A vida não responde imediatamente as nossas complicadas expectativas. Por conta disso, certos eleitos, por ela mesma escolhidos de forma singular, seguem seus c aminhos oblíquos e solitários, em uma continuidade criativa pulsante entre o tor turante gemido solitário dentro dos abismos sombrios de nossa malfadada alma e a morna euforia escarnecida das palavras, não-ditas, mal ditas, em dúvida de si m esmo. Eu sou carioca de nascimento e, desde a infância, me sentia opaco, pela co ntemplação cotidiana das belezas naturais da cidade do Rio de Janeiro, a qualque r canto um novo olhar, de uma irretocável harmonia atlântica entre o céu, a mata e o mar. Aos treze anos, mudei-me com minha família, para a Amazônia. E por con ta disso, chego bem próximo da compreensão exata do que tem ocorrido, com todo a quele nascido no Rio de Janeiro, e que seja remarcado a fogo pelo exuberante e i ncandescente sol equatorial, na grande mãe incontestável, senhora de todas as co res, sons e sabores florestais tropicais. Essa minha experiência pessoal deve te r sido bem parecida com a do grande mestre Goeldi que, quando na infância, se de slumbrou com as diversidades pungentes da Amazônia, pelas portas do Estado do Pa rá. Oswaldo Goeldi é nosso verdadeiro expressionista e nosso verdadeiro modernista. O único artista modernista coerente em sua personalíssima produção autônoma e so litária, bem longe das regras poéticas modernistas centradas no conteúdo, e sem a menor preocupação com as tendências oficiais da arte brasileira, do modismo e do mercado de arte, como um todo. Acredito que por conta desse comportamento, tenha sido mais fácil o primeiro rec onhecimento de genialidade de sua valorosa obra, por diversos artistas literário s de gêneros diversos. Goeldi com sua arte estava muito além de seu tempo. E por conta de sua incontest ável personalidade autônoma criativa, não foi bem recebido pela crítica especial izada na arte, como também pelos outros artistas contemporâneos. Mas a continuidade se faz necessária, mesmo quando temos externamente tão poucos estímulos incentivadores para isso. Parece que a estrada da personalidade forte reserva um caminho sombrio e solitário, para seus filhos mais queridos. Sendo assim, a arte de Goeldi impressiona, desde o início, o menos letrado espec tador, pela profundidade das questões sociais modernas que apresenta. Os element os vivos de seus desenhos e gravuras estacam-se e vagueiam vagarosamente pelas s uperfícies negras e brancas, sem terem para onde ir. E os elementos mortos, imóv eis e paisagísticos, assumem um papel metafísico, de lugar nenhum, becos, esquin as, vielas comuns, que podem ser de qualquer grande metrópole do mundo. Os eleme ntos vivos e os elementos mortos trocam de papéis. A realidade sombria e cotidia namente opressora chega a assumir um papel inimaginavelmente mágico e importante . Da mesma forma que os elementos marginais de suas figuras. São eles bêbados, a mbulantes, trabalhadores braçais, prostitutas, pescadores artesanais, que pouco a pouco assumem um papel definitivamente emblemático dentro de todos os processo s criativos na obra do artista. Acredita-se supostamente que o preto seja a inclusão de todas as cores, e que o branco seja a ausência e a exclusão de cada uma delas. Mas na arte de Goeldi, o preto e o branco assumem uma nova realidade em papéis distintos. O negro passa a ser o pano de fundo das palavras não-ditas, dos elementos mudos, dos muros desc ascados, da calçada escura, do canto imundo, que nos ensurdecem e o alvo passa s er o sopro da própria vida, a verdadeira luz, que anima todas as coisas que se m ovem, que nos entorpece no sentido inverso das falsidades. Goeldi nos lembra em muitos momentos, em um convite constante, por sua obra, que as falsas modéstias, as vaidades, as arrogâncias burras e teimosas, o sermos im portantes e privilegiados pouco nos valem verdadeiramente. Pois a morte, futuro certo de cada um, iguala a todos a qualquer modo e não há q uem, nascido algum dia, que