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VOCÊ É O INIMIGO

Augusto de Franco

Versão original: E=R 09/09/2009

Os pioneiros do ciberespaço, sobretudo na sua vertente ideológico-literária,


como os ciberpunks, não raro sob a inspiração benéfica de um movimento
anarquista meio fora de época, emprenharam a geração digital que lhes
sucederia com uma idéia-implante: a do medo do Grande Irmão.
Curiosamente - e ironicamente - esse implante foi regado com a
transpiração autoritária de outro movimento, assentado sobre bases que
negavam os próprios princípios anarquistas: o estatismo. O Grande Irmão,
antes identificado com o Estado e seus aparatos, passou a designar as
grandes corporações empresariais, as multinacionais e transnacionais
animadas pela ideologia neoliberal. Se o Estado, antes, era visto
negativamente, depois passou, em virtude desse processo de impregnação
ideológica antiliberal, a ser visto positivamente, como um poder nacional
capaz de se contrapor à globalização (também esta vista negativamente
como o poder das corporações globais). Caberia ao Estado proteger os
povos da exploração dos megaconglomerados que queriam dominar o
mundo. Só o Estado-nação - imaginavam - teria poder suficiente para se
contrapor a esse poder sem controle alimentado pela ganância e
(des)regulado caoticamente pela dinâmica do mercado.

Essa foi a tônica das manifestações de boa parte dos representantes dessa
geração nos últimos 30 anos, do alinhamento político-partidário ou eleitoral
no Brasil às mobilizações de Seattle. Tratava-se, então, não mais de liberar
as forças criativas e empreendedoras dos cidadãos, mas de colocar um freio
na desregulação que ensejava a desmesurada acumulação de poder
econômico e político por parte dos novos e impiedosos atores globais.
Tratava-se, portanto, não de trabalhar pela an-arquia e sim de produzir
superavits de ordem top down, a partir de estruturas centralizadas de
comando-e-controle, sempre segundo uma lógica política adversarial,
deslizada da arte da guerra e inegavelmente autocrática.

Ao identificar como inimigo principal o processo de globalização - tomado,


reducionisticamente, como globalização apenas econômica ou dos mercados
- os participantes desses movimentos como que absolveram as estruturas
centralizadoras que, há seis mil anos, vêm reproduzindo no mundo um
padrão de hierarquização da rede social e, ao mesmo tempo, absolveram a
si próprios de qualquer culpa pela verticalização do mundo. Todo mal está
nos outros. O inimigo está lá fora e acima. Os demônios que devemos
exorcizar são os grandes conglomerados que produzem a pobreza, a
miséria, a fome e a devastação ambiental (conquanto uma rápida visita à
China ou à ex Alemanha Oriental teria sido suficiente para refutar esta
última alegação, mas isso agora não importa mais).
Na sua pressa por simplificar, por razões políticas, a interpretação do
mundo, reduzindo-a a uma competição simétrica, a um embate do bem (os
povos, arrebanhados em Estados-nações) contra o mal (as gananciosas
corporações empresariais sem-pátria), não viram essas pessoas que o
capitalismo realmente existente (não aquele dos livros dos economistas e
dos discursos de outros ideólogos do mercado) foi, desde que surgiu, o
resultado de uma associação perversa entre empresa monárquica e Estado
hobbesiano. Mas isso agora também não importa mais porquanto -
entrementes - uma nova época foi emergindo.

Mas a nova época, cuja gestação sua miopia não permitia entrever, não era,
por incrível que pareça, a da disputa pelos rumos da globalização e sim a da
efetiva trama subterrânea da glocalização. Não era a do surgimento das
novas potências no chamado terceiro mundo em contraposição ao poder do
Império (nem a desse outro besteirol designado pela sigla BRIC), como
novos atores no cenário global, supostamente mais comprometidos com a
erradicação da pobreza e das desigualdades (e que poderiam, com boa
vontade e uma overdose de proselitismo ambiental, ser convertidos à luta
contra o aquecimento global), mas a da emergência da sociedade em rede.
Uma sociedade cada vez mais pulverizada e mais desorganizada (segundo
os velhos padrões de ordem top down), porém cada vez mais
interconectada, distribuída e clusterizada (em miríades de novas
comunidades sócio-territoriais, setoriais ou temáticas, de prática, de
aprendizagem e de projeto). Uma sociedade cada vez mais vulnerável ao
swarming e ao crunching, em um mundo cada vez mais diverso e maior em
termos geográfico-populacionais e cada vez menor em termos sociais (small
world networks).

