer o Homem é o outro pólo da Mulher.
Aqui se deve falar respectivamente em “diferenças de cor”, “diferenças
de nacionalidade” e “diferenças de sexo”.
A compreensão das distinções fundamentais entre Diferença
e Desigualdade, que buscamos desenvolver mais sistematicamente
até aqui, é de fato imprescindível para que se possa perceber como
estas noções têm se relacionado entre si no âmbito social, e de
que modo cada uma delas se relaciona com a noção de Igualdade.
Somente a partir disso poderemos iniciar um maior esforço para a
compreensão de certos aspectos relacionados à Escravidão e às
Diferenças de Cor. Desde já, contudo, pontuaremos a
complexidade do tema da Escravidão, uma vez que esta noção
tem sido alternativamente postulada como pertencente ao âmbito
da Desigualdade ou Diferença conforme os interesses sociais
envolvidos e os desenvolvimentos históricos que podem ser
examinados.

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Esse foi o caso da classificação proposta em 1890 por Nina Rodrigues, na obra
“Os mestiços brasileiros”, onde se tenta um enquadramento da população brasi-
leira. A obra prevê a tripartição da categoria dos mulatos: os de primeiro sangue,
os que puxavam mais para o negro, e os que puxavam mais para o branco
(RODRIGUES, 1890). As categorias propostas, além do Mulato, eram: Branco,
Negro, Mameluco (caboclo), Cafuso (negro + índio) e Pardos – últimos referidos
a mestiços complexos que associam os caracteres das três raças. Portanto, Nina
Rodrigues cria uma distinção entre os Mulatos (Branco + Negro) e os Pardos.

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