dela escape. Mas para Goeldi, a morte não é o fim somente, aparece como alicerce vivo e prese nte em todos os passos de nossas íntimas continuidades e conflitos diários. Goeldi passou dos 6 aos 24 anos na Suíça. Viu de perto os horrores da guerra, da s perdas, da fome, da solidão, elementos que marcaram definitivamente e profunda mente a alma do artista. Nessa mesma época, na Europa, entra em contato com uma produção artística que o marcaria para sempre, a do artista austríaco Alfred Kub in (1877–1959), uma importância ímpar que, até hoje, nenhum trabalho crítico def iniu a exata dimensão. É como se um fosse a contra face do outro, no encontro de um mesmo caminho. Por esses encontros e achados, um na obra do outro, Goeldi e Kubin correspondera m-se constantemente de 1926 a 1951. Acredito que existem certos e determinantes fatos, pessoas e personagens, que, v ez por outra, redirecionam e norteiam ao mesmo tempo nossas caminhadas pessoais. Tanto como foi o encontro com Alfred Kubim, foi também com Hermann Kümmerly. Ti veram, cada um deles, uma importância norteadora dentro da emblemática carreira artística de Goeldi. A vida se repete, em formas semelhantes, e em momentos desiguais, e reserva-nos surpresas dignificantes ao longo de nosso caminho. Assim também foi comigo neste encontro, quase que por acaso, com Lani Goeldi, sobrinha do artista. A agulha imantada do encontro marcado, mais uma vez, cumpre seu papel enigmático . Mas voltando ao grande mestre Goeldi. No período que esteve na Europa, Goeldi limitou-se aos desenhos e à litogravura. Só em 1923, já no Brasil, é que passa a se interessar pela xilogravura. A partir desse mágico momento de complexidade mútua, criador e criatura constroe m um universo metafísico próprio da criação. Evoco o termo latino creatore, sem a menor preocupação de blasfêmia literária co ntra a magna criação. Pois só para Oswaldo Goeldi, “entre os homens nascidos de mulher”, posso facultar esta comparação divina. Daquele que cria divinamente a p artir do nada, e não tão-somente transforma. Ao contrário de muitos, que não fiz eram nada mais do que uma releitura do que já existia, Goeldi veio com um univer so totalmente novo, magistralmente criado, e perpetuado ao longo de sua vasta ob ra. A gênesis na verdadeira arte se repete: como o homem veio do barro, o mundo mágico de Goeldi veio a partir do comum pedaço de madeira. E por meio da mais popular das técnicas de expressão artística, a xilogravura, t ão presente nos livretos da literatura de cordel, expostos entre os anônimos amb ulantes, nas incontáveis feiras livres de todos os nossos “brasis”, vem a expres são máxima de sua arte. Perpetuando-se mais uma vez que o feito magistral, não necessita do mais precios o para ser executado. O grande mestre faz a xilografia assumir um caráter essencialmente expressionist a, moderno e erudito. Goeldi, em goivagens precisas na confecção da matriz, inicia a ressurreição de l uz e força, arranca a cada movimento, do tosco pedaço de madeira, a própria vida . Em uma engenhosidade complicadíssima de colorir com várias cores a gravura no suporte orgânico, revela ao espectador um mundo mágico, totalmente vivo, com uma matriz personalíssima de criador. Consegue Goeldi, no desenho a lápis, no carvão e no nanquim, a mesma expressivid ade encontrada nas gravuras magistrais. Como um verdadeiro maestro, não privileg ia qualquer instrumento: rege qualquer um deles, com o único objetivo de chegar bem próximo da perfeição. Assim, nas mais diferentes técnicas de expressão artís tica, consegue redimensionar a importância do branco e do preto, do claro e do e scuro, da vida e da morte, do comum e do eleito, convidar o espectador solitário , um a um, olho a olho, perante qualquer uma de suas obras, encontrar parte das respostas contidas em todos sombrios abismos pessoais de cada um, e por conta de ste feito, sempre ser celebrado. E as gerações que hão de vir verão, verdadeiramente, Oswaldo Goeldi como o maior artista moderno brasileiro.