A idéia-implante do horror ao Grande Irmão, que na verdade se


transformou em um programa verticalizador depois de ter abandonado sua
raiz anárquica e passado a admitir a lógica da política como arte da guerra
e a necessidade de regulação autoritária, continuou rodando na rede social
(ou, se quisermos lançar mão de uma abstração, continuou vigendo como
um modelo mental resiliente na cabeça dos indivíduos) e provocando uma
cegueira coletiva. Tal cegueira não permitia ver que - na sociedade em rede
(como sempre é mesmo qualquer sociedade, mas agora mais evidenciada
porquanto emergindo em termos glocais com graus maiores de distribuição,
conectividade e possibilidade de interação em tempo real ou sem-distância)
- o Grande Irmão está também pulverizado em uma infinidade de
"Pequenos Irmãos". Ou seja, o Grande Irmão não está apenas lá fora, no
cume dos megaconglomerados multinacionais, mas aí do seu lado, quem
sabe sentado na sua própria cadeira de dirigente ou funcionário burocrático
de uma pequena empresa, ONG ou órgão estatal (e justamente quando
você está sentado nela).

Ele está no meio de nós. A fórmula ritual tirada de uma passagem da


escritura evangélica evoca uma célebre controvérsia teológica e exegética
sobre a presença do divino: estaria 'Ele' dentro de nós, (do coração) dos
seres humanos como indivíduos ou entre nós - quer dizer, nas relações que
tecem a comunidade - (quando conformamos um coração coletivo, o
sentido original da assembléia dos amantes ou ecclesia)? Mutatis mutandis -
e nesse caso mudando para o avesso: o avesso do 'Ele' como símbolo de
fraternidade - o Grande Irmão também está no meio de nós, o que é uma
outra maneira de dizer que o programa verticalizador está rodando na rede
social à qual estamos conectados. Essa presença sacramental, prefiguração
de uma estranha parousia onde o fim está no começo (dos sistemas de
dominação), promove continuamente (ou intermitentemente) a
verticalização do mundo, mas não por meio de uma estratégia global, de
um plano sinistro de domínio do planeta e sim por meio da verticalização
dos muitos mundos que, em termos sociais, compõem fractalmente o que
chamamos de mundo.

Você verticaliza o seu mundo enquanto faz downloads desse programa


verticalizador a partir da nuvem social que chamamos de mente. Mesmo
que não queira, você é compelido a fazer isso em todas as suas atividades:
quando monta uma empresa para prestar consultoria (e quer viver do
sobrevalor gerado pelo trabalho de seus empregados ou colaboradores),
quando funda uma ONG para defender a causa ambiental (e designa um
board e um staff hierárquicos), quando organiza um time de futebol de
várzea (e escolhe logo um presidente), quando articula uma "rede social"
ou comunidade presencial ou virtual (e submete assuntos à votação
produzindo artificialmente escassez). Você faz isso até quando estrutura
uma associação de caridade, um grupo de oração ou um terreiro de
Umbanda. Enquanto trabalha construindo fronteiras opacas ao invés de
membranas permeáveis aos fluxos com o ambiente, você vê - e constrói
permanentemente - inimigos (os que estão fora do seu espaço estratégico,
daquele ambiente em que você aceita o outro no seu próprio espaço de vida
mas somente na medida em que esse outro torne-se um "nós"
organizacional). Enquanto faz isso, por certo, isso você não vê, mas você é
o inimigo.

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