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DUAS REVOLUÇÕES

Antonio Gramsci
3 de Julho de 1920

1ª Edição: L'Ordine Nuovo, II, 8, 3 de julho de 1920.


Tradução: Thiago Chagas Oliveira, em 22/12/2006.
HTML de: Fernando Araújo para MarxistsInternetArchive, janeiro de 2007.

Toda forma de poder político não pode ser historicamente concebida e justificada se não
como o aparato jurídico de um real poder econômico, não pode ser concebida e justificada se não
como a organização de defesa e a condição de desenvolvimento de um determinado ordenamento
nas relações de produção e de distribuição de riqueza: este cânone fundamental (e elementar) do
materialismo histórico resume todo o complexo de teses que tentamos desenvolver organicamente
em torno do problema dos conselhos de fábrica, resume as razões pelas quais colocamos como
centrais e preeminentes, no tratamento dos problemas reais da classe proletária, as experiências
positivas determinadas pelo movimento profundo das massas operárias para criação,
desenvolvimento e coordenação dos conselhos. Por isso, sustentamos que:
1. a revolução não é necessariamente proletária e comunista quando se propõe e consegue
abater o governo político do Estado burguês;
2. não é proletária e comunista nem mesmo quando propõe e consegue destruir os institutos
representativos e a máquina administrativa através das quais o governo central exercita o
poder político da burguesia;
3. também não é proletária e comunista quando a onda de insurreições populares entrega o
poder em mãos de homens que se dizem (e sejam sinceramente) comunistas.
A revolução é proletária e comunista apenas quando é liberação de forças produtivas
proletárias e comunistas que vinham elaborando-se no seio mesmo da sociedade dominada pela
classe capitalista, é proletária e comunista na medida em que consegue favorecer e promover a
expansão e a sistematização das forças proletárias e comunistas capazes de iniciar o trabalho
paciente e metódico necessário para construir uma nova ordem nas relações de produção e
distribuição, uma nova ordem na qual se torne impossível a existência da sociedade dividida em
classes e cujo desenvolvimento sistemático tenda, por isso, a coincidir com um processo de
esgotamento do poder de Estado, com a dissolução sistemática da organização política de defesa
da classe proletária, que se dissolve como classe para se tornar humanidade.
A revolução que se concretiza na destruição do aparelho estatal burguês, bem como na
construção de um novo aparelho estatal interessa e envolve todas as classes oprimidas pelo
capitalismo. Ela é determinada imediatamente pelo fato brutal de que, nas condições de carestia
legadas pela guerra imperialista, a grande maioria da população (constituída por artesãos, por
pequenos proprietários rurais, por pequenos burgueses intelectuais, por massas camponesas
paupérrimas e também por massas proletárias atrasadas) não possuem mais nenhuma garantia no
que se refere às elementares exigências da vida cotidiana. Esta revolução tende a ter,
predominantemente, um caráter anárquico e destrutivo e a manifestar-se como uma explosão cega
de cólera, como um tremendo desencadeamento de furores sem objetivo concreto, que se
compõem num novo poder de Estado somente quando a fadiga, a desilusão e a fome terminam
por reconhecer a necessidade de uma ordem constituída e de um poder que a faça
verdadeiramente respeitar.
Esta revolução pode produzir uma pura e simples assembléia constituinte, que procure
medicar as feridas provocadas no aparelho estatal burguês pela cólera popular; pode alcançar até
o soviet, até a organização política autônoma do proletariado e das outras classes oprimidas,
porém não ousam ir para além das organizações, não ousam tocar nas relações econômicas e
são, portanto, obrigadas a recuar diante da reação das classes proprietárias; pode ir até a
destruição completa da máquina estatal burguesa, bem como ao estabelecimento de uma
condição de desordem permanente, na qual as riquezas existentes e a população vão se
dissolvendo e desaparecendo, esmagadas pela impossibilidade de qualquer organização
autônoma; pode até chegar a estabelecer um poder proletário e comunista que, não obstante, se
esgota em repetidas e desesperadas tentativas para suscitar pela autoridade as condições
econômicas de sua permanência e de seu fortalecimento, mas que termina, no final, derrotado pela
reação capitalista.
Na Alemanha, na Áustria, na Baviera, na Ucrânia e na Hungria realizam-se desenvolvimentos
históricos deste tipo; o ato destrutivo da revolução não é seguido pelo processo de reconstrução da
revolução em sentido comunista. A existência das condições externas — Partido Comunista,
destruição do Estado burguês; fortes organizações sindicais, armamento do proletariado — não foi
suficiente para compensar a ausência destas condições: existência de forças produtivas tendentes
ao desenvolvimento e à expansão, movimento consciente das massas proletárias no sentido de
dar substância ao poder econômico agregando-lhe o poder político, vontade das massas
proletárias de introduzir na fábrica a ordem proletária, de fazer da fábrica a célula do novo Estado,
de construir o novo Estado como reflexo das relações industriais do sistema de fábrica.
Eis porque nós sempre sustentamos que o dever dos núcleos comunistas existentes no
Partido seja aquele de não cair em alucinações particularistas (problema do abstencionismo
eleitoral, problema da constituição de um partido “verdadeiramente” comunista), mas de trabalhar
para criar as condições de massa nas quais seja possível resolver todos os problemas particulares
como problemas do desenvolvimento orgânico da revolução comunista. Pode, de fato, existir um
Partido Comunista (que seja partido de ação e não uma academia de doutrinários puros e de
politiqueiros, que pensam “bem” e se exprimem “bem” em matéria de comunismo) se não
existirem, no meio das massas, o espírito de iniciativa histórica e a aspiração à autonomia
industrial que devem encontrar seu reflexo e sua síntese no Partido Comunista? E, uma vez que a
formação dos partidos e o surgimento das forças reais históricas de que os partidos são o reflexo,
não surgem de um só golpe, a partir do nada, mas segundo um processo dialético, o dever maior
das forças comunistas não é, portanto, aquele de dar consciência e organização às forças
produtivas, essencialmente comunistas, que deverão, ao se desenvolver e expandir, criar a base
econômica segura permanente do poder político proletário?
Do mesmo modo: pode o Partido abster-se da participação nas lutas eleitorais para as
instituições representativas da democracia burguesa, se ele tem o dever de organizar politicamente
todas as classes oprimidas em torno do proletariado comunista de modo que, para obter isto, é
necessário que ele se torne o partido de governo destas classes em sentido democrático, dado
que somente do proletariado comunista pode ser partido em sentido revolucionário?
Na medida em que se torna o partido da confiança “democrática” de todas as classes
oprimidas, na medida em que se mantém permanentemente em contato com todos os estratos do
povo trabalhador, o Partido Comunista conduz todos os estratos do povo a reconhecer no
proletariado comunista a classe dirigente que deve substituir o poder de Estado da classe
capitalista, ou seja, ele cria as condições nas quais é possível que a revolução como destruição do
Estado burguês se identifique com a revolução proletária, com a revolução que deve expropriar os
expropriadores, que deve iniciar o desenvolvimento de uma nova ordem nas relações de produção
e de distribuição.
Destarte, enquanto se apresenta como partido específico do proletariado industrial, enquanto
trabalha para dar consciência e direção precisa às forças produtivas que o capitalismo suscitou
com seu desenvolvimento, o Partido Comunista cria as condições do poder de Estado nas mãos
do proletariado comunista, cria as condições nas quais é possível que a revolução proletária se
identifique com a revolta popular contra o Estado burguês, na qual esta revolta se transforma no
ato de liberação das forças produtivas reais que se acumularam no seio da sociedade capitalista.
Estas séries diversas de acontecimentos históricos não são separadas e independentes; são
momentos de um mesmo processo dialético de desenvolvimento, no curso do qual as relações de
causa e efeito se articulam, se invertem, interagem entre si. A experiência das revoluções mostrou,
todavia, como, depois da Rússia, todas as outras revoluções fracassaram subitamente; mostrou,
ainda, como o fracasso da segunda revolução mergulhou as classes operárias em um estado de
prostração e envilecimento, que permitiu às classes burguesas se reorganizarem fortemente e
iniciar a obra sistemática de esmagamento das vanguardas comunistas que tentavam se
reconstituírem.
Para os comunistas que não se contentam em ruminar monotonamente os primeiros
elementos do comunismo e do materialismo histórico, mas que vivem na realidade da luta e
compreendem a realidade assim como ela é, do ponto de vista do materialismo histórico e do
comunismo, a revolução como conquista do poder social por parte do proletariado não pode ser
concebida se não como o processo dialético na qual o poder político torna possível o poder
industrial e o poder industrial torna possível o poder político. O soviet é o instrumento de luta
revolucionária que permite o desenvolvimento autônomo da organização econômica comunista, de
modo que, a partir dos conselhos de fábrica, chega ao conselho central da economia, que
estabelece os planos de produção e distribuição, conseguindo assim suprimir a concorrência
capitalista. O conselho de fábrica, como forma da autonomia do produtor no campo industrial e
como base da organização econômica socialista, é o instrumento da luta mortal para o regime
capitalista, na medida em que cria as condições nas quais a sociedade dividida em classes é
suprimida e se torna “materialmente” impossível qualquer nova divisão em classes.
Mas para os comunistas que vivem na luta, esta concepção não permanece como
pensamento abstrato: transforma-se em motivo de luta, isto é, em estímulo para um esforço de
organização e propaganda.
O desenvolvimento industrial determinou nas massas certo grau de autonomia espiritual e
certo espírito de iniciativa histórica positiva: é necessário dar uma organização e uma forma a
estes elementos de revolução proletária, criar as condições psicológicas de seu desenvolvimento e
de sua generalização no meio de todas as massas trabalhadoras mediante a luta pelo controle da
produção.
É necessário promover a constituição orgânica de um partido comunista, que não seja uma
corja de doutrinários ou de pequenos Maquiavéis, mas um partido de ação comunista
revolucionária, um partido que tenha consciência exata da missão histórica do proletariado e saiba
guiá-lo para a realização desta sua missão, que, por isso, seja o partido das massas que querem
libertar-se, com seus próprios meios, autonomamente, da escravidão política e industrial através
da organização da economia social e não um partido que se sirva das massas para tentar
imitações heróicas dos jacobinos franceses. É necessário criar, na medida em que isso pode ser
obtido pela ação de um partido, as condições nas quais existam duas revoluções, mas onde a
revolta popular contra o Estado burguês encontre as forças organizadas capazes de iniciar a
transformação do aparelho nacional de produção por um instrumento de opressão plutocrática em
instrumento de libertação comunista.

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